MÁQUINA MÍSTICA DA ASCESE POÉTICA

SONHO, DELÍRIO E LIBERDADE INFINITA DA INOCÊNCIA LÚCIDA

 

Eduardo Guerreiro Brito Losso

Doutorando em Ciência da literatura, professor licenciado da Universidade Estácio de Sá

  

1 – AFIRMAÇÕES ANTES DE TIRAR A ROUPA[1]

 

sinistros dedos dedouram o silêncio, um borrão manchando a vista quando vejo a manhã. discuto, creio, enjambo as palavras com jeito, desisto, me aprumo e prossigo[2].

Somos bichos à toa. Precisamos aproveitar essa eterna impressão transitória que nos sacode por exemplo na  cama com um princípio de manutenção da estranheza[3], e saber gozar dos sentimentos atômicos que correm com a rotação dos espelhos[4]. Essa fórmula prática é que nos guia em direção aos melhores momentos[5], fora da repetição dos hábitos, que existem para você pensar que “está”[6]. Essa é a imperativa noção do homem de ascese, que nunca deveria acordar e pôr os olhos em falso[7].

Você é seu jeito, seu sorriso[8], na melhor das hipóteses[9]: basta ser uma brecha na qual as outras energias se enfiam e deixar passar essa realidade do prazer (a absoluta), que devora todo mundo e não pertence a ninguém. Por isso o arroz de olhos passeia em sua boca com realidade bastante[10].

 

2 – FÓRMULA PRÁTICA DE LEITURA

 

Sabemos que alguns poetas brasileiros exploraram as veredas abertas pelo surrealismo. A partir de Murilo Mendes, alguns chegam a dizer que se iniciou uma espécie de tradição marginal no Brasil, uma antitradição surrealista brasileira dentro da antitradição modernista brasileira que se diferencia da antitradição da modernidade européia em que está incluído o surrealismo. Se isso ocorre, Leonardo Fróes é um de seus componentes mais importantes.

Contudo, por mais marginal que seja, não somente nenhum autor, mas nenhuma obra pode se separar de seu desejo de glória[11] e de tudo o que a ascese da obra tenta expurgar: as relações de poder e prestígio. Mesmo assim, Leonardo procura resistir à mediocridade da glória e à disputa de um lugar no palco da consagração ou da canonização, ou de qualquer outro tipo de prestígio, não em sua prática autoral. No próprio texto encontramos uma ascese rigorosa do desprendimento e do desapego.

 Nomes como Clarice Lispector, Murilo Mendes, Armando Freitas Filho e Cruz e Souza despontam com estratégias que, mesmo que às vezes supostamente pareçam procurar ligações com as características do “povo[12] ou a cultura brasileira, radicalizam no mergulho de uma pesquisa dos núcleospreciso colocar no plural sem negar que há uma estrutura em rede de heterônimos psicológicos) e limites da subjetividade, do isolamento do eu[13], da intimidade da experiência. Mas talvez em poucos momentos dessas obras foi-se tão longe na simultânea liberação do delírio verbal (associado geralmente ao surrealismo) e na constituição explícita e obsessiva de uma ascese de procedimentos não de produção estética: de atitude, comportamento, Blickwinkel (ângulo visual, perspectiva de visão) a serviço de uma estética da existência[14]. Ficará claro adiante que delírio e ascese não se opõem aqui: Leonardo é o próprio asceta delirante. Nãoposição prévia de como agir na vida, pelo contrário, há um flexível espírito de pesquisa das possibilidades de ação, (auto-)observação e técnicas de si, para além-aquém de uma identidade, produzindo verdadeiras alquimias da ação, administradas por uma ascese. Mas o que quer essa ascese?

Tal pergunta é tão irrespondível quanto a pergunta O que quer uma mulher?, e se toda ascese é ascese do e para o desejo, o desejo não sabe absolutamente o que deseja, sabe apenas que deseja o absoluto, ou seja, o indizível, inapresentável, irrepresentável etc[15].

A ascese do escritor moderno deseja o impossível: não o que ele é nem o que existe, mas, sim, o que não se pode ser e o que não existe. Contudo, o desejo do não-existente, pela insistência trágica da ascese, experimenta-o enquanto experiência negativa, sublime, do absoluto[16]. A complexa relação da experiência metafísica da obra de arte com a teologia é o ápice da dialética negativa de Adorno, e nisso ele, como exemplo fulcral de todo o pensamento pós-metafísico, e também todos os pós-estruturalistas nietzscheanos, que nesse sentido o seguiram, alimentam-se de uma negatividade fundamental, encontrada em Platão (da khora), nas teologias negativas (Deus sem atributos), Kant (da coisa-em-si) e Hegel (no movimento contraditório do sujeito).

Nesses momentos da metafísica, em que a negatividade penetra na base e no fundamento dos sistemas, instaura-se uma zona de indiscernibilidade entre o que é metafísico e o que é desconstrução: a máquina de uma engata na outra. A nova máquina que nesse entretempo as rege chamo, portanto, de máquina mística[17].

Mas a vida da mística negativa moderna, tanto teórica[18] quanto poética, deve sempre estar sob os cuidados de uma ascese

 

4-AVENTURAS ASCÉTICAS DA TEORIA E DA POESIA

 

Depois do ponto de partida dado por Geoffrey Galt Harpham nos estudos contemporâneos sobre ascese, cada indivíduo no mundo é praticante de uma ascese diferente. A palavra, inicialmente, está ligada a asceses que se afastam do “mundo”, quer dizer, da vida cotidiana de uma determinada sociedade, e refere-se, no ocidente, especificamente à vida dos monges do deserto, ao monasticismo dos eremitas, verdadeiros “heróisouatletas” da vida religiosa[19]; em relação ao oriente, aos vários tipos de monges budistas, indianos, faquires, ou até àqueles que não renunciam à vida sexual e fazem dela um uso espiritual, como no tantrismo etc.

Com a abordagem de Foucault em relação aos processos de subjetivação, aos cuidados de si, às técnicas de si e ao uso dos prazeres feito na antiguidade[20], e com a apropriação dessas modalidades de análise das práticas da antiguidade para a subjetivação contemporânea em entrevistas, esse tipo de pesquisa foi estendendo a idéia de ascese. Antes de observar-se a vida do atleta olímpico, da modelo macérrima e do yuppie como asceses sem renúncia ao mundo, ou renúncia parcial para alcançar aquilo que na moral religiosa é o mais condenável no mundo – a glória –, os estudos sobre ascese passaram das asceses tradicionais diretamente aos artistas modernos e suareligião da arte”, contendo desejos de impersonalidade (almejada tanto quanto pelo monge) e superioridade moral do estético sobre o mundano[21]. Foi Foucault quem nomeou a ligação do artista moderno, Baudelaire, com a modernidade, instaurando a ascese moderna da vida artística[22].

Procuraremos analisar como Leonardo Fróes elabora uma máquina mística da poética ascética moderna[23], uma máquina de delirar e de tornar o delírio mesmo uma técnica de si, liberar e observar as agitações da alma não para refreá-las, nem para meramente nelas se perder. Leonardo desfaz leis (ou regimentos em geral) dadas (pela gramática, pela literatura tradicional ou contemporânea etc) repressoras da liberdade delirante; em seguida, tenciona encontrar uma prática regrada e voluntária do disparate não para retomar melhor uma ação racional na sociedade[24], mas para revelar, à distância do mundo social, a descoberta de um “contramundo” (Gegenwelt[25]) pessoal e singular ligado à natureza, animalidade e inocência do mundo infantil[26], sem nenhuma preocupação com o mundo dos prestígios, da glória e dos apegos afetivos, econômicos e habituais. Contudo, a repulsa ao social não simplesmente o nega: procura-se assimilá-lo para dele se distanciar.

A brincadeira da criança é a prática ascética ideal, e pode ser resgatada na distância que a poesia toma dos constrangimentos da vida utilitária e cotidiana adulta[27]. Mas também nãomera negação do mundo do trabalho adulto: ele passa a ser o objeto da brincadeira, uma brincadeira que as crianças, propriamente ditas, por não terem nele sido iniciadas, não podem atuar, e por isso mesmo sucumbem à castração de grande parte do seu mundo imaginário.

 

5- LIBERDADE INCONDICIONAL DO IDIOTA DE MISTURAR

 

No poemaTerra do mim[28], há sempre um esforço para se tornar comum, corriqueiro e despretensioso, afirmando-se “nem mais nem menos do que a liberdade idiota/ de participar serenamente do ar[29]. “Idiotaaqui não é uma palavra de desconsideração ou desdém, é uma oposição ao desdém ou desprezo que se daria ao corriqueiro. Em seguida, lê-se: “o ar te come a boca aberta/ atrás da porta o sereno espia/ tudo se resolve negando/ mexendo nas afirmativas gerais”. Ao se participar serenamente do ar, o ar, não muito serenamente, “te come”. O ar é algo que sai da boca aberta, mas pode ser a própria boca de uma liberdade perigosa, canibal. Os dois últimos versos explicam o procedimento exemplificado na palavraidiota” e extensivo à ascese poética de Leonardo. As afirmativas gerais são “essa paralisia da idéia[30] que é preciso mexer para participar da “sensação-liquidez”[31].

Aqui a alquimia poética do pensamento iguala o dizer e o que é dito revelando o procedimento poético e ascético:

 

no entanto o céu cai no prato

e mesmo a misturada certo

tudo o que acontece dá certo

ou ensina os movimentos então

 

na hora sem mim deságuam bocas

quebram-se as barreiras de eu ter    

pensado, prendido o corpo, premeditado         

o que naturalmente fracassa[32]

 

As misturadas metafóricas e as negações das afirmativas gerais, que articulam um pensamento de procedimentos existenciais, quando deságuam no lugar certo, onde tudocerto, quebram as barreiras (pensamentos automatizados) que aprisionam o corpo.

A ascese da linguagem poética, detonadora de experiências e condutora de práticas a um tempo objetivas e misteriosas, quer sair do tipo de atividade geral que foi feita para fracassar, para não usufruir a liberdade de pensamento, para desprezar, temerosamente, qualquer liberdade idiota, a liberdade idiota, a verdadeira liberdade: a de ser idiota. Mas aqui encontramos a dialética do fácil/difícil: nãonada mais árduo do que chegar a saber ser simples, sem defesas, livremente idiotaconseguir engendrar esse movimento idiossincrático na linguagem, deixar a linguagem oferecer o ar e as águas corriqueiras do discurso para serem misturadas com qualquer outro elemento sem constrangimentos (“partir ao encontro tonto sem dentro nem fora de qualquer acontecimento imagem[33]).

É imperioso abrir o espaço sempre recalcado mas facilmente disponível e entusiasmante do ridículo[34], da idiotice, da impertinência ou da loucura. O desafio do poeta, sempre quando mexe nessas energias violentamente recalcadas da linguagem, é ser fiel ao “encontro tontocom o delírio sem motivar no leitor a pronta reação de repulsão que sua constituição subjetiva automaticamente programou. Por isso, reconhecemos uma luta contra a “máquina de hábitoscotidiana que estabiliza associações, conexões dependentes da exigência de inteligibilidade plana que reconhece, por alternativa binária, certo ou errado, bom ou mal. O (não-)espaço, “sem dentro nem fora”, do delírio, que está e não está em qualquer acontecimento, não se decide por nenhuma alternativa e se deixa levar pelo puro jorro das imagens e pensamentos para a partir daí criar seu espaço e sua forma outra. Esse espaço (talvez transcendental) da consciência é o lugar onde se dá a condição de possibilidade da relatividade radical do ato de linguagem delirante.

Nesse espaço se move o corpo, a forma outra (deformada), de uma beleza outra, contida em uma nova estrutura textual; é nele que um corpo outro (de umcachorro de água”, digamos) mancha e se desmancha; põe, de-põe e se recompõe dialeticamente no embate com as corporificações lingüísticas habituais. Se o cachorro é de água, não deixa por isso de sercachorro”: um ser delimitado que se move, que move seus próprios limites dissolvendo-os, mas também se condensando e se derivando emdiferenças gozadas”[35]. A euforia desse ato delirantepelo qual qualquer um pode se deixar levar, mas poucos têm a coragem da iniciativa e a consistência subjetiva que permita uma mobilidade entre a razão e a loucura – produz modestamente rupturas propriamente sublimes, colossais, com a estrutura controladora do hábito.

O feito colossal, contudo, está precisamente em, afinal, não perder a estabilidade conquistada pelo hábito, mas otimizar a potência de codificação da máquina habitual em descodificação relativa feita pela máquina esquizofrênica-esclarecida, que relativiza todas as codificações e “relativiza”, ameniza, também, a própria pulsão destrutiva dionisíaca caótica para permitir que a forma deformada se constitua ao se deformar[36]. É que a relativização do sentido pode se condensar no relato lato do dizer poético, aquele que frisa a instantaneidade mesma do ato de dizer, do dito, tanto quanto o conteúdo do que é dito. Toda uma complexa negociação de forças conflitivas é feita na formação dialética de uma ascese poética.  Essa é a tarefa colossal da ascese de uma poética que negocia intimamente com as forças do Dionísio delirante

 

Existe um acordar relativo para longe da máquina de hábitos que se estraçalha e lacera desejando. Momentos. Rupturas modestas colossais em que o próprio corpo se desmancha em moléculas centelhas grãos de farinha línguas recém-nascidas de alface e vai por como um cachorro de água farejando escorrendo se lixando penetrando nas salas vazando invisivelmente pelas brechas como um cachorro de água pode acontecer de fazer porque ainda que o rejeitem ele senta num canto e acaba finalmente tomando a própria forma do ambiente em que está.

Existe a possibilidade água num cachorro de letras para apagar a discórdia que começou sem razão e a razão instituiu em palanques de construções mentais passageiras convicções pontos-vaidosos-de-vista para incutir na musculatura do outro e perder o melhor da festa que é saboreá-lo se dando não pelo que é dito ou pensado mas pela refração dos vários ângulos que incidem nessas diferenças gozadas gozando semelhanças[37].

 

 

Apesar de parecer poder ser feito num gesto, num instante, é muito difícil saber não se inclinar à vaidade de pontos-de-vista estabelecidos de uma razão cotidiana ou metafísica, certa de sua verdade por hábito ou convicção, ou mesmo de uma racionalização ética e estética da canonização poética, principalmente das forças políticas em vigor de aceitação e reconhecimento do meio poético (a “políciaque há nas contendas em torno do valor estético em vigor dos meios de divulgação aos críticos; dos poetas consagrados, reconhecidos, aos aspirantes) e, finalmente, do próprio eu (exigências de auto-reconhecimento do supereu), para, a partir de uma mera idiossincrasia idiota, radicalmente casual e livre, encontrar um modo do olhar e do agir que capta “o continuísmo íntegro de um de milho/ até as cavidades do estomago”[38], ensina os movimentossem mim”, e percebe quetudo o que acontece dá certo”, porque, “sem mim”, nãolimite nem defesa para o que acontece, tudo pode acontecer, tudo pode se misturar. A misturada dos acontecimentos quer fazer tudo dar certo e eliminar quase que totalmente a instância censora que atribui alguma coisa estar errada.

 

6- ESTRANHA SERENIDADE

 

O rigor da ascese serve para combater o rigor das barreiras e fazer tudo, qualquer mistura dar certo, reinventar o eu movendo-se festivamente no mundo-em-invenção. Relacionando os complexos mecanismos econômicos das tentações de Agostinho com as tentações da metafísica para Heidegger, Harpham afirma que o impulso ascético opera e floresce dentro de uma explícita recusa a ser asceta[39].

Segundo Eckhart, o homem deve sair de si mesmo e renunciar a todos os desejos e coisas do mundo para desejar a Deus. Quando esse homem esvazia de si as qualidades do mundo e si mesmo e deseja com fervor e impetuosidade a Deus, Deus o habita como em sua morada, age nele, opera em todas as suas obras e revela o abismo de sua deidade, a plenitude de seu ser e sua natureza[40]. Esse homem, que tem a consciência e o amor de Deus, torna-se Deus, e tudo o que faz é perfeito, e certo, pois ele renunciou a tudo para ter tudo de volta em dobro, em essência[41].

Por sua vez, Leonardo procura renunciar à própria renúncia, renuncia às vantagens, proveitos e glórias adquiridas por elaborações e cultivos da linguagem e da vida, da vida culta e correta da língua e da linguagem meramente cotidiana, calculada e sensata da vida para ter acesso total e irrestrito a todas as possibilidades e prazeres da vida e da linguagem. O uso irrestrito de combinações idiotas, depois da renúncia a qualquer recalque integrado às formas de socialização, dando lugar ao rigor nada idiota de ser total e livremente idiota, promete o acesso integral a todas as estranhas alquimias da linguagem[42], Unheimlich

O limite passa a ser apenas o do próprio acontecimento em seu advento e as condições de possibilidade de um eu descomprometido com (auto)censuras para acolhê-lo. O eu não é estabelecido por um imperativo exterior; é misturado, imanente ao acontecimento, ou melhor, trata-se de uma imanência que não é limitada idealmente por causa de uma noumenalidade. É uma imanência que não é restrita pelo noumenon, mas irrestrita pelo mesmo, faz de sua negatividade uma abertura incondicional ao acontecimento possível não da realidade, mas da imaginação. A instância transcendental, por não deixar de existir, deixar-se-á conduzir pela imanência, não imporá suas prerrogativas, mas também dará o ímpeto de sua participação ao se misturar. A certeza do instante dá os acontecimentos, mistura tudo o que é dado, e aceita o movimento de tudo como um dar-se, e não como um dado. Esse dar-se está na base da Gelassenheit de Eckhart herdada por Heidegger que, tentando dela se distanciar (afirmando que sua serenidade não contém o conceito de vontade própria deixada, abandonada [gelassen] à vontade divina), tornou-se da mesma ainda mais próximo[43], que a serenidade de “deixar as coisas repousar nelas mesmas” dá a mesma idéia de desapego. É preciso atentar-se para o que se dá (es gibt), o que surge do acontecimento (Ereignis). se deixarmos as coisas existirem por si mesmas, o Deus eckhartiano, ou o nada/ser heideggeriano, revela-se ao se ocultar no acontecimento, ofertando a experiência sublime do evento

 

...As vaidosas palavras/... eram no fundo iguais às ilusões das famílias[44].

 

Há (1) a negação da censura, a negação da sociedade constrangedora que se transforma momentaneamente (momento lógico) em pretensão pessoal; em seguida (2) a negação da pretensão, sem regredir para a aceitação do constrangimento. Os instantes não podem permanecer, senão se perde sua espontaneidade e graça de gratuidade, “dar certo” é não re-ter, não privilegiar nada e, no entanto, conduzir e condensar o fluxo de aceitação numa escolha ascética precisa. A negação da vontade que descobre uma (não)vontade superior é o epicentro da própria da tradição da teologia negativa, que se inicia em Pseudo-Dionísio e Eckhart para desaguar nas figuras mais díspares e no entanto aparentadas como o pré-romantismo alemão, Heidegger, Beckett, Clarice Lispector, G. Rosa e outros[45].

No poema Vendacalmaval[46], parte-se de uma dialética entre a natureza como ambiente externo e a mesa de trabalho, o vendaval exterior e a calma doméstica. Dentro, existe “o fogo provisório das convicções sobre a mesa”, evidenciando a resistência que o real impõe à decifração do poeta e às falsas prerrogativas do mesmo. Há uma tentativa de captar essa resistência de dentro, ainda que a trama do real esteja sempremuito longe e fora”. Contudo, o estado certo para lidar com essa impossibilidade é a calma, que não se coloca como estagnação, pelo contrário, é uma calma que se dá no interior do movimento violento da linguagem, cheia de violações a normas gramaticais, truncamentos de sintagmas, imagens dissonantes. A calma de Leonardo está no deslizamento do movimento de rupturas[47]. Para se ter calma frente à violência da animalidade do real, que, como os cachorros, “passam naturalmente gritando” na madrugada da meditação poética, é preciso que a própria calma seja um estado de liberdade infratora, selvagem, uma calma paradoxal que rompe e violenta serenamente; rompe o próprio vendaval mas não o elimina, absorvendo seu ímpeto por dentro.

É no pensamento poético selvagem e onírico que se dá esse movimento. Um pensamento que violenta o ritmo e a coerência de qualquer outro estilo em vigor. A imaginação desse pensar, que concebe inversões, variações, possibilidades infinitas de linguagem para abrir e rasgar o sentido, nutrindo-se da polpa de sua significância (o sonho do sentido), chega a um sublime matemático que abre os braços para os numerosos espectros oníricos:

 

... com as pessoas do sonho e o sonho é claro das pessoas

que talvez nem existam mas ocupam a cama abrem os braços conversam

falam por sua vez de numerosos lugares outros deitados

...

no cinema das coisas...[48]

 

Trata-se de uma poesia essencialmente onírica, de uma ascese atenta aos sonhos, aos estados de sono e sonho, às mensagens e, é claro, à própria linguagem do sonho[49]. Essa liberação de associação livre sem fim geralmente parte de uma regra (a regra de uma brincadeira), de uma fórmula prática de jogos de linguagem. Nesse poema, intitulando-se “é claro é escuro é cinema é bom”, o discurso é rompido pela série de predicativos do sujeito que aparecem no título, por exemplo: “metendo é escuro a boca ainda espumante em mim...”[50]. O gozo da ruptura (“o melhor da festa”) se dá no abuso brincalhão do gesto poético, abuso esse que tem, naturalmente, um sentido erótico e perverso no centro da “sublimaçãopoética a serviço do ideal de inocência. É essa poesia regrada pela própria sedução da perversão que evita a mera dissipação puramente dionisíaca da arbitrariedade[51]. Por isso o acesso ao real se faz por feridas e brincadeiras “buscando o sangue das crianças[52], brincando de ferir a língua e o sentido dentro da lógica sedutora do jogo, filmando o cinema das coisas com a liberdade violenta e regrada do uso e do abuso de e do olhar, do abandono e da retomada sempre auto-regrada e indeterminada do eu. O cinema não filma as coisas, são as coisas que se filmam, filmam a si, tornando-se coisa-em-si, tornando-se a indeterminação extática do eu.

A poesia é a arte literária que lida com o mais íntimo, com o íntimo da linguagem e a linguagem do íntimo. Ela se aproxima do que o eu diz, do que se diz quando se diz eu, do que é dito pelomas é experimentado para fora do – eu ao desejar mergulhar no real, que, não permitindo o abandono total do eu e da linguagem, faz o dito poético ser o dito do eu para o real e um silencioso vice-versa; do dito eu para o que não se diz porém se experimenta intimamente no e para fora do dito e do eu[53]. Há um movimento incessante de estar no e para fora do eu que não tem dentro nem fora mas ensaia suas fronteiras e seu limite na enunciação do acontecimento, no acontecimento de dizer o eu.

O discurso poético é aquele que, essencialmente, diz sempre de si mesmo e, por meio desta retroação íntima para dentro e para fora de si, faz o eu dever dizer sempre de si mesmo fora de si. Para que a língua seja violada, a imposição trágica da mesma é ter de prestar contas com o eu: “eu assisto vivendo/ a me devorar[54]. Quanto mais íntimo, mais capaz de sentir e se deixar atravessar pelo fora; e o eu, fora de si, devora o eu mais íntimo, lança-o fora da e na linguagem, recriando-se na linguagem, despersonalizando o autor e singularizando o texto para o texto abandonar seu autotelismo e servir à ascese do escritorque é despersonalizado para se tornar uma máquina místico-disparatada de “escreviver”(aglutinação cara a autores tão diferentes como José Lino Grünewald e Armando Freitas Filho).   

Daí ser inexato e descuidadamente exagerado assumir o frágil vício da teoria pós-estruturalista, ápice e produto de todo o esforço do pensamento pós-metafísico, de negar o eu e a consciência, ou pelo menos diminuir ou desprezar o seu papel[55]. Se a poesia sempre se obriga a uma retomada autotélica de si mesma num puro significante, não é para simplesmente destruir as balizas da subjetividade. Essa violência do significante existe não em tensão com a consciência, mas na dependência de uma aguda reflexão e exercício da consciência em torno de sua capacidade de flexibilidade.

Em vez de pensarmos que a lucidez do texto poético nega a consciência, preferimos entender que ela é a sua sofisticação mais plástica e flexível que, para possuir esse livre desempenho, precisa de muito trabalho, disciplina e ascese. É a própria consciência que quer se sacrificar – num gesto trágico e masoquista – mas nunca poderá inexistir, pois é esse gesto mesmo que reforça sua intensidade em lucidez delirante[56]. O “olhar profundamente acordado”[57] de um poeta íntimo do sonho aprofunda a cooperação da consciência com o inconsciente sempre a favor da primeira, que ganha força precisamente por violentar a si mesma (sua rigidez) com relativo sucesso. A lucidez delirante está bem consciente, sim, de sua infração e das leis que infringiu, e é devido a tal atenção que sabe e pode infringir, possui o domínio criminoso da arte de infringir.

Afinal, consciência singular é aquela que se destaca dos hábitos e das crenças sociais mais imediatas, estreitas, e pode jogar com as leis. Por outro lado, é no seio de destacados acontecimentos e rastros sociais que ela encontra, em meio às redes labirínticas das tradições de pensamento e arte, nutrientes, impulsões, simpatias que a fortalecem para lidar com as dificuldades da ascese ao mesmo tempo que exaltam seus arrebatamentos – deliciosos momentos em que ela se testa, brinca com seus próprios limites. É por isso que a criança brinca: a brincadeira é o procedimento ascético quemobilidade, flexibilidade e prazer à consciência maleável. O delírio é a mais extrema brincadeira com o sentido, a razão da loucura desafiando e fortalecendo a imaginação, a própria atividade sublime da consciência masoquista, o masoquismo transcendental da especulação trancendental. As forças do caos violentam e alimentam o cosmos singular da imaginação libertada por um eu sempre indeterminado e ainda e sempre poeticamente reflexivo.

É essa consciência que produz, sem dúvida, o exercício ascético que deseja ardentemente sentir o gozo de estar fora de si sem deixar de manter sua existência mesma[58]. É essa consciência ainda que não se satisfaz somente com o puro autotelismo do texto poético, pelo contrário, ela pretende fazer um uso muito específico com a prática da escrita, e esse uso serve, naturalmente, ao escritor. Sua ascese se dá inclusive enquanto leitor de si mesmo, e seu texto se dispõe a serviço, também, da ascese dos leitores empíricos. Aqui reconhecemos que a “influênciaou a “intertextualidade” pode ser analisada como transmissão de formas e “fórmulas” de ascese.

Ao contrário do biografismo do século XIX, o texto não é um mero espelho do autor: a ascese do autor se põe a serviço da elaboração minuciosa do texto poético; no caso de Leonardo, trata-se da lúdica minúcia de um jogo com a desordem e o caos do sentido. Mas a intimidade do autor com a poesia é a intimidade da poesia com a vida. Não adianta, quando observamos muitas tentativas contemporâneas de reação ao estruturalismo, igualar o texto à vida, nem retornar à preponderância do autor sobre a obra, nem dizer que autor e obra se equilibram, como se houvesse uma perfeita balança teórica para tal. A poesia é o instrumento para ascese do autor. Mas o trunfo de tal ascese é apagar não a importância, mas a noção que o sujeito enquanto autor tem de si mesmo para, afinal, o autor do texto (que existe por causa do texto) ser o sujeito da ascese (existir pela ascese). Tal sujeito, na co-operação trágica e serena, violenta e calma, da consciência com o sonho, trabalha somente para o objetivo da ascese, que pode ser um: a experiência mística sublime e sua desmontagem da realidade, ou ainda, mais ambiciosamente, seu estado permanente[59].

Por isso a poesia é o instrumento, é principalmente através dela (e de sua existência infusa nas artes e no pensamento) que se pode – nas reações turbulentas de sua condensação (Dichtung) autotélica da linguagem e do eu intencionando uma proximidade com o realassumir a tarefa de preparar-se, exercitar-se e experimentar-se a caminho da experiência sublime integral, que procura nada mais nada menos do que a revelação imediata do real e o abandono completo da linguagem[60].

a violência da linguagem poética pode dar um rastro do “para além” da linguagem e da consciência, para sempre retornar com total fracasso frente ao absoluto e parcial gozo de vitória para a consciência e a linguagem. Contudo, o eu poético (aquele que nunca é o do texto), que está a caminho do eu absoluto violentando a subjetividade do eu, não deixa de, por que não?, deixar-se levar e portanto ter a experiência do eu absoluto, porque, pensando em Fichte, o absoluto é o eu, ainda que indeterminado, portanto, um eu-outro sem um outro fora de si mesmo, que nãoaquinem dentro nem fora”. O absoluto, que advém da experiência, acontece somente enquanto experiência de liberdade infinita e imediata do eu indeterminado[61].

A enorme tensão entre o eu indeterminado e o determinado promove a relação com o desejo, que é a determinação da língua e dos recalques que processam a tentativa de, por meio de desvios e sutilezas da representação, conseguir apresentar o irrepresentável. O princípio de realidade impõe a arena onde o consciente mobiliza suas estratégias, e a ascese poética é um dos tipos mais refinados de estratégias que descrevem a própria economia do desejo e seus impasses diante do fracasso de um gozo absoluto. Contudo, a ascese poética de Leonardo – e também de outros poetas, menos conscientemente ou claramente – é feita para desafiar a realidade determinada com a revelação de um eu determinante, ativo, que procura se indeterminar, sem deixar de ser eu: eu desejante. a inventiva elaboração que o eu faz da vida pode, inconsciente e conscientemente, estar à altura do enigma, do desafio e da força avassaladora do desejo. a mística ascética aceita levar a demanda do desejo às últimas conseqüências que a existência de uma vida pode alcançar. O asceta-poeta é o sacerdote do desejo e a Ecila[62] do gozo da língua[63].

Na vida sem ascese poética (asceses açambarcadas pelo mundo administrado, digamos assim), o eu é determinado e a essência do objeto é indeterminada. Na vida com ascese poética e mística, o eu procura a objetividade da experiência trabalhando tragicamente as variáveis de sua subjetividade. Na experiência sublime, o eu se indetermina no contato imediato com o real e se torna absoluto, quer dizer, real. Para o eu se tornar indeterminado, ele deve ser capaz de se deparar, imediatamente, com o imediato. O texto poético é necessariamente parte da determinação do eu (há a materialidade, objetividade e exterioridade da linguagem e até do suporte), mas que serve para encaminhar-se, impulsionar-se, em direção ao indeterminado imediato do eu sem sujeito, objeto nem Outro. O caráter autotélico da poesia presta o valioso serviço de, ao confundir os sentidos criando relações quase imediatas entre eles, elaborar um simulacro do eu absoluto[64], e a principal meditação (no sentido místico do termo) do sujeito autor, na sua experiência, é mimetizar sua própria criação poética se deixando levar pelo jogo com o eu, que o estende e o esgarça na reflexão consciente e inconsciente do criador com a criatura, reflexão iluminadora e inflamadora, em que Nasciso afoga sua própria máscara, ou melhor, o que dá no mesmo, se afoga em sua própria máscara. A mímese de si na obra poética configura o simulacro laboratorial da coisa-em-si no eu absoluto e, esbraseando os limites da subjetividade, dá ao eu a totalidade que a imaginação deseja mas não suporta. A materialidade da linguagem, que violenta e atrai a imaginação, é aquilo que também atrai o real, dando as condições de possibilidade para a luta erótica entre a imaginação e o real suscitar o gozo do delírio sublime

Enquanto o desejo, que vejo no poeta como relativamente consciente, do eu não encontrar a experiência sublime e se tornar absoluto, nunca ele estará calmoMas a receita é calmamente fazer a língua se desesperar, dar a ela desespero poético trágico e delirante para, no vendaval dos sentidos, o furacão do absoluto aparecer no meio do eu. No centro do furacão, o esporte radical da molecagem e perversão da poesia dá ao eu toda a calma que ele precisa.

 

 

Resumo: O artigo procura analisar a obra (iniciada em 1968) de Leonardo Fróes – poeta brasileiro, ganhador do prêmio Jabuti de poesia em 1996 – a partir da idéia de que o escritor desenvolve uma estética da existência, em que a produção do texto está a serviço de uma ascese em busca da experiência mística sublime de um eu indeterminado. A proposta é que Fróes elabora uma máquina mística da poética ascética moderna, uma máquina de delirar e de tornar o delírio mesmo uma técnica de si, liberando e observando as agitações da alma não para refreá-las, nem para meramente nelas se perder. O caminho dessa ascese vislumbra um ideal de inocência que pratica a produção poética como uma grande brincadeira existencial e uma proximidade íntima com o sonho.

 

Abstract: The essay analyzes Leonardo Fróes’ work (that begins in 1968) – he is a brazilian poet, winner of the Jabuti poetry prize in 1996 – throughout the idea that the writer develops an esthetics of the existence in which the text serves as an asceticism that looks for a sublime mystical experience of an indeterminate self. The attempt is to show that Fróes creates a mystic machine of the ascetical modern poetics, a delirious machine that makes delirious itself a self technic, observing and easing the agitations of the mind nor to stop them neither to simply be lost in them. This ascetical way sees an ideal of innocence that makes poetic production a great existential game and an intimate neighbourhood with dream.

 

Palavras-chave: subjetividade, sublime, mística, sonho, poesia, loucura.

 

Key-words: subjectivity, sublime, mystic, dream, poetry, madness.


 

[1] FRÓES, Leonardo. Vertigens: obra reunida (1968-1998). Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 59.
[2] Ibidem, p. 59.
[3] Ibidem, p. 158.
[4] Ibidem, p. 157.
[5] Ibidem, p. 216.
[6] Ibidem, p. 217.
[7] Ibidem, p. 157.
[8] Ibidem, p. 119.
[9] Ibidem, p. 130.
[10] Ibidem, p. 130.
[11] Essa questão da glória aparece no poemaCirurgia da glória”: “Os gomos de laranja do corpo eram cortados pela glória irrisória que tinha a proa do nariz levantada pelo mar (até o teto) de azulejos neutros e lúcidos. Uma resina de serenidade do peito era o que dava à embarcação sacudida o poder de ser de borracha”. FRÓES, Leonardo. Ibidem, p. 244. O nariz empinado da glória sempre retira sua parte no corpo do texto, mas o mar da poesia, e sua ascese navegadora, mantém-se neutro, lúcido, ao “nível do mar”, modesto. É a serenidade ascética que resiste com flexibilidade aos desejos menores de glória inscritos no próprio ato de escrever. “O reinado da rainha perpétua” exemplifica o aprisionamento ao próprio poder que pode condenar uma rainha, p. 258-9. Ver também RIOS, André Rangel. Mediocridade e ironia: ensaios. Rio de Janeiro: Caetés, 2001, p.45. Escrevi um ensaio sobre esse surpreendente livro que analisa em detalhe a relação entre obra, glória e mediocridade, GUERREIRO B. LOSSO, Eduardo. “Um lance de dedos. Análise sobre dois livros de André Rios”. http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/pontodoc/lance_de_dedos.doc
[12] Em “A possessão evangélica”, FRÓES, Leonardo, p. 277, há uma posição crítica em relação à evangelização da multidão no Brasil atual, “A multidão responde amém a tudo e a sua unanimidade”, espalhando mais ódio do que o dito amor cristão: “Desconfiarei dessa paz belicosa?”.
[13]um doloroso apelo à invenção/ que nos possui, indústria solitária” FRÓES, Leonardo, p. 68.
[14] Os títulos de muitos poemas assinalam uma aguda necessidade de notas, regras e fórmulas didáticas de práticas ascéticas: “Para um manual de preciosidades” FRÓES, Leonardo, p. 68; “Perguntas para recuperar a inocência”, p. 58, “Introdução à arte das montanhas”, p. 243; “Fórmula prática”, p. 216.
[15] Se a mulher é submetida parcialmente à castração, e por isso seu gozo é sem limite, o mesmo vale para a ascese mística moderna: para o poeta e o místico nãointerdição ao absoluto, eles investem numa ascese cuja fatalidade é não deixar de não se inscrever no mundo empírico determinado e finalista, e toda a insistência da poesia no cotidiano, simplicidade da vida etc é um questionamento de seu modo de ser determinado, transformando o dado em dar-se. A indeterminação do absoluto é a mesma da mulher, que não é ser, mas um tornar-se. ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, p. 26-7.
[16] A arte moderna experimenta e realiza o não-existente como encarnação da utopia impossível. ADORNO, T. W. Dialectique négative, Paris: Payot, 1978, p. 292-3, 305, 317. Ibidem, Negative dialektik. Jargon der Eigenlichkeit. Gesammelte Schriften, vol. 6. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 366-7, 364, 400.
[17] Desenvolvo melhor esse problema emAventuras da máquina mística do pensamento. Montagem e desmontagem da filosofia de Hegel” GUERREIRO B. LOSSO, Eduardo. http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/ensaios/mistica.doc
[18] Há uma análise da teoria enquanto ascese no último capítulo de Ascetic imperative, “The ascetics of interpretation” HARPHAM, Geoffrey Galt, Ascetic imperative in culture and criticism. Chicago: The University of Chicago Press, 1993, p. 239-69, uma rica contribuição para observar o jogo de tentação e resistência que se desenvolve em cada imperativo sancionado pela teoria da literatura.
[19] HARPHAM, Geoffrey Galt, p. 20.
[20] FOUCAULT M.. Histoire de la sexualité, 3 vol. Paris: Gallimard, 1984.
[21] HARPHAM, Geoffrey Galt, p. 141.
[22] Foucault aponta que a modernidade de Baudelaire é um exercício onde a extrema atenção ao real é confrontada com a prática de uma liberdade que a um tempo respeita o real e o viola; a modernidade não é uma relação com o presente, é uma relação que se estabelece consigo mesmo; a atitude voluntária e engajada de modernidade é ligada a umascetismo indispensável”. FOUCAULT, M. Dits et Écrits Vol. IV, p. 570. RAJCHMAN, John. Foucault. A liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, p. 36.
[23] Ver nota 7, FRÓES, L, p. 157, onde ele parece tomar consciência de sua própria prática ascética escrevendo “noção do homem de ascesemais de uma vez.
[24] Alguns setores da ascese da antiguidade, analisada por Foucault, deixavam manifestar-se disparates na escrita para melhor os reprimirFOUCAULT, M. Dits et Écrits Vol. IV, p. 421-2.
[25] GROSSKLAUS, Götz; OLDEMEYER, Ernst; (Hrsg.) Natur als Gegenwelt - Beiträge zur Kulturgeschichte der Natur. Karlsruhe: Loeper Verlag GmbH, 1983.
[26] EmPerguntas para recuperar a inocência”, percebe-se que é a dissonância imagética do delírio, com sua operação liberadora dos recalques, que procura a experiência de liberdade da infância: “A rua pariu um susto...?”. Dentro do disparate, contudo, há como encontrar certas mensagens. No seio das estranhas perguntas, fica clara a tentativa de evitar todos os perigos da perda da inocência que assaltam a vida adulta “Os olhos ainda vêem ou/ se entregaram ao miasma das cenas?”, e acaba duvidando se a inocência resistiu (palavra própria da estrutura ascética) escondida, ainda nua: “A inocência era/ ou soberana resiste, ainda vestida?”   FRÓES, Leonardo, p. 58.
[27] Daí todo jogo do livro “Sibiliz (1981)” com a fábula, alimentando a obsessão da poesia com a “coisa” tornando-a animada. A estória-prosa poética “O desdobre das bonecas”, p. 111-115 faz de Ecila (a “Emília” [Monteiro Lobato] de Leonardo) uma espécie de personagem-infantil que protagoniza uma fábula psicológica (“Seu maior problema agora ... era explicar aos analistas ... que de simples esquizofrênica nata ela passava fisicamente a ser uma maluca tríplice”). Das feridas do corpo de Ecila, nascem mulherezinhas que vão se multiplicando e “atravessando seu corpo”.
[28] FRÓES, Leonardo, p. 219-21.
[29] Ibidem, p. 220.
[30] Ibidem, p. 221.
[31] Ibidem, p. 219.
[32] Ibidem, p. 221.
[33] Ibidem, “Sibilitz (1981)”, p. 221.
[34] Vale ressaltar que nãoem Fróes humor fácil, aquele que serve para-agradar. Há, e em profusão, a ironia infinita do disparate, bekettiana, a experiência do riso onipresente, que ri de tudo e dilacera aquele que ri e faz de si mesmo um palhaço ou malabarista da linguagem: “onde, perdendo a vida, ganho esse lugar num trapézio/ rente às brincadeiras divinas”, FRÓES, Leonardo, p. 87.
[35] O poema eróticoEscrito numa banheira” (p. 76) do livro “Esqueci de avisar que estou vivo (1973)”p. 55-84, percebe-se melhor a relação entre forma e dissolução sublime, onde o corpo feminino provoca o gozo justamente por ter forma, rememorando o ideal de experiência da infância:“o pacto/ que selamos nessa banheira/ cheia de espuma e de ilusão a aula/ de geografia corporal/ que vou tomando enquanto a mão te alisa/ e te refresca e te arrepia ... a busca/ de minha infância em ti por todaparte/ onde me arrastas como / a correnteza então daquele tempo”. A associação do tempo presente com a infância, num ritual aquático onde o mitológico rio do tempo suspende a cronologia é conquistado mediante a sensação de  beleza sublime proporcionada por uma forma palpável.
[36] O próprio desejo é ontologicamente desorientado e disperso. A constituição do sujeito é realizada em oposição à pulsão de morte que está na base do movimento do originário do desejo – é como Harpham interpreta Freud (ver Ego e o Id [1923] “IV As Duas Classes de Instintos”). A representação é um esforço primário da consciência para lutar contra o gozo fora da linguagem, mas o recalque necessário dessa simbolização se transforma também num tipo de pulsão gratificante. Penso que a poesia de Leonardo, ao dar voz ao movimento do delírio, desmobiliza certos recalques para se tornar um mecanismo de liberar associações inconscientes trabalhadas esteticamente com fito de serem ofertadas a uma consciência que as deseja para seu alargamento, dando à mesma o gozo, na linguagem, de um fora-da-linguagem (que é paradoxalmente a “linguagem” do inconsciente), um êxtase que a um tempo ameaça e satisfaz a consciência. HARPHAM, Geoffrey Galt, p. 52.
[37] FRÓES, Leonardo, Ibidem, p. 118-9.
[38] Ibidem, p. 219.
[39] HARPHAM, Geoffrey Galt, p. 118.
[40]Aberto para os dedos de deus”, FRÓES, Leonardo, p. 215 do livroAssim (1986)” é um poema claramente ascético: se o eu poético não fizer tudo o que considera mesquinho ou frívolo “ se eu ... não ficar lamentando/ a primeira oportunidade perdida,  e se eu não der/ bola para os preconceitos que me reduzem...” e não perder a estabilidade psíquica “se eu não ficar completamente maluco/ por issoele manifesta o desejo de um contato com Deus de maneira formal, contrastando com a passionalidade dos místicos clássicos: “ e o desejo de cumprimentar deus em pessoa”. Essa (in)formalidade, típica do aparentemente paradoxal sublime anti-sublime moderno, tenta disfarçar a herança mística  para melhor a atualizar. Um cumprimento não é uma veneração, apenas uma pequena saudação e promessa de introdução de relacionamento. Mas essa distância, que serve para afastar ligações com doutrinas e tradições religiosas dogmáticas, manifesta moderadamente, serenamente, o desejo do sublime místico, que é o maior dos desejos, o desejo por excelência, impondo uma simultânea e intensa lucidez delirante e consciência despersonalizada.
[41] “Sermon n. 12. Mon oeil et l´oeil de Dieu , c´est um seul oeil” In: ECKHART, Maître. Traités et sermons. Trad. Alain de Libera. Paris: Flammarion, 1995, p. 296.
[42] “e um gordo cachorrinho safado/ chamado Coração crescendo”, FRÓES, Leonardo, p. 225. Esse tipo de poética do “absurdo”, cujos exemplos se multiplicam na obra, mostram a conquista de nada fácil beleza sublime da arbitrariedade, que precisa, paradoxalmente, sobrepujar, resistir à tentação da pura arbitrariedade, que se esgota em si mesma. O próprio exercício de diferenciação das formas de expressão, que aumentam a sensação de arbitrariedade, é extremamente refletido e trabalhado. Esse trabalho do absurdo foi bem percebido na constatação do surrealismo de que a escrita automática, para conseguir manter as dissonâncias imagéticas, precisa forçar sentidos contrastantes.
[43] Ver a nota 12 de Alain de Libera explicando esse ponto em ECKHART, Maître, p. 189.
[44] FRÓES, Leonardo, Ibidem, p. 222.

[45] BULHOF, Ilse N.. KATE, Laurens tem (ed.). Flight of the gods. Philosophical perspectives on negative theology. New York: Fordham University Press, 2000, ver especialmente a introdução: p. 1-58. 
[46] Ibidem, p. 207.
[47] “A loucura me amansa – e estou atriste.”, FRÓES, Leonardo, p. 173. Em todo esse poema assim iniciado, “Passagem para uma paisagem de caras” (p. 173-4), fica claro queum indisfarçável contentamento como a loucura, que produz solitárias conexões estranhas entre imagens de animais, consideradas mais interessantes do que a vida social: “As vacas passantes passam perto da grota e uma cai no meu olho ... Estou atriste, não li as novidades da véspera, muitos entravam no botequim mas fiquei de fora. Vi porém um macaco, ontem, tal como hoje vejo a vaca que cai”. 
[48] FRÓES, Leonardo, Ibidem, p. 208.
[49] “Acabamos concordando, quando nos reunimos para discutir esse tema, que para dar-lhe credibilidade a linguagem do sonho”, FRÓES, Leonardo, p. 240. Embora dentro de outro contexto, essa afirmação confessa que muitas das estratégias de poetização dos exercícios de ascese de Leonardo são possíveis ligadas ao signo do “sonho”, como se fosse – e é – difícil assumi-las sem aviso prévio à censura consciente do leitor implícito. Contudo, essa estratégia se torna ela mesma uma poética do e para o sonho. Ela revela uma “consciência totalizada” sem diferença entre forma e fundo comum ao sonho e à poesia, tornando a consciência onírica e a poética profundamente solidárias. A estética da existência é a prática de um sonho de existência tornado possível na aproximação íntima e lúcida com a experiência do sonho. COHEN, Jean. A plenitude da linguagem. Teoria da poeticidade. Coimbra: Almedina, 1987, p. 246.
[50] FRÓES, Leonardo, Ibidem, p. 208.
[51] BAUDRILLARD, Jean. As estratégias fatais. Lisboa: Estampa, 1990, p. 113: “A lei impõe que produzamos, mas a regra secreta, jamais dita, escondida por detrás da lei, impõe que seduzamos, e essa regra é mais forte do que a lei”. Nossa aproximação com o conceito de “regra”, de Baudrillard, é aqui relativa. A regra existe por meio de um segredo nunca revelado, mantém-se numa relação dual, oposta à relação grupal, social, ou à idealização amorosa, e não se confunde com o sexo nem a libido. Na nossa leitura, há a sublime perversão do delírio ligada aos fluxos de energia libidinal de onde a produção se dá mediante rituais ascéticos de sedução na linguagem poética. Logo, há livres, diferentes, limitadas e específicas assimilações teóricas de Freud, Baudrillard e Deleuze que, lidos isoladamente, são essencialmente e voluntariamente diferentes.
[52] FRÓES, Leonardo, Ibidem, p. 160.
[53] EmDidática do amor como insuficiência nervosa” há mais um auto-regramento do texto infrator da gramática para desestabilizar a pendência da subjetividade na língua: emprega-se o verbo na primeira pessoa do plural com o pronome no singular, alternando-se depois para a forma padrão (verbo no singular), num vai-e-vem. FRÓES, Leonardo, p. 153-5. O poema é longo, três páginas. A insistência provoca um efeito de instabilidade entre a dispersão da multiplicidade de agentes do eu e sua unidade. Mas a unidade, feita para ser ferida, fraturada “Sinto que eu somos uma espécie de choque./ Que eu somos uma espécie de fratura batida/ e que eu podemos tirar os personagens do bolso,/ como você gosta”, p.153, não é aqui simplesmente abandonada. O “vocêgosta do “nós-mim” porque gosta especialmente do “nós”, mas o próprioeunão se satisfaz com pura dispersão: “Como a deusa da história,/ eu temos a unidade por alvo  ... Minha procura sem promessa continua assim mesmo/ e no fundo desse amor eu não ligo muito pra ti”, p. 154.
[54] FRÓES, Leonardo, Ibidem, p. 208.
[55] “‘O infinito e a água’: Alguns poemas de Leonardo Fróes através do sublime”. GUIMARÃES, Daniel. In: PEDROSA, Célia. CAMARGO, Lúcia de Barros (orgs.). Poesia e contemporaneidade: leituras do presente. Chapecó: Argos, 2001, p. 123-48. Nesta bela e filosófica leitura de Daniel, temos até agora talvez o único artigo sobre Fróes em publicação acadêmica. Além de o autor ter esse imenso mérito, a análise do signoágua” e do sublime foi bem explorada. Mas nossa ressalva está toda na “suspensão sujeito/objeto” (p. 144) que buscaria “um reencontro do ser com sua própria identidade” (p. 145). Toda sua análise se aproxima muito das pesquisas que desenvolvi em torno da poesia de Armando Freitas Filho. GUERREIRO B. LOSSO, Eduardo “Travessia cega  de um desejo incurável. A experiência sublime na obra de Armando Freitas Filho”. Dissertação de mestrado, Rio de Janeiro: UFRJ, 2002, nessa dissertação e em artigos anterioresMas percebemos que a tese da dispersão do eu, pouco dialetizada, se tornou um refrão teórico tanto das análises da mística quanto da literatura modernista e contemporânea, e exige ser repensada.
[56] Derrida relaciona Benjamin com Adorno na busca de ambos por “uma lucidez de um sonhoquando Adorno elogia a coragem de Benjamin de reunir a mística e a filosofiapela última vez”, e o que motiva Derrida a, por sua vez, elogiar Adorno e por ele se sentir autorizado a falar da “possibilidade do impossível”. DERRIDA, Jacques. Fichus. Discours de Francfort. Paris: Galilée, 2002, p.19-20.
[57] Ibidem, p. 209.
[58] Uma consciência que não se possui, mas que se procura e se acha na condecoração final de todos os esforços ascéticos de renúncia e desprendimento de seres, coisas e afetos podemos achar nesse poema: “A independência absoluta de sua dor o castiga, mas despoja-o de sua dor e seus vínculos ... Cessa a ilusão da companhia ... ‘Não sou a tua consciência’, diz-lhe então uma voz. ‘Ouça o que tenho a te dizer. Eu sou a Voz da consciência, que não se engana e nem te engana’”. FRÓES, Leonardo, p. 322.
[59] Contudo, não se trata de um desejo histérico por êxtases, vertigens e espasmos sem fim. Tal experiência, em Fróes, parece ser sobretudo desejada com serenidade, moderada e intimamente, e o mais importante: não como um fim, mas como um tornar-se (o werden de todo o pensamento, freqüentemente místico, alemão) sem fim, cujo fim é a ilusão necessária de permanecer sem fim.
[60] RAJCHMAN, John. Foucault. A liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. Aqui propõe-se uma reconciliação do dito primeiro Foucault, da transgressão sublime (p. 19-29), com o terceiro, da estética da existência (p. 29-37), se é que essas divisões existem, ou, até que ponto.
[61]Sobre o conceito da doutrina-da-ciência ou da assim chamada filosofia”. In: FICHTE, Johann Gottlieb. A doutrina-da-ciência de 1794 e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1984.  A preposiçãoeu sou”, em que o eu põe a si mesmo, funda um estado-de-ação no qual o eu é ao mesmo tempo o agente e produto da ação, sendo para si mesmo pura e simplesmente. quando o não-eu se contra-põe, o eu se define e se determina em relação à sua negação, p. 46-7. Quando o eu se põe a si mesmo, sem negação, ele possui a totalidade absoluta da realidade, p. 66. Todo o esforço ascético de Leonardo de retornar à consciência infantil e onírica almeja experimentar esse estado de ação sem constrangimentos, vivido pelo eu absoluto.
[62] Nota 25, do poema “O desdobre das bonecas”, FRÓES, Leonardo, p. 111-5.
[63] Prefiro aqui dizer gozo da língua, em Leonardo, do que o gozo da alíngua, de Lacan, pois a alíngua é não-toda e é marcada pela falta. Pensamos que ascese poética, ao contrário da ascese propriamente monástica (que, lembramos, como afirma Harpham, é o paradigma da ascese da neurose), não se estrutura pela lógica da falta lacaniana, não pelo não-todo, e sim por todo-o-desejo-do-eu que aciona toda a máquina da consciência em prol de um encontro aberto com o gozo de todo-um-eu-não-todo, um eu indeterminado, que é o próprio gozo do eu.  MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987, p. 25. Mas Milner afirma que a língua goza quando Dante serve a Beatriz, que, como mulher, goza (p. 81). Desconfiamos que haja uma relação de mímese diferenciadora. Leonardo, contudo, faz com a língua a mímese do delírio, próprio da figura de Ecila, ligada à estrutura do desejo simbólico pela criança-menina – uma espécie de anima junguiana da loucura do eu indeterminado.
[64] Na prosa poética “Vagante”, creio que Leonardo procurou conceber no “vagante” seu próprio mestre – o personagem-mímese de um ideal do eu igualado ao eu indeterminado – sendo ele mesmo, uma espécie de Alberto Caeiro capaz da completa serenidade e da capacidade fantástica de atravessar paredes, simbolizando que a experiência do impossível, com as forças da loucura, é possível e real, possui “realidade bastante” (p. 130): “O rosto bom alegre ágil rarefeito ... Sim ele acredita que o viu atravessando paredes e que não foi ilusão ... Como se fosse uma questão de inocência. Que viu no estar absoluto de quem não tinha pressa, nunca se preocupava com nada e nunca se perturbaria com nada”. FRÓES, Leonardo, p. 308. Logo, tal personagem representa o próprio ideal do eu do exercício ascético. O momento da, digamos, “iluminação mística”, quando um personagem se desapega de tudo e encontra uma “liberdade infinita”, está precisamente descrito em “O enterro do cajado”, p. 322.


 

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