MÁQUINA
MÍSTICA
DA
ASCESE
POÉTICA
SONHO,
DELÍRIO
E
LIBERDADE
INFINITA
DA
INOCÊNCIA
LÚCIDA
Eduardo
Guerreiro Brito Losso
Doutorando
em
Ciência da
literatura,
professor
licenciado da
Universidade Estácio de Sá
1 – AFIRMAÇÕES
ANTES DE
TIRAR A
ROUPA
Já
sinistros
dedos dedouram o
silêncio,
já há
um
borrão manchando a
vista
quando vejo a
manhã.
Já discuto,
já creio,
já enjambo as
palavras
com
jeito,
já desisto,
já
me
aprumo e prossigo.
Somos
bichos à
toa. Precisamos
aproveitar essa
eterna
impressão
transitória
que
nos sacode
por
exemplo na
cama
com
um
princípio de
manutenção da
estranheza,
e
saber
gozar dos
sentimentos atômicos
que correm
com a
rotação dos
espelhos.
Essa
fórmula
prática é
que
nos
guia
em
direção aos
melhores
momentos,
fora da
repetição dos
hábitos,
que existem
só
para
você
pensar
que “está”.
Essa é a
imperativa
noção do
homem de
ascese,
que
nunca deveria
acordar e
pôr os
olhos
em
falso.
Você é
seu
jeito,
seu
sorriso,
na
melhor das
hipóteses:
basta
ser uma
brecha na
qual as outras
energias se enfiam e
deixar
passar essa
realidade do
prazer (a
absoluta),
que devora
todo
mundo e
não
pertence a
ninguém.
Por
isso o
arroz de
olhos
passeia
em
sua
boca
com
realidade
bastante.
2 –
FÓRMULA
PRÁTICA DE
LEITURA
Sabemos
que
alguns
poetas
brasileiros exploraram as
veredas
abertas
pelo
surrealismo. A
partir de Murilo Mendes,
alguns chegam a
dizer
que se iniciou uma
espécie de
tradição
marginal no Brasil, uma antitradição
surrealista
brasileira
dentro da antitradição modernista
brasileira
que se diferencia da antitradição da modernidade
européia
em
que está incluído o
surrealismo. Se
isso ocorre, Leonardo Fróes é
um de
seus
componentes
mais
importantes.
Contudo,
por
mais
marginal
que seja,
não
somente
nenhum
autor,
mas nenhuma
obra pode se
separar de
seu
desejo de
glória
e de
tudo o
que a
ascese da
obra
tenta
expurgar: as
relações de
poder e
prestígio.
Mesmo
assim, Leonardo
procura
resistir à mediocridade da
glória e à
disputa de
um
lugar no
palco da
consagração
ou da
canonização,
ou de
qualquer
outro
tipo de
prestígio,
não
só
em
sua
prática autoral. No
próprio
texto encontramos uma
ascese
rigorosa do
desprendimento e do
desapego.
Nomes
como Clarice Lispector, Murilo Mendes, Armando
Freitas
Filho e
Cruz e Souza despontam
com
estratégias
que,
mesmo
que às
vezes
supostamente pareçam
procurar
ligações
com as
características do “povo”
ou a
cultura
brasileira, radicalizam no mergulho de uma
pesquisa dos
núcleos (é
preciso
colocar no
plural
sem
negar
que há uma
estrutura
em
rede de
heterônimos
psicológicos) e
limites da subjetividade, do
isolamento do
eu,
da
intimidade da
experiência.
Mas
talvez
em
poucos
momentos dessas
obras foi-se
tão
longe na
simultânea
liberação do
delírio
verbal (associado
geralmente ao
surrealismo) e na
constituição
explícita e
obsessiva de uma
ascese de procedimentos
não
só de
produção
estética: de
atitude,
comportamento, Blickwinkel (ângulo
visual,
perspectiva de
visão) a
serviço de uma
estética da
existência.
Ficará
claro
adiante
que
delírio e
ascese
não se opõem
aqui: Leonardo é o
próprio
asceta
delirante.
Não há
posição
prévia de
como
agir na
vida,
pelo
contrário, há
um
flexível
espírito de
pesquisa das possibilidades de
ação, (auto-)observação e
técnicas de
si,
para além-aquém de uma
identidade, produzindo verdadeiras
alquimias da
ação, administradas
por uma
ascese.
Mas o
que
quer essa
ascese?
Tal
pergunta é
tão
irrespondível
quanto a
pergunta O
que
quer uma
mulher?, e se
toda
ascese é
ascese do e
para o
desejo, o
desejo
não sabe
absolutamente o
que
deseja, sabe
apenas
que
deseja o
absoluto,
ou seja, o
indizível, inapresentável, irrepresentável etc.
A
ascese do
escritor
moderno
deseja o
impossível:
não o
que
ele é
nem o
que existe,
mas,
sim, o
que
não se pode
ser e o
que
não existe.
Contudo, o
desejo do não-existente,
pela
insistência
trágica da
ascese, experimenta-o
enquanto
experiência
negativa,
sublime, do
absoluto.
A
complexa
relação da
experiência
metafísica da
obra de
arte
com a
teologia é o
ápice da
dialética
negativa de
Adorno, e nisso
ele,
como
exemplo fulcral de
todo o
pensamento pós-metafísico, e
também
todos os pós-estruturalistas
nietzscheanos,
que nesse
sentido o seguiram, alimentam-se de uma
negatividade
fundamental, encontrada
em Platão (da khora), nas
teologias
negativas (Deus
sem
atributos), Kant (da
coisa-em-si) e Hegel (no
movimento
contraditório do
sujeito).
Nesses
momentos da
metafísica,
em
que a negatividade
penetra na
base e no
fundamento dos
sistemas, instaura-se uma
zona de indiscernibilidade
entre o
que é
metafísico e o
que é desconstrução: a
máquina de uma engata na
outra. A
nova
máquina
que nesse
entretempo as rege chamo,
portanto, de
máquina
mística.
Mas a
vida da
mística
negativa
moderna,
tanto
teórica
quanto
poética, deve
sempre
estar
sob os
cuidados de uma
ascese.
4-AVENTURAS ASCÉTICAS DA
TEORIA E DA
POESIA
Depois do
ponto de
partida
dado
por Geoffrey Galt Harpham
nos
estudos
contemporâneos
sobre
ascese,
cada
indivíduo no
mundo é
praticante de uma
ascese
diferente. A
palavra,
inicialmente, está
ligada a
asceses
que se afastam do “mundo”,
quer
dizer, da
vida
cotidiana de uma
determinada
sociedade, e refere-se, no
ocidente, especificamente à
vida dos
monges do
deserto, ao monasticismo dos
eremitas, verdadeiros “heróis”
ou “atletas” da
vida
religiosa;
em
relação ao
oriente, aos
vários
tipos de
monges
budistas,
indianos,
faquires,
ou
até
àqueles
que
não renunciam à
vida
sexual e fazem dela
um
uso
espiritual,
como no tantrismo etc.
Com a
abordagem de Foucault
em
relação aos
processos de subjetivação, aos
cuidados de
si, às
técnicas de
si e ao
uso dos
prazeres
feito na
antiguidade,
e
com a
apropriação dessas
modalidades de
análise das
práticas da
antiguidade
para a subjetivação
contemporânea
em
entrevistas,
esse
tipo de
pesquisa foi estendendo a
idéia de
ascese.
Antes de observar-se a
vida do
atleta
olímpico, da
modelo
macérrima e do
yuppie
como
asceses
sem
renúncia ao
mundo,
ou
renúncia
parcial
para
alcançar
aquilo
que na
moral
religiosa é o
mais condenável no
mundo – a
glória –, os
estudos
sobre
ascese passaram das
asceses tradicionais
diretamente aos
artistas
modernos e
sua “religião da
arte”, contendo
desejos de impersonalidade (almejada
tanto
quanto
pelo
monge) e
superioridade
moral do
estético
sobre o
mundano.
Foi
já Foucault
quem nomeou a
ligação do
artista
moderno, Baudelaire,
com a modernidade, instaurando a
ascese
moderna da
vida
artística.
Procuraremos
analisar
como Leonardo Fróes elabora uma
máquina
mística da
poética
ascética
moderna,
uma
máquina de
delirar e de
tornar o
delírio
mesmo uma
técnica de
si,
liberar e
observar as
agitações da
alma
não
para refreá-las,
nem
para
meramente nelas se
perder. Leonardo desfaz
leis (ou
regimentos
em
geral)
já dadas (pela
gramática,
pela
literatura tradicional
ou
contemporânea etc) repressoras da
liberdade
delirante;
em
seguida, tenciona
encontrar uma
prática regrada e
voluntária do
disparate
não
para
retomar
melhor uma
ação
racional na
sociedade,
mas
para
revelar, à
distância do
mundo
social, a
descoberta de
um “contramundo” (Gegenwelt)
pessoal e
singular ligado à
natureza,
animalidade e
inocência do
mundo
infantil,
sem nenhuma
preocupação
com o
mundo dos
prestígios, da
glória e dos
apegos
afetivos,
econômicos e
habituais.
Contudo, a
repulsa ao
social
não
simplesmente o
nega: procura-se assimilá-lo
para dele se
distanciar.
A
brincadeira da
criança é a
prática
ascética
ideal, e
só pode
ser resgatada na
distância
que a
poesia
toma dos
constrangimentos da
vida
utilitária e
cotidiana
adulta.
Mas
também
não há
mera
negação do
mundo do
trabalho
adulto:
ele
passa a
ser o
objeto da
brincadeira, uma
brincadeira
que as
crianças, propriamente ditas,
por
não terem nele sido iniciadas,
não podem
atuar, e
por
isso
mesmo sucumbem à
castração de
grande
parte do
seu
mundo
imaginário.
5-
LIBERDADE
INCONDICIONAL DO
IDIOTA DE
MISTURAR
No
poema “Terra do
mim”,
há
sempre
um
esforço
para se
tornar
comum,
corriqueiro e despretensioso, afirmando-se “nem
mais
nem
menos do
que a
liberdade
idiota/ de
participar
serenamente do
ar”.
“Idiota”
aqui
não é uma
palavra de
desconsideração
ou
desdém, é uma
oposição ao
desdém
ou
desprezo
que se daria ao
corriqueiro.
Em
seguida, lê-se: “o
ar
te come a
boca
aberta/
atrás da
porta o
sereno
espia/
tudo se resolve negando/ mexendo nas
afirmativas
gerais”. Ao se
participar
serenamente do
ar, o
ar,
não
muito
serenamente, “te
come”. O
ar é
algo
que sai da
boca
aberta,
mas pode
ser a
própria
boca de uma
liberdade perigosa,
canibal. Os
dois
últimos
versos explicam o procedimento exemplificado na
palavra “idiota” e
extensivo à
ascese
poética de Leonardo. As
afirmativas
gerais
são “essa
paralisia da
idéia”
que é
preciso
mexer
para
participar da “sensação-liquidez”.
Aqui a
alquimia
poética do
pensamento iguala o
dizer e o
que é
dito revelando o procedimento poético e
ascético:
no
entanto o
céu
cai no
prato
e
mesmo a
misturada
dá
certo
tudo
o
que
acontece dá
certo
ou
ensina
os
movimentos
então
na
hora
sem
mim
deságuam
bocas
quebram-se as
barreiras
de
eu
ter
pensado, prendido o
corpo, premeditado
o
que
naturalmente
fracassa
As
misturadas metafóricas e as
negações das
afirmativas
gerais,
que articulam
um
pensamento de procedimentos existenciais,
quando deságuam no
lugar
certo,
onde
tudo dá
certo, quebram as
barreiras (pensamentos
automatizados)
que aprisionam o
corpo.
A
ascese da
linguagem
poética, detonadora de
experiências e condutora de
práticas a
um
só
tempo
objetivas e misteriosas,
quer
sair do
tipo de
atividade
geral
que foi
feita
para
fracassar,
para
não
usufruir a
liberdade de
pensamento,
para
desprezar,
temerosamente,
qualquer
liberdade
idiota, a
liberdade
idiota, a verdadeira
liberdade: a de
ser
idiota.
Mas
aqui encontramos a
dialética do
fácil/difícil:
não há
nada
mais
árduo do
que
chegar a
saber
ser
simples,
sem
defesas,
livremente
idiota,
conseguir
engendrar
esse
movimento idiossincrático na
linguagem,
deixar a
linguagem
oferecer o
ar e as
águas corriqueiras do
discurso
para serem
misturadas
com
qualquer
outro
elemento
sem
constrangimentos (“partir ao
encontro
tonto
sem
dentro
nem
fora de
qualquer
acontecimento
imagem”).
É
imperioso
abrir o
espaço
sempre recalcado
mas facilmente
disponível e entusiasmante do
ridículo,
da
idiotice, da
impertinência
ou da
loucura. O
desafio do
poeta,
sempre
quando mexe nessas
energias
violentamente recalcadas da
linguagem, é
ser
fiel ao “encontro
tonto”
com o
delírio
sem
motivar no
leitor a
pronta
reação de
repulsão
que
sua
constituição
subjetiva automaticamente
já programou.
Por
isso, reconhecemos uma
luta
contra a “máquina de
hábitos”
cotidiana
que estabiliza
associações,
conexões
dependentes da
exigência de inteligibilidade
plana
que reconhece,
por
alternativa
binária,
certo
ou errado,
bom
ou
mal. O (não-)espaço, “sem
dentro
nem
fora”, do
delírio,
que está e
não está
em
qualquer
acontecimento,
não se decide
por nenhuma
alternativa e se
deixa
levar
pelo
puro
jorro das
imagens e
pensamentos
para
só a
partir daí
criar
seu
espaço e
sua
forma
outra.
Esse
espaço (talvez
transcendental) da
consciência é o
lugar
onde se dá a
condição de possibilidade da relatividade
radical do
ato de
linguagem
delirante.
Nesse
espaço se move o
corpo, a
forma
outra (deformada), de uma
beleza
outra, contida
em uma
nova
estrutura
textual; é nele
que
um
corpo
outro (de
um “cachorro de
água”, digamos)
mancha e se
desmancha; põe, de-põe e se recompõe dialeticamente
no
embate
com as corporificações
lingüísticas
habituais. Se o
cachorro é de
água,
não
deixa
por
isso de
ser “cachorro”:
um
ser delimitado
que se move,
que move
seus
próprios
limites dissolvendo-os,
mas
também se condensando e se derivando
em “diferenças
gozadas”.
A
euforia desse
ato
delirante –
pelo
qual
qualquer
um pode se
deixar
levar,
mas
poucos têm a
coragem da
iniciativa e a
consistência
subjetiva
que permita uma
mobilidade
entre a
razão e a
loucura – produz modestamente
rupturas propriamente
sublimes,
colossais,
com a
estrutura controladora do
hábito.
O
feito
colossal,
contudo, está
precisamente
em,
afinal,
não
perder a
estabilidade conquistada
pelo
hábito,
mas
otimizar a
potência de
codificação da
máquina
habitual
em descodificação
relativa
feita
pela
máquina esquizofrênica-esclarecida,
que relativiza todas as codificações e “relativiza”,
ameniza,
também, a
própria pulsão
destrutiva
dionisíaca
caótica
para
permitir
que a
forma deformada se constitua ao se
deformar.
É
aí
que a relativização do
sentido pode se
condensar no relato
lato do
dizer poético,
aquele
que
frisa a instantaneidade
mesma do
ato de
dizer, do
dito,
tanto
quanto o
conteúdo do
que é
dito.
Toda uma
complexa negociação de
forças conflitivas é
feita na
formação
dialética de uma
ascese
poética. Essa é a
tarefa
colossal da
ascese de uma
poética
que negocia intimamente
com as
forças do Dionísio
delirante.
Existe
um
acordar
relativo
para
longe
da
máquina
de
hábitos
que
se estraçalha e lacera desejando.
Momentos.
Rupturas
modestas
colossais
em
que
o
próprio
corpo
se
desmancha
em
moléculas
centelhas
grãos
de
farinha
línguas
recém-nascidas de
alface
e vai
por
aí
como
um
cachorro
de
água
farejando escorrendo se lixando penetrando nas
salas vazando invisivelmente pelas
brechas
como
um
cachorro
de
água
pode
acontecer
de
fazer
porque
ainda
que
o rejeitem
ele
senta num
canto
e acaba
finalmente
tomando a
própria
forma
do
ambiente
em
que
está.
Existe
a possibilidade
água num
cachorro
de
letras
para
apagar
a
discórdia
que
começou
sem
razão
e a
razão
instituiu
em
palanques
de
construções
mentais
passageiras
convicções
pontos-vaidosos-de-vista
para
incutir
na
musculatura
do
outro
e
perder
o
melhor
da
festa
que
é saboreá-lo se dando
não
pelo
que
é
dito
ou
pensado
mas
pela
refração
dos
vários
ângulos
que
incidem nessas
diferenças
gozadas gozando
semelhanças.
Apesar de
parecer
poder
ser
feito num
só
gesto, num
só
instante, é
muito
difícil
saber
não se
inclinar à
vaidade de pontos-de-vista estabelecidos de uma
razão
cotidiana
ou
metafísica,
certa de
sua
verdade
por
hábito
ou
convicção,
ou
mesmo de uma racionalização
ética e
estética da
canonização
poética,
principalmente das
forças
políticas
em
vigor de
aceitação e
reconhecimento do
meio poético (a “polícia”
que há nas
contendas
em
torno do
valor
estético
em
vigor dos
meios de
divulgação aos
críticos; dos
poetas consagrados, reconhecidos, aos
aspirantes) e,
finalmente, do
próprio
eu (exigências de
auto-reconhecimento do
supereu),
para, a
partir de uma
mera
idiossincrasia
idiota,
radicalmente
casual e
livre,
encontrar
um
modo do
olhar e do
agir
que capta “o
continuísmo
íntegro de
um
pé de
milho/
até as
cavidades do estomago”,
ensina os
movimentos “sem
mim”, e percebe
que “tudo o
que acontece dá
certo”,
porque, “sem
mim”,
não há
limite
nem
defesa
para o
que acontece,
tudo pode
acontecer,
tudo pode se
misturar. A
misturada dos
acontecimentos
só
quer
fazer
tudo
dar
certo e
eliminar
quase
que
totalmente a
instância censora
que atribui alguma
coisa
estar errada.
6-
ESTRANHA
SERENIDADE
O
rigor da
ascese serve
para
combater o
rigor das
barreiras e
fazer
tudo,
qualquer
mistura
dar
certo,
reinventar o
eu movendo-se
festivamente no mundo-em-invenção. Relacionando os
complexos
mecanismos
econômicos das
tentações de Agostinho
com as
tentações da
metafísica
para Heidegger, Harpham afirma
que o
impulso
ascético opera e floresce
dentro de uma
explícita recusa a
ser
asceta.
Segundo Eckhart, o
homem deve
sair de
si
mesmo e
renunciar a
todos os
desejos e
coisas do
mundo
para
desejar
só a
Deus.
Quando
esse
homem esvazia de
si as
qualidades do
mundo e
si
mesmo e
deseja
com
fervor e
impetuosidade
só a
Deus,
Deus o habita
como
em
sua
morada, age nele, opera
em todas as
suas
obras e revela o
abismo de
sua
deidade, a
plenitude de
seu
ser e
sua
natureza.
Esse
homem,
que tem a
consciência e o
amor de
Deus, torna-se
Deus, e
tudo o
que faz é
perfeito, e
certo,
pois
ele renunciou a
tudo
para
ter
tudo de
volta
em
dobro,
em
essência.
Por
sua
vez, Leonardo
procura
renunciar à
própria
renúncia, renuncia às
vantagens,
proveitos e
glórias adquiridas
por
elaborações e cultivos da
linguagem e da
vida, da
vida
culta e
correta da
língua e da
linguagem
meramente
cotidiana, calculada e
sensata da
vida
para
ter
acesso
total e
irrestrito a todas as possibilidades e
prazeres da
vida e da
linguagem. O
uso
irrestrito de
combinações
idiotas,
depois da
renúncia a
qualquer recalque integrado às
formas de socialização, dando
lugar ao
rigor
nada
idiota de
ser
total e
livremente
idiota, promete o
acesso
integral a todas as estranhas
alquimias da
linguagem,
Unheimlich.
O
limite
passa a
ser
apenas o do
próprio
acontecimento
em
seu
advento e as
condições de possibilidade de
um
eu descomprometido
com (auto)censuras
para acolhê-lo. O
eu
não é estabelecido
por
um
imperativo
exterior; é misturado,
imanente ao
acontecimento,
ou
melhor, trata-se de uma imanência
que
não é limitada
idealmente
por
causa de uma noumenalidade. É uma imanência
que
não é restrita
pelo noumenon,
mas
irrestrita
pelo
mesmo, faz de
sua negatividade uma
abertura
incondicional ao
acontecimento
possível
não
só da
realidade,
mas da
imaginação. A
instância
transcendental,
por
não
deixar de
existir, deixar-se-á
conduzir
pela imanência,
não imporá
suas
prerrogativas,
mas
também dará o
ímpeto de
sua participação ao se
misturar. A
certeza do
instante dá os
acontecimentos,
mistura
tudo o
que é
dado, e aceita o
movimento de
tudo
como
um dar-se, e
não
como
um
dado.
Esse dar-se está na
base da Gelassenheit de Eckhart herdada
por Heidegger
que, tentando dela se
distanciar (afirmando
que
sua
serenidade
não contém o
conceito de
vontade
própria deixada, abandonada [gelassen] à
vontade
divina), tornou-se da
mesma
ainda
mais
próximo,
já
que a
serenidade de “deixar as
coisas
repousar nelas mesmas” dá a
mesma
idéia de
desapego. É
preciso atentar-se
para o
que se dá (es gibt), o
que surge do
acontecimento (Ereignis).
Só se deixarmos as
coisas existirem
por
si mesmas, o
Deus eckhartiano,
ou o
nada/ser heideggeriano, revela-se
ao se
ocultar no
acontecimento, ofertando a
experiência
sublime do
evento.
...As
vaidosas
palavras/...
eram no
fundo
iguais
às
ilusões
das
famílias.
Há (1) a
negação da
censura, a
negação da
sociedade constrangedora
que se transforma momentaneamente (momento
lógico)
em
pretensão
pessoal;
em
seguida (2) a
negação da
pretensão,
sem
regredir
para a
aceitação do
constrangimento. Os
instantes
não podem
permanecer,
senão se perde
sua
espontaneidade e
graça de gratuidade, “dar
certo” é
não re-ter,
não
privilegiar
nada e, no
entanto,
conduzir e
condensar o
fluxo de
aceitação numa
escolha
ascética
precisa. A
negação da
vontade
que descobre uma (não)vontade
superior é o
epicentro da
própria da
tradição da
teologia
negativa,
que se inicia
em Pseudo-Dionísio e Eckhart
para
desaguar nas
figuras
mais
díspares e no
entanto aparentadas
como o pré-romantismo
alemão, Heidegger, Beckett, Clarice Lispector, G.
Rosa e
outros.
No
poema Vendacalmaval,
parte-se de uma
dialética
entre a
natureza
como
ambiente
externo e a
mesa de
trabalho, o
vendaval
exterior e a
calma
doméstica.
Dentro, existe “o
fogo
provisório das
convicções
sobre a
mesa”, evidenciando a
resistência
que o
real impõe à decifração do
poeta e às falsas
prerrogativas do
mesmo. Há uma
tentativa de
captar essa
resistência de
dentro,
ainda
que a
trama do
real esteja
sempre “muito
longe e
fora”.
Contudo, o
estado
certo
para
lidar
com essa impossibilidade é a
calma,
que
não se coloca
como estagnação,
pelo
contrário, é uma
calma
que se dá no
interior do
movimento
violento da
linguagem,
cheia de
violações a
normas
gramaticais, truncamentos de
sintagmas,
imagens dissonantes. A
calma de Leonardo está no
deslizamento do
movimento de
rupturas.
Para se
ter
calma
frente à
violência da
animalidade do
real,
que,
como os
cachorros, “passam
naturalmente gritando” na
madrugada da
meditação
poética, é
preciso
que a
própria
calma seja
um
estado de
liberdade infratora,
selvagem, uma
calma
paradoxal
que rompe e
violenta
serenamente; rompe o
próprio
vendaval
mas
não o elimina, absorvendo
seu
ímpeto
por
dentro.
É no
pensamento poético
selvagem e
onírico
que se dá
esse
movimento.
Um
pensamento
que
violenta o
ritmo e a
coerência de
qualquer
outro
estilo
em
vigor. A
imaginação desse
pensar,
que concebe
inversões, variações, possibilidades infinitas de
linguagem
para
abrir e
rasgar o
sentido, nutrindo-se da
polpa de
sua significância (o
sonho do
sentido),
chega a
um
sublime matemático
que abre os
braços
para os
numerosos
espectros
oníricos:
...
com
as
pessoas
do
sonho
e o
sonho
é
claro
das
pessoas
que
talvez
nem
existam
mas ocupam a
cama
abrem os
braços
conversam
falam
por
sua
vez
de
numerosos
lugares
outros
deitados
...
no
cinema das
coisas...
Trata-se de uma
poesia
essencialmente
onírica, de uma
ascese
atenta aos
sonhos, aos
estados de
sono e
sonho, às
mensagens e, é
claro, à
própria
linguagem do
sonho.
Essa
liberação de
associação
livre
sem
fim
geralmente
parte de uma
regra (a
regra de uma
brincadeira), de uma
fórmula
prática de
jogos de
linguagem. Nesse
poema, intitulando-se “é
claro é
escuro é
cinema é
bom”, o
discurso é rompido
pela
série de
predicativos do
sujeito
que aparecem no
título,
por
exemplo: “metendo é
escuro a
boca
ainda
espumante
em
mim...”.
O
gozo da
ruptura (“o
melhor da
festa”) se dá no
abuso
brincalhão do
gesto poético,
abuso
esse
que tem,
naturalmente,
um
sentido
erótico e
perverso no
centro da “sublimação”
poética a
serviço do
ideal de
inocência. É essa
poesia regrada
pela
própria
sedução da
perversão
que evita a
mera
dissipação
puramente
dionisíaca da
arbitrariedade.
Por
isso o
acesso ao
real se faz
por
feridas e
brincadeiras “buscando o
sangue das
crianças”,
brincando de
ferir a
língua e o
sentido
dentro da
lógica sedutora do
jogo, filmando o
cinema das
coisas
com a
liberdade
violenta e regrada do
uso e do
abuso de e do
olhar, do
abandono e da
retomada
sempre auto-regrada e
indeterminada do
eu. O
cinema
não filma as
coisas,
são as
coisas
que se filmam, filmam a
si, tornando-se
coisa-em-si, tornando-se a
indeterminação
extática do
eu.
A
poesia é a
arte
literária
que
lida
com o
mais
íntimo,
com o
íntimo da
linguagem e a
linguagem do
íntimo.
Ela se aproxima do
que o
eu diz, do
que se diz
quando se diz
eu, do
que é
dito
pelo –
mas é experimentado
para
fora do –
eu ao
desejar
mergulhar no
real,
que,
não permitindo o
abandono
total do
eu e da
linguagem, faz o
dito poético
ser o
dito do
eu
para o
real e
um
silencioso
vice-versa; do
dito
eu
para o
que
não se diz
porém se
experimenta intimamente no e
para
fora do
dito e do
eu.
Há
um
movimento
incessante de
estar no e
para
fora do
eu
que
não tem
dentro
nem
fora
mas
ensaia
suas
fronteiras e
seu
limite na
enunciação do
acontecimento, no
acontecimento de
dizer o
eu.
O
discurso poético é
aquele
que,
essencialmente, diz
sempre de
si
mesmo e,
por
meio desta retroação
íntima
para
dentro e
para
fora de
si, faz o
eu
dever
dizer
sempre de
si
mesmo
fora de
si.
Para
que a
língua seja violada, a
imposição
trágica da
mesma é
ter de
prestar
contas
com o
eu: “eu assisto
vivendo/ a
me
devorar”.
Quanto
mais
íntimo,
mais
capaz de
sentir e se
deixar
atravessar
pelo
fora; e o
eu,
fora de
si, devora o
eu
mais
íntimo, lança-o
fora da e na
linguagem, recriando-se na
linguagem, despersonalizando o
autor e singularizando o
texto
para o
texto
abandonar
seu autotelismo e
servir à
ascese do
escritor –
que é despersonalizado
para se
tornar uma
máquina místico-disparatada de “escreviver”(aglutinação
cara a
autores
tão
diferentes
como José Lino Grünewald e Armando Freitas
Filho).
Daí
ser
inexato e
descuidadamente exagerado
assumir o
frágil
vício da
teoria pós-estruturalista,
ápice e
produto de
todo o
esforço do
pensamento pós-metafísico, de
negar o
eu e a
consciência,
ou
pelo
menos
diminuir
ou
desprezar o
seu
papel.
Se a
poesia
sempre se obriga a uma
retomada autotélica de
si
mesma num
puro
significante,
não é
para
simplesmente
destruir as
balizas da subjetividade. Essa
violência do
significante existe
não
só
em
tensão
com a
consciência,
mas na
dependência de uma
aguda
reflexão e
exercício da
consciência
em
torno de
sua
capacidade de flexibilidade.
Em
vez de pensarmos
que a
lucidez do
texto poético
nega a
consciência, preferimos
entender
que
ela é a
sua
sofisticação
mais
plástica e
flexível
que,
para
possuir
esse
livre
desempenho,
precisa de
muito
trabalho,
disciplina e
ascese. É a
própria
consciência
que
quer se
sacrificar – num
gesto
trágico e masoquista –
mas
nunca poderá
inexistir,
pois é
esse
gesto
mesmo
que
reforça
sua
intensidade
em
lucidez
delirante.
O “olhar
profundamente acordado”
de
um
poeta
íntimo do
sonho aprofunda a
cooperação da
consciência
com o
inconsciente
sempre a
favor da
primeira,
que
ganha
força
precisamente
por
violentar a
si
mesma (sua
rigidez)
com
relativo
sucesso. A
lucidez
delirante está
bem
consciente,
sim, de
sua
infração e das
leis
que infringiu, e é
devido a
tal
atenção
que sabe e pode
infringir, possui o
domínio
criminoso da
arte de
infringir.
Afinal,
consciência
singular é aquela
que se destaca dos
hábitos e das
crenças
sociais
mais imediatas, estreitas, e pode
jogar
com as
leis.
Por
outro
lado, é no
seio de
destacados
acontecimentos e
rastros
sociais
que
ela
encontra,
em
meio às
redes labirínticas das
tradições de
pensamento e
arte,
nutrientes,
impulsões,
simpatias
que a fortalecem
para
lidar
com as
dificuldades da
ascese ao
mesmo
tempo
que exaltam
seus arrebatamentos –
deliciosos
momentos
em
que
ela se
testa,
brinca
com
seus
próprios
limites. É
por
isso
que a
criança
brinca: a
brincadeira é o procedimento
ascético
que dá
mobilidade, flexibilidade e
prazer à
consciência
maleável. O
delírio é a
mais
extrema
brincadeira
com o
sentido, a
razão da
loucura desafiando e fortalecendo a
imaginação, a
própria
atividade
sublime da
consciência masoquista, o
masoquismo
transcendental da
especulação trancendental. As
forças do
caos violentam e alimentam o
cosmos
singular da
imaginação libertada
por
um
eu
sempre
indeterminado e
ainda e
sempre poeticamente
reflexivo.
É essa
consciência
que produz,
sem
dúvida, o
exercício
ascético
que
deseja
ardentemente
sentir o
gozo de
estar
fora de
si
sem
deixar de
manter
sua
existência
mesma.
É essa
consciência
ainda
que
não se satisfaz
somente
com o
puro autotelismo do
texto poético,
pelo
contrário,
ela pretende
fazer
um
uso
muito
específico
com a
prática da
escrita, e
esse
uso serve,
naturalmente, ao
escritor.
Sua
ascese se dá
inclusive
enquanto
leitor de
si
mesmo, e
seu
texto se dispõe a
serviço,
também, da
ascese dos
leitores
empíricos.
Aqui reconhecemos
que a “influência”
ou a “intertextualidade” pode
ser analisada
como
transmissão de
formas e “fórmulas” de
ascese.
Ao
contrário do biografismo do
século XIX, o
texto
não é
um
mero
espelho do
autor: a
ascese do
autor se põe a
serviço da
elaboração
minuciosa do
texto poético; no
caso de Leonardo, trata-se da
lúdica
minúcia de
um
jogo
com a
desordem e o
caos do
sentido.
Mas a
intimidade do
autor
com a
poesia é a
intimidade da
poesia
com a
vida.
Não adianta,
quando observamos muitas
tentativas contemporâneas de
reação ao
estruturalismo,
igualar o
texto à
vida,
nem
retornar à
preponderância do
autor
sobre a
obra,
nem
dizer
que
autor e
obra se equilibram,
como se houvesse uma
perfeita
balança
teórica
para
tal. A
poesia é
só o
instrumento
para
ascese do
autor.
Mas o
trunfo de
tal
ascese é
apagar
não
só a
importância,
mas a
noção
que o
sujeito
enquanto
autor tem de
si
mesmo
para,
afinal, o
autor do
texto (que
existe
por
causa do
texto)
ser o
sujeito da
ascese (existir
pela
ascese).
Tal
sujeito, na co-operação
trágica e
serena,
violenta e
calma, da
consciência
com o
sonho,
trabalha
somente
para o
objetivo da
ascese,
que
só pode
ser
um: a
experiência
mística
sublime e
sua desmontagem da
realidade,
ou
ainda,
mais
ambiciosamente,
seu
estado
permanente.
Por
isso a
poesia é o
instrumento, é
principalmente
através dela (e de
sua
existência infusa nas
artes e no
pensamento)
que se pode – nas
reações turbulentas de
sua
condensação (Dichtung) autotélica da
linguagem e do
eu intencionando uma
proximidade
com o
real –
assumir a
tarefa de preparar-se, exercitar-se e
experimentar-se a
caminho da
experiência
sublime
integral,
que
procura
nada
mais
nada
menos do
que a
revelação
imediata do
real e o
abandono
completo da
linguagem.
Só a
violência da
linguagem
poética pode
dar
um
rastro do “para
além” da
linguagem e da
consciência,
para
sempre
retornar
com
total
fracasso
frente ao
absoluto e
parcial
gozo de
vitória
para a
consciência e a
linguagem.
Contudo, o
eu poético (aquele
que
nunca é
só o do
texto),
que está a
caminho do
eu
absoluto violentando a subjetividade do
eu,
não
deixa de,
por
que
não?, deixar-se
levar e
portanto
ter a
experiência do
eu
absoluto,
porque, pensando
em Fichte, o
absoluto é o
eu,
ainda
que
indeterminado,
portanto,
um eu-outro
sem
um
outro
fora de
si
mesmo,
já
que
não há
aqui “nem
dentro
nem
fora”. O
absoluto,
que advém da
experiência, acontece
somente
enquanto
experiência de
liberdade
infinita e
imediata do
eu
indeterminado.
A
enorme
tensão
entre o
eu
indeterminado e o
determinado promove a
relação
com o
desejo,
já
que é a
determinação da
língua e dos recalques
que processam a
tentativa de,
por
meio de
desvios e
sutilezas da
representação,
conseguir
apresentar o irrepresentável. O
princípio de
realidade impõe a
arena
onde o
consciente mobiliza
suas
estratégias, e a
ascese
poética é
um dos
tipos
mais refinados de
estratégias
que descrevem a
própria
economia do
desejo e
seus
impasses
diante do
fracasso de
um
gozo
absoluto.
Contudo, a
ascese
poética de Leonardo – e
também de
outros
poetas,
menos
conscientemente
ou
claramente – é
feita
para
desafiar a
realidade
determinada
com a
revelação de
um
eu
determinante,
ativo,
que
procura se
indeterminar,
sem
deixar de
ser
eu:
eu desejante.
Só a
inventiva
elaboração
que o
eu faz da
vida pode,
inconsciente e
conscientemente,
estar à
altura do
enigma, do
desafio e da
força avassaladora do
desejo.
Só a
mística
ascética aceita
levar a
demanda do
desejo às últimas
conseqüências
que a
existência de uma
vida pode
alcançar. O asceta-poeta é o
sacerdote do
desejo e a Ecila
do
gozo da
língua.
Na
vida
sem
ascese
poética (asceses
açambarcadas
pelo
mundo administrado, digamos
assim), o
eu é
determinado e a
essência do
objeto é
indeterminada. Na
vida
com
ascese
poética e
mística, o
eu
procura a
objetividade da
experiência trabalhando tragicamente as
variáveis de
sua subjetividade. Na
experiência
sublime, o
eu se indetermina no
contato
imediato
com o
real e se
torna
absoluto,
quer
dizer,
real.
Para o
eu se
tornar
indeterminado,
ele deve
ser
capaz de se
deparar,
imediatamente,
com o
imediato. O
texto poético é necessariamente
parte da
determinação do
eu (há a
materialidade,
objetividade e
exterioridade da
linguagem e
até do
suporte),
mas
que
só serve
para encaminhar-se, impulsionar-se,
em
direção ao
indeterminado
imediato do
eu
sem
sujeito,
objeto
nem
Outro. O
caráter autotélico da
poesia presta o
valioso
serviço de, ao
confundir os
sentidos criando
relações
quase imediatas
entre
eles,
elaborar
um
simulacro do
eu
absoluto,
e a
principal
meditação (no
sentido místico do
termo) do
sujeito
autor, na
sua
experiência, é
mimetizar
sua
própria
criação
poética se deixando
levar
pelo
jogo
com o
eu,
que o estende e o esgarça na
reflexão
consciente e
inconsciente do
criador
com a
criatura,
reflexão iluminadora e inflamadora,
em
que Nasciso afoga
sua
própria
máscara,
ou
melhor, o
que dá no
mesmo, se afoga
em
sua
própria
máscara. A mímese de
si na
obra
poética configura o
simulacro laboratorial da
coisa-em-si no
eu
absoluto e, esbraseando os
limites da subjetividade, dá ao
eu a
totalidade
que a
imaginação
deseja
mas
não suporta. A
materialidade da
linguagem,
que
violenta e atrai a
imaginação, é
aquilo
que
também atrai o
real, dando as
condições de possibilidade
para a
luta
erótica
entre a
imaginação e o
real
suscitar o
gozo do
delírio
sublime.
Enquanto o
desejo,
que vejo no
poeta
como
relativamente
consciente, do
eu
não
encontrar a
experiência
sublime e se
tornar
absoluto,
nunca
ele estará
calmo.
Mas a
receita é
calmamente
fazer a
língua se
desesperar,
dar a
ela
desespero poético
trágico e
delirante
para, no
vendaval dos
sentidos, o
furacão do
absoluto
aparecer no
meio do
eu. No
centro do
furacão, o
esporte
radical da molecagem e
perversão da
poesia dá ao
eu
toda a
calma
que
ele
precisa.
Resumo:
O
artigo
procura
analisar
a
obra
(iniciada
em
1968) de Leonardo Fróes –
poeta
brasileiro,
ganhador
do
prêmio
Jabuti
de
poesia
em
1996 – a
partir
da
idéia
de
que
o
escritor
desenvolve uma
estética
da
existência,
em
que
a
produção
do
texto
está a
serviço
de uma
ascese
em
busca
da
experiência
mística
sublime
de
um
eu
indeterminado.
A
proposta
é
que
Fróes elabora uma
máquina
mística
da
poética
ascética
moderna,
uma
máquina
de
delirar
e de
tornar
o
delírio
mesmo
uma
técnica
de
si,
liberando e observando as
agitações
da
alma
não
para
refreá-las,
nem
para
meramente
nelas se
perder.
O
caminho
dessa
ascese
vislumbra
um
ideal
de
inocência
que
pratica a
produção
poética
como
uma
grande
brincadeira
existencial e uma
proximidade
íntima
com
o
sonho.
Abstract:
The essay analyzes Leonardo Fróes’ work (that begins in 1968) – he is a
brazilian poet, winner of the
Jabuti
poetry prize in 1996 – throughout the idea that the writer develops an esthetics
of the existence in which the text serves as an asceticism that
looks
for a
sublime
mystical experience of an indeterminate self. The attempt is to
show
that Fróes creates a mystic machine of the ascetical modern poetics, a delirious
machine that makes delirious itself a self technic, observing and easing the
agitations of the mind nor to stop them neither to simply be lost in them. This
ascetical way sees an
ideal
of innocence that makes poetic production a great existential
game
and an intimate neighbourhood with dream.
Palavras-chave:
subjetividade,
sublime,
mística,
sonho,
poesia,
loucura.
Key-words:
subjectivity,
sublime,
mystic, dream, poetry, madness.
BULHOF, Ilse N..
KATE, Laurens tem (ed.).
Flight of the gods. Philosophical perspectives on negative theology.
New York: Fordham University Press,
2000,
ver
especialmente
a
introdução:
p. 1-58.
Ibidem, p. 207.
“A
loucura
me amansa – e estou atriste.”, FRÓES, Leonardo,
p. 173.
Em
todo
esse
poema
assim
iniciado, “Passagem
para uma
paisagem de
caras” (p. 173-4), fica
claro
que há
um
indisfarçável
contentamento
como a
loucura,
que produz
solitárias
conexões estranhas
entre
imagens de
animais, consideradas
mais interessantes do
que a
vida
social: “As
vacas
passantes passam
perto da
grota e uma cai no
meu
olho ... Estou atriste,
não li as
novidades da
véspera,
muitos entravam no
botequim
mas fiquei de
fora. Vi
porém
um
macaco,
ontem,
tal
como
hoje vejo a
vaca
que cai”.
FRÓES, Leonardo,
Ibidem, p. 208.
“Acabamos concordando,
quando
nos reunimos
para
discutir
esse
tema,
que
para dar-lhe
credibilidade
só a
linguagem do
sonho”, FRÓES, Leonardo, p. 240.
Embora
dentro de
outro
contexto, essa afirmação confessa
que muitas das
estratégias de poetização dos
exercícios de
ascese de Leonardo
só
são
possíveis
ligadas ao
signo do “sonho”,
como se fosse – e é –
difícil assumi-las
sem aviso
prévio à
censura
consciente do
leitor
implícito.
Contudo, essa
estratégia se
torna
ela
mesma uma
poética do e
para o
sonho.
Ela revela uma “consciência
totalizada”
sem
diferença
entre
forma e
fundo
comum ao
sonho e à
poesia, tornando a
consciência
onírica e a
poética
profundamente solidárias. A
estética da
existência é a
prática de
um
sonho de
existência
tornado
possível na
aproximação
íntima e
lúcida
com a
experiência do
sonho. COHEN, Jean. A
plenitude da
linguagem.
Teoria da poeticidade. Coimbra:
Almedina, 1987, p. 246.
FRÓES, Leonardo,
Ibidem, p. 208.
BAUDRILLARD, Jean. As
estratégias
fatais. Lisboa:
Estampa, 1990, p. 113: “A
lei impõe
que produzamos,
mas a
regra
secreta,
jamais
dita, escondida
por
detrás da
lei, impõe
que seduzamos, e essa
regra é
mais
forte do
que a
lei”.
Nossa
aproximação
com o
conceito de “regra”,
de Baudrillard, é
aqui
relativa. A
regra existe
por
meio de
um
segredo
nunca revelado, mantém-se numa
relação
dual,
oposta à
relação grupal,
social,
ou à idealização
amorosa, e
não se confunde
com o
sexo
nem a
libido. Na
nossa
leitura, há a
sublime
perversão do
delírio
ligada aos
fluxos de
energia libidinal de
onde a
produção se dá
mediante
rituais
ascéticos de
sedução na
linguagem
poética.
Logo, há
livres,
diferentes, limitadas e específicas
assimilações teóricas de Freud, Baudrillard e
Deleuze
que, lidos isoladamente,
são
essencialmente e voluntariamente
diferentes.
FRÓES, Leonardo,
Ibidem, p. 160.
Em “Didática do
amor
como
insuficiência
nervosa” há
mais
um auto-regramento do
texto
infrator da
gramática
para
desestabilizar a
pendência da subjetividade na
língua: emprega-se o
verbo na
primeira
pessoa do
plural
com o
pronome no
singular, alternando-se
depois
para a
forma
padrão (verbo no
singular), num vai-e-vem. FRÓES, Leonardo, p.
153-5. O
poema é
longo,
três
páginas. A
insistência provoca
um
efeito de
instabilidade
entre a
dispersão da multiplicidade de
agentes do
eu e
sua
unidade.
Mas a
unidade,
feita
para
ser
ferida, fraturada “Sinto
que
eu somos uma
espécie de
choque./
Que
eu somos uma
espécie de
fratura
batida/ e
que
eu podemos
tirar os
personagens do
bolso,/
como
você
gosta”, p.153,
não é
aqui
simplesmente abandonada. O “você”
gosta do “nós-mim”
porque
gosta
especialmente do “nós”,
mas o
próprio “eu”
não se satisfaz
com
pura
dispersão: “Como a
deusa da
história,/
eu temos a
unidade
por
alvo ...
Minha
procura
sem
promessa continua
assim
mesmo/ e no
fundo desse
amor
eu
não ligo
muito
pra ti”, p. 154.
FRÓES, Leonardo,
Ibidem, p. 208.
“‘O
infinito e a
água’:
Alguns
poemas de Leonardo Fróes
através do
sublime”. GUIMARÃES, Daniel. In: PEDROSA,
Célia. CAMARGO, Lúcia de
Barros (orgs.).
Poesia e contemporaneidade:
leituras do
presente. Chapecó: Argos, 2001, p. 123-48. Nesta
bela e filosófica
leitura de Daniel, temos
até
agora
talvez o
único
artigo
sobre Fróes
em publicação
acadêmica.
Além de o
autor
ter
esse
imenso
mérito, a
análise do
signo “água” e do
sublime foi
bem explorada.
Mas
nossa ressalva está
toda na “suspensão
sujeito/objeto” (p. 144)
que buscaria “um
reencontro do
ser
com
sua
própria
identidade” (p. 145).
Toda
sua
análise se aproxima
muito das
pesquisas
que desenvolvi
em
torno da
poesia de Armando Freitas
Filho.
GUERREIRO B. LOSSO, Eduardo “Travessia
cega de
um
desejo
incurável. A
experiência
sublime na
obra de Armando Freitas
Filho”.
Dissertação de
mestrado,
Rio de
Janeiro: UFRJ, 2002, nessa
dissertação e
em
artigos
anteriores.
Mas percebemos
que a
tese da
dispersão do
eu,
pouco dialetizada, se tornou
um
refrão
teórico
tanto das
análises da
mística
quanto da
literatura modernista e
contemporânea, e exige
ser repensada.
Derrida relaciona Benjamin
com
Adorno na
busca de
ambos
por “uma
lucidez de
um
sonho”
quando
Adorno
elogia a
coragem de Benjamin de
reunir a
mística e a
filosofia “pela
última
vez”, e o
que
motiva Derrida a,
por
sua
vez,
elogiar
Adorno e
por
ele se
sentir autorizado a
falar da “possibilidade do
impossível”. DERRIDA, Jacques.
Fichus. Discours de Francfort. Paris: Galilée, 2002, p.19-20.
Ibidem,
p. 209.
Uma
consciência
que
não se possui,
mas
que se
procura e se
acha na
condecoração
final de
todos os
esforços
ascéticos de
renúncia e
desprendimento de
seres,
coisas e
afetos podemos
achar nesse
poema: “A
independência
absoluta de
sua
dor o
castiga,
mas despoja-o de
sua
dor e
seus
vínculos ... Cessa a
ilusão da
companhia ... ‘Não
sou a tua
consciência’, diz-lhe
então uma
voz. ‘Ouça o
que tenho a
te
dizer.
Eu sou a
Voz da
consciência,
que
não se
engana e
nem
te
engana’”. FRÓES, Leonardo, p. 322.
Contudo,
não se
trata de
um
desejo
histérico
por
êxtases,
vertigens e
espasmos
sem
fim.
Tal
experiência,
em Fróes, parece
ser
sobretudo desejada
com
serenidade, moderada e intimamente, e o
mais
importante:
não
como
um
fim,
mas
como
um tornar-se (o werden de
todo o
pensamento,
freqüentemente místico,
alemão)
sem
fim,
cujo
fim é a
ilusão
necessária de
permanecer
sem
fim.
RAJCHMAN, John. Foucault. A
liberdade da
filosofia.
Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
Aqui propõe-se uma reconciliação do
dito
primeiro Foucault, da
transgressão
sublime (p. 19-29),
com o
terceiro, da
estética da
existência (p. 29-37), se é
que essas
divisões existem,
ou,
até
que
ponto.
“Sobre o
conceito da doutrina-da-ciência
ou da
assim
chamada
filosofia”. In: FICHTE, Johann Gottlieb. A
doutrina-da-ciência de 1794 e
outros
escritos.
São Paulo:
Abril Cultural, 1984.
A
preposição “eu
sou”,
em
que o
eu põe a
si
mesmo,
funda
um estado-de-ação no
qual o
eu é ao
mesmo
tempo o
agente e
produto da
ação, sendo
para
si
mesmo
pura e
simplesmente.
Só
quando o não-eu se contra-põe, o
eu se define e se determina
em
relação à
sua
negação, p. 46-7.
Quando o
eu se põe a
si
mesmo,
sem
negação,
ele possui a
totalidade
absoluta da
realidade, p. 66.
Todo o
esforço
ascético de Leonardo de
retornar à
consciência
infantil e
onírica almeja
experimentar
esse
estado de
ação
sem
constrangimentos,
vivido
pelo
eu
absoluto.
Nota 25, do
poema “O desdobre das
bonecas”, FRÓES, Leonardo, p. 111-5.
Prefiro
aqui
dizer
gozo da
língua,
em Leonardo, do
que o
gozo da alíngua, de Lacan,
pois a alíngua é não-toda e é marcada
pela
falta. Pensamos
que
ascese
poética, ao
contrário da
ascese propriamente
monástica (que,
lembramos,
como afirma Harpham, é o
paradigma da
ascese da
neurose),
não se
estrutura
pela
lógica da
falta lacaniana,
não
pelo não-todo, e
sim
por todo-o-desejo-do-eu
que aciona
toda a
máquina da
consciência
em
prol de
um
encontro
aberto
com o
gozo de todo-um-eu-não-todo,
um
eu
indeterminado,
que é o
próprio
gozo do
eu. MILNER, Jean-Claude. O
amor da
língua.
Porto
Alegre:
Artes Médicas, 1987, p. 25.
Mas Milner afirma
que a
língua
goza
quando Dante serve a Beatriz,
que,
como
mulher,
goza (p. 81). Desconfiamos
que haja
aí uma
relação de mímese diferenciadora. Leonardo,
contudo, faz
com a
língua a mímese do
delírio,
próprio da
figura de Ecila,
ligada à
estrutura do
desejo simbólico
pela criança-menina – uma
espécie de anima junguiana da
loucura do
eu
indeterminado.
Na
prosa
poética “Vagante”, creio
que Leonardo procurou
conceber no “vagante”
seu
próprio
mestre – o personagem-mímese de
um
ideal do
eu igualado ao
eu
indeterminado – sendo
ele
mesmo, uma
espécie de Alberto Caeiro
capaz da
completa
serenidade e da
capacidade
fantástica de
atravessar
paredes, simbolizando
que a
experiência do
impossível,
com as
forças da
loucura, é
possível e
real, possui “realidade
bastante” (p. 130): “O
rosto
bom
alegre
ágil rarefeito ...
Sim
ele acredita
que o viu atravessando
paredes e
que
não foi
ilusão ...
Como se fosse uma
questão de
inocência.
Que viu no
estar
absoluto de
quem
não
tinha
pressa,
nunca se preocupava
com
nada e
nunca se perturbaria
com
nada”. FRÓES, Leonardo, p. 308.
Logo,
tal
personagem representa o
próprio
ideal do
eu do
exercício
ascético. O
momento da, digamos, “iluminação
mística”,
quando
um
personagem se
desapega de
tudo e
encontra uma “liberdade
infinita”, está
precisamente descrito
em “O
enterro do
cajado”, p. 322.