Rubens Rodrigues Torres Filho: verso e avesso*

 

                                                                                                       Entre a fala e o desespero

a curta canção que nasce...

         (“arte poética (sic)” ) 

 

I –

Um aspecto que nos intrigou, quando começamos a ler a poesia de Rubens Rodrigues, foi o isolamento deste poeta em relação aos agrupamentos estéticos aguerridos de sua geração e contexto. Tendo começado a publicar no começo dos anos 60, nunca se ouviu falar de qualquer aproximação de Rubens – morador de São Paulo – com as vanguardas concreta ou práxis. Nem muito menos parece ter afinidade estética evidente com o neo-surrealismo um pouco beatnik centrado principalmente em Roberto Piva e Cláudio Willer. Além disso, não teve qualquer relação com o grupo formado à volta da Revista Civilização Brasileira advindo dos Violões de Rua – nunca fez poesia explicitamente política. E, apesar do gosto pelo coloquial e pelo trocadilho, não consta que tenha estabelecido qualquer contato maior com os chamados poetas marginais do Rio. Amizade com um ou outro (como se depreende de um poema em que se refere a Leminski – laço este, aliás, que mais ressalta a sua independência), ou a poetas ligados ao Massao Ohno, como Carlos Felipe Moisés ou Celso Luiz Paulini, aparecem na forma da sociabilidade intelectual, mas não constituem sinal de linguagem comum. Num sentido mais largo, porém, não está imune a alguns traços muito característicos de outros solitários da época. O isolamento lhe trouxe a vantagem da liberdade, como se pode depreender num depoimento seu em que se diz leitor influenciado por muitos, “de Jorge de Lima a Augusto de Campos”. Justamente por não se identificar com grupos, pôde articular-se ao momento cultural de maneira ímpar.

Pretendemos recortar breves aspectos da poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho, com a intenção de aproximá-lo do ar do tempo, a partir de um certo flanco. Motivou-nos a leitura de Novolume (1997) em que toda sua produção até aquela data foi recolhida.

Além disso, é necessário caracterizá-lo, desde logo, também como filósofo. Embora em entrevistas sobre a obra poética ele insista em tomar distância em relação aos estudos universitários, tendendo a minimizar uma possível influência nos seus versos – como se o ranço acadêmico fosse indesejável neste espaço mais livre e subjetivo – tal hesitação atesta a profundidade de sua reflexão, que não se quer externa à fatura do poema. Não há “influência” dos conceitos filosóficos na sua poesia: isto se dá mediado pela imagem, pelo som, pela disposição mentada do material. Sua reflexão mais existencial embebe a criação poética, mas recusa todo pedantismo e artificialismo erudito, conscientemente, a ponto de termos a impressão, lendo os poemas, de que ali ele deseja desmanchar o falso sério ou “a baixeza das alturas” que a filosofia poderia incorporar à imagem de escritor.

Ao escrever artigo sobre Schelling, enfatiza o quão importante foi o símbolo em sua arquitetura de pensamento – algo que não meramente significa mas também é  - : a imagem em que se dá o encontro da idéia e da coisa (o universal concreto), que não pode ser reduzido a uma explicação meramente conceitual. Comenta ainda a utopia schilleriana de reunir filosofia e poesia num só corpo, numa convergência em que “a filosofia reencontrará suas origens” alcançando “fulgurationes do infinito nas coisas finitas”.[1] Enfim, escolheu, dentre os teóricos, aqueles que mais valorizaram a poesia como modo superior de conhecimento – sem que a diferença histórica tenha sido por isso apagada em anseios românticos de totalidade.

Nos melhores momentos, um trabalho fino com a forma quase que barra no leitor a percepção deste, como se a construção se submetesse antes a uma escavação do sujeito que expõe sua precariedade e mesmo se fere:

O olho, vidro,

voou em cacos. O que resta

deste farol, a órbita vazia

é certa fome irônica

e algum câncer prolífico que a ataca.

 

Já mordes no vazio, minha doença,

debaixo do teu dente a polpa é escassa.

                                (“acidente”, O vôo circunflexo)

 

Começando o poema em versos de sentido quebrado e ritmo irregular, deixa entrever, quase a despeito seu, uma solenidade de alexandrino e epitáfio que parece escapar dos cacos anteriores, revelando de um golpe a tensão que consome sua poética.

O que consideramos a grande qualidade dos versos – esta autoconsciência que desvela o estreitamento e a vacuidade do indivíduo e de seu tempo, mordendo-se no osso – ou encontra a sua expressão cabal, como no poema acima, ou resvala no limite mais baixo, no trocadilho aligeirado, que consome os paradoxos em folguedos de pouco fôlego. Talvez essas oscilações se devam ao próprio horizonte de problemas que esta obra propõe, como “defeitos” inerentes à extensão constrita de seus movimentos.

 

II –

Seguindo a sua produção por um fio cronológico, observamos que aparentemente Rubens saiu de um lirismo tardomodernista epigonal, praticado em São Paulo nos idos da década de sessenta, com influência francesa de um suave surrealismo amoroso éluardiano, e enveredou mais tarde pela concisão e pelo humor melancólico.

O modo como se deu o amadurecimento de sua forma de escrita particular não foi paulatino e gradual, tendo passado de uma linguagem mais elevada e rarefeita nos anos 60[2]  a outra, predominantemente irônica e elíptica, a partir de 80. No segundo livro publicado, em 81, depois de dezesseis anos de silêncio editorial, os poemas indiciam uma produção realizada em diferentes momentos. Não sabemos quando foram compostos, pois não há datas apostas, mas o fato é que seus diversos tons e modalizações sinalizam uma fratura significativa, que depois se confirma nos livros posteriores, coincidindo em parte com o tipo de variação sofrida pela tendência aparentemente imediatista e anticonvencional característica dos anos 70. Talvez todo esse tempo sem publicar tenha sido sintoma de insatisfação com o estilo poético anterior.

Vê-se, coincidentemente, Cacaso e Chico Alvim também estrearem com livros afins a um modernismo já convencionalizado, em meados nos anos 60, e passarem abruptamente para o registro intitulado marginal nos livros posteriores, a partir da década de 70.  (Claro que esse rótulo é cheio de imprecisões, e não corresponde totalmente ao que cada qual fez depois, e nem mesmo à sua produção completa daquele período. Mas serviu para definir um sentimento grupal nos anos 70 e esclarecer a atitude de crise mais existencial, uma vez que, a despeito de algumas veementes afirmações espontaneístas em verso e prosa, muitos poemas não confirmam o propagado desprezo à “literatura” – e nem mesmo prescindem dos tradicionais recursos poéticos).

Em Rubens, a presença do veio irônico do tempo o aproxima também de José Paulo Paes, Sebastião Uchôa Leite, das piadas mais leves de Leminski e, como já sinalizado, do deboche de “marginais” intelectualizados como Cacaso e Chico Alvim.

Vôo circunflexo (este livro mais maduro de 81) é título que bem prenuncia o seu conteúdo: um alçar de asas discreto em transfiguração medida e refletida, que se alonga pouco e logo cai pesado sobre si mesmo:

 

As flores abrem asas de manhã

à noite pousa um súbito metal.

             (“Imitação de Mozart”)

 

Um lirismo de breves lampejos, súbito desconsolado pelo entrave, mas que não desiste de existir nem de manter a consciência de que o vôo tem de ser curto, sob pena de incorrer em desmesura:

 

Um pedaço de síntese,

        um arco,

um crescente, se tanto

           no canto

do olho demora agora

         por enquanto

         por encanto.

         (“Elgin Crescent”)

 

A tematização da precariedade da construção poética e de seu lugar pouco assegurado não o faz por isso negar a possibilidade do encontro de arco e lira, simbólico de luzes, posto que tenso e veloz:

 

              (...)   Amor,

feixe de nervos, doce harpa

tangida por rápidas ternuras,

bem sei qual esplendor tu sonhas com empenho

onde pousar, pacificado, teu marulho:

 

figura clara que na água iguala

o peixe ao vôo, lúcido de dor.

                     (“Janela da lua”)

 

Voar de peixe precisa ser rápido, mas nem por isso menos glorioso em sua brevidade.[3] A fresta possível para a anulação da gravidade, se é experimentada em seu esplendor, não permite ilusões de eternidade. O que “pede licença para ser pássaro” é uma poesia de restrição: “Meu canto se agrada do agudo e do escasso.” (“linguagem”) e “O pássaro do poema/abre as asas, orvalhadas/ou molhadas de suor?” Uma pergunta que denuncia o cansaço mas também o desejo em relação ao próprio vôo poético, que se reconhece acanhado, quase sem fôlego, porém sonhador. Outra figura que se apresenta é da água contida, que flui e sem demora se estanca, imagem adequada para esse instante de abertura de asa que se recolhe tão logo se expande. Calhas, fios, navalhas – são outras palavras que balizam o corte e a condução estreita do espaço de liberdade. Mover-se para dentro é a única possibilidade naquela conjuntura de encolhimento político:

 

(O que vale: o salto

        dentro

    amadurece)

          (“pari passu”)

 

Já a seguir, em “cantiga partindo-se”, como em muitos poemas desse livro decisivo, uma posição humilde frente ao parco possível confirma esta postura sóbria e interiorizada frente à história:

Deixemos de lado o muito

que se perdeu nos abismos

entre a frase e o seu recado

e se esvaiu nesses vãos.

 

Um pouco ficou retido

nas malhas da coerência.

Dele tiramos paciência,

levedo de nosso pão.

 

A oscilação necessária entre afirmar a positividade do que se conseguiu e a percepção do que imensamente se esvaiu vem reverter, a todo momento, uma possível acomodação na tristeza resignada ou na euforia iludida. A partir daí se finca pé e se continua, embora reconhecendo sem comiseração o resultado parco possível.

N’A letra descalça (85), seu livro seguinte, Rubens se diverte parodiando formas poéticas consagradas num palavra-puxa-palavra e rima puxa rima. O humor bobo de piada velha predomina, quando o poeta alia a verve da “sacada súbita” – como define Davi Arrigucci[4] a sua poesia – ao mal-estar. Já na abertura do livro:

 

É tudo – solilóquio fascinado.

É nada – solidão que se esvazia.

É isto – pensamento pé na estrada,

poeira ao sol poente. Pó? Pois ia.

 

O excesso de aliterações e ecos sonoros dá à quadra um ar gnômico de sabedoria proverbial. Forma gasta para tratar da percepção da desimportância de tudo, que revela a consciência secreta do “desejo decepcionado” da maior parte de sua “pois ia”. Dele bem percebeu Cacaso: “Apesar do jogo lúdico e da gratuidade que percorrem o livro, e que são requisitos da criação artística, o seu virtuosismo parece disfarçar um niilismo mais profundo que vibra como uma sensação de vazio na experiência final do leitor.”[5]

Um momento forte de desconfiança em si e no mundo encontramos em “(duplo) resíduo”:

 

Antigamente eu acreditava nos direitos

de minha subjetividade soberana.

Hoje em dia não há mais direitos nem esquerdos:

um fio apenas, sem espessura,

marca o limite do mundo.

As árvores de Montparnasse – que sentem (na cor) o outono –

tem mais folhagens que a alma.

. . .

 

(e o poema continua com comparações entre o vazio da alma e a careca crescente...)

Aqui se desvela sem ilusões a queda dos tempos histórico, existencial, natural, para quem viveu 68 em Paris e lá foi amigo de Foucault. A desesperança irônica em relação a quaisquer projetos utópicos, no amor ou na política, torna-se cada vez mais assídua.

Poros (1989) é um livro alentado. A epígrafe de Burroughs resume o desejo de encontrar o que é vital e liberar-se de discursos alheios, alienados, além do âmbito do corpo: “Language is a virus from outer space. Listen to my heartbeat”. O importante, posto que tacanho, o que existe, é esse ritmo do coração: como a voltar ao essencial (“Perto do coração não tem palavra?” diria Ana Cristina poucos anos antes – e não é casual a aproximação: ambos desconfiam dos discursos, da História, das aspirações grandiosas... e ela também lia os beats, embora não Schiller, como ele: “Ah, quando a alma fala, já não é a alma que fala”...).

Esse título justamente remete à tentativa de contato num espaço restrito, como se a palavra fluísse de corpo a corpo. Sempre descrente em relação às sublimações da arte, nega o “inatingível esplendor” literário, no qual “o real se retira humilhado”(“o lamento”).

 Retrovar (1993), o volume publicado a seguir, também vai nessa direção: o ritmo do coração e seu pulsar erótico ou solitário, desconfiado da palavra e de quaisquer sistemas. Um acolhimento sexual seria a mais alta realização. Mundo exíguo, na medida do umbigo, sua “filosofia” de vida é “o xis da dêixis”:

 

Aqui e agora

o now e o here

formam meu pícolo nowhere.

            – Onde é aqui? – implora agora

(ambíguo umbigo) o que é.

Aqui soçobra

este now frágil.

E agora, no fundo

do poço, José?

 

Sem pesar (ou com pesar) o gosto pelos trocadilhos infames (now/here – nowhere, now – nau/soçobrar), o naufrágio acaba sendo fundo e estreito... Este modo chistoso de tratar da dor, seja da perda amorosa, seja da perda de horizontes, é mesmo o reconhecimento da derrota que nega toda miragem de felicidade, e apenas com as palavras irônicas resiste.

Assim, evita imagens elevadas ... o que existe teria que ser sempre vitalmente corpóreo, uma vez que só o corpo salva (um pouco...). Há um despudor moleque aliado à descrença em salvações meta-físicas. Nisso Rubens se assemelha grandemente ao tom geral de sua geração que, na contramão das esperanças de mudança política dos anos 50 e 60, preferia naquele momento ater-se ao desmascaramento geral do senso comum opressivo, por meio da ironia esquiva, mantendo-se no lugar privado que lhe restava. Tal posto observatório, que prefere envolver-se pelo não envolvimento, era afinado com a reflexão oblíqua de sua poética.

Somos instados a nos defrontar, em muitos poemas, com a estrita aderência ao existente. O poeta despede, pelo deboche ou pela amargura, todo descolamento ou ilusão de transcendência. “Nada de novo, sob o sol” poderia ser o mote da obra. O aspecto lúdico de sua poesia que, por vezes, parodia formas tradicionais como o soneto, reforça o esvaziamento da cultura letrada, tornando-a derrisão e trash. Se Schiller reputava como fundamental para a qualidade da sátira a distância que revela entre real e ideal, aqui houve uma aproximação resignada entre ambos, a partir de um envelhecimento dos tempos (que Hegel consideraria prenúncio do final da poesia, em direção dialética à filosofia...).

Como contraponto, um poema sério e belo é “um toque”, tentativa contida de expressão que já se sabe fadada ao fracasso:

 

Estive

algumas vezes só

como um rochedo

batido pelas bestas ondas verdes

do mar adjacente. Só

é como estar ausente

no centro exato. Limita por dentro.

O céu redondo, capa impermeável

ou sobretudo lírico, acrescenta

um toque de ironia

ou de clemência: ave,

algumas vezes chuva,

no mínimo uma estrela.

 

Aqui, o ritmo em staccato e os cortes drásticos dos versos dificultam a enunciação corrente, reiterando a impossibilidade da comunhão. As imagens não promovem encontros: o rochedo não se consola com as ondas ironicamente aliterativas do mar, ou com os limites opressivos do horizonte em que até a estrela que ali brilha iluminando sua solidão é fixa e portanto paisagem inútil. Tanto por fora como por dentro o lamento sem refúgio ou consolo reconhece sua impotência.  O “solitude récif étoile” de Mallarmé, ponto de partida, não encontra amigos na proa para o brinde nem acredita no lirismo que enfuna velas de viagem. Há uma subtração no tom, pois o isolamento não se deu apenas em relação ao mundo, mas igualmente em relação a si mesmo. A pedra é ausente de si, matéria que não interage, imóvel. Alcançada pela água ou pela luz, não é permeável em relação a um mundo estrangeiro a si. Ave, chuva, estrela e onda movem-se no céu e no mar, mas não podem alcançar a pedra, alheia a tudo “que na vida é porosidade e comunicação”. Assim, justamente as imagens mais costumeiras da lírica romântica que Rubens estudou, que reúnem homem e cosmos em símbolos (como a realizaram Goethe e Schiller), são atualizadas ao revés, no laconismo severo de enjambements tristes.

Mas poemas assim pungentes são raros. No geral, dessacralizar é a norma: um humor até escrachado que pretende voltar ao simples do “paradise revisited” corroendo ilusões de sublime. (Um parêntesis: a nosso aviso, a ironia hoje, ainda que descenda do poema-piada modernista ou do ouriço romântico apresenta um tom algo diferente: um contraste menor com o “alto” ou “ideal”. Em Drummond de Alguma Poesia, em Oswald e em certo Murilo, o humor ou o chiste apontavam para o desconcerto entre norma e realidade ou entre indivíduo e sociedade, mas ainda a água da modernização não era tão poluída quanto a partir de meados de 60, quando a nova ironia de Paes e Sebastião se afirmou. Daí para frente, o horizonte do futuro torna-se cada vez mais apertado e, especialmente com os marginais, desencantado. Cremos que Rubens cultiva o lúdico cético dessa nova onda dos “pós-utópicos”. Por outro lado, se haveria alguma semelhança entre sua poesia e a dos marginais – pelo viés do descompromisso aparente com as “instituições sociais e culturais”, nele isto não se deve a algum tipo de entusiasmo juvenil e sim, ao contrário, pelo ceticismo que nem no próprio – ceticismo - acredita).

 

III -

Em Poemas Novos (1994-97), mais recente, é nítido o elogio do instante, a procura do aqui e agora que ao menos não busca falsa transcendência. Tentativas além são desqualificadas como risíveis, imprecisas. Por outro lado, o lugar do instante é magnificado como possibilidade de irrupção do novo. Não se perdeu de todo a esperança:

 

É novo, escandaloso, está nascendo.

Ouve bater a pálpebra do instante.

Claro, calcula

 

a mínima distância, esse exagero

imperceptível, clássico. Paisagens

anteriormente anônimas recuam.

                            (“ato primeiro”)

 

Assim, em alguns momentos, como esse dos primeiros poemas do livro, há um clima de entusiasmo. Estaria Rubens batizando um novo tempo de criação poética? Sim e não: logo se manifesta a ambivalência. Já em “elogio do oco”, a seguir, suspeita da honestidade dos cheios, preferindo a estes a transparência do vazio.

E após, em “após o sinal do bip”, reconhece:

 

Primeiro era melhor (valia mais)

querer o nada que não querer nada.

Sem merecer uma sequer vírgula digna

agora a vida acaba, a vida cabe

em muito, o máximo, de pequenez,

a vida apequenada.

Chegou um tempo em que não se quer nada

e o menor querer levará o prêmio,

o prêmio estímulo do melhor mínimo –

e esse é o máximo. Com isso

estamos, e o estar com isso

é tudo – combinação paupérrima e binária.

Atendo ao telefone disso tudo.

Só posso responder com o ocupado.

 

Este “não querer nada” se tornou mais importante do que o “querer o nada” nesta “vida apequenada” em que seguimos ocupados em ações desimportantes e sem horizonte, perdendo tempo ao telefone, miudamente esperando uma promessa que não se cumprirá. Há aqui uma recordação esmaecida de Drummond (“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus./ Tempo de absoluta depuração.”) mas sem o mesmo teor de angústia e altura, pois o poeta dá de ombros para o mundo... Como já dissemos, há, por vezes, um excesso de paródia num mundo gasto. Zen irônico que curte o presente possível, o carpe diem humilde de “anjos pedestres”. O livro também achincalha com a filosofia, desde os gregos, restando ao final uma afirmação nada assertiva da existência como único reduto.

Como se Rubens exultasse até mesmo com a simples vivência do instante mas logo corroesse tal fugaz felicidade com a percepção desiludida de que, na verdade, só nos restou a impossibilidade de uma vida como busca de sentido. Por isso seus chistes tem um lado meio tolo, até chato.[6] Pois conformar-se sem sentimentalismos ilusórios seria o que nos sobrou no espaço exíguo. Conclusão paralítica, aporética, sem síntese dialética futura.

Porém, - e aqui abro um parêntesis para duas citações - percebem tanto Fernando Paixão quanto Abrahão Costa Andrade que não se trata de desistência ou fraqueza esse recolhimento ao instante mas problematização irônica do lugar da poesia. Há forte autoconsciência existencial e histórica em sua obra. Diz o primeiro:

Estamos diante de um poeta vigoroso, em que se revela, desde a primeira vista, uma astuta capacidade de ganhar distância em relação às dobras do mundo. Como? Podemos responder com seus versos:

 

Em nome do poema

estar aqui e rir. Ser pequeno,

andar aceso: por qual vão

se consumir? Prezado rio das coisas.

qual dos dois: fluir, florir?

. . .”

                         (“poema sem nome”, in Poros)

 

Duas perguntas colocadas nestas poucas linhas. Sabe o poeta que, para incandescer a língua, é importante escolher o vão certo por onde correr o poema, voltado para o riso ou para o toque lírico. Escreve, pois, uma peça que interroga a si mesma. Mas, vale a pena alertar, não observemos nesse ato uma vocação narcísica para a metalinguagem. Pelo contrário, aqui a dúvida se enuncia por força de um rigor que não se deixa baratear. Ao enunciar o dilema, o autor zela por um sentido de integridade que também questiona o lugar do poema frente à circunstância (“nem sei se o banal espreita/com malícia, devagar”), como que fazendo um acerto de contas.”[7]

 

O “poema sem nome” teve a sorte de encontrar um segundo leitor interessado, que lhe dedicou análise reflexiva, da qual quero extrair o trecho inicial, muito a propósito do que aqui relevamos da poesia de Rubens Rodrigues:

Esse poema se constrói sob uma advertência, a epígrafe de Pedro Morato: “Vê que teu verso não ande aceso/onde anda a noite”, aliás muito eloqüente. Pelo contraste entre a clareza (“aceso”) e a escuridão (“a noite”), sugere-se que o verso, passível de ser claro, se acautele nos lugares freqüentados pela escuridão. Se tomarmos essas palavras pelo que elas indicam de presença de luz e de seu contrário e tomamos “luz” como indicadora do que abunda, ao passo que a escuridão seja a ausência ou escassez, a epígrafe então pediria que o poeta fosse avaro quando o tempo fosse, por assim dizer, de vacas magras.[8]

 

Assim, a poesia de Rubens recusa-se a abandonar seu posto de vigilância no escuro, que mimetiza para compreender, ao invés de ofuscar-se na luz. E, apesar da compressão do cotidiano, afirma “Estar aqui e rir”. Posto que sabe “Ser pequeno”, ainda assim se pergunta se a poesia pode “fluir, florir” sem cair no “banal” que “espreita”. E conclui adiante no mesmo poema, com verve resistente:

 

Se caio

é sem sair do lugar.

 

Mas, por outro lado... será esta uma constatação de fundo de poço onde não há espaço para mais um fim de túnel? Então, a graça trágica consiste no vôo das palavras que recaem sobre si mesmas, recusando alçar-se falaciosamente além do horizonte possível, e nos oferecendo a outra insuportável face.

E isto, nada mais do que isto, é poesia: Eppur si muove

 

Viviana Bosi (DTLLC, FFLCH – USP) 

 

Resumo:

O artigo procura compreender aspectos da trajetória poética de Rubens Rodrigues Torres Filho, especialmente no que tange a certas formas irônicas relacionadas à postura do sujeito em horizonte de estreitamento histórico.

 

Abstract:

The article attempts to understand some aspects of Rubens Rodrigues Torres Filho poetical        journey, wich is especially concerned with certain ironic forms related to the subject’s attitude towards a horizon of historical narrowing.

 

Palavras-chave: Rubens Rodrigues Torres Filho, poesia brasileira contemporânea, ironia.

 

Keywords: Rubens Rodrigues Torres Filho, Brazilian contemporary poetry, irony.  


 

* O texto contou com a leitura de Ivone Daré Rabello e Fábio Weintraub, aos quais devo o privilégio do diálogo crítico, raro e precioso, e a ambos agradeço a agudez da atenção e os comentários certeiros, que espero haver honrado.
[1] Torres Filho, R.R. “O simbólico em Schelling” São Paulo, Revista Almanaque, n. 7, respectivamente pp. 91, 92, 96. Tendo se dedicado toda a vida aos estudos acadêmicos, Rubens tematiza, em seus ensaios, questões ligadas à arte – especialmente por tratar, o mais das vezes, das idéias dos pensadores do grupo pré-romântico e romântico alemão.
[2] Investigação do olhar  (1963); Nem tanto ao mar (1965) e Poema desmontável  (1965-67) – ambos incluídos em O vôo circunflexo (1981).
[3] E este já é o terceiro exemplo de dístico final em decassílabo com rima interna ou ecos toantes neste artigo.
[4] em resenha sobre Retrovar, O Estado de São Paulo, 30/10/1993.
[5] Brito, A. C. “Poesia e universidade” em Areas, V. (org.) Cacaso. Não quero prosa. Campinas e Rio de Janeiro: Ed. Unicamp e Ed. UFRJ,  1997, p. 258.
[6] Esta é, aliás, a opinião de Adorno sobre as piadas de Beckett – um tipo de humor que não faz rir, dado o esgotamento da vida e a “dialética da paralização” (em “Trying to understand Endgame”, Notes to literature. Nova York: Columbia University Press, 19      ).
[7] Em “O trapezista pensando”, prefácio de Novolume. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 14.
[8] Andrade, A. C. “Angústia da concisão” in Rodapé: crítica de literatura brasileira contemporânea, n. 1. São Paulo: Nankin Editorial, 2001, p. 97.


 

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