APONTAMENTOS PARA UMA LEITURA

DE ALBERTO CAEIRO[1]

 

 

                                                                                                          Gilvan Fögel

(Professor Titular do Dep. de Filosofia da UFRJ,

autor de Da Solidão Perfeita; Escritos de Filosofia

e de Conhecer É Criar; Um Ensaio a partir de F. Nietzsche)

 

 

            l. Vamos ler Alberto Caeiro, poeta português, nascido pelos idos de dez do século passado, em Lisboa. Sua certidão de nascimento, como a de todo poeta, é seu primeiro verso: “Eu nunca guardei rebanhos...”. É verdade, assim nasceu Caeiro!

            Na publicação Poemas Completos de Alberto Caeiro, incluída em Fernando Pessoa Obra Poética em um volume, da Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1974[2], aparece uma série, intitulada O Guardador de Rebanhos, de quarenta e nove poemas datados de 1911-1912, numerados em romano; O Pastor Amoroso, com meia dúzia de poemas, escritos entre 1914 e 1930 e, por fim,  Poemas Inconjuntos, que, é dito, foram escritos entre 1913 e 19l5, mas que também contêm poemas datados  até 1920. A edição inclui uma pequena Introdução, de Ricardo Reis, e um Posfácio, intitulado Notas para a recordação do meu mestre Caeiro, de Álvaro de Campos.  Ricardo Reis e Álvaro de Campos são igualmente poetas portugueses, contemporâneos de Caeiro, e que se dizem, ambos, discípulos dele. Ao todo, cinqüenta páginas nesta edição, numeradas de 201 a 250.

            Estes textos anunciados constituem o material escrito, com o qual vamos nos ocupar, isto é, são os textos que vamos ler e tentar entender. Entender, em se tratando de poesia, significa: entrar na poética do poeta, participar da força realizadora de sua poesia. Portanto, fazer parte do universo, do mundo do poeta, como diz Álvaro de Campos. Este é o caminho. Caminho que é preciso abrir e por esta via far-se-á realmente uma leitura.

 

            2. Servindo-nos da Introdução, de Ricardo Reis, e do Posfácio, de Álvaro de Campos, vamos tomar algumas indicações, que poderão nos ajudar a abrir um acesso à poética de Caeiro.

            Inicialmente, ambos, Reis e Campos, falam de Caeiro como um pagão. Reis diz ser eleum reconstrutor da essência do paganismo” e que ele teria conseguido “a ressurreição do paganismo”. E, segundo Álvaro de Campos, “em Caeiro não havia explicação para o paganismo: havia consubstanciação”. O pagão é identificado com o grego que, por sua vez, é caracterizado como o fora, o exterior, o objetivo, em oposição ao cristão da interioridade e à modernidade intimista, subjetivista, ambos, cristianismo e modernidade, cheios de vontade de infinito, de ilimitado.  Em suas Recordações, Álvaro de Campos fala do “estranho ar grego... calmo”, marcado porpoderosa brancura e majestade”, de Caeiro. O que definiria o mestre e a sua natureza grega, greco-pagã, seria “a repugnância do infinito”, mesmo o fato de ele não ter este “inconceito”, a saber, de infinito. Numa conversa com Álvaro de Campos, Caeiro teria dito: “Não concebo nada como infinito. Como é que eu posso conceber qualquer coisa como infinito?... O que não tem limites não existe”.  E Álvaro de Campos conclui: “Nessa altura (da conversa) senti carnalmente que estava discutindo não com um outro homem, mas com outro universo”.

            Um outro universo, que diz ainda: “Mas isso a que você (Álvaro de Campos) chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver”.  Num verso de Poemas Inconjuntos, ouve-se: “Eu nem sequer sou poeta: vejo” [235].  Em outra passagem, temos: “Há metafísica bastante em não pensar em nada” [206], “(pensar é estar doente dos olhos)” [205].  Trata-se de um ver que, diz ele, é sentir - “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...” [205]. E ainda:

                                  

Sou um guardador de rebanhos.

                                   O rebanho é os meus pensamentos

                                   E os meus pensamentos são todos sensações. [212]

 

            Este ver e este sentir fazem de Caeiro “o único poeta da Natureza” [237] -   “um intérprete da Natureza” [220] ou, como também dirá, “Sou o Descobridor da Natureza” [226].

            Finito, ver, sentir, natureza - isto, estas noções, constituidoras do paganismo de Alberto Caeiro, articuladas de um modo muito próprio, que é o de Caeiro, configuram esteoutro universo”, ou seja, outro mundo, quer dizer, um outro princípio gerador e transfigurador de sentido e de gênese de realidade, no qual queremos e precisamos entrar, para que a poesia de Caeiro, através de sua poética, nos fale, se nos revele, assim revelando ou tornando visível tudo quanto há e é. Um universo, um mundo pagão, marcado por limite, ver, sentir, natureza - no nosso caminho, no nosso encaminhamento para a entrada neste universo, façamos com que estas sejam as balizas, as estações que pontuarão nosso percurso, nossa viagem. Vamos ensaiar algumas aproximações a estes temas-guias.

 

            3. O Guardador de Rebanhos é o título que reúne a primeira série de poemasGuardador de rebanhos é o pastor. Ele guarda à medida que ele cuida para que o rebanho não se disperse, não se desfaça, quer dizer, para que ele se mantenha íntegro, coeso. Por isso, qualquer extravio e ele e seu cão estão reconduzindo, reatando, reintegrando, recompondo. Em última instância, o pastor cuida para que o rebanho permaneça rebanho.

            Guardar quer dizer proteger, zelar, cuidar. Mas não é jamais um super-cuidar, um super-proteger com afagos deliberados e exagerados, com afetações que degeneram, desvirtuam, debilitam e, por isso, corrompem, desintegram - desfazem. O bom guardar é cuidar para que isso que é guardado seja ou venha a ser justo isso que é. Portanto, o bom guardar é cuidar para que o guardado seja o que precisa ser. Então, o bom guardar é cuidado e zelo para com a necessidade. Assim sendo, guardar é largar cuidadosamente, é zelosamente abandonar... Deixar ser!  O cuidadoso ou o zeloso não permite que se entenda, mal-entenda, este deixar ser como apatia, desinteresse, isto é, descuido, incúria, desleixo. Trata-se de, desde uma estranha atitude de entrega à coisa através de escuta e de ausculta - o cuidado, o zelo -, deixar que, pela própria via, obedecendo à própria lei e à própria necessidade da própria coisa, esta desabroche, apareça e, deste modo, seja e insista em ser isso que é, tal como é, tal como precisa ser.

            Aqui, o guardador, o zelador é o poeta. O poeta, na sua poética, desde ela e graças a ela, é um guardador, um zeladorComo a poesia guarda, zela? Isso é o que precisamos aprender, conquistar, para se entender Alberto Caeiro - a poesia, de modo geralGuardar é também saltar para uma dimensão extraordinária, na qual se dá o ver, para então guardar o que , o que se Com isso, dissemos que o ver aqui em questão, o ver poeticamente interessado, não é qualquer ver, mas um ver extraordinário. Cuidar, zelar - como? Insistindo no ver, morando no extraordinário e assim promovendo o fazer-se visível. Toda arte, todo pensamento é rendição ao e salto para o fazer-se visível, que é o acontecimento da vida, da existência.

            E é por isso, a saber, porque o guardador aqui é o poeta, que, a partir de palavras e versos, coisas são guardadas em guardando-se versos e palavras - enfim, por isso, O Guardador de Rebanhos começa dizendo que ele nunca guardou rebanhos, que ele nunca foi pastor... Mas é como se guardara e como se fora:

 

                                   Eu nunca guardei rebanhos,

                                   Mas é como se os guardasse.

                                   Minha alma é como um pastor,

            Conhece o vento e o sol

            E anda pela mão das estações

            A seguir e a olhar. [203]

 

            É como se fosse guardador, como se fosse pastor, porque sua alma é como um pastor. Sua alma, i.é, a alma do poetaAlma - “anima”, “psyché” - é a vida do poeta, i.é, é o súbito irromper-se do movimento que faz poeta poeta. Assim, no poeta, alma está dizendo o que nele é propriamente poeta. Redundantemente, alma é o poeta do poeta ou a própria poesia. A poesia é guarda, a poesia é pastor e Caeiro encarna a poesia, ele é seu porta-voz, sim, seu intérprete, em sendo “intérprete da Natureza” [220]. Mas, por ora, deixemos isso, a saber, natureza, de lado.

            Se a alma do poeta, a poesia, é como um pastor e se ele, porém, nunca guardou rebanhos, o que guarda a alma do poeta? No poema de número IX, ele diz:

 

                                   O rebanho é os meus pensamentos

                                   E os meus pensamentos são todos sensações.

                                   Penso com os olhos e com os ouvidos

                                   E com a mão e os pés

                                   E com o nariz e a boca. [212]

 

            O pastor, que é o poeta, - o pastor-poeta, guarda pensamentos. “O rebanho é os meus pensamentos”. E os pensamentos, diz ele, são sensações. Pensar é sentir. Mas e sentir - o que é issoComo?

 

            4. Costuma-se dizer que o homem é corpo e (+) alma, sensação e (+) razão. Sentir seria função, operação, coisa do corpo; pensar seria função, operação, coisa da razão. Campos e funções bem definidos e, se não opostos, pelo menos bem distintos e inconfundíveis - na verdade, irreconciliáveis. Sentir seria ainda uma atividade executada pelos chamados “órgãos dos sentidosou, pura e simplesmente, pelos sentidos. Fala-se ainda de “sentidos externos”, que seriam nossos velhos e canônicos sentidos - a visão, o ouvido, o olfato, o gosto e o tato - e de “sentidos internos”, responsáveis pela recepção dos afetos, das impressões, das emoçõesEstes sentiriam os sentimentos!  É proverbial que “os sentidos enganam”, isto é, a toda hora, pela via dos sentidos, somos iludidos com o desconcertante e quase sempre decepcionante “parece, mas não é ...”.  Logo, do ponto de vista gnosiológico ou epistemológico, ou seja, do ponto de vista do conhecimento rigoroso, do saber verdadeiro, talvez mesmo desde a reivindicação do autêntico pensar, os chamados sentidos, o sentir  de modo geral não é (são), não deve(m) ser confiável(veis).  Isto, a saber, tal atitude desconfiada e cética, ao longo da história da filosofia, é discurso de realistas e de idealistas, de objetivistas e de subjetivistas, de sensistas e de puristas, de céticos e de dogmáticos, de intelectualistas, de fenomenalistas, etc., etc...

            Por outro lado, pensar é (seria) algo de outra ordem, de outra natureza - outra musa! Seria um ato, uma operação intelectual, racional. Dir-se-ia, talvez, um ato ou uma operação da mente, mental, e não do corpo, dos sentidos - estes seriam i-rracionais! Antes, seria algo que mesmo se opõe, se contra-põe aos sentidos: seria uma força, um poder, uma faculdade de lidar, melhor, de relacionar, conectar ou sintetizar formas, idéias, conceitos - pensar é representar através de conceitos! -, ou seja, tratar-se-ia de combinar, relacionar, juntar ou conectar coisas de ordem abstrata, “universais” e evidentemente meta-físicas ou supra-sensíveis. Portanto, pensar seria radicalmente outro, mesmo oposto ao sentir. Este, com certeza, é coisa do coração; aquele, com certeza, coisa da razão. Coração e razão - algo assim como cão e gato... Combinados por diferentes alquimias conciliadoras das diferentes escolas filosóficas, sentir e pensar podem, na melhor das hipóteses, se complementar, completarem-se reconciliadoramente em alguma pacífica convivência, tolerância mútua, desde alguma síntese dialética entre corpo e alma, sensação e razão.

            Mas Caeiro é enfático, sem dialética e sem precisar de conciliações ou de re-conciliações. Ele diz, pura e simplesmente: sentir é pensar. É como se dissesse: corpo é razão. Nietzsche completaria: a grande razão. Mas ouçamos Caeiro:

 

                                   E os meus pensamentos são todos sensações

                                   Penso com os olhos e com os ouvidos

                                   E com as mãos e os pés

                                   E com o nariz e a boca.[212]

 

            Sentir, porém, não diz pensar, mas também verEm Poemas Inconjuntos, lê-se:

 

                        Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver

                                                                                                                            [237]

 

            Acompanhar quer dizer andar junto, i.é, sintonizado, sincronizado, compassado. Acompanhamento, quer dizer, modulação sincronizada e sintonizada, variação ajustada e compassada do ver é igualmente o tato, poispenso (sinto!) com a mão e os pés”, assim como também o olfato e o gosto, uma vez quepenso (sinto!) com o nariz e a boca”.

            Temos então que pensar, sentir e ver estão dizendo a mesma coisa, melhor, estão falando de uma mesma experiência, que, para Caeiro, define a poesia, ou seja, todo o seu cultivo, toda a sua cultura  -  enfim, todo o seu pastoreio.

            Mas, se pensar diz sentir e se sentir, em todos os seus sentires, diz ver, então, claro, ver não está reduzido ao chamado sentido da visão. Ou seja, ver não ignora e não exclui todos os outros sentidos ou sentires, uma vez que o poeta com o ouvido, com o olfato, com o tato, com o gosto. Ao contrário, portanto, tal ver inclui todos os outros sentidos de uma maneira muito própria, muito singular. É isto que precisa ser esclarecido. E esclarecemos este ver, assim como pensar, à medida que esclareçamos sentir.

 

            5. Sentir é ver.  Vejo à medida que entro nas coisas e entro nas coisas à medida que sinto - melhor: à medida que as sinto.  E assim se pensa! ...

            Entrar nas coisas?! Então estou de fora e as coisas tem um dentro?!  Mas isso, a saber, o dentro das coisas, é justamente o que a poesia de Caeiro mais recusa: as coisas não são, antes, não tem um dentro, i.é, um interior, um profundo, umíntimo”, uma essência”.  “O único mistério das coisas é que elas não têm mistério nenhum”, é dito em algum lugar. As coisas são elas   -   e mais nada!!  Puras superfícies, cascas...

 

                                   “Constituição íntima das coisas”...

                                   “Sentido íntimo do universo”...

                                   Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

                                   ...                     ...                     ...

                                   O único sentido íntimo das coisas

                                   É elas não terem sentido íntimo nenhum. [207]

 

            Ou:

 

                                   Porque me falta a simplicidade divina

                                   De ser todo o meu exterior [214]

 

            Ou ainda:

 

                                   Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

                                   E fico contente.

                                   Por que sei que compreendo a Natureza por fora;

                                   E não a compreendo por dentro

                                   Porque a Natureza não tem dentro;

                                   Senão não era a Natureza. [219]

 

            Apesar disso, deixemos este tema do “fora” e da “superfície”, por enquanto, de fora!, melhor, de lado, e insistamos, a título de método, em dizer que sentir é entrar nas coisas. Ver, então, diria: entrar de tal modo nas coisas que elas se mostram, que elas aparecem nelas mesmas. “Nelas mesmas” quer dizer: cada qual no seu modo próprio de ser; cada qual em seu nascedouro, em seu “in statu nascendi”, isto é, em sua própria natureza.

            Mas, agora, perdidos e desorientados em relação a sentir, nos perdemos e nos desorientamos mais ainda em relação a coisa e coisas... Se entro nas coisas à medida que as sinto, o que são realmente as coisas e como realmente as sinto  -  como entro nelas? Ou, perguntado de outro modo: o que são as coisas, para que eu as sinta, as possa sentir?

 

                                   A espantosa realidade das cousas

                                   É a minha descoberta de todos os dias.

                                   Cada cousa é o que é,

                                   E é difícil explicar a alguém o quanto isso me alegra,

                                   E quanto isso me basta. [234]

 

            “Cada coisa é o que é”!  A resposta é chapada, como um óbvio e uma evidência, que, suposto não se tratar de uma tirada à Conselheiro Acácio, mais obscurece do que esclarece.

            “Cada coisa é o que é”!  Isto é espantosoMas não é óbvio, não é evidenteMuito pelo contrário.  E o que éOu: o que é o é da coisa, de cada coisa, e que a cada passo, a cada instante superficializa-se escandalosamente diante de nós, para nós, em nós?! Como isso? Nós?! Quenós”?! O olhar, o ver é do poeta, que é espantoso, extraordinário...

            Em outra parte, em outro poema, o poeta diz entregar-se também a “fazer conjeturas” e então se ouve:

 

                                   Há em cada cousa aquilo que ela é que a anima [245]

 

            Isso, de novo, pode parecer a invocação de um profundo, de um íntimo, de um atrás e além da coisa, enfim, de um dentro. Invocação que, agora, partiria do próprio poeta. Para ser sincero, porém, o verso não diz que é “dentrooufora”, que em cada coisa “há aquilo que ela é (e) que a anima”. Pode ser que seja na pele, na casca das coisas, na superfície - e a superfície pode ser nem dento e nem fora... Isto é, pode ser que superfície seja algo que não possa ser medido com a medida dentro e fora, dentro ou fora... Mas, esqueçamos também isso, por ora, e vejamos o que insinua a conjetura do verso que ouvimos e que diz:

 

                                   Há em cada coisa aquilo que ela é que a anima

 

            A coisa é o que a anima. Então, isso que chamávamos “entrar nas coisas ou na coisa” é tão-só dar-se conta disso que a(s) anima(m), ou seja, dar-se conta disso que ela(s) é (são), pois a coisa é isso que a anima. E, evocando os versos citados [234], é isso, a saber, o que anima a coisa e a faz ser isso que ela é e tal qual é, que alegra e basta, que torna leve e suficiente - satis-faz.  Ou seja, fazendo isso, quer dizer, dando-se conta do que anima a coisa, faz sempre o suficiente.  Pode-se ainda dizer: faz o possível e, então, o necessário, uma vez que, no horizonte das questões fundamentais, no homem, na vida, o possível é sempre e irrevogavelmente o necessário.

 

                                   ...a minha descoberta de todos os dias

                                   Cada coisa é o que é,

                                   E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra

                                   E quanto isso me basta. [234]

 

            Bem, mas o que anima a coisa e o que é animar?  E como se dar conta disso, como entrar nisso?  E, se entro, é porque estou fora? ...

 

            6. Animar quer dizer: dar ânimo, dar alma, dar vida. “Então o Senhor Deus formou o homem com a argila do solo e lhe insuflou nas narinas um hálito de vida e o homem tornou-se um ser vivo”. Assim se em Gênesis, 2,7. Deus animou o homem, melhor, o barro que, então, fez-se homem.  Soprou-lhe “um hálito de vida” e ele fez-se “ser vivo”. “Hálito de vida” é uma formulação pleonástica, pois vida é hálito, bafo, espírito, “pneuma”. E alma, “anima”, “psyché” é vida, quer dizer, movimento que se move a si mesmo a partir de si mesmo.

            “Há em cada coisa aquilo que ela é que a anima”. Não se deve entender este “há” como indicando um acréscimo, uma soma, quer dizer, haveria a coisa e a ela se somaria ou se acrescentaria “aquilo” (i.é, uma outra coisa!) que a animaria e que, então, faria dela isso que ela é. Seriam duas coisas - a “coisa” propriamente dita e mais aquilo que a anima. Não. Coisa, isto que aparece como isso ou como aquilo, é o mesmo que sua vida, ou seja, coisa é o modo de ser que é insistentemente fazer-se e tornar-se, desde si mesmo, isso que é. Insistir nisso, persistir nisso é a insistência e a persistência da coisa em ser isso que é. Ver a coisa - senti-la, pensá-la - é ver sua vida, isto é, ver o súbito irromper de seu movimento de vir a ser isto que é. Isto será participar da coisa, crescer com ela e, assim, tornar-se um ver (pensar, sentir) con-creto.

            Pois bem, mas o que é isso que anima a coisa, que faz da coisa isso que ela é? De outro modo: O que é, como é a vida da coisa ou a coisa nela mesma?

            O poeta diz, melhor, sub-diz, insinua que é um sentimento. Talvez um sentir. Por isso, é preciso ver, pensar, sentir com os olhos, as mãos, o nariz, a boca, os ouvidos... Então, tudo, todas as coisas sãointerior”, “íntimo”, “subjetivas”?! Trata-se do mais cínico, do mais intransponível dos subjetivismos, dos solipsismos!  Mas, estranhamente, o poeta diz, p.ex.:

 

                                   A realidade não precisa de mim [236]

 

            Ou:

 

                                   Ser real quer dizer não estar dentro de mim.

                                   Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.

                                   Sei que o mundo existe, mas não sei se existo. [241]

 

            E logo abaixo, ainda:

 

                        Quando digo “é evidente”, quero acaso dizer eu é que o vejo”?

                        Quando digo “é verdade”, quero acaso dizer “é minha opinião”?

                        Quando digo “ali está”, quero acaso dizernão está ali”?

                        E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia?

                        Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,

                        E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto.

                        Sim, antes de sermos interior somos exterior.

                        Por isso somos exterior essencialmente. [241/2]

 

            “Ser real é não estar dentro de mim, é ser essencialmente exterior”, isto é, fora, objetivamente. “A realidade não precisa de mim! Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos - E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia?” Sim, a filosofia, o pensamento, é fala do que é, do que aparece e se faz visível. E o que imediatamente aparece e se faz visível é a vidaVida está dizendo: de repente, dar-se conta sendo, existindo, vendo.

            Ao invés de dizer-se “fora”, “exterior” e com isso reativar-se a discussão  interior versus  exterior, dentro  versus  fora - ao invés disso, digamos que a coisa, que é sentimento, em sendo superfície (acima mencionamos-insinuamos que superfície não comporta a oposição dialética dentro x fora, interior x exterior),  é transcendente. A vida é transcendentePor isso, vivemos, existimos antes de filosofar, antes de saber.

            Mas como se entende transcendente, transcendência? É o que ultrapassa, sobrepassa, transborda, sobra. É excesso e superabundância. Digamos, um modo de ser, com o qual o homem se encontra, no qual se jogado e pelo qual tomado, que está para além do poder de sua decisão, para além da sua liberdade de querer ou não querer, portanto, que independe de sua vontade, que ultrapassa seu querer e seu arbítrio, talvez capricho, enfim, “algocom o qual o homem irremediavelmente se depara, melhor, sempre se deparou como seu medium ou elemento.  Assim é a vida - o olhar, o ver, o ser sob tal determinação -, pois tudo que realmente vive (i.é, , sente, pensa) irrompe subitamente. Salto. É da experiência simples e abissal deste súbito, deste irromper imediato, que se cunha esta noção de vida como transcendência e, ao mesmo tempo e por isso mesmo, como movimento que se move a si próprio a partir de si próprio, pois nãonada paraforaou paraalém” disso e que viesse a ser a causa  disso.  A vida, assim, toda vida ou tudo que anima, é a circunscrição absoluta. “Dentro” e “fora”, “interior” e “exterior”, aqui, não são medidas. É desde a evidência, quer dizer, a experiência deste súbito, deste salto, que também se evidenciam inocência, gratuidade e jogo como sendo igualmente a circunscrição absoluta da vida, da existência.

            Coisa é o que a anima, isto é, é vida, isto é, algo da dimensão, da textura do que transcende, do que ultrapassa -   da  t r a n s c e n d ê n c i a .

 

                        Uma árvore brota, irrompe. Ó pura emergência,

                        Puro ultrapassamento, pura transcendência - reine Übersteigung!

 

            Esta experiência extraordinária, este espantoso de todos os dias e de todas as horas pontua a poética de Reiner Maria Rilke, ao abrir Sonetos a Orfeu.

            Falar de transcendência, ter a evidência de tal acontecimento, tem sentido e direito a partir justamente desta experiência como lugar e hora de pontuação e de modulação de todo acontecer extraordinário, de toda criação. “Pura transcendência”, isto é, puro ultra-passamento, puro dom, pura inocência, pura gratuidade. “Puroquer dizer: claro, límpido, cristalino - evidente.

 

            7. Temos que um sentimento é o que anima, isto é, o quevida à coisa e assim faz com que ela seja o que é. Coisa é este ânimo, esta força ou esta vida - é isso que aparece, se mostra ou se faz visível.  E temos que este sentimento, então este ânimo ou vida, não é nada que esteja dentro do homem, nada interior, quer dizer, nenhuma projeção do dentro para ou sobre o fora, nenhuma exteriorização de um interior dado e constituído. “Ser real - e sentimento é o real, a coisa! - quer dizer não estar dentro de mim”.

            Rompendo com o lugar comum ou com o hábito, é preciso dizer: coisa nenhuma é coisa alguma. Isto é, coisa não é nenhum dado, nenhum fato, nada apático, indiferente - insensívelPortanto, coisa não é coisa, mas animação, sentimento.

            Assim sendo, a coisa, toda e qualquer, nisso que ela é, que a anima e a faz visível, tem, precisa ter a constituição imediata de vida, a saber, é transcendente, é graças à transcendência ou a um acontecimento da ordem do ultrapassamento de todo desejo, aspiração. Sim, neste sentido imediato e fundamental, sentimento não é nada humano, se se entende sob homem o que habitualmente se representa como sendo da ordem do antropológico, do psicológico e, então, do individual intimista, que evolui para uma interioridade doentia e mórbida. O sentimento (afeto, páthos) é transcendente, ou seja, a rigor, não é coisa que o homem tenha, que seja uma faculdade ou uma capacidade sua, um atributo de sua alma, de sua subjetividade ou de seu corpo, mas antes, sentimento (afecção, páthos) é algo pelo qual o homem é tido, tomado e, por isso, vem a ser o homem que é, o homem que se faz. O próprio homem, principalmente o homem, não é coisa nenhuma, nada dado, nenhum sujeito sub- ou pré-existente, mas o estranho ente que é ente nenhum, mas tão-só o que pode ser tais possibilidades, a saber, tais sentimentos, ou seja, todas as coisas. Seu ser é poder-ser.  Ele é possibilidade de possibilidade e assim se cumpre sua essência, seu modo de ser mais próprio, que é a liberdade, uma vez que na ação, na atividade do sentimento (páthos, afeto) que dele se apropria ou se apodera, ele, o homem, libera ou liberta sua identidade, seu poder-ser, que é poder vir a ser o sentimento (possibilidade) que é.

            Isto que se chama o sentimento é a determinação da coisa, seu sentido ou a coisa propriamente dita, uma vez que fora, além ou aquém de seu sentido ou de sua determinação (de seu sentimento!) configura-se o domínio do que não é e não há, nem pode ser e haver, pois é o domínio fora de todas as condições de possibilidade para que algo possa dar-se, isto é, ser e haverNenhum domínio ou âmbito, portanto. Cada coisa é o aparecer ou realizar-se (concretizar-se) de um sentimento possível, de um possível afeto, o qual, por sua vez, constitui-se num horizonte ou num modo possível de ser, quer dizer, de vida aparecer e fazer-se.  Os verbos, isto é, os modos possíveis de ser ou de existir - os verbos, portanto, que conjugam o existir, o viver, são afetos, são sentimentos, e nisso e por isso as coisas são,  aparecem,  se  manifestam ou se fazem visíveisTais verbos ou modos de ser se definem como afetos, uma vez que, sendo ou tendo a constituição imediata de vida, ou seja, o súbito, o espontâneo, que irrompe, se faz e se dá desde si mesmo, também eles se apoderam ou se apropriam do ente que pode, isto é,  precisa ser apoderado e apropriado, a saber, o homem  o homem. Ele, dissemos, é a possibilidade de ser ou de vir a ser tais possibilidades.

            Mostrando-se como o meio, o medium, que é o próprio aparecer e fazer-se visível de tudo que é e há, os sentimentos ou os afetos são possíveis perspectivas, ou seja, instâncias, meios ou elementos, em cujo âmbito ou a partir de cujos âmbitos as coisas aparecem, se mostram ou se fazem tais coisas. É isso que diz per-spicere, à medida que seja um ver, que é um ver ou aparecer porque atravessado (“per”) ou permeado por seu elemento próprio, a saber, o sentimento.  Cabe destacar que a coisa é e é, quer dizer, aparece, mostra-se, faz-se visível, por que é, porque precisa ser sentimento (“páthos”, afeto).  Sentimento, afeto, é o acontecimento elementar. Este é o modo de se dizer que vida, existência, é sempre afeto, isto é, sempre desde ou a partir de afeto. Portanto, ela não pré- ou sub-existe aos afetos. Não. Ela é como é, é olhar, porque é afeto.  O afeto é a luz, o elemento do visível.  Na linguagem de Caeiro, os sentimentos são os olhos, os ouvidos, as mãos, a boca, o nariz do, ou melhor, no viver. O homem é este ente que pode, isto é, precisa ser sempre afetado por tais possíveis modos, dimensões de ser - por um tal modo possível de ser. O homem é esta coisa ímpar e estranhíssima que pode ser todo este conjunto ou repertório de possibilidades que são os sentimentos, os afetos, isto é, as coisas. O que não é sentido, ou seja, aquilo pelo que o homem não está tocado e em cuja determinação (experiência) ele não seja ou esteja, não aparece, não se faz, enfim, não é. Aqui, mais do que nunca, o que o coração não sente, os olhos não vêem[3] - nem os ouvidos ouvem, nem as mãos sentem ou tocam. Nem a boca, a língua degusta... 

 

            8. ”Há em cada coisa aquilo que ela é que a anima”. Pois bem, isso vimos.  Agora, ouçamos a continuação deste verso:

 

                        Na planta está por fora e é uma ninfa pequena.

                        No animal é um ser interior longínquo.

                        No homem é a alma que vive com ele e é ele.

                        Nos deuses tem o mesmo tamanho

                        E o mesmo espaço que o corpo

                        E é a mesma cousa que o corpo.

                        Por isso se diz que os deuses nunca morrem

                        Por isso os deuses não têm corpo e alma.

                        Mas corpo e são perfeitos.

                        O corpo é que lhes é alma

                        E têm a consciência na própria carne divina. [245/6]

 

            Estranho, chamamos alma tudo que anima (e que é!) toda e qualquer coisa - cada coisa. Mas agora vemos que, segundo o poema, o que anima (e que é!) a planta “está fora e é uma ninfa pequena” (?!), o que anima o animal é “um ser interior longínquo”(?!), e o poema guarda alma para designar somenteaquilo que anima (e que é)”  o homem e os deuses. Como entender isso?

            Planta, animal, homem, deuses - na verdade, trata-se de uma gradação, de uma escala e mesmo de uma escalada dos viventes, dos anímicos, enfim, da alma. Melhor: níveis, graus de a alma fazer-se alma e aparecer como tal. Trata-se, portanto, de graus, níveis do sentir-ver ou do ver-sentir. Em questão, está graus de intensidade da alma, onde esta, em  crescendo, ou seja, se intensificando e assim vendo-se ou dando-se conta de si mesma, aparece para si própria como ver que se ou sentimento que se sente, quer dizer, como evidência de ser o que é. E o lugar deste acontecimento, da culminação deste viver, que tem por meio, por elemento, o ser desde si e a partir de si mesmo (= vida, alma, psyché), é o homem. Por isso, “aquilo que ele é que o anima” é “a alma que vive com ele e é ele”.  Este “é ele” define o modo de ser do vivente, do anímico que é o homem, ou seja, não um ente que começa antes e fora do homem, mas que é sempre homem, sempre o ente ou o modo de ser que precisa ser. Em outros termos, o ente que é sempre no destino e na necessidade de ver e de ver que , de sentir e sentir que sente[4], o que realmente caracteriza o ver e o sentir ou, melhor e mais conseqüente com Caeiro, o ver-sentir ou o sentir-ver.

            A propósito disso que cada coisa é e que a anima, talvez o poema citado esteja dizendo que, na planta, isso seja raso demais, lépido, fugidio, diáfano (“ninfa pequena”) e nem aparece e nem se dá conta; no animal, talvez, seja isso profundo demais e, igualmente, por isso, também não aparece, não se dá conta (“um ser interior longínquo”). Mas no homem aparece, se faz visível na linha de limiar do raso e do profundo, nesta região de conflito e de tensão, que é a superfície. A superfície, vimos e dissemos, é esta linha-limiar de tensão do raso e do profundo, ou seja, raso e profundo se fazem presentes, evidentes, à medida que um guarda e resguarda o outro na diferença. Isso, a saber, o que é e anima assim em tensão, aparece no homem e também nos deuses. Nos deuses até com mais, com toda evidência ou, melhor, exemplarmente. Na verdade, no homem, isso aparece quando ele se faz um pouco deus, como deus, quer dizer, quando ele poeta, isto é, quando ele , quando ele sente, enfim, quando ele pensa, entendendo-se este pensar como o ver-sentir ou o sentir-ver, do qual fala Caeiro.

            Um deus, um deus grego, tal como são os deuses para Caeiro, pois Caeiro é grego - um deus grego, portanto, fala da experiência, quer dizer, do fenômeno ou do acontecimento do homem ser tocado e tomado pelo abrir-se e inaugurar-se de um âmbito ou de um domínio possível de realidade, que assim e por isso se mostra e se evidencia como que definitiva e irrevogavelmente e que ultrapassa, transcende ao homem, à sua vontade, ao seu querer ou ao seu poder de decisão, mas em cujo âmbito e vigência de sentido o homem, pela experiência, a partir dela e graças a ela, não pode abrir mão, não pode não mais estar ou ser. Um deus, assim, é absolutamente necessário. Isto, a saber, tal abrir-se, dar-se e impor-se, é divino, é sagrado. A divindade, uma divindade é por excelência transcendência - imposição, necessidade de outro oualteridade enquanto tal. Por isso, para os gregos, os deuses não são invencionices, não são produto da imaginação ou da representação de um sujeito, de uma “mente”, nada humano, no sentido habitual do antropocêntrico, mas eles são, sim, experimentados, isto é, sentidos, vistos em toda sua evidência, resplendor e poder de imposição transcendente. Tal evidência, lembremos, por se tratar de ver um salto, é aquiescência no obscuro da doação, no sem porquê da gratuidade. Aos deuses, sobretudo aos deuses ou à divindade vê-se, ouve-se, obedece-se – sente-se.

            Pois muito bem, isso, a saber, este ver, ouvir, obedecer, render-se ao sentir, pelo e graças ao sentir, à experiência - isto é corpo.   Por isso, nos deuses, o que é e anima “tem o mesmo tamanho e o mesmo espaço que o corpo e é a mesma cousa que o corpo”. Ou seja, , nos deuses, na hora do divino ou do sagrado, a alma é o corpo. O corpo sente, o corpo , o corpo pensa. Nos deuses, insiste o poema, o corpo é a alma e, por isso, os deuses não morrem e são perfeitos!


Resumo:

Partindo do vínculo estabelecido por Ricardo Reis e Álvaro de Campos entre Alberto Caeiro e a reconstrução da essência do paganismo, explícita ou implicitamente, o ensaio busca pensar, fenomenologicamente, o respectivo heterônimo de Fernando Pessoa num encontro com o pensamento grego, que, por sua vez, é caracterizado como o fora, o exterior, o objetivo, em oposição ao cristão da interioridade e à modernidade intimista, subjetivista, ambos, cristianismo e modernidade, cheios de vontade de infinito, de ilimitado. O que definiria Caeiro, o mestre dos heterônimos, e a sua natureza grega, greco-pagã, seria “a repugnância do infinito”.

 

Abstract:

Throughout the union established by Ricardo Reis e Álvaro de Campos between Alberto Caeiro and the reconstruction of the essence of the paganism, the paper, in an explicit or in an implicit way, attempts to think, in a phenomenological way, the respective heteronymous of Fernando Pessoa by an approach of the Greek classical thought, characterized by himself as outer, exterior, objective, the opposite to the Christian and modern interiority, full of infinity and illimitableness. The master of the others heteronymous of Pessoa and his Greek nature would be defined through the “repugnance of infinity”.

 

Palavras-chave: Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, paganismo, natureza, alma, vida.

 

Key-words: Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, paganism, nature, life, mind.


 

[1] O presente texto constitui-se num  'fragmento' de uma interpretação da poesia deste heterônimo de Fernando Pessoa e tem um desdobramento bem maior. Aqui está tão-só a abertura do texto. Por comodidade do autor, foi mantida a forma e daí, de certa forma, a abrupta interrupção.
[2] Todas as citações terão esta edição como referência. O número entre colchetes, após a citação, estará se referindo à página.
[3] BRANTES, Simone, Pastilhas Brancas – poemas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. p. 11.
[4] Cf. Aristóteles, De Anima, II


 

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