A POÉTICA DE VIEIRA

                                                                                  Marco Lucchesi

                                                                                   (Professor Doutor do Departamento de Neolatinas da UFRJ e escritor, autor de O Sorriso do Caos, Os Olhos do Deserto, entre outros)

 

A visão das Partes 

Antônio Vieira é desses autores, cuja poderosa totalidade enseja freqüentes releituras, onde se revelam partes inúmeras de seu espírito continental. São tais e tantas as abordagens dos aspectos multiformes de Vieira – como o discurso e a língua, a teologia e a política, a economia e a religião –, que chegam a formar uma das bibliotecas mais bem acabadas das letras luso-brasileiras. E do contato com este mundo novo, barroco e universal, surgem grandes ensaios, com seus fluxos e refluxos, no espaço de quase um século de boa metodologia. Mas a tarefa não se esgota, apesar (e por causa) daquelas mesmas páginas. Quanto mais se escreve – eis o paradoxo de Vieira –, mais e mais resta a dizer. E a tendência que hoje parece tomar corpo é aquela que persegue um entendimento que pretende não perder de vista, mesmo em estudos específicos e parciais, o sistema de Antônio Vieira, como as dimensões da História e do Quinto Império, ou, em outras palavras, o sentido de unidade que varre de ponta a ponta obra tão vasta.

Vieira sente a unidade queimar-lhe o rosto e as mãos. E em vez de se perder em múltiplos fragmentos, num sem-número de compósitos breves, exige do intelecto a compreensão do todo. Tal como na Divina comédia, onde cada pedra do “Inferno” possui uma razão estrutural, a unidade em Vieira concentra-se na melodia do todo, em recorrentes citações, em claros Leitmotive. Assim, a palavra, no Jesuíta, como a pedra, em Dante, desafia a multiplicidade, de selvas e labirintos, na construção de um pensamento em chamas, desde a solidão factual ao agregado complexo da estrutura. A dialética da parte e do todo, da imagem e do espelho, propicia uma interpretação forte, tal como ele próprio – Antônio Vieira – analisa em cada partícula do pão consagrado: 

E assim como se parte o cristal, sem se partir a figura, assim se parte a hóstia sem se partir o corpo de Cristo. E assim como a figura está em todo o cristal e toda em qualquer parte dele, ainda que seja muito pequena, assim em toda hóstia está todo Cristo e todo em qualquer parte dela, por menor e mínima que seja. E assim, finalmente, como o rosto que se no cristal, dividido em tantas partes, é sempre um e o mesmo, e somente se multiplicam as imagens dele, assim também o corpo de Cristo, que está na hóstia dividido em tantas partes, é sempre um corpo, e somente se multiplicam as suas presenças. (Sermão do Santíssimo Sacramento, parte V).[1] 

Todo fragmento, imagem e palavra, multiplica-se, diante daquele espelho, que jamais desiste de sua função: debelar o múltiplo, sob a chama da unidade tão perseguida por Vieira, nos sermões e nas cartas, e que tornou possível uma leitura transversal de sua obra. Sua totalidade guarda implicações não apenas discursivas, mas metafísicas, como insiste desde o “Sermão da Sexagésima”, ao rechaçar a ausência de um fio-condutor, de um tema central. Vieira invoca o céu noturno, límpido e claro, como espelho da unidade primordial, ante-babélica, que os sacerdotes devem perseguir. Assim, também, diante das línguas da Amazônia, maiores que as de Babel, fora preciso recorrer ao fio de Ariadne, sonhado pelas gramáticas jesuíticas, aspirando, afinal, ao brasílico, que havia de tornar una todas as línguas, por onde se pudesse comunicar melhor, entre nomes e verbos rudes, a imago Dei, de um Cristo não partido (na unidade do Verbo), mas integrado na pele das palavras, ressurrecto nas línguas, em cujo vocabulário começava a ser conhecido

Quando Deus confundiu as línguas na torre de Babel, ponderou Filo hebreu, que todos ficaram mudos e surdos, porque ainda que todos falavam e todos ouviam, nenhum entendia o outro. Na antiga Babel houve setenta e duas línguas: na Babel do rio das Amazonas se conhecem mais de cento e cinqüenta, tão diversas entre si como a nossa e a Grega; e assim quando chegamos, todos nós somos mudos, e todos eles surdos. Vede, agora, quanto estudo e quanto trabalho será necessário para que estes mudos falem, e surdos ouçam. (Sermão da Epifania, parte 4). 

Dessa tensão (da parte e do todo, da língua e das línguas, da imagem e do espelho) surgiu o Corpo da História. Desde a saída do Paraíso. Da Diáspora da Unidade. Para Vieira, o tempo havia de trazer de volta o estado adâmico. Como em Paulo: Tudo em todos. E havia de preparar o Mundo ao último ato da Redenção.  O tempo linear – do Gênesis ao Apocalipse, insiste o Jesuíta – é maior que o tempo cíclico, das estações e das demais formas de eterno retorno. E, além disso, não cria apenas etapas cumulativas, de que o presente não seria mais que uma partícula. O devir produz uma tensão, que antecipa o Pleroma. O presente é obra do passado, mas tem asas de Futuro. Tal como no Deuteronômio, o tempo não é senão a ponte entre a Revelação e a Consumação – o hayyom, do Velho Testamento. E a História sagrada e profana que é una e sacra, para Vieira – oferece outros e maiores enigmas, que demandam espelhos e tipologias, capazes de articular as figuras de Cristo e Moisés, Eva e Maria, Judas e Jonas. O passado bíblico antecipa o que será: o Verbo e o Tempo. Por isso, a História sacra é maior que a profana. É modelo. E paradigma. E seus motores permanecem invisíveis, movidos por Deus. Ainda não são os homens que fazem e sofrem a História. O tempo humano é um capítulo da eternidade (interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio como sabe Vieira, citando Boécio), não mais que um capítulo, inaugurado pela hýbris de Adão, e sem o qual o Verbo não teria podido fazer-se carne. Como na Jerusalém, de Torquato Tasso, ignoramos onde começa a História. Mouros e cristãos enfrentam-se na Terra, enquanto anjos e demônios combatem no céu, e mal sabemos de onde se origina o imenso turbilhão. O trabalho dos homens. E os dias de Deus... 

No Padre Vieira – como para o Bossuet, das Oraisons funèbres – o tempo cessa na Eternidade, ao encalço do qual jamais se arresta.  O rio da História corre para o mar, como o Tibre, o Jordão e o Amazonas. E o Impermanente há de ser, como em Donne e Quevedo, a única forma da Permanência.  O tempo é de Heráclito – e de suas lágrimas. E a duração isto se deve, primeiro, aos gregos e, depois, aos portugueses – será como um navio sobre as águas, cujo porto é Cristo. O drama da História divide-se entre Heráclito e Parmênides, fluxo e permanência, ser e não ser.

Por isso, o poder temporal deve colaborar com o espiritual, apressando o curso da História, do não ser até o ser. Dessa discussão, pela via nova ou antiga, depende a prática política da Idade Média e Moderna, com os tratados de Marsilio de Padua, Dante e Maquiavel. Vieira decide-se pela autonomia das esferas, e, ao mesmo tempo, pela estreita colaboração do papa e do imperador.  Os poderes devem assegurar a demanda de Infinito, gerada nas entranhas do tempo. Para Vieira, a pax lusitana iria ensejar o equilíbrio dos poderes, e produzir uma plenitude que resultaria na conversão da Política em Metafísica. O sonho do mar português era uma nova travessia do Mar Vermelho. Portugal seria a Páscoa do Universo.

 

As Razões do Todo 

Antes do Império luso, a História foi marcada por uma sucessão de civilizações, como vemos no sonho de Nabuco, lido por Daniel, ou em Zacarias. Quatro idades passaram. Quatro impérios. E foram assírios, babilônios, persas e romanos, os que ensaiaram, com maior ou menor êxito, a monarquia universal. Todos deixaram de ser. Glórias, medalhas, nínives e atenas foram levadas pelos temporais da História: 

Prêmio e castigo são os dois pólos em que se resolve e sustenta a conservação de qualquer monarquia (...). Sem justiça não reino, nem província, nem cidade, nem ainda companhia de ladrões que possa conservar-se. Assim o prova Santo Agostinho com autoridade de Cipião Africano, e o ensinam conformemente Túlio, Aristóteles, Platão e todos que escreveram de república. Enquanto os romanos guardaram igualdade, ainda que neles não era verdadeira virtude, floresceu seu império e foram senhores do mundo; porém tanto que a inteireza da justiça se foi corrompendo pouco a pouco, ao mesmo passo enfraqueceram as forças, desmaiaram os brios, e vieram a pagar tributos os que os receberam de todas as gentes. Isto estão clamando todos os reinos com suas mudanças, todos os impérios com suas ruínas, o dos Persas, o dos Gregos, o dos Assírios (Sermão da Visitação de Nossa Senhora, parte 2). 

O fim da Justiça leva à morte dos impérios. Sobrevivem, à pompa e circunstância dos tempos idos, poucas e míseras ruínas. Pulvis et umbra. Não mais que sombra e . Desmaiam os brios. Morrem as virtudes. Cessam os méritos. E as forças. E os domínios. E as leis. Tudo que foi, não é. A glória de César. A beleza de Alcibíades. A fama de Sócrates. Varridos pelo Triunfo da Morte. Prêmio e Castigo. Amargo remédio da Providência. O Tempo do Cosmos e o Tempo da Terra. Ontem e Hoje. Sic transit gloria mundi: 

Todas as coisas se resolvem naturalmente, e vão buscar com todo o peso e ímpeto da natureza o princípio donde nasceram. O homem porque foi formado da terra, ainda que seja com dispêndio da própria vida e suma repugnância da vontade, sempre vai buscar a terra, e descansa na sepultura. Os rios esquecidos da doçura de suas águas, posto que as do mar sejam amargosas, como todos nasceram do mar, todos vão buscar o mesmo mar e nele se desafogam, e param como em seu centro. Assim todas as coisas deste mundo, por grandes e estáveis que pareçam, tirou-as Deus com o mesmo mundo do não ser ao ser; e com Deus as criou do nada, todas correm precipitadamente, e sem que ninguém lhes possa ter mão, ao mesmo nada de que foram criadas (Primeira Dominga do Advento, parte 4). 

Seguem os rios esquecidos de si. Da doçura de suas águas, correndo para o fim. Também os homens vão buscar a terra, de que nasceram. Todas as coisas deste mundo, Deus as tirou do nada e ao nada hão de voltar. Mesmo Roma – em sua grandeza e formosura não faz exceção. Antes: é o espelho, o destino dos impérios Figura da morte. E seu Triunfo. E pena. E dano. Vieira freqüenta o famoso ubi sunt?, no preto e branco de sua prosa, focalizando,  como Gibbon, mais tarde e noutro contexto, as ruínas de uma Roma defunta, avara de Piedade e de Justiça:    

E se no interior da mesma Roma recorrermos às coisas de maior duração, quais são os mármores; quantos anos, e quantos séculos há, que dos mesmos mármores levantados em obeliscos e arcos triunfais, se vêem as miseráveis ruínas, ou meio sepultadas , ou cobertas de hera? Finalmente aquele império sem fim, a que a fortuna não pôs metas ou limites alguns, nem à grandeza, nem ao tempo; diga-nos, a mesma fortuna onde está, e onde o tem escondido? Busque-se em todo o mundo o império romano, e não se achará dele mais que o nome, e este não em Roma, senão muito longe dela. (...) Acabaram-se as guerras, e vitórias romanas, não fechadas, mas quebrados para sempre os ferrolhos das portas de Jano: acabaram-se os Capitólios: acabaram-se os consulados: acabaram-se as ditaduras: acabaram-se para os generais as ovações e os triunfos: acabaram-se para os capitães famosos as estátuas e inscrições: acabaram-se para os soldados as coroas cívicas, morais e rostratas: acabam-se enfim como  império os mesmo imperadores, e vivem e reinam, ao revés da roda da fortuna, o que eles quiseram acabar. Acabou Nero; e vivem e reinam Pedro e Paulo: acabou Trajano; e vive e reina Clemente: acabou Marco Aurélio e vive e reina Policarpo: acabou Vespasiano; e vive e reina Apolinar: acabou Valeriano; e vive e reina Lourenço: acabou enfim Maximino; e vive e reina Catarina: ele, e os outros imperadores, porque se fiaram falsamente do império sem fim: imperium sine fine dedi: e ela com os seus, e com os outros Mártires, porque reinam e hão de reinar por toda a eternidade com Cristo, num reino que verdadeiramente não há de ter fim: cujus regni non erit finis (Sermão de Santa Catarina, Virgem e Mártir, parte 10).  

Duas Romas. Uma vencida. Outra vencedora. Morta, a Cidade dos Homens. E sua infâmia. Neros. Calígulas. Viva, a Roma Santa. De Pedro e Paulo. Dos Mártires (semen est sanguinis christianorum). Viva, a promessa da Cidade de Deus...  Daquelas ruínas, ferrolhos, estátuas e medalhas, renasce a Roma eterna, capital do Tempo, e suas torres, e pináculos preparam novas altitudes. Puramente agostiniana, todavia, a filosofia da História de Vieira faz de Lisboa o epicentro das grandes mudanças, a nova Roma ocidental – a que havia de fundar o Quinto e derradeiro Império. Reino de um soberano. De uma religião. Católica, como a Terra toda de Portugal e sem fronteiras. Apenas um rei. Um rebanho e pastor. A conversão de todos. E – mirabilia Dei! – os monarcas do mundo inteiro haviam de abandonar a vã cobiça, em favor do rei fatal e do papa angélico. Duas Romas. O prefácio da Parusia.

 

O Princípio de Espaço 

Para Vieira, depois dos judeus, os portugueses eram o segundo povo eleito. Cabia-lhes, uma não pequena tarefa na economia salvífica. O Deus mosaico firmara um pacto com Tubal, primeiro português, filho de Jafé, neto de Noé. A aliança entre Deus e os lusitanos levaria ao maravilhoso do Novo Mundo e à fundação do maior império de que se tem notícia (cesse o que a antiga musa canta), emblema dos altos Desígnios:

 

Quem logrou esta promessa feita a Jafé? E em quem se cumpriu a grandeza de toda esta profecia? Cumpriu-se no primeiro português que houve no mundo, e na sua descendência, que somos nós. O primeiro português que houve no mundo foi Tubal: sua memória se conserva ainda hoje, não longe da foz do nosso Tejo, na povoação primeira, que fundou com nome de Coetus Tubal, e com pouca corrupção, Setúbal. Este Tubal, este primeiro português (como se no capítulo X do Gênesis) foi filho quinto de Jafé (que também é boa a fortuna dos filhos quintos): Filii Japhet, Gomer et Magog, et Madaï, et Javam, et Tubal. E finalmente neste filho quinto de Jafé, neste primeiro português, neste Tubal, se verificou a bênção de seu avô Noé, e se cumpriu a profecia e promessas feitas a seu pai Jafé; porque os portugueses, filhos, descendentes e sucessores de Tubal, são e foram (sem controvérsia) aqueles que por meio de suas prodigiosas navegações e conquistas, com o astrolábio em uma mão, e a espada na outra, se estenderam e dilataram por todas as quatro parte do imenso globo da Terra. Portugueses na Europa, portugueses na África, portugueses na Ásia, portugueses na América: em todas essas quatro partes do mundo, com portos, com fortalezas, com cidades, com províncias, com reinos, e com tantas nações e reis tributários. Houve algum filho de Noé, houve alguma nação outra nas idades, por belicosa e numerosa que fosse, e celebrada nas trombetas da fama, que se dilatasse e estendesse tanto por todas as quatro partes da Terra? Nenhuma. Nem os Assírios, nem os Persas, nem os Gregos, nem os Romanos. E por quê? Porque esta bênção, esta herança, este morgado, este patrimônio, era devido aos Portugueses, por legítima sucessão de pais e avós; derivado seu direito de Noé a Jafé, de Jafé a Tubal, de Tubal a nós, que somos seus descendentes e sucessores. (Sermão Gratulatório e Panegírico, parte 2).

 

As etimologias de Vieira, como as de Vico, apesar de sua fragilidade (coetus Tubal), servem para criar, no labirinto das razões primeiras, um fio de compreensão mítica, um argumento a posteriori, que tire da História uma essência, uma noção de origem, que seria preciso trazer de volta, desde a língua sagrada, anterior a Babel, e compreender o arcano da palavra, o destino da palavra, pois o étimo não oferece apenas uma origem, mas um destino, uma enteléquia (res sunt consequentia nominis para inverter o adágio medieval).

 

Oceano e Destino 

Fundaram os portugueses sublimadas geografias. Novas leituras, em águas jamais cortadas, a não ser pela imaginação de Dante, Ariosto e Rabelais. O mundo ficou maior do que supunham angélicas e orlandos. Caíram as barreiras do espaço. Desenhou-se uma nova exegese. Um mapa-múndi cristão (profetizado por Isaías – dirá Vieira): horizontes perdidos, águas que escondiam outras ilhas, reinos e cidades, reservados às naus portuguesas, cujo sucesso se explicava – ao contrário do Ulisses de Dante – porque Deus o quisera (altrui piacque). A empresa ultramarina produziu danos irreparáveis e um sem-número de naufrágios. Mas o herói épico mostrou-se, inflexível, à altura do plano divino. Os lusitanos eram os novos cruzados. Com suas venturosas proas, faziam do mar a terra de sua andarilha missão.  

O que encobria a terra era o elemento da água; por que a imensidade do Oceano que estava em meio, se julgava por insuperável, como a julgaram todos os antigos, e entre eles Santo Agostinho. Atreveu-se finalmente a ousadia e zelo dos Portugueses a desfazer este encanto, e vencer este impossível. Começaram a dividir as águas nunca dantes cortadas com as venturosas proas dos seus primeiros lenhos: foram aparecendo e surgindo de uma e de outra parte e como nascendo de novo as terras, as gentes, o mundo que as mesmas águas encobriam; e não acabaram então no mundo antigo as trevas desta ignorância, mas muito mãos do Novo e descoberto, as trevas da infidelidade, porque amanheceu  nelas a luz do Evangelho e o conhecimento de Cristo, o qual era o que guiava os Portugueses, e neles e com eles navegava (Sermão da Epifania, parte 2).  

Impressionante observar a geografia vieiriana se tornando uma personagem (Adamastor vencido, metafísico), vigiando a misteriosa semelhança do Mundo Novo com a Bíblia, redimensionada em grandeza, como se houvera mantido intacto o Todo Diferente de uma paisagem sagrada, como aquela percorrida por Francisco Xavier. Os mares de Vieira, Camões e Plotino confundem-se na mesma pátria espiritual, que se conquista nos mares do ser, na distância de outros portos e de outras ilhas. Máquina do Mundo. Máquina do Uno. Francisco Xavier, prossegue Vieira: 

saiu de Lisboa e chegou até o Japão. Tomai agora um mapa, ou uma carta de marear, ponde-a diante dos olhos, e vereis que em toda esta navegação e caminho, de mais de quatro mil léguas, levando Xavier um por terra, outro por mar, sempre o da terra foi o esquerdo, e o mar do direito. A primeira terra que deixou saindo de Lisboa e navegando ao sul, foi à costa de Berbéria até Guiné, toda à mão esquerda, e à direita o mar Atlântico. Dali até o Cabo de Boa Esperança, e voltando o mesmo Cabo até o estreito de Meca, por uma e outra parte a terra era a África sempre à mão esquerda, e à direita o mar Etiópico. Daquele estreito até o Seio Pérsico, a foz do Eufrates, à mão esquerda a Arábia Feliz, e à direita o mar arábico. Da garganta do mesmo Seio até à primeira foz do Indo, a Carmenia, parte da Pérsia à mão esquerda, e à direita o mar Pérsico, por nome mais geral, Eritreu. Do Indo começa a terra, a que ele dá o nome, chamada Índia, e se estende até o cabo de Comorim, à mão esquerda toda, e à direita o mar Índico. Do cabo de Comorim, dá volta, e corre a contra costa do reino de Narsinga, ou Bisnagá, até a foz do Ganges ao mesmo modo à mão esquerda, e à direita o mar ou golfo de Bengala. Seguindo o grande arco que faz aquele golfo pelas costas da mesma Bengala, Pegu, e Sião, até o estreito de Singapura o mais austral de todo o Oriente, todas aquelas terras ficam à mão esquerda, e o mar por onde se navegam, que é o mesmo golfo, à direita. Finalmente, continuando depois de Malaca os reinos de Camboja, Champá e Cochinchina, e o vastíssimo império da China, todo este grande trato de terras demoram à mão esquerda, e o mar ou mares do oceano chinense até o Japão à direita (Xavier Acordado, 1, parte 4).  

Eis o maravilhoso da Distância. O interminável périplo se veste do detalhismo barroco, cujas citações inauguram um mundo de lugares ainda mais longínquos do que as de muitas epopéias. Nomes estranhos, que parecem lembrar o fundo escuro dos quadros de um Fetti – como o de David –, ou de Salvator Rosa como o de Jesus entre os doutores. Uma zona misteriosa, bendita e maldita, ao mesmo tempo, que era preciso tornar luminosa, no contraste da direita e da esquerda, como fizera Dante no Além. Os mares ambíguos de São Francisco tornavam-se melhores, singrados pelo invisível Cristo-Capitão. 

Mas, além da etimologia, da paisagem, e da leitura bíblica (do Velho Testamento e do Apocalipse), de símbolos, empresas e alegorias, o profetismo é o centro das cogitações vieirianas. A tradição de Joaquim de Fiore, Frei Gil, Ubertino de Casale, esmaecidos, mas nem por isso esquecidos, oferece-lhe a perspectiva central de sua obra. E, mais intensamente, a suplantá-los, a presença de Bandarra, cujas profecias mostram-se perfeitamente acabadas, quanto ao pio Monarca. Não havia dúvidas. Para Vieira, o Rei fatal era Dom João IV. O que rompeu os grilhões que ligavam Portugal a Castela. E, vice-Cristo na Terra, favoreceria a consecução das magnalia Dei. Os destinos da Monarquia Universal traço de união entre o rei e o papa, o sol e a lua, o corpo e a alma, o tempo e a eternidade. A espera do Cristo em todos: 

Foi El-rei D. João um rei buscado e achado por Deus. Há reis que parece que os fez a fortuna a olhos fechados, sem buscar nem achar, senão acaso. Destes estão cheias as histórias, como estiveram vazias as coroas. El-rei D. João não foi buscado e achado, senão buscado e achado por Deus. Mas onde o buscou Deus e o achou? O que Deus buscou era um príncipe que pudesse ser rei e restaurador de Portugal: buscou-o entre os príncipes pertensores do reino, e achou-o na casa de Bragança: buscou-o entre os príncipes da casa de Bragança, e achou-o na pessoa d’El-rei D. João. Os príncipes pertensores à coroa de Portugal foram cinco: Espanha, França, Sabóia, Parma, Bragança; e assim como Deus buscou David entre todos os que tinham ou podiam ter algum direito a ele, na real casa de Bragança o achou: Inveni. (Exéquias d’El rei D. João IV).  

O sofrimento de Portugal, de 1580 até 1640, findara com a restauração bragantina, como quisera o Altíssimo. Deus e a História esperavam Portugal, cujas lágrimas lembravam as de Madalena, junto à sepultura de Cristo: 

(...) assim Portugal, sempre amante de seus reinos, insistia ao sepulcro del-rei D. Sebastião, chorando e suspirando por ele; e assim como Madalena no mesmo tempo tinha Cristo presente e vivo, e via com seus olhos e lhe falava, e não o conhecia, porque estava encoberto e disfarçado, assim Portugal tinha presente e vivo a el-rei nosso senhor, e ouvia e lhe falava e não o conhecia (Sermão dos Bons Anos, partes 3 e 4). 

Sofria Portugal. E, todavia, mantinha-se fiel. Como os judeus, na Babilônia. Deus e a História esperavam Portugal. O regresso de Dom Sebastião, novo David, novo Lázaro, com sua aliança firmada com o Messias, havia de libertar Portugal do jugo a que seus próprios erros o haviam conduzido. Assim, redento, como Madalena, Portugal – mais forte nas fronteiras, no império e na – colaborava com o Regresso ao Uno e aprofundava em seus mapas, e gentes, mares e paisagens a conquista do Liber Mundi.  E a História como em Orígenes – não seria mais que a etapa complexa de uma suprahistória. As esperanças de Portugal coincidiam com as do Reino de Deus. Mesmo depois de sua morte, Dom João havia de ressuscitar (diz Vieira ao Bispo do Japão), o que não seria pouco, ultimando, assim, espetacularmente sua missão ante-crística.

Os altos Desígnios têm Portugal como centro. E rasgou mares nunca dantes e doutrem navegados, ampliou a Terra, atingiu impossíveis confins, com meios diminutos, provando não apenas o seu status electionis, mas a obstinada vontade. Caminhos vitoriosos, é bem verdade, e, nem por isso, isentos de vicissitudes. E a semeá-las, o Deus do Antigo Testamento, o Deus tentador, para certificar-se da pureza de seus lugares-tenentes. A prova mais dramática deu-se com a presença holandesa no Brasil. No celebre “Sermão para o Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda”, mais do que uma exortação bélica, essa página antológica da Weltliteratur traça uma perfeita filosofia da História, desesperada e triste, como a de Jó, temerária e grave, como a de Isaías, que exigem do Deus mosaico o cumprimento de Sua parte, a mudança favorável no curso da História, o clamor da Providência, de quem se deve exigir a parte que Lhe cabe, no Tempo: 

Tirais também o Brasil aos portugueses, e assim estas terras vastíssimas, como as remotíssimas do oriente, as conquistaram às custas de tantas vidas e tanto sangue, mais por dilatar vosso nome e vossa (que esse era o zelo daqueles cristianíssimos reis), que por amplificar e estender seu império. Assim fostes servido que entrassemos nestes novos mundos, tão honrado e tão gloriosamente, e assim permitis que saiamos agora (que em tal imaginaria de vossa bondade) com tanta afronta e ignomínia! (...) Que a larga mão com que nos destes tantos domínios e reinos não foram mercês de vossa liberalidade, senão cautela e dissimulação de vossa ira, para aqui fora e longe de nossa pátria nos matardes, nos destruirdes, nos acabardes de todo. Se esta havia de ser a paga e o fruto de nosso trabalho, para que trabalhar, para que foi o servir, para o que foi o derramar tanto e tão ilustre sangue nestas Conquistas? Para que abrimos os mares nunca dantes navegados? Para que descobrimos as regiões e os climas não conhecidos? Para que contrastamos os ventos e as tempestades com tanto arrojo, que apenas baixio no Oceano, que não esteja infamado com miserabilíssimos naufrágios de portugueses? E depois de tantos perigos, depois de tantas desgraças, depois de tantas e tão lastimosas mortes, ou nas praias desertas sem sepultura, ou sepultados nas entranhas dos alarves, das feras, dos peixes, que as terras que assim ganhamos, as ajamos de perder assim! Oh quanto melhor nos fora nunca conseguir nem intentar tais empresas! (...) Mas digo e lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes mesmos que agora desfavoreceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia e que não os tenhais (Sermão para o Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, parte 3).  

Vieira lembrava ao Senhor dos Exércitos que a conquista de tantos reinos, ilhas, cidades realizara-se propter nomem suum, em Seu nome. Causa que era mais de Deus que dos portugueses. Tantas vitórias não podiam ser mera dissimulação para os liqüidar com imerecida ira. Era preciso converter Deus para Deus e fazê-lo sair arrependido daquele sermão. Por outro lado, como não recordar que os portugueses sofreram o complexo de Ulisses – soberbos de suas façanhas –, como não recordar que a injustiça graçava por toda a parte, como não recordar que a desmedida ambição pusera tudo a perder? E, assim, os portugueses foram tentados não apenas pelo mundo, pelo diabo e pela carne. Os portugueses foram tentados terrivelmente por Deus, que os desejava experimentar. E começaram a perder o Império. Antes, Portugal. Depois, Angola. E Pernambuco.

 Mas, como a dor fosse mais forte, como o martírio fosse irreparável, Portugal e seu Império redimiram-se pelo sofrimento. Quase um purgatório terrestre. Portugal seguia isolado no deserto, despedaçado pela dor. Foi quando a Providência o arrancou do abismo, com o fim da monarquia dual e a expulsão dos holandeses. Portugal voltava aos antigos resplendores. A História do futuro podia ser vivida em seus múltiplos aspectos e apelos.

Mais luminosa do que antes e mais sublime, a missão de Portugal. Com as estrelas, que vão desmaiar em suas costas ocidentais, os portugueses são a luz do mundo. Marcados por um destino meta-histórico, viveram uma conversão radical e sentiam-se, portanto, puri e disposti à plenitude da História... Portugal – rocha da Igreja:

 

Quando Cristo apareceu a el-rei Dom Afonso, estava ele na sua tenda lendo a história de Gedeão, não com um, mas com dois mistérios: primeiro, para que o rei desconfiasse da promessa, vendo que os seus portugueses eram poucos: segundo, para que os mesmos portugueses entendessem, que, como soldados de Gedeão, em uma mão haviam de levar a trombeta, e na outra mão a luz. A Pedro chamou-lhe Cristo: Cephas: pedra em significação do que havia de ser: os portugueses primeiro se chamaram Tubales (de Tubal) que quer dizer mundanos, e depois chamaram-se lusitanos: lusitanos, para que trouxessem no nome a luz; mundanos para que trouxessem no nome o mundo; porque Deus os havia de escolher para a luz do mundo: Vos estis lux mundi. (Sermão de Santo Antônio, parte 2). 

Portugal não seria mais que a sua própria e infinita luz. Portugal seria o mundo, sem impedimentos, da Terra ou do Céu. Livre de Bojadores e Tormentas. Nenhum Adamastor a contrastá-lo. E tampouco um Velho do Restelo, que é morta a glória de mandar e a vã cobiça:

“Portugal é toda a Terra (...) E depois de assim remido, depois de assim libertado Portugal, que lhe sucederá? Africa debellabitur: será vencida e conquistada África. Imperium ottomanum ruet: o império otomano cairá sujeito e rendido aos seus pés. Domus Dei recuperabitur: A Casa Santa de Jerusalém será, finalmente recuperada. E por coroa de tão gloriosas vitórias, Aetas aurea reviviscet: ressuscitará a idade dourada. Pax ubique erit: haverá paz universal no mundo. Felices qui viderint: Ditosos e bem-aventurados os que isto virem (Sermao de Santo Antonio, parte 2).

 

O ato final do drama cósmico (a apocatástasis) estava prestes a ser deflagrado no fim da História. Portador dessa missão, tudo dependia de Portugal, Cristo das nações como seria chamado mais tarde. Todas as ilhas do Mundo. Todos os continentes... Tudo seria Portugal. E, tão vasto como a Terra, Portugal deixaria de existir. O Corpo de Cristo e o de Portugal coincidem com o da Eternidade. Cristo, em Todos. Não mais um fragmento. Um indivíduo. Ou solidão. Tudo em Todos.

 

Resumo: A poética do Padre Antonio Vieira. O Quinto Império e a sinergia da história.  Os fragmentos e a totalidade para o novo reino hiperfísico. Sic transit gloria mundi e novos trânsitos.

 

Abstract: The poetics of Antonio Vieira. The Fifth Empire and the sinergy of history. Totality and fragments towards a new hyperfisical kingdom. Sic transit gloria mundi and new other transits.

 

Palavras-chave: parte, todo; múltiplo, unidade; língua, línguas; tempo, eternidade.

 

Key-words: part, whole; unity, multiplicity; language, languages; time, eternity.


 

[1] O texto utilizado dos sermões de Vieira é o que se prepara na edição da Editora Nova Aguillar prevista para 2005.


 

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