O HOMEM CULTO DO SÉCULO XIX: QUESTIONAMENTOS EM TORNO DO CONCEITO DE
BILDUNG NA OBRA DE JOHANN GUSTAV DROYSEN Maria Lúcia Cacciola* |
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EM SEU LONGO ENSAIO Considerações de um apolítico, Thomas Mann definiu
os alemães com uma pergunta retórica: “Não seria da essência alemã ser o
meio, o mediano e o mediador, e o homem alemão o homem médio em
grande estilo?”1 Por mais que não seja recomendável verificar historicamente
tal descrição, ela cabe muito bem para entender Johann Gustav Droysen
(1808-86), historiador cuja vida atravessa o século XIX e que ainda teve a
impressionante sensibilidade de, como aluno de Hegel, herdar questões da
cultura intelectual do século XVIII e início do XIX, e ainda antecipar outros
problemas que servirão de passaporte para o século XX, como a crítica à
própria idéia de história que faria Friedrich Nietzsche e pela fundamentação
sólida da hermenêutica antes de Dilthey, Heidegger e Gadamer. Através de
Droysen, recuamos ao século XVIII, mas também podemos vislumbrar o
século XX. Por isso, não podemos nos deixar seduzir pela refinada ironia de
Thomas Mann: Droysen foi de fato uma figura do meio, e, se quisermos,
um intelectual que jamais teve a dimensão planetária de Kant, Goethe ou
Hegel. Mas, através de sua obra, certas questões podem ser colocadas em
debate, e dificilmente poderíamos fazê-lo através de somente um autor.
Droysen era historiador profissional, ou seja, já não vemos nele uma figura cujo perfil encontramos em, por exemplo, um Johann Gottfried Herder, teólogo polígrafo que contribuíra para as áreas da crítica literária, da pedagogia e, sobretudo, para um conceito de história que enfrentava o kantismo. Droysen já se formou em um ambiente universitário razoavelmente estabelecido e viveu em uma Alemanha de mudanças bruscas na área da política e da economia – sem falar, naturalmente, na filosofia, música e literatura. O que afirmamos é o seguinte: Droysen era um especialista, e se esforçou em consolidar a autonomia da ciência histórica não somente através do seu embasamento normativo e fundamentação metodológica, mas sobretudo através de um constante questionamento da própria essência da história e de sua importância. Droysen iniciou sua carreira acadêmica como helenista, o que é uma pista para indicar sua verdadeira sinceridade teórica, ou seja, desde o princípio ele demonstra sua capacidade de formular questões. Suas primeiras obras são responsáveis pela cunhagem decisiva do conceito de helenismo, que, para ele, serviria para entender uma época até então vista como mera decadência do período clássico grego, e, antes mesmo de publicar seu primeiro trabalho historiográfico de vulto em 1833 (Geschichte Alexanders des Grossen), já havia feito nome como tradutor da obra integral de Ésquilo. A sua contribuição para a literatura revela mais do que apetite de um helenista erudito: na verdade, já traz em si uma preocupação que o marcará decisivamente por ainda vinte anos, a saber, a sua concepção trágica da história. Através desta concepção trágica e de uma sensibilidade com períodos tidos como decadentes, torna-se possível rever o que significa história no século XIX alemão, ou seja: o que significa pensar a história depois das preleções de Hegel sobre o tema? Não se trata aqui de repetir o velho e gasto lema historicista de que a história científica, para se libertar, haverá de negar cada linha de Hegel. Não é tão simples. Lembremos que a autonomia da história se inscreve em um raio muito mais amplo do que a afirmação de normas e métodos. Ela trata, sobretudo, da determinação do caráter histórico do real, como nos lembra Walter Schulz: A genialidade de Hegel consiste em algo mais do que simplesmente valorizar a história por ela enfatizar a realidade antropológica, mas sim consiste em conduzir fundamentalmente o conceito de realidade ad absurdum, a ponto de a história aparecer como caráter fundamental do real (…). Hegel apresenta que mesmo a reflexão sobre a coisa mais simples mostra que não há ente fixo, mas sim uma determinação mútua de sujeito e objeto: lá está o objeto e aqui estou eu, o dito ponto de partida sujeito-objeto precisa ser essencialmente negado em todas as regiões do conhecimento.2A partir da recolocação do problema, ou melhor, a partir da premissa de que eram reais, mas não tanto eletivas as afinidades entre Droysen e Hegel, ou entre aquilo que eles representam, a saber, uma historiografia conceitual interessada em despertar a sensibilidade para a contingência e uma filosofia absoluta do espírito, implica reconsiderar (a) a idéia de autonomia da ciência, questão inevitável em um ambiente de consolidação da nova universida de alemã depois da fundação da Universidade de Berlim em 1810; (b) a imagem do intelectual burguês do século XIX, aqui entendido como o homem da burguesia culta (Bildungsbürgertum), imagem esta geralmente contaminada pelas interpretações criadas ao longo de todo o século XX a partir do impacto da experiência do Terceiro Reich; (c) o significado complexo da idéia de Bildung, traduzido entre nós como Formação ou Cultura, conceito que não encontra guarida definitiva em qualquer área do conhecimento ou produção cultural. A partir da obra de Droysen, em que esta complexidade se mostra, não pretendemos afirmar a autonomia do conhecimento histórico, mas apenas procurar entender, a partir da discussão do conceito de história, de outra maneira o conceito de Bildung, que, esperamos, possa ser discutido para além dos limites disciplinares previamente estabelecidos. Neste sentido, as três etapas acima indicadas descrevem na verdade as dimensões que a Bildungpode assumir; sendo que a última, a nosso ver, é capaz de dar conta da própria complexidade do conceito, uma vez que indicará um caráter trágico, e que, portanto, não será mera ideologia que encobre contradições – será, antes, o próprio exame destas contradições. Não pretendemos aqui analisar como Droysen de fato antecipa o século XX, mas jamais podemos deixar de esquecer qual a nossa situação histórica, quais os pressupostos hermenêuticos que condicionam nossas interpretações de um autor do século XIX – será neste sentido que aparacerão aqui e acolá referências a autores do século XX. Bildungcomo autonomia científica No ano de 1857, nove alunos da Universidade de Iena se inscreveram em uma série de preleções oferecidas pelo historiador Johann Gustav Droysen que, deixando de lado a história do helenismo e a história da Prússia e da Europa moderna, trataria do que hoje, se chama habitualmente “teoria da história”.3 O curso denominava-se precisamente “Enciclopédia e Metodologia da História”, cujas lições depois reunidas em livro por Rudolf Hübner e Peter Leyh receberiam o nome definitivo de Historik. A proposta das preleções era clara: saber o que significava pensar historicamente. Todavia, seu autor não procurava orgulhosamente entronizar o lugar do historiador. Na verdade, o exercício teórico deveria realizar um exame de pressupostos, quebrando certezas cujo grau de cristalização obscurecia o significado de conceitos fundamentais para a escrita da história e o pensamento histórico em geral. A acusação freqüentemente feita ao insulamento nocivo da teoria da história, área por vezes pouco convidativa aos próprios historiadores, não atinge um historiador sagaz o suficiente para perceber a relação entre a caudalosa produção historiográfica da primeira metade do século XIX europeu e a confusão teórica, uma estranha fórmula em que a miséria da teoria convivia com o fato de a História ser considerada, pelo menos no seio da burguesia culta alemã, um elemento indispensável na formação individual. Tanta vagueza justificaria, segundo Droysen, a legitimidade da Historik. Cada um tem uma idéia vaga do que seja história, escrita da história ou estudo da história. Nossa própria ciência, porém, não vai além desta idéia vaga (…). Quando perguntada sobre sua legitimidade, sobre seu conhecimento e sobre o fundamento de seu procedimento e essência de sua tarefa, a nossa ciência não tem condições de dar informações suficientes.Justamente por viver em um contexto intelectual filosoficamente rico, Droysen mira alto: não há nele um pedido de ajuda em outras disciplinas que poderiam dar esta guarida – além de exigir do historiador uma consciência de seu próprio ofício, ele procura estabelecer a diferença entre a história e os dois grandes modelos de conhecimento em sua época, que eram formados pelos métodos físico-matemáticos das ciências naturais e pelo método especulativo da filosofia e da teologia. Optar entre um método e outro seria, para Droysen, obrigar o homem a escolher a partir de uma falsa alternativa, pois ambos os métodos cristalizam uma parte da natureza do homem, que, por ser, segundo ele, simultaneamente espiritual e sensorial, não poderia fixar-se definitivamente em um dos dois aspectos, sob o risco de se tomar a parte pelo todo; e, nesta tendência de se fixar um dos extremos, fica nebuloso o significado do pensamento histórico e, mais do que isso, da própria essência do homem. Para os fenômenos históricos precisamos encontrar neles mesmos sua medida e seu modo, é necessário haver um método histórico. O sentido desta frase só será cumprido quando lembrarmos o quão falsa é a alternativa entre as cosmovisões (Weltanschauungen) especulativas e materialistas que domina a oposição entre os métodos filosóficos e físico-matemáticos, como se o pensamento e conhecimento humanos tivessem que em um átimo pender para um lado ou para o outro. Esta alternativa é falsa, porque nele a natureza espiritual e sensorial do homem é compreendida a partir de somente um destes lados.5Se há a necessidade de um método histórico, Droysen admite que há lacunas ainda não preenchidas, ou ao menos questões cujo encaminhamento poderia ser diverso. Sua observação de que não se deve resumir a ciência a uma coleção de fatos adaptáveis a leis, de um lado, ou a uma pura especulação, de outro lado, não é exatamente inédita no contexto alemão: a bipolaridade das ciências, da qual Droysen parte para tentar justificar a existência da Historik, também é identificada por Hegel cinqüenta anos antes, no prefácio da Fenomenologia do Espírito, e é uma das alavancas de seu imenso projeto filosófico. Essa oposição parece ser o nó górdio que a cultura científica de nosso tempo se esforça por desatar, sem ter ainda chegado a um consenso nesse ponto. Uma corrente insiste na riqueza dos materiais e na inteligibilidade; a outra despreza (…) essa inteligibilidade e se arroga a racionalidade imediata e a divindade.6Realçar a importância das contingências e despertar a sensibilidade para o particular exigirá, todavia, de Droysen um combate em duas frentes – isto caso seja possível ver, a partir da fundamentação teórica da história, uma concepção de ciência que seja mais do que mera derivação da filosofia idealista de Hegel. Fazer o elogio da particularidade perante a lei geral não lhe custa tanto esforço quanto pensar a diferença entre o pensamento histórico e o pensamento filosófico – a começar pela sua forte inclinação conceitual, que não resistia a começar suas preleções sem deixar de fazer comentários e introduções conceituais e teóricas, antes mesmo de entrar em seu tema específico, seguindo assim uma abordagem hegeliana na problematização do conhecimento e na forma didática de oferecer preleções, ou seja, estabelecendo a diferença entre as ciências do espírito e as ciências naturais a partir do fato de que estas já têm previamente dado o seu objeto, cuja definição seria mais do que ociosa. Quanto às ciências do espírito, estas precisam mostrar a dignidade de seu objeto e afirmar-lhes a existência e o método, não sem antes tentar investigar sua própria essência. Um belo exemplo é a introdução ao seu curso sobre história moderna, no semestre de 1842/43, em que Johann Gustav Droysen parece mostrar ter aprendido muito bem as lições de Hegel: É necessário estar claramente consciente como a história trabalha, e por quais caminhos ela procura atingir tais e tais objetivos. Ela procura no passado dogmas para o presente? (…) Ela quer esgotar o infinito material empírico, pesquisar e justificar com igual agudeza cada particularidade? (…) Ao contrário das ciências naturais, a história não tem seus objetos previamente dados. Seus primeiros materiais já são abstrações, e não a própria realidade, mas uma acepção subjetiva.7De acordo com esta passagem, vê-se que a tentativa de esgotar o material empírico e esquadrinhar cada canto da realidade histórica é uma tarefa essencialmente equivocada, pois, segundo Droysen, o objeto histórico, mesmo quando aparentemente é uma evidência empírica e absolutamente particular, é na verdade uma apreensão subjetiva. Há mais semelhanças com a filosofia de Hegel do que o próprio Droysen possivelmente gostaria de admitir – ou ao menos não menciona explicitamente. Para dar um exemplo desta semelhança de método: logo no início de seu curso sobre estética, Hegel diz que não somente qualquer ciência deve afirmar a existência de seu objeto e saber aquilo que ele é, bem como há uma grande diferença entre o que ele chama ciências ordinárias e ciência filosófica do espírito; naquelas, os objetos existem no mundo sensível, nesta o objeto existe justamente no espírito, ou seja, sua natureza é subjetiva, e, assim, o conhecimento é para si, e deve ao final, como espírito, ser objeto de si mesmo.8 Todavia, é bom lembrar que tal natureza subjetiva não significa uma existência anterior e independente da experiência, ou seja, algo que exista em estado puro antes do conhecimento daquilo que se pretende conhecer. Droysen certamente parte da diferença estabelecida por Hegel entre pensar representativo e pensar especulativo ou conceitual, ou seja: a primeira forma de pensar pressupõe um sujeito que conhece acidentes e se crê inalterado por este conhecimento e, como diz Hegel, ao fim e ao cabo ou bem se vê perdido em uma multidão de determinações carentes de pensamento ou bem se crê superior a todo conteúdo, achando em cada um apenas o próprio vazio. Na segunda, o que ocorrre é a experiência que a consciência faz de si mesma. A consciência sabe algo: esse objeto é a essência ou o Em-si. Mas é também o Em-si para a consciência; com isso entra em cena a ambigüidade desse verdadeiro. Vemos que a consciência tem agora dois objetos: um, o primeiro Em-si; o segundo, o serpara- ela desse em si. Esse último parece, de início, apenas a reflexão da consciência sobre si mesma: uma representação não de um objeto, mas apenas de seu saber do primeiro objeto. Só que o primeiro objeto se altera ali para a consciência.9A base hegeliana para uma fundamentação do conhecimento histórico torna-se pois inegável: na medida que o conhecimento histórico há de demonstrar sensibilidade para as contingências, é forçoso concluir que tal sensibilidade se revela sobretudo pela importância da referência (em um primeiro momento) objetiva que o historiador adota. Assim, não pode ser indiferente ao historiador se dedicar ao Egito antigo ou à Espanha da Idade de Ouro, por exemplo. Há de se encontrar algo que simplesmente não se vê em outra situação a partir da pergunta realizada pelo historiador. O objeto se altera para a consciência – todavia, o que importa ressaltar neste primeiro passo é o fato de o próprio estabelecimento das fundações do conhecimento histórico, além da própria pesquisa empírica, se mostrarem como uma experiência, um processo em que a consciência se experimenta a si mesma, e é, neste sentido, independente de esferas que lhes sejam anteriores, posteriores, que lhe prestem o serviço de autoridade. Isto já é Bildung. Basta ver o que nos diz Thomas Nipperdey: A Bildungé um processo vitalício e inconclusivo, e que por isso se torna fim de si mesma, algo portador de um valor superior. Podemos falar aqui também de cultivo de si mesmo. Esta Bildung paira por cima do mundo da praxis, do trabalho, do ganho de dinheiro, da economia.10O desgaste da imagem do intelectual do século XIX, ao menos a imagem representada na Alemanha, deve muito à idéia de Bildungacima descrita. Desconsiderando o pressuposto da liberdade do pensamento e de sua conseqüente possibilidade de distanciamento crítico e verdadeira desburocratização – ou seja, sabendo-se meio e fim de si mesmo, o saber teria condições de perceber quando é “alugado” para fins que ele mesmo não pode detectar –, o que resta seria mesmo o distanciamento da realidade. E assim, da mesma maneira que a idéia de Bildungseria capaz de se dissolver capilarmente pela cultura alemã desde fins do XVIII e início do XIX, sua crítica será igualmente indistinta – ou seja, virá de todos os cantos do espectro ideológico e de todas as formas de saber. Neste momento, façamos nosso interlúdio hermenêutico, ou seja: que pressupostos estão presentes sempre quando se fala de Bildung? Brilho e miséria da Bildung Um acesso imediato ao coração do século XIX alemão, se é inviável, por outro lado pode se tornar mais produtivo se considerarmos de fato alguns dos obstáculos e condições que se interpõem ou mesmo favorecem, como desafios, a interpretação da idéia de Bildung. Impossível, por exemplo, desconsiderar Nietzsche e suas Segundas considerações intempestivas. Para o filósofo, o risco da Bildungestaria em sua ambição de universalidade: esta já se manifestara na tentativa de fazer do saber algo que se alimente de sua própria atmosfera e que seja em si e para si mesmo, e, por isso, o sujeito do conhecimento poderia se tornar o que Nietzsche denominava eunuco cosmopolita, ou seja, como o homem indiferente, que vê em todas as manifestações históricas um mesmo valor, todas elas, sem distinção, dignas de estudo. Seria um sujeito passivo, neste sentido, pois impelido, pela sua formação, a tudo aceitar e tudo entender e compreender – não seria afinal o pressuposto básico da hermenêutica do século XIX a empatia, revelada na identidade entre sujeito e objeto do conhecimento? O homem da Bildung, que deveria ser um homem ativo, dado o distanciamento crítico produzido pela experiência própria, e não alheia, do conhecimento, acaba se tornando um homem passivo. É uma interpretação apressada ver na Segunda consideração intempestiva somente um pequeno ensaio contra a historiografia; acreditamos que ali há uma crítica a uma determinada concepção de homem e de toda uma cultura intelectual. Com Nietzsche, o homem da Bildung, o homem culto, revela sua contradição essencial em ser pretensamente autônomo, mas, de fato, ser passivo. Todavia, e aí podemos ver como se destaca o pensamento de Droysen, é igualmente apressada fazer tábula rasa da idéia de hermenêutica do século XIX na Alemanha. Droysen pode ser um ótimo ponto de entrada para que o entendimento simples de Compreensão (Verstehen) como empatia e anulação de diferenças seja fortemente relativizado. Dizíamos acima, no primeiro movimento deste estudo, que a autonomia da história haveria de ser cumprida através de uma consciência do historiador sobre o próprio procedimento. E este procedimento não poderia simplesmente ser uma transposição do método especulativo do idealismo filosófico, por um lado, nem a aplicação de leis imutáveis, tais como fazem – ou faziam – as ciências naturais. Por vezes, há a negação de ambos, mas em prol de um objetivismo que vê no conhecimento histórico apenas a constatação de fenômenos, e que, por isso, não há qualquer atividade subjetiva em sua realização. A estratégia de Droysen para comprovar que a objetividade é impossível é novamente hegeliana. Fundamentalmente, Droysen percebe no objeto, aparentemente simples em sua univocidade e em sua imediaticidade, uma estrutura complexa. O que era simples, desdobra-se. Trata-se de um procedimento essencial em Hegel: neste, o objeto é sempre algo percebido em várias de suas determinações, e não somente como representação de si mesmo ou de algo – e neste ponto são exemplares e elucidativos os comentários de Wolfgang Wieland sobre a primeira figura da experiência de si da consciência (a certeza sensível) descrita por Hegel na Fenomenologia do Espírito. Para Wieland, mesmo na certeza sensível, a mais cotidiana e corriqueira forma de representação (isto é uma árvore, agora é manhã, etc.), há uma ambição do absoluto. O absoluto já está no homem, donde se conclui que a absoluto não é uma substância verdadeira e preexistente ao homem, tampouco algo que somente se mostra no final, como poderia ser em uma tosca teleologia. Quando Hegel, de acordo com Wieland, mostra que a certeza sensível ao indicar um isto indica uma multiplicidade de “aquis” e “agoras” mesmo sem sabê-lo, o que se está mostrando é o percurso do absoluto – e é isto a Bildung. Não é um cânone a ser seguido, atingido e copiado, não é uma capacidade inata, não é a senha de uma sociedade secreta. Está dada como possibilidade, pois a todo instante, mesmo no mais corriqueiro, há a presença da vontade de absoluto.11 Devemos antecipar que, em Droysen, não se almeja chegar ao absoluto, ao menos não como Hegel entende. O procedimento, em que o conhecimento adquire o caráter de um processo, é o mesmo. Não se trata de opôr subjetividade e objetividade, mas simplesmente de demonstrar que a pretensão de objetividade já é sempre uma pretensão, desta vez inconsciente como pressuposto, de subjetividade. Droysen mostra claramente quando trata do próprio conceito de Compreensão. Para ele, o primeiro passo da compreensão é justamente o da interpretação pragmática, dito de outro maneira: a pesquisa pretensamente objetiva. Partindo do princípio de que é impossível ter-se material que responda todas as questões levantadas, é necessário de alguma maneira, como diz Droysen, lançar mão de dois artifícios: a comparação e a analogia. Da mesma forma que um restaurador procura reconstruir uma escultura de acordo com esculturas ainda preservadas da mesma época, o historiador certamente fará o mesmo com as lacunas que ele encontra na documentação. Mas a operação comparativa não é estabelecida pelas fontes, mas sim pelo próprio historiador, e, assim, naquilo que há de mais objetivo, ou seja, para a simples descrição de um determinado fenômeno, invariavelmente é necessária a intervenção do historiador que pressupõe algo mais universal do que a particularidade estudada: a fixação de sagas populares, como a canção dos Nibelungos, teria sido impossível sem que se recorresse ao procedimento comparativo e analógico. Como afirma Droysen, é legítimo superar o caráter fragmentado dos vestígios e, a partir de semelhancas não evidentes “na letra do texto”, estabelecer uma nova unidade. Logo, a interpretação pragmática revela seu limite e precisa se tornar uma interpretação das condições, dos contextos que tornaram tais comparações e analogias possíveis, ainda que estabelecidas pelo historiador. O processo interpretativo, que Hayden White classificou com muita propriedade como “fenomenologia da leitura”12 ainda terá outras duas etapas – a interpretação psicológica e a interpretação das idéias – e este não é o espaço para sua devida análise. O que importa ressaltar no momento é o seguinte: não há uma momento anterior e puro à interpretação, tampouco um momento posterior, como se o objeto existisse em estado bruto antes da intervenção do intérprete. Como vimos em Hegel, o “primeiro objeto” se altera para a consciência justamente quando ela julga ter se libertado dele, quando ela passa a ser um saber do próprio saber. E este é o grande incômodo, e na verdade, grande passo, não dado por Hegel, para que a historiografia adquira o direito de desenvolver o método da hermenêutica histórica que se destaca da filosofia. Essa alteração do objeto é a afirmação da contingência, do momento, ou, preferíamos dizer, do presente. A idéia de presente, em Droysen, é decisiva. Não será o presente que simplesmente se projeta no passado (como querem a hermenêutica da empatia e um difuso positivismo objetivista), ou no futuro (como quer o utopismo teleológico), mas um presente desconfortável, consciente de seus conflitos. É aí que finda a força de nossa indução – e de qualquer indução. Afinal, o entendimento do homem capta somente o meio, não o início, não o fim. O nosso método não descobrirá o último segredo, nem mesmo o seu caminho, nem mesmo a entrada para o templo. Não entendemos a totalidade absoluta, o fim dos fins, mas compreendemos uma de suas expressões que já está compreendida em nós.13O que significa afirmar que o entendimento do homem capta somente “o meio”? Como já assinalamos, o “meio” não nos lembra somente a frase irônica de Thomas Mann; o “meio” seria o lugar ocupado pela Historik, que exerceria, segundo Droysen, o papel de mediador entre a bipolaridade existente em um mundo científico cindido entre ciências da matéria e ciências do espírito, entre natureza e espírito: este meio é o lugar do homem. É quase redundante afirmar que o papel da História é justamente o cumprido pela ética: “É o mundo ético, e nada além dele, que constitui o objeto de nossa ciência; não é o seu ser, e sim o seu devir (…) Essencial no mundo ético é que ele é um constante querer e dever, um constante devir; e somente por este motivo ele é ético, porque a cada momento ele está em movimento.”14 De alguma maneira, o “meio”, se é o lugar do conhecimento, i.é, como método que pretende conciliar a especulação e as leis naturais, possui também uma marca trágica: afinal, o conhecimento parece ser sempre tardio, ou seja, a consciência é posterior à ação – neste sentido, não conhece o “início”. E também parece ser inútil, ineficaz, pois esta mesma consciência, tardiamente revelada, jamais será um ensinamento aplicável para um momento posterior. Mantendo-se fiel ao princípio da Bildungde “ser em si e para si”, o conhecimento recai sobre si mesmo, mas, paradoxalmente, esta concentração em si mesmo parece distanciar-se da pretensão de autonomia e controle de si. Assim, muito mais do que simples método que permite uma reconciliação com o passado através da empatia,15 o método compreensivo vige em uma aporia: como ser o lugar do conhecimento, mediador entre “lógica” e “física”, se sobretudo ele se mostra como tardio e ineficaz? Se a pergunta incomoda, ela também pode ser produtiva. Torna-se complicado ver por detrás de em uma tal concepção intelectual um “homem culto” passivo, preocupado com detalhes de seu saber escolar, instaurado na clássica torre de marfim. As contradições de Bildungnão precisariam ser encontradas nas acusações de Nietzsche, ou muito menos no século XX. Já em meados do XIX podemos identificar seus conflitos. O Homem culto do século XIX Compreende-se sem dificuldade porque um autor como Nietzsche, ou mesmo outros, como Ernst Jünger no século XX ou um scholar como Norbert Elias,16 veriam no ideal burguês da Bildungsimplesmente um elogio da introspecção, do alheamento. Quando lemos em Wilhelm von Humboldt que a religião passara a ser um meio privilegiado de formação do homem, pois a partir de fins do XVIII ela se separara do Estado – ou o Estado se separara dela – e, por isso, a religião não somente deixara de ser uma obrigação legal e se tornaria algo que se encontraria somente no interior de cada homem, ambiente que o Estado não atingiria, mas sobretudo por se separar das fronteiras nacionais delimitadas pelo Estado, ela poderia alcançar seu potencial universal e portanto, servir de meio – e fim – de realização do homem. O indivíduo, em sua ambição de universalidade e eternidade expressa na religião, estaria só, sem amparo do Estado: “Nossa religião não nos impõe uma divindade nacional, mas sim uma divindade geral. Não é a religião do cidadão, mas sim a religião do ser humano17”. Já esta pressuposição de que homem e cidadão não se identificam plenamente indica o que se mostraria posteriormente em Droysen. O homem culto não é um indivíduo autônomo; afinal, sua interioridade parece se realizar em outra esfera. Hegel, de alguma maneira, também irá dar motivos para que o homem culto seja pensado como um homem “contido”, “inativo”. Em suas preleções sobre a filosofia da história podemos ler que: O homem culto é aquele que sabe imprimir em tudo o selo da universalidade, é aquele que renunciou à sua particularidade, e que age de acordo com fundamentos gerais. A Bildungé forma do pensamento; visto com mais proximidade, podemos ver que isto significa dizer que o homem sabe se conter, e não simplesmente age segundo suas inclinações e desejos, mas é alguém que se concentra. Com isso, ele dá aos objetos um campo livre e está acostumado a se comportar teoricamente.18Não podemos simplesmente negar o poder teórico que de fato encontramos em inúmeros pensadores do século XIX. Negar uma concepção de homem culto como um solipsista não passa pela negação do homem teórico; e Droysen, neste aspecto, serve de prova para que o problema seja discutido em novas bases. Ser teórico e contido significa não se deixar levar pelo momento imediato – mas nem por isso o presente deixa de ser relevante, como já vimos – e poder perceber a complexidade do que se apresenta simples. Como Hegel mesmo indica, o comportamento teórico deixa mesmo livre o campo dos objetos. O comércio com o mundo, para o homem culto do século XIX, ou ao menos em Droysen, é mais complexo do que podemos ver em uma idéia solipsista deste mesmo homem. A contenção não significa que este homem englobe em si e em suas representações todo este mundo. A contenção é o comportamento que não se deixa levar pelo imediato, e percebe a complexidade, e, assim, evita que os fenômenos ganhem sentido apressadamente – afinal, não vimos que individualidade e autonomia não se confundem? Aproveitamos para retomar um ponto que apenas indicamos no início deste artigo: a relação de Droysen com os gregos. Mais de vinte anos antes de elaborar sua teoria da história, Droysen escreveu um pequeno estudo sobre os três grandes tragediógrafos gregos. Neste estudo, encontramos em estado bruto, mas perfeitamente visível, as formas de comércio com o mundo que marcarão o homem culto. É um comércio trágico, digamos assim. Para Droysen, em Ésquilo o homem se vê culpado no exato momento em que fica consciente da estrutura misteriosa de mundo na qual já está inserido. A própria consciência é sinal desta culpa, e tal estrutura misteriosa parece ser absolutamente opressora.19 Em Sófocles,20 esta dualidade muda: o homem se vê como indivíduo que enfrenta as leis da pólis, e, mesmo ao sucumbir, reconhece sua identidade. Com Eurípides, o mundo das tragédias gregas chega, na interpretação de Droysen, ao seu oposto: se em Ésquilo a estrutura “misteriosa” do mundo oprimia a consciência culpada, e se em Sófocles a estrutura inteligível e legalista do mundo opunha a consciência com o mundo, no terceiro simplesmente o discurso será integralmente responsável pela significação do mundo. Com o autor de Medéia, “a arte deixa de ser uma configuração necessária e fechada em si mesma; ela é uma forma capaz de assimilar qualquer conteúdo”.21 O que Droysen sugere é interessante: não se pode pensar qual dos três seria o o mais trágico. Na verdade, o divórcio entre homem e mundo se apresenta, de maneira diversa, nos três dramaturgos. E qual seria pois a relação entre tal concepção de tragédia e a concepção de Bildung em Droysen? Antecipemos nosso objetivo: ao demonstrar sua semelhança, veremos que a Bildungnão é uma ideologia apazigüadora de conflitos, mas sobretudo uma forma possível de consciência dos conflitos do homem com o mundo. Já dissemos que o projeto da Bildung, seja em Hegel ou em Wilhelm von Humboldt, passa por uma necessidade de abstração, por uma ambição de história como história da humanidade – e assim ainda permanece um projeto burguês, sem dúvida – ao tentar possibilitar justamente o que significa romper com o sujeito empírico e tornar-se um sujeito que enxerga com os olhos da “humanidade”. A seguinte passagem de Droysen é ilustrativa para o problema que se propõe resolver. A natureza do homem se eleva sobre a própria finitude (…). Trata-se de compreender o poder da fantasia, que ultrapassa o momento, o que será e o que deverá ser (…). Trata-se de entender o poder da inteligência, que a partir de novos pensamentos reconstrói a partir das coisas dadas, que, por assim, dizer, pensa de maneira nova (…). Deve-se por fim entender também o poder da vontade, que realiza o novo que foi pensado apesar de toda resistência.22Lamentavelmente Droysen não desenvolve teoricamente tais conceitos em seu Historik em toda sua potencialidade, tampouco os transpõe para seus estudos sobre tragédia feitos ainda na década de 30 do século XIX. A semelhança se revela, ainda que não se concretize como uma identidade absoluta. Os três poderes descritos por Droysen podem ser encontrados em outras duas situações por ele exibidas e que já apresentamos: o universo do conhecimento também se divide em três, a saber: a especulação ou o saber-dosaber e o conhecimento de leis objetivas que emana dos fenômenos mas que acaba por dissolvê-los nas mesmas leis e a teoria da história, que haveria de afirmar o movimento constante entre saber e fenômeno. Ao se mostrar como fantasia, inteligência e vontade, adquirimos, através da teoria da história, uma nova possibilidade de pensar o comércio entre saber e fenômeno, que, de alguma maneira, não descarta os segundos, porque justamente já esboçado na apresentação dos tragediógrafos gregos. A fantasia estaria em Eurípides – ainda que este também possa estar na vontade de “fazer o novo”. Assim, podemos ver como Ésquilo seria “a inteligência”, ou seja, o conhecimento radical de estruturas e de sua real significação. Mas Ésquilo poderia estar na fantasia, pois tais estruturas são “misteriosas”. Por outro lado, Sófocles seria a vontade, expressa em Antígona, mas ainda também poderia ser a inteligência do conhecimento das leis da pólis. O fato é que tais forças precisam conviver entre si, não se fecham, e precisam justamente receber tratamento conceitual, e não empírico (do contrário Droysen teria se contentado com o estudo das tragédias gregas), mantendo viva a complexidade exigida da Bildung. A superação do imediato pode se dar de três maneiras diferentes, e somente a consideração das diferentes formas de fazê-lo dará conta da dimensão da questão. Bildung não é filosofia, teologia ou física. É a possibilidade de considerar as diferentes formas, conflitantes e nem sempre complementares, de se lidar com isto. E a história, como teoria, é uma possibilidade de ser a consciência deste conflito. E quando dizemos possibilidade, é porque, como nota o crítico italiano Franco Moretti, os romances-de-formação já indicavam questão semelhante. Os romances da época, principalmente os de Goethe, não procuravam uma reconciliação dos seus heróis consigo mesmo, mas, como muito bem observa Moretti, antes indicam um estado de permanente movimento. Na literatura, não seria a Bildung sempre uma marca da juventude, ou seja, a recusa da maturidade e da cristalização e a necessidade de exposição dos conflitos? Citamos Moretti: “Para Schiller e Goethe, felicidade é o oposto de liberdade, o fim do devir. Seu surgimento marca o fim de toda tensão entre o individual e seu mundo, todo desejo para metamorfoses futuras se extingüe.”23 O que apresentamos não intenciona fechar uma questão. Na verdade, trata-se de procurar problematizar o ideal de homem culto do século XIX, bem como identificar as fontes que podem conduzir a questão de uma maneira mais complexa (como tentamos fazer através do uso de Hegel, Wilhelm von Humboldt e da recepção das tragédias gregas). Desta maneira, afirmamos que é possível tornar mais complexo um conceito que, repetimos, não se esconde dentro de um disciplina específica, e, por isso, não se deixa dominar por um método consciente e sistematicamente desenvolvido, e que, justamente por isso, pode ser um excelente meio hermenêutico para a compreensão de uma situação histórica tão rica quanto decisiva (a cultura alemã da primeira metade do século XIX) na qual podemos construir conceitos dos quais não estavam plenamente conscientes os agentes da própria época. Mas o fato de Droysen ter somente indicado um caminho possível para compreensão da Bildung como um jogo entre vontade, fantasia e inteligência é que nos permite perceber sua riqueza. Terminamos lembrando Thomas Mann. Boa é a obra que fica “no meio”.
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