APONTAMENTOS
PARA UMA
LEITURA
DE ALBERTO CAEIRO
Gilvan Fögel
(Professor
Titular do Dep. de
Filosofia da UFRJ,
autor de Da
Solidão
Perfeita;
Escritos de
Filosofia
e de
Conhecer É
Criar;
Um
Ensaio a
partir de F. Nietzsche)
l. Vamos
ler Alberto Caeiro,
poeta
português, nascido
pelos
idos de
dez do
século
passado,
em Lisboa.
Sua
certidão de nascimento,
como a de
todo
poeta, é
seu
primeiro
verso: “Eu
nunca guardei
rebanhos...”. É
verdade,
assim nasceu Caeiro!
Na publicação
Poemas
Completos de Alberto Caeiro, incluída
em Fernando
Pessoa –
Obra
Poética
em
um
volume, da Aguilar
Editora,
Rio de
Janeiro, 1974,
aparece uma
série, intitulada O
Guardador de
Rebanhos, de quarenta e
nove
poemas
datados de 1911-1912, numerados
em
romano; O
Pastor
Amoroso,
com
meia
dúzia de
poemas,
escritos
entre 1914 e 1930 e,
por
fim, Poemas
Inconjuntos,
que, é
dito, foram
escritos
entre 1913 e 19l5,
mas
que
também contêm
poemas
datados
até 1920. A
edição inclui uma
pequena
Introdução, de Ricardo
Reis, e
um
Posfácio, intitulado
Notas
para a recordação do
meu
mestre Caeiro, de Álvaro de
Campos. Ricardo
Reis e Álvaro de
Campos
são
igualmente
poetas portugueses,
contemporâneos de Caeiro, e
que se dizem,
ambos,
discípulos dele. Ao
todo, cinqüenta
páginas nesta
edição, numeradas de 201 a 250.
Estes
textos anunciados constituem o
material
escrito,
com o
qual vamos
nos
ocupar,
isto é,
são os
textos
que vamos
ler e
tentar
entender.
Entender,
em se tratando de
poesia, significa:
entrar na
poética do
poeta,
participar da
força realizadora de
sua
poesia.
Portanto,
fazer
parte do
universo, do
mundo do
poeta,
como diz Álvaro de
Campos.
Este é o
caminho.
Caminho
que é
preciso
abrir e
só
por esta
via far-se-á
realmente uma
leitura.
2. Servindo-nos da
Introdução, de Ricardo
Reis, e do
Posfácio, de Álvaro de
Campos, vamos
tomar algumas
indicações,
que poderão
nos
ajudar a
abrir
um
acesso à
poética de Caeiro.
Inicialmente,
ambos,
Reis e
Campos, falam de Caeiro
como
um
pagão.
Reis diz
ser
ele “um reconstrutor
da
essência do
paganismo” e
que
ele teria conseguido “a
ressurreição do
paganismo”. E,
segundo Álvaro de
Campos, “em Caeiro
não havia
explicação
para o
paganismo: havia consubstanciação”. O
pagão é identificado
com o
grego
que,
por
sua
vez, é
caracterizado
como o
fora, o
exterior, o
objetivo,
em
oposição ao
cristão da interioridade e à modernidade intimista,
subjetivista,
ambos,
cristianismo e modernidade,
cheios de
vontade de
infinito, de ilimitado.
Em
suas Recordações, Álvaro de
Campos
fala do “estranho
ar
grego...
calmo”, marcado
por “poderosa brancura
e
majestade”, de Caeiro. O
que definiria o
mestre e a
sua
natureza
grega, greco-pagã, seria “a
repugnância do
infinito”,
mesmo o
fato de
ele
não
ter
este “inconceito”, a
saber, de
infinito. Numa
conversa
com Álvaro de
Campos, Caeiro teria
dito: “Não concebo
nada
como
infinito.
Como é
que
eu posso
conceber
qualquer
coisa
como
infinito?... O
que
não tem
limites
não existe”. E Álvaro de
Campos conclui: “Nessa
altura (da
conversa) senti
carnalmente
que estava discutindo
não
com
um
outro
homem,
mas
com
outro
universo”.
Um
outro
universo,
que diz
ainda: “Mas
isso a
que
você (Álvaro de
Campos) chama
poesia é
que é
tudo.
Nem é
poesia: é
ver”. Num
verso de
Poemas Inconjuntos, ouve-se: “Eu
nem
sequer sou
poeta: vejo” [235].
Em
outra
passagem, temos: “Há
metafísica
bastante
em
não
pensar
em
nada” [206], “(pensar é
estar
doente dos
olhos)” [205]. Trata-se de
um
ver
que, diz
ele, é
sentir - “Eu
não tenho
filosofia: tenho
sentidos...” [205]. E
ainda:
Sou
um
guardador de
rebanhos.
O
rebanho é os
meus
pensamentos
E os
meus
pensamentos
são
todos
sensações. [212]
Este
ver e
este
sentir fazem de Caeiro “o
único
poeta da
Natureza” [237] - “um
intérprete da
Natureza” [220]
ou,
como
também dirá, “Sou o Descobridor da
Natureza” [226].
Finito,
ver,
sentir,
natureza -
isto, estas
noções, constituidoras do
paganismo de Alberto Caeiro, articuladas de
um
modo
muito
próprio,
que é o de Caeiro, configuram
este “outro
universo”,
ou seja,
outro
mundo,
quer
dizer,
um
outro
princípio
gerador e transfigurador de
sentido e de
gênese de
realidade, no
qual queremos e precisamos
entrar,
para
que a
poesia de Caeiro,
através de
sua
poética,
nos fale, se
nos revele,
assim revelando
ou tornando
visível
tudo
quanto há e é.
Um
universo,
um
mundo
pagão, marcado
por
limite,
ver,
sentir,
natureza - no
nosso
caminho, no
nosso encaminhamento
para a
entrada neste
universo, façamos
com
que estas sejam as
balizas, as
estações
que pontuarão
nosso percurso,
nossa
viagem. Vamos
ensaiar algumas
aproximações a
estes temas-guias.
3. O
Guardador de
Rebanhos é o
título
que reúne a
primeira
série de
poemas.
Guardador de
rebanhos é o
pastor.
Ele
guarda à
medida
que
ele cuida
para
que o
rebanho
não se disperse,
não se desfaça,
quer
dizer,
para
que
ele se mantenha
íntegro, coeso.
Por
isso,
qualquer
extravio e
ele e
seu
cão
lá estão reconduzindo, reatando, reintegrando,
recompondo.
Em
última
instância, o
pastor cuida
para
que o
rebanho permaneça
rebanho.
Guardar
quer
dizer
proteger,
zelar,
cuidar.
Mas
não é
jamais
um super-cuidar,
um super-proteger
com
afagos deliberados e exagerados,
com
afetações
que degeneram, desvirtuam, debilitam e,
por
isso, corrompem, desintegram - desfazem. O
bom
guardar é
cuidar
para
que
isso
que é guardado seja
ou venha a
ser
justo
isso
que é.
Portanto, o
bom
guardar é
cuidar
para
que o guardado seja o
que
precisa
ser.
Então, o
bom
guardar é
cuidado e
zelo
para
com a
necessidade.
Assim sendo,
guardar é
largar cuidadosamente, é
zelosamente
abandonar...
Deixar
ser! O
cuidadoso
ou o
zeloso
não permite
que se entenda, mal-entenda,
este
deixar
ser
como
apatia,
desinteresse,
isto é,
descuido,
incúria,
desleixo. Trata-se de,
desde uma
estranha
atitude de
entrega à
coisa
através de
escuta e de ausculta - o
cuidado, o
zelo -,
deixar
que,
pela
própria
via, obedecendo à
própria
lei e à
própria
necessidade da
própria
coisa, esta desabroche, apareça e, deste
modo, seja e insista
em
ser
isso
que é,
tal
como é,
tal
como
precisa
ser.
Aqui, o
guardador, o
zelador é o
poeta. O
poeta, na
sua
poética,
desde
ela e
graças a
ela, é
um
guardador,
um
zelador.
Como a
poesia
guarda,
zela?
Isso é o
que precisamos
aprender,
conquistar,
para se
entender Alberto Caeiro - a
poesia, de
modo
geral.
Guardar é
também
saltar
para uma
dimensão
extraordinária, na
qual se dá o
ver,
para
então
guardar o
que
vê, o
que se
vê.
Com
isso,
já dissemos
que o
ver
aqui
em
questão, o
ver poeticamente interessado,
não é
qualquer
ver,
mas
um
ver
extraordinário.
Cuidar,
zelar -
como? Insistindo no
ver, morando no
extraordinário e
assim promovendo o fazer-se
visível.
Toda
arte,
todo
pensamento é
rendição ao e
salto
para o fazer-se
visível,
que é o
acontecimento da
vida, da
existência.
E é
por
isso, a
saber,
porque o
guardador
aqui é o
poeta,
que, a
partir de
palavras e
versos,
coisas
são guardadas
em guardando-se
versos e
palavras -
enfim,
por
isso, O
Guardador de
Rebanhos
começa dizendo
que
ele
nunca guardou
rebanhos,
que
ele
nunca foi
pastor...
Mas é
como se guardara e
como se
fora:
Eu
nunca guardei
rebanhos,
Mas é
como se os guardasse.
Minha
alma é
como
um
pastor,
Conhece o
vento e o
sol
E
anda
pela
mão das
estações
A
seguir e a
olhar. [203]
É
como se fosse
guardador,
como se fosse
pastor,
porque
sua
alma é
como
um
pastor.
Sua
alma, i.é, a
alma do
poeta.
Alma - “anima”, “psyché” - é a
vida do
poeta, i.é, é o
súbito irromper-se do
movimento
que faz
poeta
poeta.
Assim, no
poeta,
alma está dizendo o
que nele é propriamente
poeta.
Redundantemente,
alma é o
poeta do
poeta
ou a
própria
poesia. A
poesia é
guarda, a
poesia é
pastor e Caeiro encarna a
poesia,
ele é
seu
porta-voz,
sim,
seu
intérprete,
em sendo “intérprete
da
Natureza” [220].
Mas,
por
ora, deixemos
isso, a
saber,
natureza, de
lado.
Se a
alma do
poeta, a
poesia, é
como
um
pastor e se
ele,
porém,
nunca guardou
rebanhos, o
que
guarda a
alma do
poeta? No
poema de
número IX,
ele diz:
O
rebanho é os
meus
pensamentos
E os
meus
pensamentos
são
todos
sensações.
Penso
com os
olhos e
com os
ouvidos
E
com a
mão e os
pés
E
com o
nariz e a
boca. [212]
O
pastor,
que é o
poeta, - o pastor-poeta,
guarda
pensamentos. “O
rebanho é os
meus
pensamentos”. E os
pensamentos, diz
ele,
são
sensações.
Pensar é
sentir.
Mas e
sentir - o
que é
isso?
Como?
4. Costuma-se
dizer
que o
homem é
corpo e (+)
alma,
sensação e (+)
razão.
Sentir seria
função,
operação,
coisa do
corpo;
pensar seria
função,
operação,
coisa da
razão.
Campos e
funções
bem
definidos e, se
não
opostos,
pelo
menos
bem
distintos e
inconfundíveis - na
verdade,
irreconciliáveis.
Sentir seria
ainda uma
atividade executada
pelos chamados “órgãos
dos
sentidos”
ou,
pura e
simplesmente,
pelos
sentidos. Fala-se
ainda de “sentidos
externos”,
que seriam
nossos
velhos e
canônicos
sentidos - a
visão, o
ouvido, o
olfato, o
gosto e o
tato - e de “sentidos
internos”,
responsáveis
pela
recepção dos
afetos, das
impressões, das
emoções.
Estes sentiriam os
sentimentos! É
proverbial
que “os
sentidos enganam”,
isto é, a
toda
hora,
pela
via dos
sentidos, somos iludidos
com o
desconcertante e
quase
sempre decepcionante “parece,
mas
não é ...”.
Logo, do
ponto de
vista gnosiológico
ou epistemológico,
ou seja, do
ponto de
vista do
conhecimento
rigoroso, do
saber
verdadeiro,
talvez
mesmo
desde a
reivindicação do
autêntico
pensar, os chamados
sentidos, o
sentir de
modo
geral
não é (são),
não deve(m)
ser confiável(veis).
Isto, a
saber,
tal
atitude
desconfiada e
cética, ao
longo da
história da
filosofia, é
discurso de realistas e de
idealistas, de objetivistas e de subjetivistas, de
sensistas e de puristas, de
céticos e de
dogmáticos, de
intelectualistas, de fenomenalistas, etc., etc...
Por
outro
lado,
pensar é (seria)
algo de
outra
ordem, de
outra
natureza -
outra
musa! Seria
um
ato, uma
operação
intelectual,
racional. Dir-se-ia,
talvez,
um
ato
ou uma
operação da
mente,
mental, e
não do
corpo, dos
sentidos -
estes seriam i-rracionais!
Antes, seria
algo
que
mesmo se opõe, se contra-põe aos
sentidos: seria uma
força,
um
poder, uma
faculdade de
lidar,
melhor, de
relacionar,
conectar
ou
sintetizar
formas,
idéias,
conceitos -
pensar é
representar
através de
conceitos! -,
ou seja, tratar-se-ia de
combinar,
relacionar,
juntar
ou
conectar
coisas de
ordem
abstrata, “universais”
e
evidentemente meta-físicas
ou supra-sensíveis.
Portanto,
pensar seria
radicalmente
outro,
mesmo
oposto ao
sentir.
Este,
com
certeza, é
coisa do
coração;
aquele,
com
certeza,
coisa da
razão.
Coração e
razão -
algo
assim
como
cão e
gato... Combinados
por
diferentes
alquimias conciliadoras das
diferentes
escolas filosóficas,
sentir e
pensar podem, na
melhor das
hipóteses, se
complementar, completarem-se reconciliadoramente
em alguma
pacífica
convivência,
tolerância
mútua,
desde alguma
síntese
dialética
entre
corpo e
alma,
sensação e
razão.
Mas Caeiro é enfático,
sem
dialética e
sem
precisar de
conciliações
ou de re-conciliações.
Ele diz,
pura e
simplesmente:
sentir é
pensar. É
como se dissesse:
corpo é
razão. Nietzsche completaria: a
grande
razão.
Mas ouçamos Caeiro:
E os
meus
pensamentos
são
todos
sensações
Penso
com os
olhos e
com os
ouvidos
E
com as
mãos e os
pés
E
com o
nariz e a
boca.[212]
Sentir,
porém,
não diz
só
pensar,
mas
também
ver.
Em
Poemas Inconjuntos, lê-se:
Mesmo
ouvir
nunca foi
para
mim
senão
um acompanhamento de
ver
[237]
Acompanhar
quer
dizer
andar
junto, i.é, sintonizado, sincronizado,
compassado. Acompanhamento,
quer
dizer,
modulação sincronizada e sintonizada, variação
ajustada e compassada do
ver é
igualmente o
tato,
pois “penso (sinto!)
com a
mão e os
pés”,
assim
como
também o
olfato e o
gosto, uma
vez
que “penso (sinto!)
com o
nariz e a
boca”.
Temos
então
que
pensar,
sentir e
ver estão dizendo a
mesma
coisa,
melhor, estão falando de uma
mesma
experiência,
que,
para Caeiro, define a
poesia,
ou seja,
todo o
seu
cultivo,
toda a
sua
cultura -
enfim,
todo o
seu
pastoreio.
Mas, se
pensar diz
sentir e se
sentir,
em
todos os
seus
sentires, diz
ver,
então,
claro,
ver
não está reduzido ao chamado
sentido da
visão.
Ou seja,
ver
não ignora e
não exclui
todos os
outros
sentidos
ou
sentires, uma
vez
que o
poeta
vê
com o
ouvido,
com o
olfato,
com o
tato,
com o
gosto. Ao
contrário,
portanto,
tal
ver inclui
todos os
outros
sentidos de uma
maneira
muito
própria,
muito
singular. É
isto
que
precisa
ser
esclarecido. E esclarecemos
este
ver,
assim
como
pensar, à
medida
que esclareçamos
sentir.
5.
Sentir é
ver. Vejo à
medida
que entro nas
coisas e entro nas
coisas à
medida
que sinto -
melhor: à
medida
que as sinto. E
assim se
pensa! ...
Entrar nas
coisas?!
Então estou de
fora e as
coisas tem
um
dentro?! Mas
isso, a
saber, o
dentro das
coisas, é
justamente o
que a
poesia de Caeiro
mais recusa: as
coisas
não
são,
antes,
não tem
um
dentro, i.é,
um
interior,
um
profundo,
um “íntimo”, uma
essência”. “O
único
mistério das
coisas é
que
elas
não têm
mistério
nenhum”, é
dito
em
algum
lugar. As
coisas
são
só
elas - e
mais
nada!! Puras
superfícies,
cascas...
“Constituição
íntima das
coisas”...
“Sentido
íntimo do
universo”...
Tudo
isto é
falso,
tudo
isto
não
quer
dizer
nada.
...
... ...
O
único
sentido
íntimo das
coisas
É
elas
não terem
sentido
íntimo
nenhum. [207]
Ou:
Porque
me
falta a
simplicidade
divina
De
ser
todo
só o
meu
exterior [214]
Ou
ainda:
Por
mim, escrevo a
prosa dos
meus
versos
E fico
contente.
Por
que sei
que compreendo a
Natureza
por
fora;
E
não a compreendo
por
dentro
Porque a
Natureza
não tem
dentro;
Senão
não
era a
Natureza. [219]
Apesar disso, deixemos
este
tema do “fora” e da “superfície”,
por
enquanto, de
fora!,
melhor, de
lado, e insistamos, a
título de
método,
em
dizer
que
sentir é
entrar nas
coisas.
Ver,
então, diria:
entrar de
tal
modo nas
coisas
que
elas se mostram,
que
elas aparecem nelas mesmas. “Nelas mesmas”
quer
dizer:
cada
qual no
seu
modo
próprio de
ser;
cada
qual
em
seu
nascedouro,
em
seu “in statu nascendi”,
isto é,
em
sua
própria
natureza.
Mas,
agora, perdidos e desorientados
em
relação a
sentir,
nos perdemos e
nos desorientamos
mais
ainda
em
relação a
coisa e
coisas... Se entro nas
coisas à
medida
que as sinto, o
que
são
realmente as
coisas e
como
realmente as sinto -
como entro nelas?
Ou, perguntado de
outro
modo: o
que
são as
coisas,
para
que
eu as sinta, as possa
sentir?
A
espantosa
realidade das cousas
É a
minha
descoberta de
todos os
dias.
Cada cousa é o
que é,
E é
difícil
explicar a
alguém o
quanto
isso
me
alegra,
E
quanto
isso
me
basta. [234]
“Cada
coisa é o
que é”! A
resposta é
chapada,
como
um
óbvio e uma
evidência,
que,
suposto
não se
tratar de uma
tirada à
Conselheiro Acácio,
mais obscurece do
que esclarece.
“Cada
coisa é o
que é”!
Isto é
espantoso!
Mas
não é
óbvio,
não é
evidente.
Muito
pelo
contrário. E o
que é?
Ou: o
que é o é da
coisa, de
cada
coisa, e
que a
cada
passo, a
cada
instante superficializa-se
escandalosamente
diante de
nós,
para
nós,
em
nós?!
Como
isso?
Nós?!
Que “nós”?! O
olhar, o
ver é do
poeta,
que é
espantoso,
extraordinário...
Em
outra
parte,
em
outro
poema, o
poeta diz entregar-se
também a “fazer conjeturas” e
então se ouve:
Há
em
cada cousa
aquilo
que
ela é
que a anima [245]
Isso, de
novo, pode
parecer a
invocação de
um
profundo, de
um
íntimo, de
um
atrás e
além da
coisa,
enfim, de
um
dentro.
Invocação
que,
agora, partiria do
próprio
poeta.
Para
ser
sincero,
porém, o
verso
não diz
que é “dentro”
ou “fora”,
que
em
cada
coisa “há
aquilo
que
ela é (e)
que a anima”. Pode
ser
que seja na
pele, na
casca das
coisas, na
superfície - e a
superfície pode
ser
nem dento e
nem
fora...
Isto é, pode
ser
que
superfície seja
algo
que
não possa
ser medido
com a
medida
dentro e
fora,
dentro
ou
fora...
Mas, esqueçamos
também
isso,
por
ora, e vejamos o
que insinua a conjetura do
verso
que ouvimos e
que diz:
Há
em
cada
coisa
aquilo
que
ela é
que a anima
A
coisa é o
que a anima.
Então,
isso
que chamávamos “entrar nas
coisas
ou na
coisa” é
tão-só dar-se
conta disso
que a(s) anima(m),
ou seja, dar-se
conta disso
que
ela(s) é (são),
pois a
coisa é
isso
que a anima. E, evocando os
versos
já citados [234], é
isso, a
saber, o
que anima a
coisa e a faz
ser
isso
que
ela é e
tal
qual é,
que
alegra e
basta,
que
torna
leve e
suficiente - satis-faz.
Ou seja, fazendo
isso,
quer
dizer, dando-se
conta do
que anima a
coisa, faz
sempre o
suficiente. Pode-se
ainda
dizer: faz o
possível e,
então, o
necessário, uma
vez
que, no
horizonte das
questões
fundamentais, no
homem, na
vida, o
possível é
sempre e irrevogavelmente o
necessário.
...a
minha
descoberta de
todos os
dias
Cada
coisa é o
que é,
E é
difícil
explicar a
alguém
quanto
isso
me
alegra
E
quanto
isso
me
basta. [234]
Bem,
mas o
que anima a
coisa e o
que é
animar? E
como se
dar
conta disso,
como
entrar nisso? E, se entro, é
porque estou
fora? ...
6.
Animar
quer
dizer:
dar
ânimo,
dar
alma,
dar
vida. “Então o
Senhor
Deus formou o
homem
com a
argila do
solo e
lhe insuflou nas
narinas
um
hálito de
vida e o
homem tornou-se
um
ser
vivo”.
Assim se
lê
em Gênesis, 2,7.
Deus animou o
homem,
melhor, o
barro
que,
então, fez-se
homem. Soprou-lhe “um
hálito de
vida” e
ele fez-se “ser
vivo”. “Hálito de
vida” é uma
formulação pleonástica,
pois
vida é
hálito,
bafo,
espírito, “pneuma”. E
alma, “anima”, “psyché” é
vida,
quer
dizer,
movimento
que se move a
si
mesmo a
partir de
si
mesmo.
“Há
em
cada
coisa
aquilo
que
ela é
que a anima”.
Não se deve
entender
este “há”
como indicando
um
acréscimo, uma
soma,
quer
dizer, haveria a
coisa e a
ela se somaria
ou se acrescentaria “aquilo”
(i.é, uma
outra
coisa!)
que a animaria e
que,
então, faria dela
isso
que
ela é. Seriam duas
coisas - a “coisa” propriamente
dita e
mais
aquilo
que a anima.
Não.
Coisa,
isto
que aparece
como
isso
ou
como
aquilo, é o
mesmo
que
sua
vida,
ou seja,
coisa é o
modo de
ser
que é
insistentemente fazer-se e tornar-se,
desde
si
mesmo,
isso
que é.
Insistir nisso,
persistir nisso é a
insistência e a
persistência da
coisa
em
ser
isso
que é.
Ver a
coisa - senti-la, pensá-la - é
ver
sua
vida,
isto é,
ver o
súbito
irromper de
seu
movimento de
vir a
ser
isto
que é.
Isto será
participar da
coisa,
crescer
com
ela e,
assim, tornar-se
um
ver (pensar,
sentir) con-creto.
Pois
bem,
mas o
que é
isso
que anima a
coisa,
que faz da
coisa
isso
que
ela é? De
outro
modo: O
que é,
como é a
vida da
coisa
ou a
coisa nela
mesma?
O
poeta diz,
melhor, sub-diz, insinua
que é
um
sentimento.
Talvez
um
sentir.
Por
isso, é
preciso
ver,
pensar,
sentir
com os
olhos, as
mãos, o
nariz, a
boca, os
ouvidos...
Então,
tudo, todas as
coisas
são “interior”, “íntimo”,
“subjetivas”?! Trata-se do
mais
cínico, do
mais
intransponível dos subjetivismos, dos solipsismos!
Mas,
estranhamente, o
poeta diz, p.ex.:
A
realidade
não
precisa de
mim [236]
Ou:
Ser
real
quer
dizer
não
estar
dentro de
mim.
Da
minha
pessoa de
dentro
não tenho
noção de
realidade.
Sei
que o
mundo existe,
mas
não sei se existo. [241]
E
logo
abaixo,
ainda:
Quando digo “é
evidente”, quero
acaso
dizer “só
eu é
que o vejo”?
Quando digo “é
verdade”, quero
acaso
dizer “é
minha
opinião”?
Quando digo “ali
está”, quero
acaso
dizer “não está
ali”?
E se
isto é
assim na
vida,
por
que será
diferente na
filosofia?
Vivemos
antes de
filosofar, existimos
antes de o sabermos,
E o
primeiro
fato merece ao
menos a
precedência e o
culto.
Sim,
antes de sermos
interior somos
exterior.
Por
isso somos
exterior
essencialmente. [241/2]
“Ser
real é
não
estar
dentro de
mim, é
ser
essencialmente
exterior”,
isto é,
fora,
objetivamente. “A
realidade
não
precisa de
mim! Vivemos
antes de
filosofar, existimos
antes de o sabermos - E se
isto é
assim na
vida,
por
que será
diferente na
filosofia?”
Sim, a
filosofia, o
pensamento, é
só
fala do
que é, do
que aparece e se faz
visível. E o
que
imediatamente aparece e se faz
visível é a
vida.
Vida está dizendo: de
repente, dar-se
conta sendo, existindo, vendo.
Ao
invés de dizer-se “fora”,
“exterior” e
com
isso reativar-se a
discussão
interior
versus exterior,
dentro versus
fora - ao
invés disso, digamos
que a
coisa,
que é
sentimento,
em sendo
superfície (acima
mencionamos-insinuamos
que
superfície
não
comporta a
oposição
dialética
dentro x
fora,
interior x
exterior), é
transcendente. A
vida é
transcendente.
Por
isso, vivemos, existimos
antes de
filosofar,
antes de
saber.
Mas
como se entende
transcendente,
transcendência? É o
que ultrapassa, sobrepassa,
transborda,
sobra. É
excesso e
superabundância. Digamos,
um
modo de
ser,
com o
qual o
homem se
encontra, no
qual se
vê jogado e
pelo
qual tomado,
que está
para
além do
poder de
sua
decisão,
para
além da
sua
liberdade de
querer
ou
não
querer,
portanto,
que independe de
sua
vontade,
que ultrapassa
seu
querer e
seu
arbítrio,
talvez
capricho,
enfim, “algo”
com o
qual o
homem irremediavelmente se depara,
melhor,
sempre
já se deparou
como
seu medium
ou
elemento. Assim
é a
vida - o
olhar, o
ver, o
ser
sob
tal
determinação -,
pois
tudo
que
realmente vive (i.é,
vê, sente,
pensa) irrompe subitamente.
Salto. É da
experiência
simples e
abissal deste
súbito, deste
irromper
imediato,
que se
cunha esta
noção de
vida
como
transcendência e, ao
mesmo
tempo e
por
isso
mesmo,
como
movimento
que se move a
si
próprio a
partir de
si
próprio,
pois
não há
nada
para “fora”
ou
para “além” disso e
que viesse a
ser a
causa disso. A
vida,
assim,
toda
vida
ou
tudo
que anima, é a
circunscrição
absoluta. “Dentro” e “fora”,
“interior” e “exterior”,
aqui,
não
são
medidas. É
desde a
evidência,
quer
dizer, a
experiência deste
súbito, deste
salto,
que
também se evidenciam
inocência, gratuidade e
jogo
como sendo
igualmente a
circunscrição
absoluta da
vida, da
existência.
Coisa é o
que a anima,
isto é, é
vida,
isto é,
algo da
dimensão, da
textura do
que transcende, do
que ultrapassa - da
t r a n s c e n d ê n c i a .
Uma
árvore
brota, irrompe. Ó
pura
emergência,
Puro ultrapassamento,
pura
transcendência - reine Übersteigung!
Esta
experiência
extraordinária,
este
espantoso de
todos os
dias e de todas as
horas pontua a
poética de Reiner Maria Rilke, ao
abrir
Sonetos a Orfeu.
Falar de
transcendência,
ter a
evidência de
tal
acontecimento,
só tem
sentido e
direito a
partir
justamente desta
experiência
como
lugar e
hora de
pontuação e de
modulação de
todo
acontecer
extraordinário, de
toda
criação. “Pura
transcendência”,
isto é,
puro ultra-passamento,
puro
dom,
pura
inocência,
pura gratuidade. “Puro”
quer
dizer:
claro,
límpido,
cristalino -
evidente.
7. Temos
que
um
sentimento é o
que anima,
isto é, o
que dá
vida à
coisa e
assim faz
com
que
ela seja o
que é.
Coisa é
este
ânimo, esta
força
ou esta
vida - é
isso
que aparece, se
mostra
ou se faz
visível. E temos
que
este
sentimento,
então
este
ânimo
ou
vida,
não é
nada
que esteja
dentro do
homem,
nada
interior,
quer
dizer, nenhuma
projeção do
dentro
para
ou
sobre o
fora, nenhuma exteriorização de
um
interior
já
dado e constituído. “Ser
real - e
sentimento é o
real, a
coisa! -
quer
dizer
não
estar
dentro de
mim”.
Rompendo
com o
lugar
comum
ou
com o
hábito, é
preciso
dizer:
coisa nenhuma é
coisa alguma.
Isto é,
coisa
não é
nenhum
dado,
nenhum
fato,
nada
apático,
indiferente -
insensível.
Portanto,
coisa
não é
coisa,
mas
animação,
sentimento.
Assim sendo, a
coisa,
toda e
qualquer, nisso
que
ela é,
que a anima e a faz
visível, tem,
precisa
ter a
constituição
imediata de
vida, a
saber, é
transcendente, é
graças à
transcendência
ou a
um
acontecimento da
ordem do ultrapassamento de
todo
desejo,
aspiração.
Sim, neste
sentido
imediato e
fundamental,
sentimento
não é
nada
humano, se se entende
sob
homem o
que
habitualmente se representa
como sendo da
ordem do antropológico, do
psicológico e,
então, do
individual intimista,
que evolui
para uma interioridade
doentia e
mórbida. O
sentimento (afeto,
páthos) é
transcendente,
ou seja, a
rigor,
não é
coisa
que o
homem tenha,
que seja uma
faculdade
ou uma
capacidade
sua,
um
atributo de
sua
alma, de
sua subjetividade
ou de
seu
corpo,
mas
antes,
sentimento (afecção,
páthos) é
algo
pelo
qual o
homem é tido, tomado e,
por
isso, vem a
ser o
homem
que é, o
homem
que se faz. O
próprio
homem,
principalmente o
homem,
não é
coisa nenhuma,
nada
dado,
nenhum
sujeito sub-
ou pré-existente,
mas o
estranho
ente
que é
ente
nenhum,
mas
tão-só o
que pode
ser
tais possibilidades, a
saber,
tais
sentimentos,
ou seja, todas as
coisas.
Seu
ser é poder-ser.
Ele é possibilidade de possibilidade e
assim se cumpre
sua
essência,
seu
modo de
ser
mais
próprio,
que é a
liberdade, uma
vez
que na
ação, na
atividade do
sentimento (páthos,
afeto)
que dele se apropria
ou se apodera,
ele, o
homem, libera
ou
liberta
sua
identidade,
seu poder-ser,
que é
poder
vir a
ser o
sentimento (possibilidade)
que é.
Isto
que se
chama o
sentimento é a
determinação da
coisa,
seu
sentido
ou a
coisa propriamente
dita, uma
vez
que
fora,
além
ou
aquém de
seu
sentido
ou de
sua
determinação (de
seu
sentimento!) configura-se o
domínio do
que
não é e
não há,
nem pode
ser e
haver,
pois é o
domínio
fora de todas as
condições de possibilidade
para
que
algo possa dar-se,
isto é,
ser e
haver.
Nenhum
domínio
ou
âmbito,
portanto.
Cada
coisa é o
aparecer
ou realizar-se (concretizar-se) de
um
sentimento
possível, de
um
possível
afeto, o
qual,
por
sua
vez, constitui-se num
horizonte
ou num
modo
possível de
ser,
quer
dizer, de
vida
aparecer e fazer-se. Os
verbos,
isto é, os
modos
possíveis de
ser
ou de
existir - os
verbos,
portanto,
que conjugam o
existir, o
viver,
são
afetos,
são
sentimentos, e nisso e
por
isso as
coisas
são, aparecem, se manifestam
ou se fazem
visíveis.
Tais
verbos
ou
modos de
ser se definem
como
afetos, uma
vez
que, sendo
ou tendo a
constituição
imediata de
vida,
ou seja, o
súbito, o
espontâneo,
que irrompe, se faz e se dá
desde
si
mesmo,
também
eles se apoderam
ou se apropriam do
ente
que pode,
isto é, precisa
ser apoderado e
apropriado, a
saber, o
homem -
só o
homem.
Ele,
já dissemos, é a possibilidade de
ser
ou de
vir a
ser
tais possibilidades.
Mostrando-se
como o
meio, o medium,
que é o
próprio
aparecer e fazer-se
visível de
tudo
que é e há, os
sentimentos
ou os
afetos
são
possíveis
perspectivas,
ou seja,
instâncias,
meios
ou
elementos,
em
cujo
âmbito
ou a
partir de
cujos
âmbitos as
coisas aparecem, se mostram
ou se fazem
tais
coisas. É
isso
que diz per-spicere, à
medida
que seja
um
ver,
que é
um
ver
ou
aparecer
porque
já atravessado (“per”)
ou permeado
por
seu
elemento
próprio, a
saber, o
sentimento. Cabe
destacar
que a
coisa é e
só é,
quer
dizer, aparece, mostra-se, faz-se
visível,
por
que
já é,
porque
precisa
já
ser
sentimento (“páthos”,
afeto).
Sentimento,
afeto, é o
acontecimento
elementar.
Este é o
modo de se
dizer
que
vida,
existência,
já é
sempre
afeto,
isto é,
sempre
já
desde
ou a
partir de
afeto.
Portanto,
ela
não pré-
ou sub-existe aos
afetos.
Não.
Ela é
como é, é
olhar,
porque
já é
afeto. O
afeto é a
luz, o
elemento do
visível. Na
linguagem de Caeiro, os
sentimentos
são os
olhos, os
ouvidos, as
mãos, a
boca, o
nariz do,
ou
melhor, no
viver. O
homem é
este
ente
que pode,
isto é,
precisa
ser
sempre
já
afetado
por
tais
possíveis
modos,
dimensões de
ser -
por
um
tal
modo
possível de
ser. O
homem é esta
coisa
ímpar e estranhíssima
que pode
ser
todo
este
conjunto
ou
repertório de possibilidades
que
são os
sentimentos, os
afetos,
isto é, as
coisas. O
que
não é
sentido,
ou seja,
aquilo
pelo
que o
homem
já
não está tocado e
em
cuja
determinação (experiência)
ele
já
não seja
ou esteja,
não aparece,
não se faz,
enfim,
não é.
Aqui,
mais do
que
nunca, o
que o
coração
não sente, os
olhos
não vêem
-
nem os
ouvidos ouvem,
nem as
mãos sentem
ou tocam.
Nem a
boca, a
língua degusta...
8. ”Há
em
cada
coisa
aquilo
que
ela é
que a anima”.
Pois
bem,
isso
já vimos.
Agora, ouçamos a
continuação deste
verso:
Na
planta está
por
fora e é uma
ninfa
pequena.
No
animal é
um
ser
interior
longínquo.
No
homem é a
alma
que vive
com
ele e é
já
ele.
Nos
deuses tem o
mesmo
tamanho
E o
mesmo
espaço
que o
corpo
E é a
mesma cousa
que o
corpo.
Por
isso se diz
que os
deuses
nunca morrem
Por
isso os
deuses
não têm
corpo e
alma.
Mas
só
corpo e
são
perfeitos.
O
corpo é
que
lhes é
alma
E têm a
consciência na
própria
carne
divina. [245/6]
Estranho, chamamos
alma
tudo
que anima (e
que é!)
toda e
qualquer
coisa -
cada
coisa.
Mas
agora vemos
que,
segundo o
poema, o
que anima (e
que é!) a
planta “está
fora e é uma
ninfa
pequena” (?!), o
que anima o
animal é “um
ser
interior
longínquo”(?!), e o
poema
guarda
alma
para
designar
somente “aquilo
que anima (e
que é)” o
homem e os
deuses.
Como
entender
isso?
Planta,
animal,
homem,
deuses - na
verdade, trata-se de uma
gradação, de uma
escala e
mesmo de uma
escalada dos
viventes, dos
anímicos,
enfim, da
alma.
Melhor:
níveis,
graus de a
alma fazer-se
alma e
aparecer
como
tal. Trata-se,
portanto, de
graus,
níveis do sentir-ver
ou do ver-sentir.
Em
questão, está
graus de
intensidade da
alma,
onde esta,
em
crescendo,
ou seja, se intensificando e
assim vendo-se
ou dando-se
conta de
si
mesma, aparece
para
si
própria
como
ver
que se
vê
ou
sentimento
que se sente,
quer
dizer,
como
evidência de
ser o
que é. E o
lugar deste
acontecimento, da culminação deste
viver,
que tem
por
meio,
por
elemento, o
ser
desde
si e a
partir de
si
mesmo (=
vida,
alma, psyché), é o
homem.
Por
isso, “aquilo
que
ele é
que o anima” é “a
alma
que vive
com
ele e é
já
ele”.
Este “é
já
ele” define o
modo de
ser do
vivente, do
anímico
que é o
homem,
ou seja,
não
um
ente
que
começa
antes e
fora do
homem,
mas
que
já é
sempre
homem,
sempre
já o
ente
ou o
modo de
ser
que
precisa
ser.
Em
outros
termos, o
ente
que é
sempre
já no
destino e na
necessidade de
ver e de
ver
que
vê, de
sentir e
sentir
que sente,
o
que
realmente caracteriza o
ver e o
sentir
ou,
melhor e
mais
conseqüente
com Caeiro, o ver-sentir
ou o sentir-ver.
A
propósito disso
que
cada
coisa é e
que a anima,
talvez o
poema citado esteja dizendo
que, na
planta,
isso seja
raso
demais,
lépido,
fugidio,
diáfano (“ninfa
pequena”) e
nem aparece e
nem se dá
conta; no
animal,
talvez, seja
isso
profundo
demais e,
igualmente,
por
isso,
também
não aparece,
não se dá
conta (“um
ser
interior
longínquo”).
Mas no
homem aparece, se faz
visível na
linha de
limiar do
raso e do
profundo, nesta
região de
conflito e de
tensão,
que é a
superfície. A
superfície,
já vimos e dissemos, é esta linha-limiar de
tensão do
raso e do
profundo,
ou seja,
só
aí
raso e
profundo se fazem
presentes,
evidentes, à
medida
que
um
guarda e
resguarda o
outro na
diferença.
Isso, a
saber, o
que é e anima
assim
em
tensão, aparece no
homem e
também
nos
deuses.
Nos
deuses
até
com
mais,
com
toda
evidência
ou,
melhor,
exemplarmente. Na
verdade, no
homem,
isso aparece
quando
ele se faz
um
pouco
deus,
como
deus,
quer
dizer,
quando
ele
poeta,
isto é,
quando
ele
vê,
quando
ele sente,
enfim,
quando
ele
pensa, entendendo-se
este
pensar
como o ver-sentir
ou o sentir-ver, do
qual
fala Caeiro.
Um
deus,
um
deus
grego,
tal
como
são os
deuses
para Caeiro,
pois Caeiro é
grego -
um
deus
grego,
portanto,
fala da
experiência,
quer
dizer, do
fenômeno
ou do
acontecimento do
homem
ser tocado e tomado
pelo abrir-se e inaugurar-se de
um
âmbito
ou de
um
domínio
possível de
realidade,
que
assim e
por
isso se
mostra e se evidencia
como
que
definitiva e irrevogavelmente e
que ultrapassa, transcende ao
homem, à
sua
vontade, ao
seu
querer
ou ao
seu
poder de
decisão,
mas
em
cujo
âmbito e
vigência de
sentido o
homem,
pela
experiência, a
partir dela e
graças a
ela,
não pode
abrir
mão,
não pode
não
mais
estar
ou
ser.
Um
deus,
assim, é
absolutamente
necessário.
Isto, a
saber,
tal abrir-se, dar-se e impor-se, é
divino, é
sagrado. A
divindade, uma
divindade é
por
excelência
transcendência -
imposição,
necessidade de
outro
ou a
alteridade
enquanto
tal.
Por
isso,
para os
gregos, os
deuses
não
são
invencionices,
não
são
produto da
imaginação
ou da
representação de
um
sujeito, de uma “mente”,
nada
humano, no
sentido
habitual do
antropocêntrico,
mas
eles
são,
sim, experimentados,
isto é,
sentidos,
vistos
em
toda
sua
evidência,
resplendor e
poder de
imposição
transcendente.
Tal
evidência, lembremos,
por se
tratar de
ver
um
salto, é aquiescência no
obscuro da
doação, no
sem
porquê da gratuidade. Aos
deuses,
sobretudo aos
deuses
ou à
divindade vê-se, ouve-se, obedece-se – sente-se.
Pois
muito
bem,
isso, a
saber,
este
ver,
ouvir,
obedecer, render-se ao
sentir,
pelo e
graças ao
sentir, à
experiência -
isto é
corpo.
Por
isso,
nos
deuses, o
que é e anima “tem o
mesmo
tamanho e o
mesmo
espaço
que o
corpo e é a
mesma cousa
que o
corpo”.
Ou seja,
aí,
nos
deuses, na
hora do
divino
ou do
sagrado, a
alma é o
corpo. O
corpo sente, o
corpo
vê, o
corpo
pensa.
Nos
deuses, insiste o
poema, o
corpo é a
alma e,
por
isso, os
deuses
não morrem e
são
perfeitos!
Resumo:
Partindo do vínculo
estabelecido por Ricardo Reis e Álvaro de Campos entre Alberto Caeiro e a
reconstrução da essência do paganismo, explícita ou implicitamente, o ensaio
busca pensar, fenomenologicamente, o respectivo heterônimo de Fernando Pessoa
num encontro com o pensamento grego, que, por sua vez, é caracterizado como o
fora, o
exterior, o
objetivo,
em
oposição ao
cristão da interioridade e à modernidade intimista,
subjetivista,
ambos,
cristianismo e modernidade,
cheios de
vontade de
infinito, de ilimitado. O
que definiria Caeiro, o mestre dos heterônimos, e a
sua
natureza
grega, greco-pagã, seria “a
repugnância do infinito”.
Abstract:
Throughout the union established by Ricardo Reis e Álvaro de
Campos between Alberto Caeiro and the reconstruction of the essence of the
paganism, the paper, in an explicit or in an implicit way, attempts to think, in
a phenomenological way, the respective heteronymous of Fernando Pessoa by an
approach of the Greek classical thought, characterized by himself as outer,
exterior, objective, the opposite to the Christian and modern interiority, full
of infinity and illimitableness. The master of the others heteronymous of Pessoa
and his Greek nature would be defined through the “repugnance of infinity”.
Palavras-chave: Fernando
Pessoa, Alberto Caeiro, paganismo, natureza, alma, vida.
Key-words: Fernando Pessoa,
Alberto Caeiro, paganism, nature, life, mind.