QUEM RI POR ÚLTIMO RI MELHOR.
HUMOR, RISO E SÁTIRA NO “SÉCULO DA CRÍTICA”1

Márcio Suzuki*


Nada mais deplorável em sua origem e nada mais execrável
em suas conseqüências do que o temor de ser ridículo
.
Friedrich Schlegel2


SENSUS COMMUNIS, OR AN ESSAY on the Freedom of Wit and Humour é uma peça literária e filosófica publicada pela primeira vez em 1709. Faz parte do primeiro volume das Características do filósofo Anthony Ashley Cooper, que ficou mais conhecido no mundo letrado por seu título nobiliárquico, o de III Conde de Shaftesbury. Assim como a Carta sobre o Entusiasmo, publicada no ano anterior, o ensaio sobre o senso comum foi escrito na forma de uma epístola, gênero, como se sabe, muito difundido desde a Antigüidade romana. Nessa carta, o suposto autor procura desfazer a nuvem de perplexidade que invadira o espírito de um jovem gentleman amigo seu: este, com efeito, ficara bastante desorientado depois que, contra todas as regras do decoro, ouvira o amigo fazer um “elogio da zombaria” numa reunião social de que ambos haviam tomado parte poucos dias antes. A carta procura, assim, dissipar qualquer sombra de dúvida ou de mal-entendido quanto ao sério propósito daquele elogio.

A questão que imediata e inevitavelmente se põe para alguém que faz uma “defesa da zombaria (raillery)”, diz o missivista, é a de saber se ela pode ser justa (fair).3 Ao tentar responder a essa pergunta, não se pode fugir a essa primeira constatação: a zombaria só é justa se vale, indiscriminadamente, para todos. A idéia de submeter a opinião de alguém ao crivo do ridículo, para saber se ela é válida, só terá sentido, afirma o autor, se a regra for generalizada, isto é, se também as minhas opiniões forem objeto do possível juízo escarnecedor dos outros. Querer passar ileso, nesse caso, pode ser visto como um gesto anti-social, sinal de egoísmo (selfishness).4

Mas há ainda uma outra dificuldade: em que consiste a zombaria? Descrevê-la em seu sentido rigoroso seria algo tão impossível quanto definir o que é o senso comum, o humor, o wit, ou, em termos gerais, o que são “boas maneiras” ou “boa educação”.5 Como ocorre nos outros textos do autor, o que se quer evidenciar aqui é a impossibilidade de se transmitir essas noções nas formas filosóficas convencionais (tratado, investigação etc.). Elas não são objetos de definição, de dedução ou demonstração; não são ensinamentos técnicos ou científicos, que podem ser passados adiante simplesmente respeitando as boas normas de pedagogia.

Observando-as mais de perto, é possível dizer que essas noções fazem parte de um conjunto maior, como aspectos de um mesmo senso de sociabilidade que é o fundamento da política, da moral e da estética. É exatamente pela ausência desses princípios de refinamento que se viu surgirem, nos tempos modernos, algumas fissuras no corpo social. A falta de senso para o riso seria então, para o remetente da carta, apenas um dos aspectos de uma indisposição mais geral para o diálogo, para a troca de opiniões, para o aprendizado da sociabilidade – indisposição característica da época moderna e cuja origem precisa ser explicada. De qualquer forma, nem tudo está perdido: é por isso que ainda se pode escrever uma carta sobre o tema a um jovem do mundo refinado.6

Uma anedota narrada nas Miscelâneas (obra que é, dentro das próprias Características, um arremate crítico a elas) permite que se pinte melhor o quadro geral de indisposição para o aprendizado do diálogo e de aversão às virtudes sociais. Comecemos pelas questões em que há controvérsia. É mais que comum nas discussões sobre assuntos controversos vermos um “irado litigante” (angry disputant), que não poupará esforços para transformar a boa causa numa causa ruim.7 Pensando provavelmente nisso, um clown teve um dia a veleidade (sentiu o capricho ou inclinação = took a fancy) de ir assistir às contendas em latim dos doutores de uma universidade. Perguntaram-lhe então que prazer pôde ter ele auferido daqueles combates, se não podia saber qual dos oponentes levara a melhor. O clown replicou que, também nessa matéria, não podia ser considerado um bobo (fool), porque podia ver quem era “o primeiro a levar o outro a ser tomado de paixão”.8 “A natureza mesma”, comenta o autor das Miscelâneas, “ditou essa lição ao clown”. Ou seja, sem que precisasse de nenhum ensinamento além daquele que é ditado por sua própria natureza, o bufão era capaz de entender que aquele que estivesse levando vantagem na discussão se apresentaria “à vontade e bem-humorado” nela, enquanto “aquele que fosse incapaz de defender sua causa pela razão, perderia naturalmente o controle e se tornaria violento”.9

Essa historieta jocosa pode ser lida como emblemática da própria cisão em que se encontra a sociedade inglesa (e, por extensão, a européia) para Shaftesbury. À medida que a voltagem do debate aumenta, pode-se perceber que o scholar que está vencendo vai se mostrando mais à vontade e de bom humor (easy and well-humored), na proporção inversa em que aumentam o destempero e a violência do adversário.10 Entre um e outro litigante, vemos a careta risonha do clown (personagem o mais das vezes depreciada na filosofia de nosso autor), que na anedota não aparece como mais um ouvinte interessado (e apaixonado) do auditório acadêmico, mas surge ali paradoxalmente como o único juiz abalizado do debate, porque, sem compreender absolutamente nada do que está em jogo, é o único que entende as regras dele. O clown, como se diz em fenomenologia, pôs entre parênteses as teses dos dois debatedores. Mas uma vez que não há propriamente comunicação entre eles, entender ou não o que eles dizem não quer dizer nada. E justamente por esse seu distanciamento é que o bufão conserva a capacidade “natural” de discernir corretamente que o scholar de bom humor deve estar mais próximo da verdade.

Mas a situação geral de incompreensão entre as partes que compõem a sociedade é apenas grosseiramente delineada na anedota. O bufão funciona mal-e-mal como árbitro da peleja porque ele apenas supre muito precariamente uma ausência. Ele é somente vicário de uma instância mais competente, que não apenas se limitaria a dar um veredicto em cada caso (como num tribunal), mas também estabeleceria uma efetiva mediação entre as partes em conflito. Como veremos, a atitude do clown não é, todavia, absolutamente desprovida de sentido.

As sociedades modernas (e a da Grã-Bretanha não é exceção) parecem se compor de uma maneira tal que é inevitável a ruptura em duas facções. Essa ruptura é mais profunda do que se imagina, pois não se limita às diferenças de posição entre os partidos políticos: de um lado, encontra-se uma classe de pessoas que ainda se mantém num ponto próximo ao estado de barbárie ou de incultura, e, de outro, uma classe que se refinou e sofisticou a ponto de perder o contato com a realidade da vida comum. Nessas circunstâncias, a imagem da cisão já não é representada por duas partes detentoras de saberes mais ou menos parecidos, como os dois scholars da anedota, mas por uma parte à qual cabe o saber e outra totalmente desprovida dele. Aqui, os dois eruditos se opõem ao clown, símbolo das camadas “rústicas” da sociedade.11

Como quer que seja, tanto num caso quanto no outro, o problema da incomunicabilidade permanece praticamente o mesmo: todo o ensinamento que poderia provir da alta sofisticação dos eruditos se perde por uma falta de jeito para a comunicação do seu saber. Ou melhor ainda: a falta de jeito provém da inadequação ou impossibilidade mesma de comunicar esse saber. Daí decorrem duas situações: ou o sábio despreza e ridiculariza o vulgo que não o entende, ou este zomba do esforço inglório do erudito por alcançar um saber inócuo, que ele tenta com todas as forças impingir ao público. Conforme o ponto de vista, o riso pode estar, ou do lado do erudito, ou do lado do vulgo. Mas pode-se dizer em geral que o desprezo do sábio é geralmente menos dado ao riso. Por isso, também é mais perigoso: o pensador abstrato é o que está mais propenso ao dogmatismo e ao fanatismo, manifestações que estão muito próximas da loucura. E é por sua maior proximidade com o riso que o bufão podia dizer que estava longe de ser um fool.

A partir desse quadro se pode compreender o significado do riso nas sociedades modernas: nelas, o riso é uma espécie de reação nervosa provocada por uma daquelas duas combinações. Quando os eruditos, extremamente ciosos de seu saber, tentam fazer com que ele seja aceito à força, isso causa rancor e ressentimento nos mais simples, rancor e ressentimento que são o fermento de seu riso escarnecedor; ou então o vulgo é por demais adverso à erudição, o que faz objeto de desprezo e derrisão dos sábios.

É preciso estar atento a essa grande divisão entre os que sabem e os que não sabem porque ela tem uma clara implicação político-religiosa: o principal empecilho à compreensão dos dois lados se deve a que alguns aparentam possuir conhecimentos ou princípios doutrinais que não podem ser revelados e são guardados como mistérios. Esse pretenso saber dos devotos ou zelotes é o que desperta o não menos fervoroso ceticismo dos antidevotos ou “modernos reformadores”. Como explica o Ensaio sobre a Liberdade de Wit e Humor:
Com freqüência as coisas se fazem assim para serem tomadas como segredos por uma seita ou partido; e nada ajuda tanto isso quanto a antipatia e o acanhamento de um partido contrário. Se subitamente somos tomados de horror e consternação ao ouvir máximas que pensamos ser venenosas, não nos encontramos em disposição para usar aquela parte familiar e suave da razão que é o melhor antídoto. O único veneno para a razão é paixão. Pois o raciocínio falso é logo corrigido, onde se remove a paixão. Se, no entanto, simplesmente escutar certas proposições da filosofia é suficiente para comover nossa paixão, é evidente que o veneno já penetrou em nós e estamos efetivamente tolhidos no uso de nossa faculdade de raciocinar.12
O antagonismo é criado pela antipatia ao pretenso saber de um partido. A paixão antipática acarreta uma timidez ou inibição (shyness) no uso da razão, que faz com que esta perca sua naturalidade e descontração. Tal descontração, aliás, é geralmente incompatível com práticas filosóficas fundadas na reflexão abstrata. Como contraponto essencial à paixão, a leveza é gerada não pelo estudo de tratados ou pelos discursos de um orador, mas pelo hábito de dialogar, pela conversa sociável. A razão, em Shaftesbury, é sempre uma razão dialética, dialógica:
(...) de acordo com a noção que tenho de razão, nem os tratados escritos do erudito, nem os discursos do orador são capazes, por si sós, de ensinar o uso dela. Somente o hábito de raciocinar pode fazer o arrazoador. E não se pode convidar melhor os homens a esse hábito do que quando têm prazer nele. Uma liberdade de zombaria, uma liberdade de questionar tudo em linguagem conveniente e uma permissão de desembaraçar e refutar cada argumento sem ofender o argüidor, são os únicos termos que de algum modo podem tornar agradáveis as conversas especulativas.13
Se bem se entende esse trecho, fica claro que a conversa agradável e desimpedida com pessoas igualmente francas não é apenas o que propicia o uso correto da razão, mas, no sentido rigoroso, a própria razão. Quanto mais freqüentamos pessoas polidas, tanto mais livres nos sentiremos para o verdadeiro exercício da razão. O hábito da conversa nos dá a rapidez requerida para não nos deixar tomar de assalto pela paixão. Em seu ponto máximo, a razão se revela na lúcida e inexplicável lepidez de um resposta imediata e surpreendente pelo brilho, de um dito espirituoso, de um chiste, enfim, de todas aquelas conotações que a língua inglesa reserva ao wit:
Em matéria de razão, mais se dá em um minuto ou dois, por meio de questão e resposta, do que por um discurso corrido de horas inteiras.14
Tornamo-nos melhores no raciocínio se o exercitamos de maneira prazenteira (pleasantly), com leveza, tranqüilidade e conforto (at our ease). Podemos abordar ou largar um assunto ao bel-prazer ou conforme nossa inclinação (as we fancy). E, nessa atmosfera, geralmente acaba sendo muito mais estimulante que a discussão acabe em impasse, porque isso dará ensejo a que se retome, sozinho ou em grupo, as suas dificuldades e aporias. A “agradável confusão” que encerra a reunião social da qual participam os amigos é, aliás, o que dá ensejo às reflexões do missivista na carta ao jovem gentleman.15

O wit e o humor são os ingredientes indispensáveis da conversação polida e agradável. Mais que isso: são eles que, como uma pedra-de-toque, tornam possível distinguir o que é genuíno da razão e o que lhe é espúrio:
Sem wit e humour, a razão dificilmente pode pôr-se à prova [take its proof] ou ser distinguida.16
Sem os dois elementos fundamentais da sociabilidade, não há razão e o diálogo verdadeiro e franco é impossível. Como não podem chegar à liberdade das paixões promovida pelo humor, os partidos em que a sociedade se divide são presa deste grande temor que se manifesta na recusa de passar pelo teste do ridículo (test of ridicule).17 Curioso, no entanto, é que a animosidade entre eles tem, entre suas armas, também a arma do riso. É assim que alguns grave gentlemen se incumbem de aplicar corretivo a um autor que “defende o uso da zombaria”, mas, contraditoriamente, eles mesmos lançam mão dessa arma, embora sejam por natureza bastante desajeitados no seu uso.18 Figurada como uma cena teatral, essa divisão dos partidos daria a seguinte imagem, segundo Shaftesbury:
Não pode haver visão mais disparatada [preposterous = prepóstera, contra a ordem natural] do que um executor e um palhaço [merry-andrew] fazendo seus papéis no mesmo palco. Estou, porém, convencido de que qualquer um concordará ser este o verdadeiro quadro de alguns zelotes modernos em suas controvérsias escritas. Eles não são mais mestres da gravidade do que do bom humor. O primeiro [dos debatedores] sempre corre para uma áspera severidade, e o segundo a uma desajeitada bufonaria. E assim, entre raiva e prazer, zelo e truanice [drollery], seus escritos têm muito daquela graça das brincadeiras de crianças humorosas [humoursom = ou caprichosas, mimadas], que, no mesmo instante, são irritadas e inquietas, e podem rir e gritar quase num único e mesmo respiro.19
Essa descrição da cena teatral contém obviamente uma alusão ao teatro inglês em geral e ao teatro shakesperiano em particular.20 Mesmo que não se simpatize com a indecorosa violência e com a vulgaridade burlesca do palco inglês, é preciso, contudo, saber entender o que há de verdadeiro nele.21 Para poder curar um público de gosto bárbaro, é preciso conhecer o mal que o aflige e saber aplicar o remédio correto. Não se pode proceder precipitadamente, como aqueles construtores que, alegando que um prédio corria risco de cair, o escoraram e prenderam de tal maneira, que ele acabou virando e tombando do lado oposto.22 Da mesma maneira, nas sociedades modernas as formas do ridículo são uma reação igualmente desproporcional à seriedade daqueles que parecem deter verdades muito sutis. Imagine-se alguém tendo de suportar horas a fio um palestrante tedioso, sem poder ter nenhuma possibilidade de se defender. Esse ouvinte (semper ego auditor tantum!)23 estará condenado à passividade, ao atrofiamento do uso de sua razão. O riso, nessa situação, será uma reação quase natural e inevitável a esse constrangimento. Eis como a carta ao jovem gentleman a descreve:
Nem é de admirar que os homens sejam tão fracos em raciocínios [faint raisoners] e cuidem tão pouco de debater estritamente sobre qualquer assunto trivial quando estão com amigos [in company], se eles são tão pouco ousados em exercitar suas razões em grandes questões, e são forçados a discutir como aleijados, onde precisariam da maior atividade e vigor. A mesma coisa, portanto, que acontece aqui, é o que acontece nos corpos robustos e saudáveis, que se afastaram do seu exercício natural e estão confinados num espaço exíguo. Eles são forçados a empregar gestos estúrdios e contorções. Eles possuem uma espécie da ação e, todavia, se movem, embora com a pior graça imaginável [worst grace imaginable]. E assim os espíritos [spirits] naturais livres de homens engenhosos [ingenious], se são aprisionados e controlados, encontrarão outros meios de se mover, a fim de se aliviar de seu constrangimento: e quer no burlesco, quer em mímica, quer em bufonaria, ficarão de qualquer modo contentes de se desopilar e de se vingarem de seus constrangedores.24
A mímica, o burlesco, a bufonaria são marcas da revolta contra o entusiasmo exagerado e a retórica empolada.25 Resultados da falta de liberdade de espírito numa nação, eles se tornam voga justamente porque, sem que se perceba, são reação involuntária à coerção perpetrada pela autoridade. É a falta de liberdade de pensamento que explica o receio de ser ridicularizado e, conseqüentemente, “a falta de verdadeira polidez [true politeness] e a corrupção ou o mau uso da facécia [pleasantry] e do humor”.26

Se o grau de humor varia conforme a autoridade, é possível então estabelecer uma espécie de fórmula algébrica para calcular a relação entre coerção da autoridade (ou seriedade dogmática: religiosa, moral ou política) e o burlesco:
Quanto maior for o peso, tanto mais amargo será o sátiro. Quanto mais alta a escravidão, tanto mais esmerada [exquisite] a bufonaria.27
É o que ocorre nos países onde é mais forte a “tirania espiritual”. Por isso, “a maioria dos bufões são italianos: e nos seus escritos, nas suas conversas mais livres, nos seus teatros e nas suas ruas, a bufonaria e o burlesco estão na mais alta voga”.28

Tanto quanto o sátiro, o bufão italiano é uma figura mais que justificada dentro dessa correlação de forças. A máscara cômica é mesmo exemplar na punição do vício.29 Com ela nós aprendemos a justa punição das “paixões da covardia e da avareza”, assim como a de “um glutão ou um sensualista”, que são tão ridículos “quanto os outros dois caracteres”.30 Vê-se que aqui o riso provocado pelo histrião é acertado, pois ele de modo algum se volta contra a sabedoria, a honestidade ou as boa maneiras. Exatamente conforme a lição de Aristóteles (e da teoria clássica do riso, descrita por Quentin Skinner), a punição visa a alguma deformidade: “Pois nada é ridículo, senão o que é deformado. E coisa alguma é prova contra a zombaria, a não ser o que é bonito e justo.”31

Como o clown que vai à academia, os palhaços têm em geral um instinto natural do ridículo. Eles sabem sobretudo se conservar dentro dos limites do risível e não pretendem fazer rir à custa de tudo e de todos. Não caem no erro de jovens gentlemen que, por estarem presos aos preconceitos em voga, são levados “a rir (to laugh at) da virtude pública e da própria noção de bem comum”.32 Os jovens que assim procedem o fazem apenas pelo princípio acima exposto (do prédio apoiado do lado errado). Tais gentlemen of fashion são apenas os antípodas dos “solenes reprovadores do vício”: enquanto estes condenam a leviandade dos “airy wits” (mentes arejadas, leves), estes, por sua vez, se vingam daqueles apelando para a zombaria e o ridículo.33 A divisão que encontramos entre devotos e antidevotos também pode ser vista aqui. Pela extrapolação de sua autoridade, os reprovadores do vício fazem os jovens bem-formados buscar refúgio num tipo de sátira que é inadequado, porque, diferentemente da bufonaria italiana, ali se desconhecem as regras do gênero. A juventude é levada a ridicularizar algo que não pode ser ridicularizado.

É sobre essa oposição que se erguem as duas facções opostas no cenário político, moral e estético. De um lado, os dogmáticos, os devotos, os “conservadores” de uma ordem incompreensível (porque calcada em princípios que não se conhecem); de outro, os reformadores, os hobbesianos que rejeitam qualquer princípio de sociabilidade natural, os epicuristas que ridicularizam os preceitos da moralidade, os relativistas lockianos que não aceitam princípios naturais inatos, os artistas geniais que desprezam as regras da arte. Mas por que esses “men of wit” têm prazer em esposar tais “sistemas paradoxais”? Na verdade, não se pode propriamente dizer que estão plenamente satisfeitos com esses sistemas. O prazer que deles extraem vem antes de que “imaginam que, mediante esse ceticismo geral por eles introduzidos, levarão a melhor sobre o espírito dogmático que prevalece em algumas matérias particulares.” Daí o “espírito de zombaria” reinante nas conversações em geral e o fato de noções serem propostas e aceitas simplesmente por serem “estranhas”, “singulares” (odd) e “incomuns” (out of way).34 Esse “gênero cético de wit”35 acaba por se associar à sátira e ao ridículo, no mau sentido. O pior é que ele se converte em sistema. Com ele, a sátira se torna sistemática.

Se o riso era uma reação até certo ponto justificável ao fanatismo e ao dogmatismo, trata-se agora de apontar a inadequação do riso, fazendo a crítica da sátira inadequada, do ridículo sem nenhum propósito ou interesse. E aqui chegamos ao ponto crucial, o da diferença entre sátira e crítica para Shaftesbury. A crítica é a única capaz de identificar onde há um erro, falta de gosto ou refinamento na sátira e no ridículo. Em geral, se ridiculariza a “falsa seriedade” (false earnest). Mas a “falsa troça” passa ilesa e se torna um “engodo errante [errant deceit] tanto quanto aquela”.36 Isso porque, voltando-se para o partido oposto, faz com que imperceptivelmente reforce a aparência de verdade do seu próprio partido.
Porque, enquanto a dúvida é válida somente para um lado, a certeza cresce tanto mais fortemente no outro. Enquanto apenas uma face do desatino [folly] aparece ridícula, a outra se torna mais solene e enganadora.37


A crítica e a justa medida do riso

Mas a situação de um bobo da corte que, para sacudir beneficamente o
diafragma, deve temperar com risada a refeição de sua Majestade fazendo
alusões picantes a seus mais distintos servidores, está, dependendo como é
tomada, acima ou abaixo de toda crítica.


Immanuel Kant, Antropologia.38

A ruptura política, moral e estética que se observa nas sociedades modernas pode ser mais precisamente explicada quando se traça um paralelo com a civilização antiga. O caminho do aprimoramento político, moral e estético na Grécia e em Roma é instrutivo para quem quer compreender o estado atual das nações européias, principalmente o da Grã-Bretanha. A história da filosofia e da literatura gregas nos fornece alguns parâmetros pelos quais se pode guiar a interpretação que se faz do próprio tempo.

Como surgiu a comédia na Grécia? A resposta a essa pergunta capital não aparece como uma tarefa fácil aos olhos desse admirador e estudioso da civilização grega e romana que foi Shaftesbury, pois requer filologia e erudição. O delineamento geral da história da literatura grega e romana poderá, todavia, fornecer a chave de compreensão do fenômeno do riso e do humor também nos tempos modernos.

“É fácil imaginar [it is easy to imagine]”, nota o autor das Miscelâneas, “que, dentre os muitos estilos e maneiras de discursar ou escrever, o mais rápido de se alcançar e que mais cedo se pratica é o miraculoso, o pomposo, ou aquele que geralmente chamamos de sublime.”39 O assombro (astonishment) é a primeira paixão despertada na “humanidade bruta e inexperiente”. Exemplos disso? As crianças se entretêm com aquilo que é espantoso; a melhor música dos bárbaros é feita de sons que agridem os ouvidos e estarrecem o espírito; as enormes figuras, de cores bizarras e berrantes, pintadas pelos índios também visam a um efeito que mescla horror e consternação.40

Essas constatações sobre o estilo pomposo ou sublime seriam corroboradas por ninguém menos que o “príncipe dos críticos” (prince of the criticks). Aristóteles teria, com efeito, assegurado que foi essa espécie de criação que prevaleceu entre os primeiros poetas, “antes da época de Homero”.41 Mas com o pai dos poetas (father-poet) tudo muda. Homero destituiu a “raça espúria” dos poetas entusiastas, conservando apenas “aquilo que era decente do estilo figurativo e metafórico”. Ele introduziu o estilo “natural e simples”:
...ele voltou seus pensamentos para a real beleza da composição, para a unidade do propósito [design], para a verdade dos caracteres e a justa imitação da natureza em cada particular.42
Apoiando-se nas lições da Poética de Aristóteles (e também na autoridade de Platão, Horácio, Estrabão e Marco Aurélio), o próximo capítulo da reconstituição shaftesburiana da história da literatura grega intenta mostrar que Homero deve ser considerado não apenas o “pai” da tragédia, por ter escrito a Ilíada e a Odisséia, mas também da comédia, como autor do poema, em versos jâmbicos, Margites.43 A argumentação do Solilóquio visa mostrar, além disso, que a tragédia veio e tinha de vir primeiro. Isso porque uma das afirmações do “príncipe dos críticos” diz que a tragédia já atingira, na época dele, o máximo de perfeição possível para esse gênero dramático, pois na prática seria impossível ir mais longe do que o fizeram Sófocles e Eurípides.44

Com a comédia, tudo se passa de outra maneira. Como “insinua claramente” Aristóteles (as he plainly insinuates), em sua época ela ainda não havia chegado ao seu telos, ao seu fim (it lay yet unfinish’d), a despeito de todo o trabalho engenhoso (witty) de Aristófanes e de outros poetas cômicos da geração anterior à do grande crítico. Por mais perfeitos no estilo e na linguagem e por mais férteis que tenham sido em todas as “variedades e giros do humor”, “a verdade dos caracteres, a beleza da ordem e a imitação simples da natureza eram, de certa maneira, totalmente desconhecidas deles”.45

A comédia da época de Aristófanes ainda não atingiu a perfeição. Ela não conseguiu muito mais que as “antigas paródias”, que não passavam de peças burlescas ou farsas.46 Isso comprova, mais uma vez, a tese de que a comédia surgiu depois da tragédia: como no axioma da sátira evocado antes (quanto maior a seriedade, tanto mais forte o riso), a essência da comédia ateniense do século V é o desmascaramento da falsa larva trágica,47 a detração do “falso sublime” dos poetas antigos e atuais que incorrem nessa “maneira viciosa” de criar. Também os oradores pomposos e tudo o que quer se impor pela “falsa gravidade ou solenidade” tiveram de passar pelo crivo do cômico.48

Percebe-se então que a anterioridade do trágico e a passagem do sublime grandioso ao cômico não são casuais. Muito pelo contrário: a sucessão ocorrida na Grécia se deve antes à “necessidade”, à “razão e natureza das coisas”.49 Mas que tipo de necessidade é essa? Ela não é de outra ordem que daquela necessidade física ou médica já descrita antes: “com a ajuda de bons fermentos e de uma saudável oposição de humores”,50 a própria constituição saudável de um povo livre como os gregos providenciou a cura daquilo que era excessivo ou lesivo para ele. Assim, o “humor floreado e demasiadamente sanguíneo do estilo elevado” foi atenuado por algo de natureza oposta. Esse tratamento deu, em princípio, bons resultados. Mas, como no caso do edifício que tombou do lado oposto, a aplicação reiterada do “gênio cômico” como uma espécie de remédio “cáustico” aos excessos da oratória acabou gerando uma nova moléstia.51

Foi essa nova enfermidade (digamos “por excesso de riso”) que levou à proibição da menção dos nomes de pessoas reais nas comédias em Atenas? Mas uma resposta afirmativa a essa pergunta não iria contra a equação de proporcionalidade entre liberdade de pensamento e humor?

A justificativa que Shaftesbury dá para a proibição de Lâmaco em 404 a.C. é especiosa, embora inteiramente coerente com a seqüência “natural” de florescimento do gênero que está descrevendo. Longe de ser um gesto autoritário, a lei que impedia a nomeação dos cidadãos nas peças cômicas demonstra apuramento da sensibilidade dos censores: era preciso uma medida extrema para que a comédia não retrocedesse a seus primórdios e avançasse – aristotelicamente – para a perfeição de sua natureza. Posteriormente, também os romanos lançaram mão de um expediente parecido contra a licenciosidade contrária à liberdade pública, e se a atitude é aceita por ninguém menos que Horácio,52 é porque ela é indício do aperfeiçoamento do gosto na Antigüidade. Ela não tem nada a ver com a intolerância dos religiosos para com o espetáculo teatral na Inglaterra.

A comédia só chegará à perfeição que lhes cabe por natureza – o que ocorrerá com Menandro e com os comediógrafos romanos –, quando autores e público tiverem gosto. Mas esse gosto só virá com a crítica. Isso é tanto mais interessante de observar, porque, de acordo com o Solilóquio, o desenvolvimento da literatura grega apresenta “agradável” semelhança com a história da filosofia. Se o grande “sir” da poesia foi Homero, porque seu gênio era ao mesmo trágico e cômico, o “patriarca” dos filósofos é Sócrates, porque, “contendo em si mesmo os diversos gênios da filosofia, deu origem a todas as diversas maneiras em que essa ciência foi transmitida”.53 A linhagem de Sócrates não é menos numerosa e diversificada que a do pai dos poetas: o nobre berço e o gênio imponente fizeram de Platão um amante do sublime; a condição e a constituição inclinaram Antístenes mais para a sátira, e a melhor disposição de humor fez Diógenes voltar-se para o cômico. Um outro discípulo combinou o que havia de “mais profundo e sólido na filosofia” ao refinamento nas maneiras e no caráter de um gentleman. Porque soube se manter distante tanto do procedimento pomposo, quando do “burlesco, mímico ou satírico”, Xenofonte foi o “Menandro filosófico de uma época anterior” (philosophical Menander of earlier Time).54

O apogeu da comédia está próximo, e a prova disso é o curso vivido pelo pensamento filosófico, que conheceu, em Xenofonte, o seu Menandro antes do Menandro cômico. Ainda não surgiu um comediógrafo digno do nome, mas isso estaria prestes a ocorrer, o que, aliás, foi previsto profeticamente por Aristóteles, para quem a comédia, assim como a tragédia, deveria atingir em breve sua “perfeição natural”. “Grande mestre da arte” e “rematado filólogo55, Aristóteles foi um acurado inspetor das obras literárias gregas e pai de um outro gênero de “considerável autoridade e peso”. O “grande crítico” foi o iniciador de um estilo metódico de escrita, e seu talento combina “as partes profundas e sólidas da filosofia” à “cultura da polidez” e às “artes”. Em sua escola, havia uma preocupação maior com “outras ciências” do que com a ética, a dialética e a lógica.56

A proximidade entre o acabamento da “arte crítica” (critical art) em Aristóteles57 e a nova comédia não é um fato aleatório, mas fruto de um mesmo apuramento do gosto na civilização grega, a qual se põe, finalmente, para além das alternativas excludentes da mera seriedade pomposa ou do mero riso histriônico. Resumindo um pouco o espírito de suas considerações, pode-se dizer que, para Shaftesbury, é nas comédias romanas e, principalmente, na sátira horaciana que a literatura antiga conhece o ápice da arte de combinar seriedade e comicidade, arte, crítica e gosto.58


As vicissitudes do humor e a invariabilidade do eu

Nós, insulares, além de outras mutabilidades, somos particularmente notados
pela variabilidade e inconstância de nosso clima. E se nosso gosto nas letras
tiver alguma correspondência com esse temperamento de nosso clima, é certo
que, a nosso ver, um escritor terá de ser melhor em seu gênero quanto mais
agradavelmente surpreender seu leitor mediante mudanças e
transportes
súbitos, que o levem de um extremo a outro.

Shaftesbury59

Depois dessa curta excursão pelas terras mediterrâneas, Shaftesbury pode conduzir seus leitores de volta às paisagens brumosas da Grã-Bretanha. O mesmo movimento de aprimoramento da crítica e do gosto que se reconheceu na Grécia pode ser esperado entre os bretões? Tudo indica que sim. A forma didática ou prescritiva de escrever sobre questões tidas como sublimes agora fatiga mais os ouvidos ingleses que “o ritmo de uma velha balada”, e a única maneira na qual o criticism mostra sua “justa força” é “o cômico à maneira antiga” (the ancient comick), espécie à qual pertencem “as primeiras miscelâneas romanas ou peças satíricas” – forma de composição “posteriormente refinada pelo maior gênio e poeta mais polido da nação”, que agora já sabemos ter sido Horácio.60

A crítica britânica só teve êxito quando se aproximou da comédia grega mais antiga, o que pode ser verificado no Hudibras, de Samuel Butler, e no Rehearsal, drama satírico atribuído a George Villiers.61 Contudo, ainda há muito pouco “gênio crítico” a guiar o gosto na Grã-Bretanha, diferentemente do que ocorre na França de Boileau e de Corneille, autores “que aplicaram sua crítica, com justa severidade, inclusive às suas próprias obras”. Se não fosse o espírito de tirania reinante em França, os cidadãos daquele país poderiam esperar resultados ainda melhores de suas letras.62

A dificuldade de introduzir o gosto na literatura inglesa é de outra ordem: convém lembrar, como adverte o autor, que a Grã-Bretanha vive sob um governo livre e uma constituição nacional (free government and national constitution).63 Os obstáculos ao aprimoramento do gosto se devem mais ao “gênio” próprio da nação, cujas especificidades o crítico não pode absolutamente perder de vista. Shaftesbury, sempre que necessário, também não as deixa de assinalar. É o que ocorre nas páginas iniciais das Miscelâneas, onde procura justificar o feitio heteróclito do próprio escrito e, por conseqüência, das demais obras que compõem as Características. Nessas páginas, o autor das Miscelâneas recorda que, tendo freqüentado o teatro na França, pôde observar o costume que os franceses tinham de inserir, “ao final de cada tragédia grave e solene”, uma “farsa cômica ou miscelânea, à qual chamavam de pequena peça”.64 À tragédia, na França, sempre se segue a farsa. De nossa parte, comenta o autor, seguimos um método “bem mais extraordinário” em nossos palcos, pois acreditamos que é “agradável e justo misturar, em cada ato, a pequena peça ou farsa à trama ou fábula principal”.65 Método, aliás, recomendável, uma vez que “nossa tragédia é muito mais profunda e sangrenta que a dos franceses e carece, por isso, de um refresco mais imediato, proporcionado pela maneira elegante da facécia e do wit burlesco”. Esses dois ingredientes, bem misturados ao condimento que lhes é diretamente oposto, dão como resultado a espécie mais bem acabada de “miscelânea teatral, que é chamada por nossos poetas de uma tragicomédia”.66

Se a mistura do trágico e do cômico tem sua razão de ser (e o encontro do carrasco e do bufão numa mesma cena é com isso plenamente justificada), a crítica deve então saber como respeitar a índole dessa literatura e dessa dramaturgia. Mas saber respeitá-la significa também saber mimetizar os autores que critica, explicitando seus procedimentos à luz dos ideais que ela supõe ser os padrões do bom gosto. É por isso que se escritores como Shakespeare, Fletcher, Johnson e Milton não podem ser integralmente apreciados, é inegável, contudo, que neles podemos encontrar os elementos fundamentais do espírito da nação. Há para Shaftesbury uma plena equivalência entre aquilo que se percebe no indivíduo e aquilo que se observa no seu tempo. Indivíduo e sociedade são como que imagens especulares: há um espelho interior em que podemos nos reconhecer, tanto quanto um “mirror or looking-glass to the age”.67

A sociedade, assim como o indivíduo, é dividida em humores. Há um humor sério e um humor jovial, que correspondem grosso modo à razão e ao desejo (appetite) dos homens. A vontade humana oscila entre esses dois extremos, como se fosse uma bola de futebol ou um pião (a foot-ball or top) aguerridamente disputados por dois garotos. Toda a arte da política ou da crítica consistirá em saber fazer com que cesse a disputa entre os dois meninos, e com que comecem a jogar alegremente um com o outro. Trata-se, em suma, de transformar os caprichos do humor de cada um no jogo amistoso do bom humor individual e coletivo.68

Isso explica por que, num grau maior ou menor, os dois princípios fundamentais da natureza humana podem ser identificados em quase todas as obras da literatura. É possível encontrá-los até mesmo no teatro inglês, embora neste a sua combinação seja em geral menos harmônica. Em outros autores, como Homero, Horácio, Corneille etc., cujo gosto é menos bárbaro ou gótico, reconhecemos a beleza do arranjo, o acerto da composição. Este é o caso também dos diálogos platônicos que têm Sócrates como personagem principal: neles, a construção é notável, porque mostra as vicissitudes e a duplicidade da alma humana (o modelo mais acabado seria justamente o Fedro) sem que o “herói filosófico” desses poemas deixe de ser um “caráter perfeito”.69 Para o observador desatento, é como se Sócrates estivesse numa névoa, aparecendo com freqüência bastante diferente do que em realidade é. E tal é, de fato, o efeito enganador da ironia, essa espécie de zombaria “requintada e refinada, em virtude da qual podia tratar conjuntamente os assuntos mais elevados e os da capacidade mais comum, tornando-os reciprocamente elucidativos um do outro.” No gênio da forma dialogada aparecem juntas “a veia heróica e a veia simples, a trágica e a cômica”.70 Ora, mesmo que a retomada dos diálogos platônicos seja um expediente inviável e desaconselhável nos tempos modernos, é o seu “gênio” que deve inspirar a própria escolha e estruturação dos textos. Isso explica por que, nas Características, o ensaio sobre o humor vem depois da Carta sobre o Entusiasmo,71 e por que um “ator sério” sobe a seguir no palco e expõe-se a si mesmo à crítica.72 Os Moralistas serão, por sua vez, uma rapsódia filosófica em que se procura imitar os mimos antigos (matriz dos diálogos platônicos) e dar voz a uma “variedade de estilos”, como o estilo simples, o cômico, o retórico, sem contar o estilo poético ou sublime.73

O que é fundamental de reter nessas análises sobre a variedade estilística é que ela serve de premissa a uma conclusão ético-moral que aparentemente lhe contradiz: o aprendizado da variabilidade do humor é o caminho para a firmeza de caráter em que se cristaliza a identidade pessoal. Como em quase todo o século XVIII, também em Shaftesbury há um vínculo inextrincável entre moral e estética. Mas no seu caso existe uma peculiaridade que, para encerrar este ensaio, convém explicitar.

Pelo que se mostrou anteriormente, é bem claro que não pode haver um gosto “legítimo e justo” sem o “trabalho” e os “sofrimentos” da crítica (without the antecedent labour and pains of Criticism).74 Postula-se assim a existência de um padrão (standard) do gosto, que pode ser imediatamente reconhecido75 e no qual não haveria diferença entre belo e verdadeiro. Mas beleza e verdade devem ser pensadas de um ponto de vista medicinal. Como explica Shaftesbury:
A saúde natural é justa proporção, verdade e o curso regular das coisas, na constituição. É a beleza interna do corpo. E se a harmonia e as justas medidas da crescente pulsação, os humores circulantes e a locomoção dos ares ou espíritos se perderem, surge deformidade e, com ela, calamidade e ruína. 76
O critério de beleza e verdade é dado por um ideal clássico de proporção das formas encontrada no corpo humano. Mas essa proporção tem de denotar ainda a “beleza interna do corpo”. O gosto se funda, assim, na possibilidade de existência e de apreensão dessa inward beauty. Ocorre, porém, que o gosto e congêneres – a polidez, o wit, o good sense etc. – são também resultado de um árduo aprendizado estético-moral, cujo objetivo é buscar justamente essa beleza e proporção internas. Noutros termos: o cultivo da sensibilidade e dos sentimentos depende de que o homem seja capaz de dar uma certa constância aos seus humores, isto é, de que seja sempre mais capaz de se exercitar e manter no difícil regime do constante bom humor.

Os filósofos e os religiosos que acreditam que a formação do caráter deva se basear unicamente em princípios, deveriam enfim se convencer de que não apenas estes, mas também o gosto “governa os homens”.77 Os princípios prescrevem comportamentos rígidos e uniformes para todos os indivíduos; o gosto, ao contrário, depende de uma formação, de um aprimoramento contínuo, que não tem um termo previamente estipulado onde deva cessar. Como na “profecia” aristotélica ou numa prolepsis estóica, a identidade pessoal se funda numa espécie de carta de crédito dada ao nosso ser (being) por uma espécie de “preconcepção” ou antecipação78 daquilo em que deveremos nos tornar. A solução para o problema da identidade pessoal em Shaftesbury está a igual distância da identidade sempre igual a si mesma do metafísico e da negação de toda e qualquer identidade pelo pirrônico. O que diferencia, como se vê, o homem de humor tanto do dogmático quanto do cético, é que estes se apressam em encontrar uma resposta para seus problemas: um se apega imediatamente a seus princípios, enquanto o outro se obstina teimosamente em negá-los. Um adere precipitadamente àquilo que lhe entusiasma; o outro, por espírito de contradição, se arma até as unhas e os dentes com o escárnio da derrisão. O homem sério não sabe temperar os excessos de sua sublime exaltação. O sarcástico por reação não sabe que há “uma grande diferença entre procurar como tirar riso de cada coisa; e procurar, em cada coisa, aquilo de que se pode justamente rir”.79 Um e outro aderem muito ferrenhamente a seus sistemas e não se dão contas do perigo a que se expõem. Perigo contra o qual adverte a famosa frase de Shaftesbury:
O meio mais engenhoso de se tornar louco é um sistema.80
A crítica não tem pressa. Diferentemente do crente e do descrente, do dogmático e do cético, ela sabe que não se deve precipitar na adesão a uma seita, partido ou sistema. Ela sabe que toda arte do refinamento e do humor está em saber escolher o momento certo de se comover e de rir. Pois, conforme diz o velho ditado, quem ri por último, ri melhor.

Não gostaria de pôr um ponto final a estas linhas sem antes mencionar o quanto as análises de Shaftesbury impressionaram Immanuel Kant. Se a idéia kantiana de “crítica da razão” já não pode ser completamente identificada à concepção de crítica do “inspetor do ridículo”, algumas passagens confirmam o quanto meditou sobre as suas obras e o quanto absorveu do espírito crítico dele. Com a palavra o próprio Kant:
Mas se, como afirma Shaftesbury, uma pedra de toque não desprezível da verdade de uma doutrina (sobretudo de uma doutrina prática) é saber se resiste ao riso, então com o tempo deveria chegar a vez do filósofo crítico de rir, de rir por último e também melhor, vendo ruir um por um os sistemas de papel daqueles que bravatearam por muito tempo e vendo desaparecer todos os seus sequazes: destino que lhes aguarda, inevitavelmente.81

 
Resumo: Uma das contribuições mais originais de Shaftesbury para a filosofia dos séculos XVIII e XIX talvez seja a forma como entende a crítica (literária, filosófica e política). Para ele, a crítica deve constituir um gênero próprio distinto da sátira, porque, diferentemente desta, não visa a punição dos vícios, mas uma sociabilidade fundada numa apreciação positiva do homem, no bom humor e no riso benévolo intrínsecos à natureza humana.
Palavras-chave: Shaftesbury, crítica, humor riso, Iluminismo britânico.
 
 
Abstract: One of Shaftesbury’s most original contributions to philosophy in the 18th and 19th centuries is perhaps the way he conceives literary, philosophical and political criticism. For him, criticism must be a specific literary genre, different from satire, because it aims not at the punishment of vice, but at a sociability based on a positive conception of man, on the good humor and benevolent laughter belonging to human nature.
Keywords: Shaftesbury, criticism, humor, laughter, British enlightenment.
 


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*MÁRCIO SUZUKI, professor da Área de Estética do Departamento de Filosofia da USP, é autor de O Gênio Romântico: Crítica e História em Friedrich Schlegel (Iluminuras, 1988). Entre as traduções publicadas destacam-se: Poesia Ingênua e Sentimental (Iluminuras, 1991), A Educação Estética do Homem, de Friedrich Schiller (com Roberto Schwarz, Iluminuras, 1990), e os fragmentos dos primeiros românticos alemães em O Dialeto dos Fragmentos (Iluminuras, 1997).



Notas

1 A expressão “Século da Crítica” para designar a crítica estética das Luzes foi cunhada, como se sabe, por Ernst Cassirer. Também se sabe, no entanto, que a idéia de crítica, no século XVIII e depois, extrapola bastante o âmbito estético.
2 Lyceum, 106. In: O Dialeto dos Fragmentos. São Paulo, Iluminuras, 1997, p. 36.
3
Characteristics of Men, Manners, Opinions, Times. Reprodução fotomecânica da edição de 1711. Hildesheim, Olms, 1978, volume I, p. 60.
4 Idem, ibidem.
5 Idem, p. 65.
6 Que ainda se possa ter esperança na “grown youth of our polite world”, é o que tentam mostrar as Características (cf. III, pp. 178-179).
7 Miscelllaneous Reflections on the preceding Treatises, and other Critical Subjects. In: Characteristics, ed. cit., vol. III, p. 107.
8 “I can see who’s the first that puts other into a passion”. Idem, pp. 107-108.
9 Idem, p. 108.
10 Idem, p. 108.
11 Sobre a origem humilde e rural do clown, veja-se J. G. Salingar, “The Social Seting”. In: The Age of Shakespeare. Pelican Guide to English Literature. Harmondsworth, Penguin, 1977, pp. 15-47.
12 I, 91.
13 I, 69.
14 I, 70.
15 I, 77. Nessa mesma linha, Hume insistirá sobre a necessidade de se combinar as horas de lazer e conversação com as horas de reflexão sobre as questões ali discutidas.
16 I, 73.
17 I, 11.
18 I, 65.
19 I, 66.
20 “Escutamos claramente a queixa de que ‘nossas peças mais recentes, tanto quanto nas mais antigas, tanto na comédia, quanto na tragédia, o palco aparece como uma cena de tumulto.” É essa confusão que, segundo as Miscelâneas, teria levado o autor do Solilóquio a comparar o Royal Theater ao “circo popular ou ao jardim para rixa de ursos [popular circus or bear-garden]”. (III, 256) A passagem referida do Solilóquio, onde se comenta o gosto pelas lutas de gladiador, a inclinação para massacres, as irregularidades cometidas pelos “stage-poets” da Grã-Bretanha, encontra-se em I, pp. 269 e segs.
21 Shaftesbury obviamente toma posição contrária à dos devotos, para os quais o espetáculo teatral não deve ser tolerado. Não é preciso ser, diz ele, um “religioso ou rígido moralista” para perceber que a cena inglesa se encontra numa condição lastimável. A prática e a arte teatral são, todavia, “honestas em si mesmas”, e a sólida fundação do teatro inglês permite supor que será aprimorado. Segundo ele, o teatro não é prejudicial aos interesses religiosos (no way injurious to religious interests), embora o possa ser para as maneiras do povo, para seu cultivo e para a vida civil (III, p. 257). Para compreender a tomada de posição de nosso autor, é importante lembrar que a campanha puritana contra os “develish pastimes” que seriam os espetáculos teatrais começa abertamente na Inglaterra na década de 70 do século XVI. Cf. L. G. Salingar, op. cit., p. 35.
22 I, 97.
23 I, 70.
24 I, 71.
25 A liberdade de pensamento e de expressão, isto é, a liberdade do humor, não pode ocorrer no âmbito do tribunal e da assembléia política. Como bem mostrou uma estudiosa da obra de Shaftesbury, o sujeito livre não pode ser de modo algum o ouvinte arrastado pela eloqüência, pelo commovere-movere do orador. Cf. Fabienne Brugère, “Humour et discours philosophique dans l’art de la conversation”. In: Théorie de l’art et philosophie de la sociabilité selon Shaftesbury. Paris, Honoré Champion, 1999, p. 127. Diferentemente, por exemplo de Hume, a crítica shaftesburiana da retórica vale, inclusive, para a eloqüência antiga, que é um estágio importante, mas inferior, da formação de um povo. Cf. Soliloquy: or Advice to an Author. In: Characteristicks, vol. I, pp. 238-240.
26 I, p. 72.
27 Idem, ibidem.
28 I, p. 73. A ligação entre política e riso aqui assinalada é fundamental para entender a filosofia shaftesburiana. Como lembra a esse respeito Verena Alberti, o “receio do ridículo” era uma das preocupações das pessoas refinadas durante o Antigo Regime na França. Ainda segundo ela, a crainte du ridicule dará lugar a uma aceitação mais liberal do riso na Grã-Bretanha, que concorrerá “para a instituição do humor inglês” e para a formação do chamado man of humour. Embora aceite o “potencial de explicação” dessa divisão geopolítica das concepções do riso e do ridículo, baseada em Fritz Schalk e Stuart Tave, a autora não acredita que deva ser seguida à risca. Cf. Verena Alberti, O Riso e o Risível na História do Pensamento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2a edição, 2002, pp. 119 e segs. De qualquer forma, essas considerações ajudam a compreender o quanto o iluminismo shaftesburiano é perspicaz e original ao estabelecer relações entre autoridade e humor. Sobre o sentido social da ironia e da sátira, pode-se consultar também a seção sobre o “mythos do inverno” do livro Anatomia da Crítica, de Northrop Frye. São Paulo, Cultrix, 1973. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, pp. 219-235.
29 I, p. 128.
30 I, p. 129.
31 I, p. 128. Cf. Aristóteles, Poética, 1449 a 34 e segs.: “O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de dor]”. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo, Abril Cultural, 1993, p. 447. Cf. também Quentin Skinner, Hobbes e a Teoria Clássica do Riso. Tradução de Alessando Zir. São Leopoldo, Unisinos, 2002.
32 III, pp. 173-174.
33 I, 134.
34 I, pp. 95-96.
35 I, p. 96.
36 I, p. 81.
37 I, p. 81.
38 § 79. Nota Geral. Edição Akademie, p. 265.
39 I, p. 242.
40 Idem, ibidem.
41 I, p. 243.
42 Idem, ibidem.
43 Poética, 1448 b 4 e segs. Cf. b 33: “Mas Homero, tal como foi supremo poeta no gênero sério, pois se distingue não só pela excelência como pela feição dramática das suas imitações, assim também foi o primeiro que traçou as linhas fundamentais da comédia, dramatizando, não o vitupério, mas o ridículo. Na verdade, o Margites tem a mesma analogia com a comédia que têm a Ilíada e a Odisséia com a tragédia.” (Tradução citada, p. 446.) Cf. Solilóquio, I, p. 253, nota.
44 I, p 244. Shaftesbury ainda segue de perto a Poética (1449 a 13): “até que, passadas muitas transformações, a tragédia se deteve, logo que atingiu a sua forma natural”. Tradução citada, p. 446.
45 I, p. 245.
46 I, p. 246, nota.
47 I, p. 247.
48 I, p. 246.
49 I, p. 247. Veja-se a corroboração dessa tese nas Miscelâneas: “A real linhagem e sucessão do wit está, com efeito, manifestamente fundada na natureza, o que nosso autor mostrou ser evidente na história e nos fatos.” III, p. 137.
50 I, p. 248.
51 Idem, ibidem.
52 I, p. 251.
53 I, pp. 253-254.
54 I, pp. 254-255. Shaftesbury, com freqüência, não nomeia diretamente as personagens históricas de que está tratando, mas se vale de epítetos ou descrições. Para essa decifração dos filósofos por ele mencionados, sigo as indicações de Danielle Lories, nas notas à sua tradução do Solilóquio para o francês. In: Soliloque ou Conseil à un auteur. Paris, L’Herne, 1994, pp. 147-148.
55 “to accomplish the prophecy of our grand master of art, and consummate philologist”. I, p. 246.
56
I, pp. 255-256.
57 I, p. 255.
58 I, pp. 328-329. Nessa página, o autor do Solilóquio pede licença para imitar o “best genius and most gentleman-like of Roman poets”, reconhecido pelo wit, honesty and good humour.
59 III, pp. 95-96.
60 I, pp. 258-259.
61 I, p. 259.
62 III, pp. 280-281. A despeito da leveza dominante no espírito da nação, os franceses, com muito esforço e indústria buscaram a verdadeira polidez, “a correção, pureza e graça do estilo”. Lograram produzir um “nobre satirista”, na figura de Boileau. Tiveram menos sucesso na épica e no drama, porque o “elevado espírito da tragédia sobrevive mal onde falta o espírito de liberdade”. I, p. 218. 63 I, p. 216. Cf. p. 219.
64 III, p. 6.
65 III, p. 7.
66 Idem, ibidem.
67 I, p. 199.
68 Essa operação filosófica pode ser descrita como a passagem da teoria dos humores para uma teoria do humor, passagem que ficaria mais clara quando se pensa na distinção que a língua francesa faz entre humeur e humour. É o que explica Fabienne Brugère: “Parece-nos que o projeto filosófico de Shaftesbury no Sensus communis... consiste de uma fina análise da palavra inglesa humour, que é ao mesmo tempo humeur e humour. Shaftesbury mostra como a potência natural que é a humeur deve ser concebida com a ajuda da disposição já social e intelectual do humour. Com efeito, se a humeur remete à questão da natureza do homem a um exame fisiológico e emotivo, a um conjunto de inclinações imediatas, o humour, prolongando a humeur no bom humor, na jovialidade, conota uma certa utilização social da humeur como camaradagem e benevolência divertida”. Op. cit., pp. 118-119. Caberia lembrar ainda que, no tocante à discussão do riso, a sua ligação com os humores em Shaftesbury faz com que sua teoria divirja inteiramente da de Hobbes e de Descartes, para quem o riso está associado às paixões. Sobre a paixão do riso nesses dois últimos filósofos, veja-se o livro de Quentin Skinner citado à nota 28.
69 I, pp. 194-195.
70 Idem, ibidem.
71 III, p. 97.
72 III, p. 248.
73 III, p. 285.
74 III, p. 165.
75 III, p. 179. A discussão sobre o padrão do gosto se estenderá, como se sabe, por toda a filosofia das Luzes na Grã-Bretanha. Dela tomarão parte autores como Hutchenson, Burke, Hume e Lord Kames, entre outros.
76 III, p. 181.
77 III, p. 177. Do ponto de vista da história das idéias, caberia lembrar o quanto se perdeu da filosofia shaftesburiana quando foi transportada para a Alemanha do Sturm und Drang. Ali, ficou conhecido pela comparação do poeta a um segundo criador, um Prometeu abaixo de Zeus (I, 207). A Geniezeit alemã “se esqueceu”, naturalmente, daquilo que não lhe interessava, poucas páginas antes: que “o gênio sozinho não faz um poeta” e que a “habilidade e a graça na arte de escrever se funda, como adverte nosso sábio poeta [Horácio] em conhecimento e bom senso [knowledge and good sense]” I, p. 193. Sobre a rejeição à idéia de gosto e crítica entre os escritores ingleses, cf. também III, p. 165.
78 Sobre a antecipação, III, p. 194. Sobre a prolepsis, III, p. 214. 79 I, p. 128.
80 “The most ingenious way of becoming foolish, is by a system”. I, p. 290.
81 Kant, I. Metaphysik der Sitten, Prefácio, A, p. X.


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