Sumário

Sobre os autores

Créditos desta edição

Editorial

Entrevista

Entrevista com Marco Lucchesi

Artigos

A arte moderna e a crise de representação, Leonardo A. Alves de Lima
Horses Hotel: rédeas da criação, Patrick Gert Bange
A sombra de Berenice sobre Egeu, William Cunha de Freitas

Matérias

Canto de uma manifestação, Marina Albuquerque
Para onde nos levarão estas ruas?, Diego braga
Ensaio sobre o novo, Gleyson Dias de Oliveira
Anarquismo coletivo, Camila Mendes

Criação

A arte cavalheiresca de outro arqueiro zen, Marcus Vinícius C. de Freitas
Polemochoque+Demiurgia do espírito, Caetano Neves Magalhães
Contradição + As duas faces, Bruna Baldez
Ideia, Vinícius Loureiro
Sonho, Danilo Diógenes
Poemas visuais, Felipe Andrade
Quando eu nasci + Ode súfera, Sérgio Outante
Morimorto, Leonardo A. Alves de Lima
Certa vez alguém me disse..., Letícia Buendía
Arma, Diego Viana da Costa Pinto
O inverno das mil vozes + Espinha de peixe, Angel Cabeza
Lolla, Weliton Oliveira Santos

Resenhas

A caça e a complexa palavra alheia, Maíra Ferreira
Um secretário, uma cozinheira e um general, Pablo Baptista Rodrigues
Pensei estar na Alemanha e fui à Feira do Livro..., Thais Lima
Bienal - o paraíso caótico dos amantes dos livros, Larissa Fernandez Carvalho

Quadrinhos e Ilustração

Quadrinhos e ilustrações de Diego Sanchez

#1 Se essa rua fosse minha

 

Editorial

Depois de muito trabalho, eis que nasce a primeira edição de Odara. E resolvemos começar a nossa jovem revista com um tema de gente grande. “Se essa rua fosse minha...” é uma edição que traz para o centro da discussão os movimentos políticos que ocorreram recentemente no Brasil e no mundo. Um assunto delicado por ser muito recente, mas nada nos pareceu mais interessante do que respirar os ares do momento (com ou sem gás lacrimogênio).

Entrevista

marco lucchesi

Entrevista com Marco Lucchesi por William Cunha

Ao realizar uma rápida busca na internet sobre nosso entrevistado, você irá encontrar que ele é “Poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor”. Parece ser impossível ter tempo para desempenhar todas essas funções, só mesmo sendo imortal. E ele o é. Marco Lucchesi respondeu-nos algumas poucas perguntas sobre todas essas suas áreas de atuação, sobre o lado político em Dante, e sobre sua produção crítica.

Artigos

a arte moderna e a crise da representação

Leonardo A. Alves de Lima

Este artigo apresenta uma reflexão sobre o papel da obra de arte em meio à crise de representação da modernidade através da análise que passa por uma peça ready made e de uma imagem dadaísta. Apresenta o diálogo entre filosofia e arte nos conceitos clássico e moderno na busca pela resposta à pergunta: Será preciso expulsar novamente o poeta da cidade? Assim será a arte moderna e a crise de representação.

 

horses hotel: rédeas da salvação

Patrick Gert Bange

Este artigo procura fazer o exercício de reconhecer, isto é, flagrar o nosso tempo, mais especificamente, o tempo das manifestações de Junho de 2013, representado na peça Horses Hotel, dirigida por Alex Cassal e Clara Kutner, em cartaz no Rio de Janeiro de 18 de abril a 2 de junho de 2013. Na primeira seção, dedicou-se à crítica da peça e, na segunda, à tentativa de elaborar em que medida a peça flagra esse momento histórico.

 

a sombra de berenice sobre egeu: o melancólico fantástico em edgar allan poe

William Cunha de Freitas

Estudar os aspectos melancólicos em Edgar Allan Poe é uma tarefa tentadora, uma vez que seus textos são repletos de elementos que remetem a esse estado tão comum na modernidade. Entretanto, é necessário compreender de que forma a melancolia “Poeiana” funciona como elemento da narrativa para a criação do efeito desejado pelo autor. Em seu ensaio A Filosofia da Composição, Poe afirma que prefere começar um texto pela, em suas próprias palavras, “consideração de um efeito”. Para fins de análise, assumimos então que esse efeito ao qual o autor considerou, em seu conto Berenice, seja o melancólico.

Matérias

canto de uma manifestação

Marina Albuquerque

As manifestações de junho foram um sopro de esperança e vitalidade no sentimento de cidadania em várias cidades pelo Brasil. Mas até quando esses sentimentos duram e a negatividade com relação ao futuro, tão conhecida do brasileiro, volta acompanhando a rotina? Quem foi levado pelas palavras de ordem fez delas um som a ser ecoado permanentemente ou as vibrações se perderam no ar da utopia?

 

para onde nos levarão estas ruas? o sentido das manifestações que tomaram o país e o mundo

Diego Braga

As manifestações que desencadearam um processo de radicalização política em nível nacional no Brasil, a partir de junho de 2013, têm algumas características específicas que dificultam a compreensão de seu significado político. Neste ensaio, recorremos a uma breve enumeração de processos históricos e políticos no Brasil e no Mundo cuja compreensão pode ser reveladora. Estes elementos serão elencados e relacionados com estas características das chamadas Jornadas de Junho, no empenho não de esgotar o assunto, mas de esboçar algumas linhas gerais de compreensão e caracterização, com vistas a dimensionar os desafios colocados às forças políticas de orientação socialista.

 

ensaio sobre o novo

Gleyson Dias de Oliveira

Há duas coisas que animam o espírito humano, - talvez aqui eu vá me prostrar sobre uma reflexão que se liga umbilicalmente com o espírito academicista, por ser esta a minha realidade e, por extensão, a realidade da grande maioria que andam empreendendo mudanças sociais: o desejo do novo que quer se esquecer, - consciente ou inconscientemente, - das fontes que bebe, e o desejo de um novo que olhe e transfira à realidade o que foi bebido das fontes anteriores.

 

anarquismo coletivo

Camila Mendes

Depois de ter passado as últimas quatro horas marchando e correndo de bombas de gás lacrimogêneo, estávamos, eu e uma amiga, voltando da grandiosa manifestação de 20 de junho. Só queríamos pegar a nossa condução, que naquele momento ainda custava o preço exorbitante de R$ 2,95, e voltar para nossas respectivas casas. Procuramos o ponto de ônibus mais próximo, e claro! Todos estavam inutilizados, a rodoviária estava um caos, o metrô fechado. Parece que todos os manifestantes tiveram a mesma ideia ao mesmo tempo: Ir embora dali. Então, pegamos o General Osório com o intuito de descer no meio do caminho e pegar um metrô no sentido oposto em outra estação.

Criação

a arte cavalheiresca de outro arqueiro zen

Marcus Vinicius Caetano de Freitas

dispara contra a lebre/a flecha o arqueiro insápio,/em certo tiro coxo e cego/por longe passa, suave brisa/ tensão no corpo todo faz/e mais: olhos de águia,/tal olharia todo o mundo/e cegueira lhe seria vista//em treinamento contínuo/tenciona músculo, firmeia olho/e a flecha o arqueiro faz/morrer em percurso insonso//— mestre, é impossível/do corpo toda força apliquei,/como contra a lebre disparar/constante alvo em movimento?

 

polemochoque + demiurgia do espírito

Caetano Neves Magalhães

Um dia de trabalho. Só mais um único dia em que o burburinho das pessoas ao meu redor zune nas orelhas, como a espuma do mar no barco de meus sonhos. O debater da água ao longo do casco, olhando da proa o horizonte, com o vento que me gela as faces, fazendo as maçãs do rosto avermelhadas na tentativa de nos esquentar. Uma embarcação que anda tão longe, para lugar nenhum de um tempo eterno que não cessa de nos consumir em navegar e viajar no meio da imensidão azul.

 

contradição + as duas faces

Bruna Baldez

Faz-se dia/Eu anoiteço/Cai a gota/Endureço//Na sombra/Eu acendo/No vácuo/Me preencho

 

ideia

Vinícius Loureiro

E a palavra não dita/Que antes se precipitava na ponta da língua/- Um pequeno deus ávido por existir - /Escorrega, contendo-se tímida/No canto da boca escondida

 

sonho

Danilo Diógenes

um kamikaze me abraça/com seu colete explosivo/não posso perdoar seu pecado/digo/ele me olha nos olhos/e explode

 

poemas visuais

Felipe Andrade

ESTUDO | EISQUECIMENTO GLOBAL | CRÍTICOS

 

quando eu nasci + ode súfera

Sérgio Outante

Quando eu nasci/Eu nasci.../Não chorei,/Fingi-me morto/Pois a vida/Já me cansava.

 

o inverno das mil vozes + espinha de peixe

Angel Cabeza

É preciso mais de mil vozes/para se erguer uma voz/que cale os muros/os postes/o cimento/solitário do arranha-céu/O uníssono marcha para/a queda das vigas/para a tristeza das janelas/que olham o futuro/A poeira é limpa pelo fogo dos gritos/pela impressão que o sangue causa/Os cavalos não relincham/olham atônitos/para a força das mãos/e se deixam levar/para a batalha já vencida/A fumaça dá o sinal/que o vento ergue como bandeira: /os supostos gigantes/caíram pela marcha seca/daqueles que sequer possuíam/as intenções de Davi/É preciso mais de mil vozes

 

lolla

Weliton Oliveira Santos

Minha torneira/Estava intermitente, amor./Quis, louco, tomar banho./Pois, debaixo de tua roupa,/Tua pele era um carnaval./Debaixo da tua roupa,/Tua derme, mordaz, rebolou para mim.//Teu olho steampunk/Piscou num complicado/Processo mecânico./Eu entendi-te, baby, mas minha torneira/Estava louca, me deixou intermitente:/Cal e poeira cósmica me agrediam.

 

morimorto

Leonardo A. Alves de Lima

Maldito calor que se faz em velórios! É um tipo de calor que só se faz em presença de féretros e velas acesas, mais úmido e estalante que o calor comum. Pessoas suam por sovacos selvagens e pescoços roliços, ficam inquietas. Moscas, moscas enormes atraídas por aquela gente suada cheirando a desodorante, rodopiante e sem rumo, pousam suavemente sobre as narinas algodoadas do morto. Ninguém que as espante.

 

certa vez alguém me disse que homens inteligentes e sensíveis não são bons de cama...

Letícia Buendia

Certa vez alguém me disse que homens inteligentes e sensíveis não são bons de cama. Não... Não vou começar esse texto com este parágrafo deveras libertino, quero começar com coisas idílicas, porque sou idílica deveras. Chamei-te de príncipe, mas você é bem mais que isso... Você é o homem de olhos mais dançantes e sinceros... O meu prato preferido ( pra não dizer meu comedor), meu solstício e minha realeza...

arma

Diego Viana da Costa Pinto

Ele vê a arma nas mãos do policial, uma espingarda de cor tão escura quanto a sua farda, e se sente calmo. Sabe que nos dias anteriores a polícia não foi gentil com os manifestantes, mas ainda assim se acalma diante de sua presença, talvez não pelo rótulo da força policial, mas pelo uniforme, que lhe traz algum conforto diante de tudo que se passa ao seu redor, uma espécie de calma trazida pela existência de um sistema que o protege. As pessoas começam a chegar de diversas formas, em diferente número, e logo está rodeado por seus compatriotas.

Resenhas

a caça e a complexa palavra alheia

Maíra Ferreira

Lançado em 2012 pelo diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, e com Mads Mikkelsen, protagonista do seriado Hannibal, no elenco, A Caça assusta, primeiramente, pela veracidade incômoda que traz em sua trama. A história dos injustamente condenados não é recente, nem na arte nem – muito menos – na vida, mas, ainda hoje, tanto em uma esfera quanto em outra, continua a nos perturbar sempre que um novo caso aparece. No caso de A Caça, a condenação parte das palavras de uma criança que, sem ter ideia da dimensão do que diz, acaba por traçar um caminho sem volta na vida de Lucas, personagem de Mikkelsen, sentenciando-o a pagar por atos nunca cometidos.

 

um secretário, uma cozinheira e um general

Pablo Baptista Rodrigues

A leitura pode ser entendida como uma das atividades mais sublimes que um ser humano pode realizar. Desvendar um código, como as letras, é algo que permite ao leitor a entrada em mundos desconhecidos, em mares nunca antes navegados. A Literatura vista como um desses mundos é um espaço que está aberto a todos. Há uma porta aberta esperando, somente, que entrem por ela.

 

pensei estar na alemanha e fui à feira do livro...

Thais Lima

Como uma boa estudante e amantes das letras nacionais e internacionais separei um sábado de sol para ir à Bienal do Rio que aconteceu no segundo semestre deste ano. Bem disposta e animada, saí de casa de manhã para aproveitar bem o evento do meu final de semana. Mas como nem tudo é perfeito meu primeiro tropeço foi não ter um helicóptero para chegar à Zona Oeste do meu querido estado. Após enfrentar três longas horas dentro do transporte público, que o nosso querido “perfeito” não usa, chegamos ao Rio Centro, o top em centro de convenções do Rio de Janeiro. Mas por que fica tão longe e é tão mal abastecido de transporte coletivo? Não sabemos.

 

bienal - o paraíso caótico dos amantes dos livros

Larissa Fernandez Carvalho

A 16° edição da Bienal do Livro do Rio de Janeiro contou com a presença de 660 mil visitantes. De acordo com o portal de notícias G1, a edição que marca os 30 anos da feira de livros bateu um recorde de vendas, com 3,5 milhões de títulos vendidos, ultrapassando a estimativa dos organizadores, que era de 2,5 milhões de exemplares.

Quadrinhos e Ilustração

quadrinhos e ilustações de diego sanchez

Diego Sanchez Más Saint Martin

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editorial # 1: se essa rua fosse minha

Depois de muito trabalho, eis que nasce a primeira edição de Odara. E resolvemos começar a nossa jovem revista com um tema de gente grande. “Se essa rua fosse minha...” é uma edição que traz para o centro da discussão os movimentos políticos que ocorreram recentemente no Brasil e no mundo. Um assunto delicado por ser muito recente, mas nada nos pareceu mais interessante do que respirar os ares do momento (com ou sem gás lacrimogênio).

A Odara busca afrouxar a linha que existe entre a Academia e a Comunidade à sua volta, mostrando que é possível produzir uma revista plural (feita por alunos) e agradar todo tipo de público interessado numa boa leitura. Dividida em seções (Criação, Resenhas, Artigos, Quadrinhos, Matérias e Entrevista), a revista conta com textos enviados por alunos da UFRJ e de outras universidades.

Talvez você esteja se perguntando “por que Odara?"... Sim, tem a ver com a música do Caetano, com a sonoridade da pronúncia. Mas, na verdade, o que nos atraiu foi o nome não ter um significado “fechado”, porque assim podemos sempre nos renovar, construindo uma polissemia em sintonia com o momento da publicação.

Nós, editores da Odara, buscamos trazer para as nossas páginas a pluralidade que tomou as ruas: a seguir você encontrará uma diversidade de temas e de bandeiras levantadas por diversos autores, terá contato com múltiplas realidades e ouvirá diversas vozes. E isso é só o começo!

Agora, finalmente, a Odara vai ocupar as ruas. Não apenas com ideias, mas com ideias de todo tipo. E, claro, com arte!

Se essa rua fosse sua, com o que você mandava ocupar?

Muito prazer, somos Odara.

[FIM]

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entrevista com marco lucchesi / william c. freitas

Em meio às polêmicas sobre as biografias, como não poderia deixar de ser, consultei uma sobre você que está na internet. Deparei-me logo com aquela que consta no site da Academia Brasileira de Letras e me chamou a atenção que lá sua definição é de “Poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor brasileiro”. Seriam essas todas as suas facetas? Diferentes personas de um mesmo literato?
R: Quanto às biografias manifesto-me pela livre expressão, de acordo com a Carta de 1988. Pessoalmente, minhas informações do site foram feitas por terceiros. Hoje em dia todos declaramos três coisas como princípio. Isso e aquilo e mais outra coisa. Quanto a mim mesmo, prefiro o termo poeta. É mais direto? Mais arrogante? Mais cauteloso? Não sei. Defendo apenas um princípio da alquimia, para enfrentar a pluralidade. Sei que é impossível. Mas gosto de citá-lo. Composita solvantur. Ou seja: as coisas compostas devem ser dissolvidas.

E quanto à ordem que essas definições são apresentadas? Seria essa a ideal? O poeta vem à frente de todas as outras funções?
R: Sim. Sim. Sim. A poesia preside, atravessa e constitui o que vem antes e depois. Havendo antes e depois. Havendo o verbo haver. Ela é para mim aquela ideia de física poética. Dos universais fantásticos – para Vico – em seu diálogo permanente com todas as janelas do conhecimento. Estou com o poeta Czesław Miłoz, as mãos dadas entre a filosofia e a poesia, corrigindo uma parte do próprio Vico. Em outras palavras: O poeta é o princípio de Apolo, tatuado na pele escura de Dionísio.

Quanto ao seu lado professor: Essa persona (faceta, função) ocupa um lugar à parte ou deveria estar ao lado das que são pontuadas nessa sua biografia que consultei?
R: Um lugar à parte. Da parte. Em parte. Comecei bem cedo em projetos sociais, na periferia. Hoje continuo mais espaçadamente nas prisões. Professor? Na UFRJ desde os vinte e seis anos. E só agora respiro em Ciência da Literatura. Contra a divisão de setores e departamentos. A favor de um curriculum aberto, menos administrativo e mais intelectual. Mais transitivo. Professor? Como o entende Paulo Freire: Professor.

Você considera que o fazer poético e ficcional auxilia em seu fazer crítico?
R: Também aqui pode-se diluir, com procedimentos alquímicos, as fronteiras. A circulação no meu laboratório, nas minhas ampolas, neste meu pobre e obscuro antro alquímico é de fundamental renovação. Como a Ouroboros. Morde a própria cauda. A fronteira e sua polícia. Contaminação. Casamento do rei e da rainha. Todo um teatro químico. Ácidos. Palavras.

Recentemente foi lançado seu livro “Nove cartas sobre A divina comédia”. Nessa obra há mais do Marco Lucchesi poeta e escritor, ou do pesquisador e crítico?
R:Não saberia dizer até onde vou. É um livro de amizade. Um aperto de mão. Os devaneios de minha juventude. Revisitados. Realinhados. Gosto tanto de cartas. Fui um viciado em cartas. E continuo do correio físico e eletrônico. Dante para mim é um carteiro imaterial.

Para você, a obra de Dante pode ser lida por um viés que dialogue com esses movimentos políticos populares recentes que ocorreram nas ruas do Brasil e ainda ocorrem no mundo?
R: Perfeitamente. Uma ideia de Dante metafísico exclusivista é inadmissível. Muita metafísica, sim, mas sem diminuir o aspecto político e da adesão ao Agora. Desenhei alguns paralelos com as manifestações recentes, a reforma do judiciário e a reforma política. Dante referiu-se à península italiana como senhora de bordel. E antes de ver a Deus, emocionou-se com o trono vazio de Henrique VII, mandando ao Diabo Bonifácio VIII.

Como você considera possível uma intervenção significativa do crítico nesse cenário de manifestações?
R: Tenho declarado publicamente minha posição, em artigos ou manifestos. A iniquidade é algo perturbador. É manter a vigilância e trabalhar com estatutos reais de emancipação.

E o escritor? De que forma pode afetar esses movimentos?
R: Há um momento em que de novo entra em ação o composita solvantur. Mais que um lugar, trata-se de uma adesão, sem digitais específicas. Uma espécie de coral, de experiência coral, exigida pela democracia direta, pela qual lutamos. Não precisamos de uma voz solista. Mas do concertado de vozes, o coro de uma grande ópera das ruas.

Com todos os recursos tecnológicos, a obra literária ficcional ainda se adequa ao cenário contemporâneo? Seria uma forma de fuga da realidade ou um recurso para registrar as ideias desse tempo?
R: Fugir da realidade. Para onde fugir, quando a geografia morreu, quando a história não deixa ninguém a salvo? como sabemos desde o Fausto de Goethe. Além do mais, somos filhos da história. Não há como fugir às suas correntes avassaladoras. Fugir deixou de ser possível. Ou somos todos foragidos dentro de um cárcere voraz. Os meios representam outros modos de expressão da arte, do pensamento. A ficção não perde nada. Acabou a era do fetiche da técnica? O que interessa é o Logos, que brilha em toda a parte com sua força arrebatadora.

[FIM]

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a arte moderna e a crise da representação / leonardo a. alves de lima

Quando em 1883 o romance “As aventuras de Pinóquio” de Carlo Collodi apareceu pela primeira vez, a identificação do público receptor, com a vontade de Gepeto de ter para si um filho através de um boneco esculpido em madeira, foi quase imediata. De fato o romance/fábula trará a transformação/transubstanciação da madeira/hóstia em carne e sangue através do que poderia ser para Nietzsche a vontade de potência do escultor e do vir a ser da madeira-menino. No que nas palavras de Agambem: “(...) o escultor que se inflama pela própria criação até desejar que ela não pertença mais à arte, mas à vida...”. (AGAMBEM 2012, pág. 18), em outras palavras, a promessa de felicidade.O que está em jogo aqui são os conceitos clássico e moderno de arte, bem como de representação. Se por um lado, a arte clássica fundamenta-se na representação em si, a moderna estabelece-se em sua crise[1]1: Apontamentos da aula de Teo. Lit. III 5/04/2013, ou seja, a arte moderna critica a própria representação. É possível dizer que é Freud um dos responsáveis por desvendar essa crise ao recontar, por exemplo, a história de Édipo. Ao fazer isso o que Freud faz é criar uma nova verdade algo distante do que era a verdade mítica propositiva e a sofística, performática. Uma nova verdade requer um novo conceito e para isso rompe-se com o eixo paradigmático, no caso de Freud, a verdade é inconsciente. Em suas “feridas narcísicas” ele nos aponta algo que colidirá diretamente com a arte clássica, a “má notícia” de que o homem darwiniamente não foi feito a imagem e semelhança de Deus colidirá com a teoria da inspiração em que o gênio transcende e nos da algo artisticamente divino, isto é, inspirado. Platonicamente esta arte será boa, moral e útil. A arte como “filho” a quem pode-se atribuir paternidade vai perecendo a medida que a sociedade moderna faz a travessia da imaturidade à autonomia, como nos diz Borges em seu conto Ruínas Circulares: “No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou” (BORGES, 1940 pág. 502). O conto aponta que todo sonhador (criador) foi ou é sonhado por alguém num ciclo infinito. A quebra deste ciclo ou a denúncia de sua inexistência é dado pela arte moderna. É o “grito da histérica” nas palavras de Lacan (BALDIOU, 2012 pág. 11) que denuncia aquilo que falta, é a histérica que diz que algo, ou seja, a arte escapa à compreensão.

Então, ao analisarmos a “Roda sobre Tamborete” de Duchamp (1913) não estamos analisando aquilo que platonicamente é belo, moral e útil. Não é belo, pois esta arte não corresponde a determinadas faculdades fisiológicas do agrado ou do gosto e assim se submeta a impressionismos. O belo visto desde a ótica de Kant surge como um prazer desinteressado, algo que não se mistura ao interesse. Não, a figura estética da roda e do banquinho não corresponde ao belo clássico transcendental. Dela foge o expectador burguês desinteressado que não a fará de decoração por não corresponder a uma determinada expectativa. Também não se coloca como disse Stendhal: “uma promessa de felicidade”, pois a apreensão sensível do objeto ao ceder lugar à experiência criativa do artista, colocará o expectador um lugar de desgosto (AGAMBEM 2012, pág. 18) e seguramente este tipo específico de expectador não se dará em grande número. A arte então propõe inesteticamente como dito por Badiou:

Por "inestética" entendo uma relação da filosofia com a arte que, colocando que a arte é por si mesma, produtora de verdades, não pretende de maneira alguma torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra a especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de algumas obras de arte”.

Trata-se então, de uma experiência desestabilizadora dos sentidos, o que uma peça como a “Roda sobre Tamborete” nos dá é um expor-se a uma metamorfose da significação no ato de estranhar em que a relação significante – significado são pervertidas[2]. 2: Apontamentos da aula de Teo. Lit. III 19/07/2013Roda de bicicleta, não é mais roda de bicicleta, tamborete não é mais tamborete, mas somente aquela peça, naquela amostra gera este desconforto abrindo assim sua significação. Nietzsche parece estar certo ao entender arte como “algo que não é uma experiência estética”.

A apreciação estética da arte moderna significa a implicação de oposições não apenas da verdade versus mentira. Não é que Duchamp minta em sua read made, pois se Nietzsche está certo em afirmar que a arte não é uma fraqueza da verdade, mas uma potência da mentira a capacidade desestabilizadora da arte, esta “ilusão” da inversão da arbitrariedade entre significante e significado é por demais perigosa á saúde da polis, a de Platão e de qualquer outra. Ironicamente será preciso uma vez mais expulsar o poeta/artista da cidade. Apreciar esteticamente é significa seguir o caminho se Íon, pois toda sua positividade em “saber” Homero diante de Sócrates transforma-se em negatividade:

E qual é a causa então Sócrates, porque eu não consigo prestar atenção quando alguém dialoga a respeito de outro poeta e eu sou incapaz de conjecturar algo digno de discurso e simplesmente cochilo, mas quando alguém se recorda de Homero imediatamente desperto, presto atenção e bem transito no que falo? (DIÁLOGOS DE PLATÃO, ÍON)

Íon tem o conhecimento, mas não a sabedoria. A beleza não é algo para ser contemplada desinteressadamente, como parece fazer Íon ela age, estimula a sensibilidade evocando assim uma experiência que não é a do expectador, a arte então é o uso livre da razão do indivíduo emancipado, ou seja, se a modernidade é a estética da ruptura o ato de romper se aproxima do realismo, isto é, do contemporâneo[3].3: Apontamentos da aula de Teo. Lit. III 24/05/2013

Assentado sobre o tamborete não está um homem, não uma mulher, criança ou pessoa. O próprio banquinho não foi esculpido por Duchamp. A roda está apresenta-se apenas em sua forma metálica, sem a borracha petroquímica do pneu. Metal e madeira, círculo e reta, por fim, roda que o que a fotografia não mostra, movimenta-se. O Estático reto e o círculo que gira, falo e vulva. Não se trata de metáfora, pois não há deslocamento de significados, há inversão. Não se trata de apreciação de uma beleza desinteressada, pois não há qualquer promessa de felicidade nessa peça. O que há é uma estética da ruptura, desconfortável e desestabilizadora. Na inversão entre significado e significante há uma lacuna inestética que da voz ao grito da histérica. Não à toa Duchamp inaugura um novo conceito de arte evocando novos paradigmas em que a originalidade se esfacela nas peças como um banco ou um urinol que não apenas já estão prontas, mas produzidas em série, ou seja, trata-se de uma peça original feita a partir de peças absolutamente ordinárias em que um urinol qualquer em um banheiro ou qualquer outro tamborete não será arte senão aquelas peças apresentadas pelo artista.

A arte moderna então possui em sua essência a pergunta: “isso é arte?”. Sem olhar pra trás, sem ar nostálgico oferecendo um conhecimento propositivo. Algo que traz do inexistente não ser para a existência do ser. Não é poético, pois não se trata daquilo que é memorável. Não é filosófico, pois não se trata daquilo que pode se adequar a um enunciado. A arte moderna não ilustra o mundo contemporâneo, ela propõe o mundo contemporâneo.

Ritual, de Sara Parnamby. s/data

Nesse ponto passaremos a observar esta imagem e para entendê-la precisaremos recorrer a Aristóteles. Se na transcendência platônica a ideia de corpo está ligada a identidade, unidade e imutabilidade, para imanência aristotélica corpo é algo que não guarda a individualidade razão pela qual o de vir é um fenômeno do corpo que é formadopor forma e matéria. É a razão que da forma ao corpo e tem forma tudo aquilo que pode ser mensurável. Substância é então aquilo que subsiste às transformações. Uma garrafa pode ser pintada e ainda será uma garrafa. Não à toa, para Aristóteles arte é um fenômeno do conhecimento em que a imita-se para conhecer. Para a arte Dada, o corpo surge não como uma máquina da consciência. Não é um replicante divinizado feito a “imagem e semelhança” de deus. Não é um conjunto de músculos, ossos e nervos. Este corpo esvaziou-se de sua significação para alçar voo junto à consciência, ou seja, emancipou-se da emancipação para significar algo na expressão do “ritual” artístico em que se coloca[4].: http://petcs.wordpress.com/2010/05/08/o-corpo-no-surrealismo/ Se a questão fundamental da arte moderna é perguntar: isto é arte, se a função artística é propor à contemporaneidade, se é colocar-se num ligar desconfortável aos sentidos demandando reflexão, a resposta inevitavelmente será sim é arte.

É possível que ainda não tenhamos visto todos os desdobramentos possíveis da arte Dada, mas seguramente, seja na literatura ou nas artes plásticas o público expectador da arte contemporânea parece cada vez mais diminuto por se tratar de uma experiência do desconforto, não obstante parece ser a arte contemporânea aquela que representa perigo à cidade e que por isso demanda ser expulsa. Talvez seja esse o aspecto mais saudável da arte dos nossos dias sua necessidade de remoção.

[FIM]

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NOTAS

1: Apontamentos da aula de Teo. Lit. III 5/04/2013 <<<

2: Apontamentos da aula de Teo. Lit. III 19/07/2013 <<<

3: Apontamentos da aula de Teo. Lit. III 24/05/2013 <<<

4: http://petcs.wordpress.com/2010/05/08/o-corpo-no-surrealismo/ <<<

REFERÊNCIAS

AGAMBEM, Giorgio. O Homem sem Conteúdo. Trad. Claudio oliveira. Sã Paulo SP. 2012 pp. 1726

BADIOU, Alan. Pequeno Manual de Inestética. Trad. Marina Appenzeller. Editora Estação Liberdade São Paulo SP, 1998. pp.11 – 43.

BORGES, Jorge Luis. Ruínas Circulares. Ficções. Trad. David Arregucci Jr. Cia das Letras, São Paulo SP 2012. As Ruínas Circulares pp. 499-503.

Lukacs, György. Teoria do Romance. Trad. Alfredo Margarido. Ed. Presença, Lisboa s/ data.

PLATÃO. Diálogos de Platão, Íon. http://www.consciencia.org/platao_ion.shtml

horses hotel: rédeas da salvação / patrick gert bange

Denn es handelt sich ja nicht darum, die Werke des Schrifttums im Zusammenhang ihrer Zeit darzustellen, sondern in der Zeit, da sie entstanden, die Zeit, die sie erkennt – das ist die unsere – zur Darstellung zu bringen. Damit wird die Literatur ein Organon der Geschichte und dazu – nicht das Schrifttum zum Stoffgebiet der Historie zu machen, ist die Aufgabe der Literaturgeschichte. Walter Benjamin[1].1: Pois não se trata de representar as obras da literatura [Schrifttum] em comparação com o seu tempo, mas de, no tempo em que elas surgem, elaborar a representação do tempo – o nosso – que elas reconhecem. Desse modo, a literatura [Literatur] será um órgão da história [Geschichte] e, além disso – não fazer da produção literária [Schrifttum] uma das disciplinas de história [Historie] é o dever da história da literatura [Literaturgeschichte]. [Tradução minha.] (1972, p. 290)

A peça Horses Hotel[2].2: Este artigo é, em boa medida, baseado em minha crítica sobre a peça Horses Hotel, publicada na Revista Viso – Cadernos de Estética Aplicada, Nº 13, jan-jun/2013, disponível em http://revistaviso.com.br/. Embora os dois textos partam da mesma base, chegam a conclusões diferentes., dirigida por Alex Cassal e Clara Kutner, esteve em cartaz no Oi Futuro do Flamengo, no Rio de Janeiro, de dezoito de abril a dois de junho de 2013. Assisti à peça nas últimas semanas, com o intuito de escrever-lhe uma crítica. Na quinta-feira seguinte ao último dia de apresentação, dia seis de junho, aconteceria a primeira manifestação em protesto ao aumento do valor das passagens de ônibus, em São Paulo. Escrevi a crítica ao longo do mês de junho. Aqui está o resultado.

I. Horses Hotel: o Império das Sensações

O tempo é chave decisiva na peça Horses Hotel. O espetáculo se inicia com o gesto de uma atriz, Ana Kutner, que divide o palco, no escuro, com mais três atores, Renato Linhares, Emanuel Aragão e Roberto Souza. Ela, que encarnará a máscara fixa de uma poeta, liga a luz de um retroprojetor, diante da qual diz suas primeiras palavras. Essa cena inaugura o primeiro, e também fundador, tempo da peça. Fundador porque instala o final da linha de uma colcha de retalhos, isto é, o ponto, in ficção, cronologicamente mais avançado entre os vários pontos que serão evocados à cena, pois os retalhos vão sendo encenados, um a um, emendados um no outro, ao longo da peça. Nesse último ponto, a poeta é, dentre os principais personagens reconhecíveis do enredo, a única sobrevivente de um projeto estético. Ela fala a respeito “dele”, um fotógrafo, com quem tivera uma relação amorosa e com quem dividira um quarto no Horses Hotel:

Aquela parede [pausa] era coberta de fotos. Era o nosso santuário. Com todas as nossas divindades reunidas. Todos aqueles que nos protegiam e inspiravam. A cama tava sempre desarrumada. Passávamos muito tempo na cama. Comendo, dormindo, trepando, lendo, escrevendo, trabalhando. (2013)

Depois da fala, o ator, que fará o fotógrafo, deitado na cama, quebra o tempo em que a poeta está, estourando a bolha com uma fala que a convida a voltar à cama. Nisso, a poeta se junta a ele, já nesse segundo tempo. Ele pede a ela que conte uma história, ao que se seguem os primeiros flashes narrados: uma história com Janis Joplin, outra com Andy Warhol, outra com uma menina que morreu de leucemia. Como considera essa última história horrível, ele a provoca, “vai, garoto encontra garota, noite de verão”. Ela completa, “noite de verão de uma segunda-feira”, ao que se segue mais um tempo da peça. A plateia, ao longo da peça, passa diante de um álbum de fotos polaroides composto pela poeta, depois da morte do fotógrafo. O método para o preenchimento desse álbum é o de alguém que recorta a linha do tempo, distribuindo pedaços, de maneira mais ou menos arbitrária, e os cola sobre a superfície do palco. O que justifica essa percepção é o fato de que, próximo ao fim da peça, a voz da poeta retorna à cena, no mesmo tom, dizendo, “tínhamos dezessete anos. Às vezes, saíamos pra caminhar à noite”, uma fala-relâmpago em que vejo a autora do álbum retornar ao tempo “presente”, o mesmo do início da peça. Não fosse pela cena final, bem próxima dessa fala, quando a poeta mostra a sua arte num show de rock – em que canta a música Horses, de Patti Smith, e encarna o personagem Johnny de sua letra, no texto mais imagético da peça – não fosse pelo show, talvez a peça começasse e terminasse com o tom melancólico da poeta-narradora, ou com um beijo (de despedida?) entre ela e ele. Certamente pela defesa de uma arte que procure sentido na sensação, a peça termina com o show, com muita música e performance, e não com a angústia da poeta, cuja afinidade com a morte põe em cheque os acontecimentos anteriores ao momento da primeira fala da peça. Aqui é possível estabelecer uma relação entre a poeta e Emma Bovary, do romance de Flaubert. Erich Auerbach, no clássico Mimesis, argumenta que Emma certamente experimenta sensações, mas quem se encarrega de elaborá-las linguisticamente é o narrador. Faltam a Emma Bovary “a agudeza e a fria honestidade que resulta de uma prestação de contas consigo mesmo” (2009, p. 434). E à poeta, o que falta?

Pouco antes da fala que sublinhei, “eu tinha dezessete anos”, a morte do fotógrafo estava próxima. Ela diz, “tô terminando um disco novo”, ele, “cê acha que vai dá tempo d’eu ouvir?”, e ela, “detesto essa história de você morrer antes de mim”. As primeiras palavras da peça dão um sentido terrível a esse diálogo, porque anunciam os restos mortais de um posicionamento estético. Por essa via crítica, a peça deve ser entendida como o esforço da poeta em revisitar as experiências vividas pelos dois, ainda que de maneira não-cronológica e desordenada. O álbum cênico, isto é, o palco, coloca esse esforço em movimento, diante do público. Resta perguntar em que a poeta se refugia, depois da morte do fotógrafo. Duas questões, nesse sentido, parecem relevantes: a paixão e a arte, indissociáveis:

Arte é como estar apaixonado, é esperar alguém chegar, é acordar ao meio-dia e não saber que dia é hoje, é começar uma vida junto. [...] Arte é ter insônia, ficar fumando na varanda e ver o mundo mudando junto com o letreiro luminoso. É como ver pela janela aberta do prédio, do outro lado da rua, a beleza de um casal adolescente que já fez as malas, que já fez amor e agora dorme. (2013)

Arte para a poeta, como para a peça, é, antes de tudo, uma experiência a que estamos submetidos. Curioso pensar que arte é “acordar ao meio-dia”. Acordar tarde também significa ter ido dormir tarde, também significa ter experimentado da vida sensações que não cabem, pelo menos no tempo fora da peça, por exemplo, num regime profissional, que nos obriga a acordar às seis da manhã, ou antes. Mas o tempo da ficção é outro, outro país: o aquecedor do cenário o denuncia. Falo do tempo fora da peça porque também isso compõe a opção estética que a determina: por que montar um cenário que nos transporta radicalmente para um contexto alheio ao nosso? Mera fantasia? De qualquer maneira, para os artistas da peça, arte é transfiguração de uma realidade dada, a do “letreiro luminoso”, em outra, a princípio mais visceral, porque mais íntima do corpo. O exemplo categórico é o corpo nu de um personagem chamado Theo, o michê que foi um amor do fotógrafo e da poeta. No palco, o corpo nu implora, “me fotografa, me fotografa, me transforma numa obra de arte”. O que é interessante perceber é que o corpo nu fotografado daria a Theo, que agora, na peça, está sozinho, uma razão para estar vivo. Portanto, a um mesmo tempo, o apelo ao corpo é uma promessa de salvação e um aprisionamento. O modo como o ator Emanuel Aragão interpreta a loucura de Theo dá bem a medida dessa ambivalência.

O fotógrafo, mais à frente, pergunta, “tá bom, arte é como estar apaixonado, mas como transcender o conceito e se tornar arte?”. Em outros termos, se os limites da arte estão no plano da ação sensível (se apaixonar, acordar, fumar, ver, fazer amor), a questão é: como fazer arte? Ou: o que é arte? A solução da peça sugere um atravessamento. Diz a poeta, “é como atravessar portas, é como a música do Doors, break on through to the other side”, então, Theo, “e pra atravessar pro outro lado, basta passar por uma porta”, e o fotógrafo completa:

Uma porta não é suficiente, você tem que atravessar um mar de portas. Tem que ir além. Além do espelho, além do reflexo, além do além. Ninguém tinha feito, alguém precisava fazer. O nome disso é vanguarda [a plateia ri]. Alguém precisava enfiar um cabo de vassoura no ânus da arte. (2013)

“Um mar de portas” conjuga com “um mar de possibilidades”, dois mares que nos chegam aos ouvidos pela boca do fotógrafo, para quem arte é como penetrar um “cabo de vassoura no ânus da [própria] arte”. Assim, a arte está altamente associada ao coito e mesmo ao estupro. Foi com esse mesmo cabo de vassoura no ânus que a inquisição espanhola assassinou Garcia Lorca. A associação não é gratuita. Dizer que a verdadeira arte é “ir além do além”, e que fazer arte é “enfiar um cabo de vassoura no ânus da arte” constituem os moldes de uma estética submetida a apelos sinestésicos, estranhamente associáveis às violências da inquisição espanhola, como das ditaduras modernas: em todos esses casos, a faceta animal do humano, comum a toda a gente, está no comando. É possível nomear isso como um triunfo sobre da faculdade pensante, bem como sua banalização.

Qual, então, o saldo da busca da poeta, ao revisitar seu passado com o fotógrafo? E qual o saldo da sua reflexão estética? Temos, de maneira mais ou menos objetiva, um dramaturgo, amor da poeta, que desaparece como um cowboy, Theo morto, Sam morto (o último dos amores do fotógrafo, a quem, parece, passa aids) e o fotógrafo morto. Há uma passagem que parece ilustrar o lugar que sobra para a poeta, logo depois que o dramaturgo a deixa: por volta dos 38 minutos de peça, ela afirma, em tom mais uma vez parecido com o do início – o tom da melancolia, isto é, da morte presentificada – “tô sozinha. Tô batendo a cabeça na parede do lado do quarto. De madrugada”. Nisso, a poeta está no centro do palco, iluminada, de novo, pela luz do retroprojetor – esse artifício que parece funcionar como o projetor propriamente de um passado mal digerido. Um ator vai limitando a luz, com pedaços de papel, até que sobra apenas o olho da poeta, encurralado na escuridão. O saldo, então, é o de alguém que procurou estar sujeito a uma experiência e, depois que ela acaba, sofre. Eis um resumo do resultado da procura da poeta:

Eu não quero ser entendida. Eu quero que as pessoas sintam, quero entrar debaixo da pele das pessoas como uma larva e deixar lá meus ovos. (2013)

Para voltar a Flaubert (2007), os saldos da busca da poeta e da de Emma Bovary são bem semelhantes, já que também Emma fica cercada de mortes: a do dinheiro de seu marido, a da possibilidade de um amor autêntico (o que é um amor autêntico?), a da capacidade de sair da própria lama. Uma diferença central, entretanto, é que Flaubert mata Emma. Quando Auerbach delata a chave da interpretação de Emma como a de uma personagem que não alcança a manifestação linguística de suas angústias, ele justifica também a necessidade literária de sua morte, que é, ao longo do Madame Bovary, uma morte sempre anunciada. Sendo assim, a deixa do crítico antecipa uma compreensão de Marcel, narrador de Em busca do tempo perdido, de Proust (1995), esse narrador que, segundo Deleuze, em Proust e os signos, parece ter os seus esforços voltados à elaboração do aprendizado de tornar-se escritor (cf. 1987, p.3-4). Ser escritor, concluo, é o produto, nas palavras de Auerbach, da “prestação de contas consigo mesmo”, que, se falta à Emma Bovary, é uma das possíveis colunas vertebrais de Em Busca do Tempo Perdido. Mas que tem isso a ver com Horses Hotel?

Jeanne-Marie Gagnebin, no ensaio O Rumor das Distâncias Atravessadas, que não deixa de ser um desdobramento da deixa deleuziana, compara Jean Santeuil e Em Busca do Tempo Perdido, dois romances de Proust, sendo o primeiro (inacabado) anterior ao segundo. Jeanne-Marie se refere à sensação despertada pelo gosto da célebre madeleine:

Para ele [Proust], não se trata de escrever um romance de impressões seletas e felizes, mas sim de enfrentar, por meio da atividade intelectual e espiritual que o exercício da escrita configura, a ameaça do esquecimento, do silêncio e da morte. Em outras palavras: não é a sensação em si (o gosto da Madeleine e a alegria por ele provocada) que determina o processo da escrita verdadeira, mas sim a elaboração dessa sensação, a busca espiritual do seu nome originário, portanto, a transformação, pelo trabalho da criação artística, da sensação em linguagem, da sensação em sentido. (2006, p. 154)

As palavras de Jeanne-Marie dão margem ao entendimento de que a estética das sensações da poeta, como da peça, faz com que essas mesmas sensações permaneçam a meio caminho do sentido, justamente por advogar uma arte da “sensação em si”. Por isso, a fala inicial da poeta não alcança uma perspectiva de futuro, como acontece com Marcel, que pode se tornar escritor depois dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. Ela, nesse sentido, está diante de um álbum triste e cercada de silêncio, paralisada diante de distâncias não atravessadas e, paradoxalmente, de um mar de portas. Por que um mar de portas? Por que tantas possibilidades? A plateia está diante de uma estética sintomática. O apelo, o exagero não estão no lugar de uma opção, mas à mercê de um não-sentido, ou de um sentido-quase, que constitui, em si, uma busca, ou uma tentativa, é verdade. Mas uma tentativa que gozou fora de uma vagina fértil.

II. Junho de 2013: Música para os Olhos

O objetivo deste artigo é flagrar em que medida a peça Horses Hotel discursa sobre esse tempo tão específico na história recente do Brasil: as manifestações políticas de Junho de 2013. As duas maiores dificuldades são que, em primeiro lugar, não se está remexendo uma obra que contenha uma mínima fortuna crítica, salvo as produzidas pelo jornal e por um ou outro blog de crítica teatral; em segundo, ainda não há material digerido sobre os acontecimentos do mês de Junho, à exceção de notícias. O que há é, pode-se dizer, o “calor do momento”. Ao mesmo tempo que isso instiga o crítico a um risco, sem dúvida, prazeroso, também o lança para dentro desse outro: o da tagarelice.

A peça Horses Hotel, desde o título até o final apoteótico, quer vestir as roupas de uma revolução. Como se viu, de uma revolução patrocinada, sobretudo, pela sensação, que não teme alcançar as margens da violência. A estética das manifestações de Junho, que estavam na incubadora enquanto a peça estava em cena, dialoga com essa mesma estética. Examine-se: o que a revolução da peça e a revolução, ainda disforme, de Junho têm em comum? Talvez a primeira questão seja a relativa à destruição de patrimônios pelos manifestantes, certamente um desenho preciso, isto é, a representação precisa de uma indignação, de um ódio. Refiro-me, aqui, aos grupos de mascarados, que, em geral, utilizavam o término das manifestações para exercer o tal “vandalismo”, de que falavam os jornais, simploriamente. Há aí uma revolução desejada, simbolicamente alcançada no triunfo às arquiteturas: àquelas que seguem a lógica das vitrines, como as dos bancos e das lojas de rua; à arquitetura de céu aberto, com seus postes de orientação e seus monumentos; à arquitetura do poder instituído, como os prédios oficiais das câmaras dos deputados, o Palácio do Itamaraty, o Palácio Guanabara no Rio etc. A escrita dos manifestantes parecia querer reescrever a história do Brasil no sentido mais literal e imediato possível, quer dizer, para reescrever é preciso apagar e para apagar é preciso quebrar o que está posto, transformá-lo em coisa disforme. A sensação quer ser satisfeita esteticamente. A violência às coisas é um meio de ser artista em Junho de 2013: todos tiveram suas obras publicadas.

O que difere os manifestantes mais literais dos que dominam um poder maior de elaboração, nesse sentido, é apenas este: a sua estética transmite e representa talvez o mesmo ódio, porém sua escrita é mais comportada: um cartaz, uma camisa, quem sabe um nariz pintado e, por fim, uma foto no Facebook: eis aí um modo de ser revolucionário civilizadamente. E eis aí o desejo de publicar, em rede (social), a sua obra de arte: a sensação de ser visto, de ter a própria obra lida, fotografada. Note-se como Theo, personagem da peça, o michê, representa esse desejo. Note-se também a peça reconhecendo o tempo em que ela se dá a ver. Repito: “o que é interessante perceber é que o corpo nu fotografado daria a Theo, que agora, na peça, está sozinho, uma razão para estar vivo. Portanto, a um mesmo tempo, o apelo ao corpo é uma promessa de salvação e um aprisionamento”. Daí se extrai a percepção de que tanto os que quebram, põem fogo, picham, como os que voltam cedo pra casa são movidos, por essa via, por um mesmo apelo, em última análise, visual. As manifestações de Junho de 2013 são obras para os olhos. Talvez por isso os jornais, impressos, online ou televisionados, souberam se nutrir tão bem delas. Mas não sabem se nutrir de um filme de Godard, ou de um romance de Proust.

A peça Horses Hotel é uma história fotográfica. Por isso, mais do que falar de um tempo que precisa de uma revolução, ela fala de um apelo à sensação visual, que encontra terreno fértil na fotografia: o personagem Theo, por isso, é o personagem-chave. Ele é o amor tanto do fotógrafo, como da poeta e, não à toa, é quem implora para ser fotografado, logo depois de se despir no palco. Podemos dizer que a poeta e o fotógrafo, por essa via, constituem, como personagens, sintomas do que Theo representa. Mas o fundamental, aqui, é o relâmpago desse achado: a peça, como que por acidente, pela via crítica que se construiu, surpreende, isto é, flagra talvez, como em uma fotografia, entretanto elaborada ao longo deste artigo, uma das faces transitórias do nosso tempo: queremos ser vistos por um Deus morto, esse que nos negou o capricho de um sentido que nos fosse exterior. Que houvesse quem contemplasse responsavelmente nossa obra do reino mesmo dos mortais seria a nossa esperança última. Haja. Isso legitimaria o nosso esforço estético. Mas haja, além disso, essa busca, plena em dificuldades: nós queremos ser imagem: que seja, cada uma, dotada de linguagem, de sentido.

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NOTAS

1: Pois não se trata de representar as obras da literatura [Schrifttum] em comparação com o seu tempo, mas de, no tempo em que elas surgem, elaborar a representação do tempo – o nosso – que elas reconhecem. Desse modo, a literatura [Literatur] será um órgão da história [Geschichte] e, além disso – não fazer da produção literária [Schrifttum] uma das disciplinas de história [Historie] é o dever da história da literatura [Literaturgeschichte]. [Tradução minha.] (Walter Benjamin, 1972, p. 290)<<<

2: Este artigo é, em boa medida, baseado em minha crítica sobre a peça Horses Hotel, publicada na Revista Viso – Cadernos de Estética Aplicada, Nº 13, jan-jun/2013, disponível em http://revistaviso.com.br/. Embora os dois textos partam da mesma base, chegam a conclusões diferentes. <<<

REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2009.

BENJAMIN, Walter. „Literaturgeschichte und Literaturwissenschaft“. In:______. Gesammelte Schriften III: Kritiken und Rezensionen. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1972 (1991).

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary: costumes de província. Trad. Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

HORSES HOTEL. Direção: Alex Cassal e Clara Kutner. Rio de Janeiro, de 18 de abril a 2 de junho de 2013.

PROUST, Marcel. O tempo redescoberto. São Paulo: Editora Globo, 1995.

a sombra de berenice sobre egeu: o melancólico fantástico em edgar allan poe / willian cunha de freitas

Estudar os aspectos melancólicos em Edgar Allan Poe é uma tarefa tentadora, uma vez que seus textos são repletos de elementos que remetem a esse estado tão comum na modernidade. Entretanto, é necessário compreender de que forma a melancolia “Poeiana” funciona como elemento da narrativa para a criação do efeito desejado pelo autor. Em seu ensaio A Filosofia da Composição, Poe afirma que prefere começar um texto pela, em suas próprias palavras, “consideração de um efeito”. Para fins de análise, assumimos então que esse efeito ao qual o autor considerou, em seu conto Berenice, seja o melancólico.

Será realizada aqui uma leitura cruzada entre esse conto de Edgar Allan Poe, e o ensaio de Freud chamado Luto e Melancolia. O último não se relaciona diretamente ao primeiro, além de ter sido escrito aproximadamente oitenta anos após a publicação do conto. Apesar disso, em nossa pesquisa, identificamos elementos nesse ensaio clínico próximos à melancolia literária de Allan Poe.

O narrador do conto em questão chama-se Egeu, esposo da personagem que dá título ao livro. Esse é acometido por uma enfermidade que o atrapalha em toda sua vida, que consiste numa obsessiva fixação a objetos e coisas frívolas. Entretanto, há dificuldade desse narrador em definir a doença, como podemos observar nos trechos a seguir do conto analisado:

Essa monomania, se devo assim chamá-la, consistia numa irritabilidade mórbida daquelas faculdades do espírito denominadas pela metafísica como “faculdades da atenção”. (POE, Edgar Allan: In: Berenice; p. 134)

E em um momento anterior no texto:

Minha própria doença – Pois me fora dito que eu não poderia dar-lhe outro nome –, minha própria doença [...]! (POE, p.134)

A definição de melancolia, em Freud, é complexa. Em seu ensaio ele busca uma maior compreensão do que é essa neurose em si. Dentre as definições dadas pelo autor para esse estado, destaco o trecho em que ele a caracteriza como “um desanimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo”. Destaco também a íntima relação da melancolia com a morte, com a perda de um objeto de desejo.

Poe apresenta a doença de sua personagem em termos próximos aos que Freud descreveria dali a alguns anos. A Egeu só interessam os livros da biblioteca de seu pai, e as coisas que o consomem a atenção são frívolas e inúteis. Seus interesses são internos e voltados para si. As atividades que o interessam são reclusas e individuais. A dita “monomania” dessa personagem se trata, então, dessa incompreensão e incapacidade de nomear seu próprio problema. Essa “doença” não é vista com bons olhos por Allan Poe, como podemos observar nesse texto. Isso já é notável a partir do segundo parágrafo do conto, entretanto é mais claro observar no trecho a seguir:

A excessiva, ávida e mórbida atenção assim excitada por objetos triviais em sua própria natureza não deve ser confundida, a propósito, com aquela propensão meditativa [...] do agrado das pessoas de imaginação ardente. (POE, p.135)

É interessante notar que, ao contrário de como é idealizada no romantismo, a melancolia aqui não é apresentada em nenhum momento como sendo vantajosa para a personagem. Até próximo à publicação do ensaio de Freud, esse estado era visto de forma positiva para a criatividade. A partir de então, com esse autor passando a tratar como necessária a discussão desse tema e propondo formas de trata-lo, o senso comum passou se modificou.

O cômodo da biblioteca tem grande importância para a narrativa. Além de um local de reclusão, também é onde se desenrola grande parte das cenas do conto. A biblioteca é efetivamente um ambiente de ganhos e perdas para a personagem. Um local de começo e Fim. Cito Allan Poe: “As recordações de meus primeiros anos estão intimamente ligadas àquela biblioteca e a seus volumes. Ali morreu minha mãe. Ali nasci” (POE; p.132).

É nesse mesmo local onde ocorre o último encontro em vida entre Berenice e Egeu; também nessa biblioteca o narrador atenta pela primeira vez para os dentes da personagem que dá título ao conto. Dentes esses tão importantes para a narrativa, e que trarei à discussão mais à frente.

Segundo Freud, a melancolia consiste na incapacidade de nomear o objeto perdido pelo sujeito. Por isso, podemos analisar hoje, o quanto essas perdas de Egeu são significativas na construção desse efeito melancólico. Tanto sua mãe (figura familiar também muito importante nos estudos de psicanálise) quanto Berenice o “abandonam” nesse cômodo tão icônico para a personagem.

[...] a libido livre não se deslocou para um outro objeto, e sim se retirou para o ego. Lá, contudo, ela não encontrou um uso qualquer, mas serviu para produzir uma identificação do ego com o objeto abandonado. Desse modo, a sombra do objeto cai sobre o ego, que então pôde ser julgado por uma determinada instancia como um objeto, como o objeto abandonado. (Luto e Melancolia. FREUD, Sigmund; p.133)

Aqui então podemos ver o que, para Freud, ocorre após a perda e por que o sentimento melancólico se dá.

Aproveitando essa citação, destaco um momento do conto em que Allan Poe, também utiliza a figura da sombra para definir o sentimento de Egeu acerca da perda de sua mãe e dos acontecimentos a serem narrados mais à frente em seu texto, mais particularmente a morte de Berenice.

Há [...] uma lembrança de forma aérea, de olhos espirituais e expressivos, de sons musicais embora tristes; uma lembrança que jamais será apagada; uma reminiscência parecida a uma sombra, vaga, variável, indefinida, instável; e tão parecida a uma sombra, também, que me vejo na impossibilidade de livrar-me dela enquanto a luz de minha razão existir. (POE, p. 133)

Observamos aqui essa incapacidade de nomear o objeto perdido, já comentado anteriormente, e também a presença da imagem da sombra. Muito usada em Edgar Allan Poe, particularmente no conto em questão.

O enredo do conto começa a se encaminhar para a conclusão quando Berenice adoece profundamente e começa a definhar até o seu momento final. Egeu, acometido por sua doença, fixa todas as suas atenções nos dentes de sua esposa e passa dois dias inteiros dentro da biblioteca pensando somente nisso. Ao fim desse período ele recebe a notícia da morte de Berenice que, em seu leito de morte, encontrava-se com os dentes à mostra. Nesse momento do texto há uma lacuna, uma hesitação, e não podemos compreender com clareza os acontecimentos entre a visita de Egeu ao leito de morte de sua amada e seu retorno à biblioteca onde ele se encontrará com todos os dentes dela em uma pequena caixa.

Tzevetan Todorov, em seu ensaio “Os limites de Edgar Allan Poe” define o fantástico da seguinte forma:

[...] o fantástico nada mais é do que uma hesitação prolongada entre uma explicação natural e uma outra, sobrenatural, que concerne aos mesmos eventos[...]. (TODOROV, Tzevetan. In: Os limites de Edgar Allan Poe; p. 151)

Não podemos definir o que levou a personagem ao túmulo de Berenice. Não há efetivamente a narração dos acontecimentos desse momento, apenas a descrição de um criado que não testemunhou todos os acontecimentos e apenas ouviu gritos que futuramente no texto saberemos serem os da defunta enquanto Egeu retirava seus dentes para guardar consigo.

Esse elemento fantástico na narrativa é interpretado por nós como a representação da impossibilidade de realizar o luto da personagem. Aqui observamos a incapacidade de abandono do objeto perdido. E, tratando-se de um conto de horror, o fim é perturbador como o esperado.

Concluo destacando o quanto a melancolia é um tema moderno ainda em discussão na atualidade. A Literatura vem representando há muito esse estado de maneiras diversas. Entre tantos autores que escreveram textos com esse tom, Edgar Allan Poe se destaca como aquele que é essencialmente melancólico, pois sempre representa a perda da segurança do eu em seus contos.

Utilizando as palavras de Todorov: “Poe não é, portanto um ‘pintor da vida’, mas sim um construtor” (TODOROV; p. 161). Um construtor da Literatura.

REFERÊNCIAS

FREUD, S. Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

POE, E. A. Berenice. In: POE, E. A. Histórias Extraordinárias. São Paulo: Companhia de bolso, 2009. p. 126-142.

POE, E. A. A Filosofia da Composição. Benfazeja Revista. Disponivel em: . Acesso em: 25 set. 2013.

TODOROV, T. Os limites de Edgar Allan Poe. In: TODOROV, T. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 305.

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canto de uma manifestação / marina albuquerque

Computador, computador... Será que se esqueceram de me chamar? Não é possível, eu participei de todos os grupos de discussão na internet e sugeri o trajeto a ser feito. Até ajudei a criar a logo que foi desenhada em diversos cartazes, depois de exaustivas reuniões a distância. Não, não fariam isso comigo. Como ninguém veio me mandar uma mensagem? Estou logado desde a última madrugada, tudo bem, não me deslogo nunca, não vou me enganar. Da janela tudo parece normal. A banca de jornal daquele português, cujo nome sempre esqueço, está aberta. Gosto de lá, vende revistas que não encontro por aqui e, acima de tudo, livros - muitos livros por um preço muito bom. Uma senhora sai da padaria com um saco maior do que pode carregar, andando de maneira preocupada na calçada, como que esperando ser assaltada ou ainda o pior; um grupo de adolescentes volta para casa depois de mais um dia de escola e passa sem perceber por um mendigo que, a essa altura do dia, já desistiu de pedir moedas e contabiliza os parcos lucros; uma moto atravessa o sinal amarelo quase vermelho a oitenta por hora. Tudo normal.

Gosto de observar as pessoas na rua, vivendo a própria vida. Cada uma é um universo cheio de complexidade e mais profundido do que a superfície simbólica deixa notar. Porém, apenas me agrada ver o mundo – mesmo que seja uma parcela ridícula dele, é o meu mundo – acontecendo a distância, como se eu não estivesse inserido nele. Sim, escolho ser enganado por mim mesmo, mas não consigo de outra maneira; ver que faço parte e sou mais uma engrenagem dessa estranha máquina heterogênea me apavora.

Atualizo a página mais algumas vezes e nada. Isso não é comum. Já faz meia-hora que ninguém me manda uma mensagem. O que será que estou perdendo? O barulho na rua não é normal, principalmente para o início da noite de uma quinta-feira. Por que a Kátia ainda não foi embora? Ela até já passou minha roupa, não deveria continuar aqui. “Não dá pra sair agora, ouvi no rádio que a polícia pediu pra ninguém ir pra rua.” Malditos, então é verdade, está acontecendo. Ouço gritos, mas não identifico o que dizem. Ponho a cabeça para fora da janela e percebo alguma coisa que se anuncia como algo que nunca vi, mas ainda assim me enche de esperança. Aparentemente por obra divina, uma multidão se materializa em frente aos meus olhos. Eles entoam cantos anacrônicos com críticas ao capitalismo e clamam por liberdades, diversas delas. Os cartazes são incontáveis, vão desde uma piada qualquer a respeito de uma celebridade até a exigência de renúncia do governador. Respiro a fumaça dos fogos e o protesto, sinto um pouco mais de vida. É a primeira vez que vejo um, como podem pessoas desconhecidas e cantos nunca antes ouvidos fazerem brotar instantaneamente uma esperança ingênua em estar aqui, nessa cidade, nesse país? Tenho vontade de descer, juntar-me a eles, abraçar cada um e gritar ao seu lado, como estava programado que faria.

Poderia ser a elegia de um futuro indesejado do qual parecemos não ter escapatória. Porém, um barulho a mais é acrescentado à multidão. Um som austero, seco, duro, amedrontador. Stravinsky teria composto uma outra sagração ouvindo estes passos. Os coturnos gemem ao beijar o chão, sem perder o ritmo. São um metrônomo para a movimentação das pessoas - quanto mais curto é o intervalo entre um passo e outro, sabemos que mais rapidamente todos devem se mover. Pelo menos eu sei ouvindo aqui do meu quarto. E como num sobressalto de uma composição do russo, o que era calmaria e serenidade - com crianças nos colos dos pais e adolescentes irradiando as cores do Brasil nas bochechas – se transforma em tensão e violência.

Todos seguem o roteiro desta tragicomédia ao pé da letra. Como que ensaiados à exaustão, ninguém foge ao seu papel. O manifestante obviamente manifestava, clamava por direitos iguais, bradava por respeito à constituição. O policial, estático, ouvia impávido as exigências e até um impropério aqui, outro ali. Se continuasse assim, não teria problema, cada um estaria minimamente com os direitos assegurados. É aqui que o autoritarismo entra em cena, com o cair da noite, e assume seu protagonismo. O que eu vejo agora meus olhos também nunca tinham presenciado; apenas as histórias que meu pai contava de mais de 40 anos atrás continham características similares. A madeira se moldando nas costas de um jovem, olhos aterrorizantemente arregalados que não veem nada, um balé de pernas dentro de uma névoa que até parece bonita, iluminada somente pela luz de alguns postes, tudo isso não me é estranho, já fazia parte do meu inconsciente, mas surgiu como um tapa; a realidade me obrigou a parar de imaginar e a senti-la de alguma maneira.

De agora em diante, tudo acontece em câmera lenta. Um espetáculo bestial e repetitivo, à maneira de uma bela composição minimalista. Os personagens continuam os mesmos, mas as posições foram invertidas. Quem se sentiu intimidado agora ataca, sob o pretexto de manter a ordem pública, e quem atacava só busca uma rota de fuga. Impossível saber quem atirou a primeira pedra ou a primeira borracha, o fato é que tudo acabou; a manifestação seguiu seu curso, caminhou a passos infantis e chegou à desilusão da vida adulta. Alguns ainda bradam contra o sistema, se dizem injustiçados, pedem o fim dos fardados, nada adianta. Queimam lixo, fazem barricadas que lembram a França de 1830, sentem o frio das algemas nos pulsos.

Estranhamente meu coração não acelera, vejo tudo nitidamente e com uma lucidez que não imaginava ter. Saio na janela, dou meia volta, a tela do computador ilumina meu rosto.

[FIM]

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para onde nos levarão estas ruas? o sentido das manifestações que tomaram o país e o mundo / diego braga

As assim chamadas Jornadas de Junho literalmente incendiaram as ruas das grandes cidades brasileiras. A camisa no rosto substituiu a camisa da seleção como símbolo "nacional" nas manchetes sobre o país do futebol das páginas da mídia internacional. Isso, em plena Copa das Confederações. Os adeptos confessos ou disfarçados do petismo diziam que se tratava de uma "armação da direita", discurso diante do qual os mais desesperados chegaram a temer um golpe militar tal como os maias deviam temer o ano de 2012. A cúpula do PT no governo, porém, fazendo o velho e onipresente cálculo eleitoral, bem que tentou ficar em silêncio, mas não pôde simplesmente repudiar tamanha expressão política. Era preciso fingir que estava e que sempre esteve "do lado do povo". Melhor dizendo: que aquele povo revoltado estava do seu lado, estava comemorando o Brasil de mentira que aparece nas propagandas do governo. Assim, tentou, sem sucesso, convencer a todos de que os milhares de jovens e trabalhadores nas ruas protestavam porque "estavam satisfeitos e queriam mais", conforme disse a presidenta em discurso. De uma inverossimilhança que beirou o ridículo.

Já a direita, com os tucanos e as organizações Globo à frente, inicialmente criminalizou, como de costume, os protestos. Logo depois, derrotada pelo apoio expressivo às manifestações, tentou dar-lhes uma direção condizente com os interesses que defende. Neste esteio, dizia tratar-se de um "basta" um tanto abstrato, como se as ruas reivindicassem vetos a Projetos de Emenda Constitucional e se colocassem contra a corrupção. Só a do PT, é claro. Como se as ruas apenas reproduzissem a inócua parlapatice das câmaras alta e baixa.[1].1: De fato, a grande discrepância que se verificou entre as pautas políticas espontâneas das manifestações e os temas oficiais discutidos nos parlamentos como se fossem prioridades são uma mostra do abismo que existe, historicamente, no Brasil, entre a sociedade civil e o Estado. Esta diferenciação entre as classes mais proletarizadas se expressa mediante uma identificação dos trabalhadores e excluídos com um “nós” e dos representantes políticos – quaisquer que sejam as legendas – com um “eles”. Numa dialética bem esclarecida por CHAUÍ (1986), isso é tanto uma das manifestações como uma das razões do autoritarismo extremo do Estado no Brasil e tem raízes históricas no processo mediante o qual a democracia e a República se constituíram no país desde as origens como uma manobra nas alturas que recolocava a subserviência do Brasil no cenário do capitalismo internacional (SAES, 1985). Tanto que o fechamento destas estruturas formais de democracia em meados do século XX no Brasil e na América Latina também atendeu à manutenção da submissão política e econômica (DREIFUSS, 1981). Também na abertura democrática dos anos 80, embora a participação das greves e das lutas sociais tenham sido decisivas, as classes dominantes em acordo com os militares, no Brasil, mais uma vez se anteciparam ao movimento (SADER, 1990), num lance digno do príncipe de Falconeri, para evitar seu fortalecimento e cooptar suas lideranças, mudando tudo para que tudo permanecesse como estava. Estas pautas estavam lá, sim, sobretudo por influência da própria grande mídia, que tentou dirigir os protestos contra o governo, mas não contra o modelo econômico e político. Ou seja, quis nos convencer de que os problemas reais do Brasil não tinham a menor ligação com as mazelas do capitalismo periférico: exploração, baixos salários, miséria, fome, concentração fundiária e de renda, caos de saúde, péssima educação, falta de moradia, e desemprego, tudo que foi se acumulando até que vinte centavos de aumento na passagem de um transporte público precário foram a gota que transbordou o cálice do sofrimento[2].2: “Eis o segredo de polichinelo: as massas tomaram as ruas a fim de exigir o cumprimento daquilo que, em 1988, foi prometido pela Constituição brasileira: o direito à saúde e à educação públicas, gratuitas e de qualidade; o direito ao lazer, à moradia e à mobilidade; o direito a um salário que garanta condições dignas de vida para todos. O governo federal sabe bem que o atual modelo não chegou nem perto de entregar o que foi encomendado. Mas, para manter-se no poder, ele procura capturar a indignação social, atribuindo-lhe outro sentido.” (BRAGA, 2013) Por isso a frase: "não é por vinte centavos!". Os vinte centavos foram o estopim que desencadeou a explosão de um material inflamável há muito tempo acumulado nas consciências de milhares de estudantes e trabalhadores. A revolta foi a erupção de contradições sociais agudíssimas existentes desde a origem de nosso país, mas que recentemente foram agravadas pelos governos tanto da direita, com Sarney, Collor e FHC, como da "esquerda", com os dois mandatos de Lula e agora o de Dilma. Esta geração que ora vai às ruas é a que sentiu na carne a mão pesada destes governos. Portanto, todos os que tentaram fazer parecer que os manifestantes eram seus aliados são, na verdade, seus inimigos.

A incapacidade de situar o fenômeno político das Jornadas de Junho tanto para o lado do petismo como para o lado dos tucanos pôs em evidência as limitações do discurso hegemônico acerca do que é política e de como os explorados e oprimidos podem participar dela.[3].3: Em uma fina ironia do processo histórico, as classes dominantes, através de suas duas principais legendas políticas que se alternam no poder, não puderam desta vez utilizar o tradicional argumento contra greves e outras manifestações, que é o de as acusarem de ser movimentos “com vieses ou direções políticas”. A degeneração da política tradicional, eleitoral, parlamentar e executiva, faz com que esse argumento crie repulsa na consciência das massas, que desconfiam de políticos. A classe dominante, com isso, transforma o seu próprio ponto fraco a seu favor: a desconfiança das massas em relação à política. É interessante notar que também aqui se manifesta o distanciamento entre a sociedade civil e o Estado, no Brasil. Então, as Jornadas de Junho, difíceis de localizar politicamente em alinhamento tanto com o PT quando com o PSDB, foram alvo de críticas da grande mídia e pelos defensores do governo com um argumento oposto: eram despolitizadas demais. Não tinham real objetivo a não ser a bagunça. Foi uma ótima cola para segurar o rótulo de “vandalismo”, pois, logo que se reconheceu ser impossível cooptá-las, as forças dominantes voltaram a condená-las, situação em que nos encontramos hoje e que continua a se aprofundar, no sentido da criminalização e da criação de leis de exceção. Afinal, PT e PSDB, com seus respectivos blocos de aliados, são os partidos que partilham eleitoralmente o poder, grosso modo, no Brasil. Quanto aos explorados e oprimidos – mais comumente chamados de "o povo" – a estes cabe participar neste jogo com o instrumento do voto. Pronto. É assim que se faz política numa "democracia". Basta apertar o botãozinho verde, vermelho ou branco. Como se as únicas alternativas políticas fossem aqueles que têm "viabilidade eleitoral" e só nos restasse escolher entre seis ou meia dúzia. Na nossa "democracia" é sempre assim: toda escolha é uma ilusão de liberdade. Você pode escolher comprar o carro X ou Y, mas não pode escolher ter um transporte público de qualidade para todos. Portanto, esta noção de que política se limita às eleições e à atuação legislativa e executiva dos eleitos está muito longe da verdade, tanto que o marasmo político de anos e anos de eleições que nada mudavam além das caras nos pronunciamentos oficiais foi quebrado radicalmente com a verdadeira política, a política que tem poder de mudanças, que em 15 dias conquistou não apenas o fim do aumento das passagens, mas o fim do décimo quarto salário de parlamentares e tantas outras coisas. As classes dominantes tremeram. Os palácios se calaram, confusos. "Vândalos, vândalos!", era o que as elites mandavam gritar seus bonecos de ventríloquo, os jornalistas da grande mídia. Assistimos à tevê ter de mudar sua linha, como que num passe de mágica, transformando os então "vândalos" em "manifestantes pela democracia". Aquela evidente política de verdade, que os formadores de consciência não ensinaram "o povo" a entender como política, como a política, estava ali, diante de todos. Tudo que se podia dizer, entre confusos jovens com bandeiras do Brasil e as estrofes do hino nacional de letra sempre tão obscura para a maioria, era: "o gigante acordou".

E é aqui, justamente neste ponto, que o fenômeno das Jornadas de Junho, tão positivo, tão oxigenador da vida e das consciências de um povo explorado e sofrido apresenta suas limitações. Elas não são pequenas. Felizmente, são plenamente superáveis. Somente o desenvolvimento das lutas atuais e o destino da interação entre seus agentes poderá nos dizer se esta onda vai atingir todo o seu potencial. Do contrário, a maré baixa virá antes de que se lave todo o lixo acumulado na areia, deixando-nos, em seu lugar, algum tesouro há muito naufragado. O gigante acordou. Está implícito, por tudo que se disse acima, que se reconhece, com maior ou menor clareza, do quê ele acordou. Resta, no entanto, a pergunta: para quê? O gigante acordou, mas para quê? Sua força é imensa, mas precisa ter direção. Do contrário, voltará a ter sono antes de cumprir todas as tarefas do dia ensolarado para o qual despertou. Em suma: de que vale despertar se não conseguimos nos lembrar dos sonhos que motivam nossas jornadas?

Ao longo da história, muitas vezes, não só no Brasil, os explorados e oprimidos despertaram. Deram os braços e juntos formaram o corpo deste gigante que é a força mais avassaladora da história. Por que ele despertou sem lembrar muito bem os seus sonhos? A amnésia atual tem raízes históricas. Durante o processo de luta contra a ditadura, com greves e manifestações de massa nas ruas, forjou-se uma ferramenta que então se cria poderosíssima: o Partido dos Trabalhadores. As manifestações de massa do fim dos anos setenta e início dos anos oitenta tinham um sentido claro, queriam democracia, anistia e diretas já. Lembravam-se do sonho, em seu despertar. Era preciso colocar um trabalhador no poder, como presidente, para tudo se transformar. Se conquistada a democracia, a liberdade verdadeira estaria demasiado próxima. Vê-la escorrer pelos dedos arruinou as esperanças de milhares. Para vencer as eleições, o PT teve de se transformar. Um partido com um programa oposto ao modelo de sociedade até hoje vigente no Brasil, o PT "das origens" era um partido que aterrorizava a classe dominante brasileira. Assim, ao longo da tenebrosa década de noventa, o PT foi se transformando, conquistando cadeiras no parlamento, prefeituras e cargos administrativos. Quanto mais ganhava espaço dentro do Estado, mais se acomodava a ele. Quanto mais se aproximava da posição em que poderia realizar o projeto para o qual foi criado, mais se distanciava deste mesmo projeto. Quanto mais poderoso se tornava dentro da sociedade brasileira, mais aparentando se tornava ao modelo a que pretendia se opor.[4]4: Conforme GARCIA (2011), num exaustivo estudo sobre as origens no movimento operário e a trajetória de incorporação ao Estado do PT, podemos identificar X vetores deste processo de degeneração: 1) Estratégia política essencialmente eleitoral de sua direção majoritária, a “Articulação” encabeçada por Lula; 2) Um programa essencialmente reformista e Estatista, apenas com alguns matizes socialistas, desde sua origem; 3) A progressiva perda da independência que ocorreu num complexo desdobramento em que, para ter êxito na sua estratégia eleitoral, o partido se viu obrigado a receber cada vez mais financiamento de setores burgueses (processo que foi lento, mas se intensifica a partir da segunda metade da década de noventa); 4) a burocratização dos movimentos sociais e sindicais sob sua influência através da cooptação de suas direções ao aparato que foi construído pelo partido em sua trajetória rumo ao poder. Até que o processo se completou, Lula chegou ao poder e muitos brasileiros choraram de emoção e, logo depois, de espanto, ao ver o líder operário abraçar Sarney, Collor, Maluf e até mesmo o mefítico George W. Bush. Embora os governos de Lula, e o de Dilma até agora, tenham gozado de boa popularidade segundo as pesquisas oficiais, o fato que é a realidade do Brasil que resultou de uma década de petismo é bem distante daquele sonho de uma sociedade justa, igualitária, com dignidade e liberdade para todos. O sonho ficou soterrado pelas migalhas dos programas sociais e do ligeiro aumento do salário-mínimo, insignificante frente ao aumento do lucro dos bancos e das grandes empresas.[5]5: “(...) é preciso distinguir o que foi o governo Lula das percepções que ele deixou. A sua popularidade oculta mais do que revela sobre a sua verdadeira natureza. O crescimento econômico entre 2004 e 2008 (…), recuperado com exuberância em 2010, foi inferior à media do crescimento dos países vizinhos, mas a inflação foi, também, menor. (…) reduziu o desemprego a taxas menores que a metade daquelas que o país conheceu ao longo dos anos 1990; permitiu a recuperação do salário médio que atingiu, finalmente, em 2011, o valor de 1990; aumentou a mobilidade social, tanto a distribuição pessoal, quanto a distribuição funcional da renda; garantiu uma elevação real do salário mínimo acima da inflação e permitiu a ampliação dos benefícios do Bolsa Família. O crescimento econômico teve duas dimensões: foi favorecido pelo aumento da demanda mundial de commodities e pelo aumento interno do consumo. (…) Mas esta popularidade não é suficiente como argumento da tese de que Lula seria o governo de esquerda possível nas relações políticos e sociais de força que encontrou. (…) Governos de direita podem também ter, conjunturalmente, popularidade (…). Lula não foi eleito, com a tolerância burguesa que pode usufruir, porque o Brasil estava em uma situação revolucionária, mas porque a sua presença no governo era um fator que deveria preveni-la (…). Os grandes capitalistas nunca ganharam tanto dinheiro como nos oito anos de Lula na presidência, uma façanha que ele próprio, despudoradamente, reivindicou. Basta lembrar que os bancos bateram todos os recordes de rentabilidade. (…) No Brasil, desde 2003, Lula fez o ajuste do superávit primário, (…), fez a reforma da previdência que Fernando Henrique ambicionava fazer e não conseguiu, e ainda se reelegeu. Quando da crise mundial de 2008, Lula protegeu o capitalismo dos capitalistas: o BNDES foi acionado para favorecer a formação de grandes corporações nacionais financiando aquisições e fusões.” (ARCARY, 2011, pp. 13-17)

Em nível internacional, um outro processo político marcante para toda uma geração acontecia, com o fim dos antigos Estados Socialistas. A China deixa de ser socialista ao final dos anos setenta, a URSS e o Leste Europeu se tornam capitalistas entre o final dos anos oitenta e o início dos anos noventa e Cuba começa a abertura à economia de mercado na segunda metade da década de 90.[6]6: Os diferentes processos de construção e degeneração do socialismo são estudados por HERNÁNDEZ (2008) Esses eram países que desenvolveram, por diferentes vias, uma deformação semelhante em seu socialismo, que o tornava quase irreconhecível, ao ponto de alguns estudiosos os caracterizarem pela estranha noção de Capitalismo de Estado.[7]7: “Científica e politicamente – e não só terminologicamente – o problema se coloca da seguinte forma: a burocracia representa um tumor temporário em um organismo social ou este tumor já se transformou em um órgão historicamente indispensável? As excrescências sociais podem ser produto de uma combinação ‘acidental’ – ou seja, temporal e excepcional – de circunstâncias históricas. Um órgão social – e toda classe o é, inclusive uma classe exploradora – não pode se constituir a não ser como resultado das profundas exigências internas da própria produção” (TROTSKY, 2011, p. 26). “A justificativa histórica de toda classe governante sempre consistiu nisto: em que o sistema de exploração por ela dirigido colocou o desenvolvimento das forças produtivas em um nível superior”. O salto nas forças produtivas da URSS se deveu, porém, à expropriação da burguesia e à planificação da economia, não à chegada da burocracia ao poder. Esta, ao contrário, é o maior entrave o desenvolvimento, de maneira menos perceptível na fase inicial de transplante de tecnologia de produção do capitalismo avançado, onde a ousadia e a criatividade não eram tão necessárias, mas cada vez mais claramente conforme avançam as necessidades do desenvolvimento. Assim, a burocracia não é uma nova classe que desenvolve um novo sistema econômico, mas uma excrescência do Estado operário (cf. ibidem, pp. 26-7). Apesar de terem acabado com a propriedade privada dos meios de produção - as terras, os bancos e as fábricas –, os países socialistas que existiram ao longo do século XX não desenvolveram um fator que é decisivo para a plena constituição do socialismo: o controle da produção e da distribuição, por conseguinte, da política, por parte daqueles que produzem. Nestes países, o que se desenvolveu foi uma série de ditaduras unipartidárias, repressivas, que se apoderaram do aparato do Estado por meio do partido, através do qual controlavam a produção e a distribuição. Essas ditaduras desenvolveram governos repressivos aos próprios trabalhadores, de caráter nacionalista, fortemente militarizado e com uma burocracia gargantuesca. Nada mais distante dos pilares mais elementares do socialismo.[8]8: TROTSKY, 2005 e 2011; CARR, 2011; FIGES, 1996, p. 555ss. Por estas deformações, os países socialistas dirigiram-se inevitavelmente ao colapso econômico e político. Deste desdobramento decorreram dois problemas. Ambos estão ligados a associações divulgadas pelos sistemas de propaganda tanto dos Estados capitalistas como dos Estados socialistas. Primeiramente, dizia-se que aquele socialismo deformado era o socialismo real, em oposição ao socialismo democrático que seria, portanto, uma utopia. Além disso, tanto os países capitalistas quanto os socialistas reivindicavam o marxismo como base teórica que fundamentava a formação política daquelas ditaduras unipartidárias, mas é difícil imaginar pouca coisa mais discrepante em relação ao que Marx e Engels denominavam "a ditadura do proletariado".[9]9: Conforme Engels explicita na sua introdução para A Guerra Civil na França, de Marx: “Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado” (ENGELS, 2011, p. 197). E sobre o caráter da Comuna, nos diz Marx: “A verdadeira antítese do próprio Império – isto é, do poder estatal, do Executivo centralizado do qual o Segundo Império fora somente a fórmula exaustiva – foi a Comuna. (…) Foi, portanto, uma revoluçao não contra essa ou aquela forma de poder estatal, seja ela legítima, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o Estado mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade, uma reassunção, pelo povo e para o povo, de sua própria vida social. Não foi uma revolução feita para transferí-lo de uma fração das classes dominantes para outra, mas para destruir essa horrenda maquinaria da dominação de classe ela mesma” (MARX, 2011, p. 127) que o governo de um Estado em que um partido substitui os organismos democráticos da classe trabalhadora como instância de decisão e fonte de poder, como aconteceu aos sovietes na URSS.[10]10: “Uma ruptura qualitativa separa o stalinismo, por um lado, de Marx e Lenin, por outro.” CALLINICOS, 1992, p. 29. Pelo que a história do socialismo no século XX, infelizmente, teve uma dinâmica não de "horizontalização" do poder, mas antes de "verticalização". Ademais, o sentido desta verticalização tendeu cada vez mais a concentrar poder nas alturas, em vez de nas bases. Até que a estrutura desbalanceada ruiu, como o edifício cujo peso da cobertura não pode ser sustentado pelas frágeis colunas. A razão para esta catástrofe não é inerente ao socialismo. Foi decorrência da forma através da qual se julgou possível construí-lo.[11]11: LUXEMBURG, 1991, pp. 61-98; DEUTSCHER, 1967, pp. 17-26; TRAGTENBERG, 1986, pp. 34-5, 72-3. A propaganda do capitalismo que se proclamava triunfante associou, porém, com grande sucesso, o socialismo não só à ditadura do partido único, mas também à carestia.

O resultado destes acontecimentos, na consciência da geração que os vivenciou ainda muito jovem e que agora saiu às ruas para lutar, foi catastrófico. Essa geração cresceu sob a retórica vitoriosa do capitalismo vencedor, que afirmava que a história havia acabado e que agora restava apenas desenvolver o capitalismo tão onipresente que pareceria divino. Não havia um rincão no planeta que estivesse livre das insanas leis do mercado. Não havia coisa ou pessoa, ideia ou sonho que não pudesse ser transformado em mercadoria.[12]12: Interessantes análises da situação ideológica que se configura com o fim dos Estados socialistas encontra-se em HOBSBWAN (1995) e MILIBAND (1995).. Além disso, o socialismo deformado que tanto um lado quanto o outro da Guerra Fria afirmavam ser o socialismo real causava náuseas a quem quer que desejasse liberdade. Os partidos ligados aos governos do socialismo "real" eram burocráticos, autoritários e não é necessário grande conhecimento de história para reconhecer que eles foram a causa do fracasso de inúmeras revoluções, como na Guerra Civil Espanhola, e tantos outros exemplos.[13]13: Interessantes análises da situação ideológica que se configura com o fim dos Estados socialistas encontra-se em HOBSBWAN (1995) e MILIBAND (1995).. Se "aquilo" era o socialismo, já estaria mais que na hora de ver este "sonho" soterrado e definitivamente esquecido. As ditaduras unipartidárias nos países socialistas prestaram, como se vê, um enorme desserviço à luta pela libertação da humanidade das garras do capital.

Em nível nacional, esse processo de desmoralização do socialismo e da esquerda diante das massas se dá, com algumas diferenças, com a ascensão do PT ao poder e sua completa degeneração. Portanto, é dentro deste quadro que podemos compreender a dimensão e o sentido que tomaram as manifestações que ganharam as ruas do Brasil este ano. Estas manifestações não são um fenômeno isolado. São parte de um processo de luta que se abre com o levante europeu, que surge por conta da crise econômica, e da Primavera Árabe. Em cada um destes processos há muitas especificidades. O que os atravessa como uma linha de força geral é o fato de que representam, cada um à sua maneira, iniciativas de luta das massas que vão às ruas decididas a derrubar o que está vigente. Na Europa, pedem democracia real frente à democracia que perceberam como falsa. Lá, a crise econômica mundial – a maior desde a de 1929 – teve papel decisivo, pois a saída que os governos europeus deram para a crise foi caçar direitos dos trabalhadores, reduzir os investimentos sociais em educação, saúde e outros serviços essenciais, para garantir os lucros das grandes empresas e dos bancos. Os governos mostraram de que lado estavam e que, à revelia da vontade do povo, estavam dispostos a impor seus planos. Pela força, se necessário.[14]14: “Compreensivelmente, a atenção dos trabalhadores e dos jovens da Europa está centrada nas consequências do “fim de caminho” e do “salve-se quem puder” das burguesias europeias. A crise política da UE e da zona euro, assim como as intermináveis vacilações do BCE acerca do financiamento direto dos países em maiores dificuldades, são suas manifestações mais visíveis. A tendência é endurecer as políticas de austeridade e montar uma operação de “resgate total” da qual não escape nenhum país. No entanto, a situação europeia não pode ser compreendida independentemente da consideração da situação da economia mundial em sua totalidade” (CHESNAIS, 2012). . Os partidos tradicionais da esquerda e as centrais sindicais, em geral, apoiaram os governos mais ou menos claramente.[15]15: Referimo-nos, obviamente, não à esquerda radical e minoritária, mas à esquerda que é direção majoritária da classe trabalhadora política e sindicalmente, os epígonos dos PCs e do Eurocomunismo. Estes setores estiveram envolvidos diretamente na implementação dos planos de austeridade, ataques às leis de aposentadoria e ao seguro desemprego, de modo que sua retórica eleitoral confusa de alternativa à crise foi derrotada. (KORANYI, 2013) Então, os trabalhadores e estudantes perceberam que não podiam contar com as instituições e organizações existentes. Por isso, foram às ruas. Perceberam que os gabinetes e salões não eram espaços seus. Porém, diante da história do que foi o socialismo no século XX, os trabalhadores e estudantes europeus, ao se oporem radicalmente ao capitalismo e à democracia burguesa, sabiam o que não queriam, mas eram incapazes de propor uma sociedade verdadeiramente democrática e socialista em seu lugar.

No mundo árabe, a luta despertou contra ditaduras arraigadas há anos, algumas já hereditárias, como é o caso do governo Assad na Síria. Estas ditaduras surgiram no início da segunda metade do século XX como um fenômeno nacionalista de oposição à dominação dos países árabes pelas grandes potências. Esses nacionalismos árabes, à diferença do movimento nacionalista que existiu em Cuba com Fidel e Che, não chegaram a expropriar a burguesia. Mantiveram-se como nacionalismos nos marcos do capitalismo.[16]16: HOURANI, 1994, pp. 405-407(KORANYI, 2013) Isso significou expor sua economia às leis do mercado, dentro das quais a competição com as grandes potências capitalistas era impossível. A submissão destes governos seria inevitável e rápida, não fosse a existência do bloco socialista, que contrabalançava a política mundial, de certa forma.[17]17: “As políticas das maiorias dos regimes favoreciam também outras partes poderosas da sociedade: os que controlavam certos setores privados da economia, indústrias de propriedade privada, comércio de importação e exportação, muitas vezes ligados a corporações multinacionais (...)” (HOURANI, 1994, p. 446) Enquanto a URSS existiu, estes nacionalismos conseguiram sustentar uma relação com o imperialismo, sobretudo o norte-americano, que era relativamente conflitiva. No entanto, logo após a queda do socialismo dito "real", o regime capitalista em que estavam inseridas obrigou estas ditaduras árabes, em diferentes graus e velocidades, a irem pouco a pouco se realinhando com os países dominantes. Assim, a Primavera Árabe eclodiu porque o nacionalismo, mantendo-se nos marcos do capitalismo, mostrou-se totalmente ineficaz para superar as profundas mazelas sociais, econômicas e políticas que assolam os países árabes como um todo. No entanto, se é verdade que lutam contra as ditaduras nacionalistas por um lado e sabem que a intervenção norte-americana não é nada humanitária por outro,[18]18: Neste sentido, uma carta aberta de um dos porta-vozes da revolução em curso na Síria, o romancista Khaled Al-Khalifa, é sugestiva. Autor de "In Praise of Hatred", romance selecionado para o Prêmio Internacional de Ficção Árabe, a obra de Khaled al-Khalifa, que retrata a vida de uma família afetada pelo conflito entre o governo sírio e a Irmandade Muçulmana, foi censurada na Síria. Traduzidos os excertos publicados em inglês em ARABIC LITERATURE (29/08/2013): "Ditadores trazem invasores; isso é um fato inegável. Invasores nunca trazem liberdade para o povo, e isso é outro fato que não devemos esquecer. Entretanto, o que deveríamos afirmar neste momento crucial de nossas vidas e da vida de nossa revolução é que os ditadores não são os únicos que trazem invasores, mas que eles contribuem para que tal grupo de políticos e "mercadores da revolução" que vendem nosso sangue - ora para o Qatar, ora para a Arábia Saudita e ora para organizações cuja natureza eu desconheço - sem sentir a menor vergonha. Imagine Samir Nashar e Zuheir Salem representando esta grande revolução - que estranho! Vocês querem saber qual a minha posição? Eu sou contra a intervenção militar dos EUA e tenho minhas razões, eu, o filho desta revolução, quer você goste disto ou não. Numa situação como a nossa, os mercadores do sangue e a Coalizão deveriam todos admitir que eles são parceiros dos ditadores, e que são uma cópia exata deles e não uma cópia ou representantes da honestidade de nossa revolução. Vocês têm que se colocar diante do espelho, vocês, que foram pagos por nosso sangue, antes de falar coisas que nós já sabemos sobre o ditador fascista e o regime sectário. Mas vocês não devem ser nem fascistas, nem ditadores, nem sectários se querem ser parte de nossa revolução. Ouçam com atenção: Digam-me quando é que invasores trouxeram liberdade? Enfim, eu nunca serei a favor de nenhuma intervenção americana em nossa terra, porque eu os conheço muito bem. Eles poderiam ter defendido estes valores desde o primeiro dia da revolução e poderiam nos ter ajudado, mas esperaram até que o país estivesse destruído. A queda do regime irá me satisfazer, mas não quero que nossa revolução fique incompleta depois de todo este sangue. Esta não é uma carta para a história, mas uma despedida para todos os meus amigos, caso eu morra. Se eu morrer em meio a este bombardeio ou por qualquer outra razão, eu quero que meus amigos me enterrem num túmulo escondido em um lugar que apenas meus amigos e os que me são queridos conheçam". [Samir Nashar é uma das principais figuras da oposição burguesa ao regime de Assad, ou seja, representa a ala liberal, "democrática", do capitalismo. Não à toa, é o porta-voz do Partido Nacional Livre Sírio, oposição estabelecida desde 2005, e que tem sido financiado pelos EUA desde o início da revolução. É o setor em que os EUA sempre apostaram caso houvesse a necessidade de substituir Assad. O financiamento se destina a ajudar este grupo a se tornar a direção da revolução, garantindo um desfecho favorável aos EUA tanto se Assad vencer, como se o campo rebelde - liderado pelo grupo de Nashar - sair vencedor. A hipótese que o imperialismo norte-americano quer evitar é que o campo revolucionário saia vitorioso sem que haja uma liderança submissa aos EUA. Zuheir Salem - um dos líderes da Irmandade Muçulmana na Síria. A IM é um grupo que atua em diversos países do mundo árabe. No Egito, encabeçou o governo recém deposto de Mursi. É uma oposição religiosa, ligada ao fundamentalismo islâmico, que não tem um programa de ruptura com o imperialismo (como as ações do governo Mursi no Egito mostraram) e só se opõem às ditaduras seculares, isto é, que não se afirmam enquanto ditaduras que governam com base nos preceitos do fundamentalismo islâmico. Com "mercadores do sangue", ele se refere aos grupos que aparentam estar do lado da revolução, mas que recebem dinheiro dos EUA para tentar se projetar como direção da revolução e garantir os interesses do imperialismo na região. Com "Coalizão", o autor refere-se à Coalizão Internacional que os EUA pretendem formar para intervir na Síria]. os povos árabes até agora não desenvolveram uma estratégia que pudesse conduzir sua luta por libertação nacional, democracia e melhores condições de vida à vitória. Isto é, acreditam que a democracia dentro dos limites do capitalismo poderá fazer triunfar os seus anseios. Propõem uma solução de continuidade que na verdade não resolve o cerne do problema, como os casos da Europa e do Brasil bem o mostram.

Afinal, aqui no Brasil, saímos de uma ditadura militar, mas continuamos sob a ditadura do capital. Aqui, também, o fenômeno de derrocada da esquerda, através da degeneração de suas representações e da "estatização" do que outrora foram lutadores deixou um vácuo político, mas o PT ainda é a direção majoritária da gigantesca classe trabalhadora brasileira. A central sindical comandada por Lula e seus correligionários, a CUT, controla a maior parte dos mais importantes sindicatos e, se considerarmos sua aliança com o PCdoB, que comanda a CGT, entenderemos por que, há tanto tempo, não vemos manifestações de massa com greves gerais como nos anos 80, quando o PT ainda era um partido das ruas e do chão da fábrica, não dos salões e gabinetes. É também por isso que as Jornadas de Julho não contaram com a participação expressiva da classe trabalhadora organizada. As organizações majoritárias da classe trabalhadora são fiéis ao governo capitalista do PT e, portanto, farão de tudo para desarticular e desacreditar as lutas. Se condensássemos numa frase o que significa a ideologia política do PT hoje, diríamos que representa a ideia de que, agora que o PT está no poder, os trabalhadores não precisam mais lutar, basta votar e confiar que os governos do PT saciarão todas as necessidades do povo. No entanto, parece que os trabalhadores cansaram de esperar. Sim, porque se as organizações da classe trabalhadora fiéis ao petismo não estavam nas ruas durante as Jornadas de Junho – ou estiveram episodicamente apenas com suas direções, sem convocar o grosso de suas bases -, isso não significa que a classe trabalhadora não estava nas ruas. A maioria dos que foram às ruas e que continuam indo desde junho deste ano são trabalhadores[19]19: BRAGA, 2013(b), mas em sua maioria jovens, com escolaridade elevada e em geral desconfiados de todos os partidos. De fato, aqui, podemos compreender uma das características específicas das lutas que explodiram neste ano à luz do processo histórico da luta de classes no Brasil e no mundo. Foi notável que as manifestações se organizavam de forma mais horizontal, isto é, não havia nenhuma organização ou grupo que claramente se colocasse como direção política majoritária. Havia expressão política de todos os matizes. Houve uma minoria – composta e/ou apoiada clandestinamente pela polícia - com inclinações nacional-fascistas, que cantavam o hino nacional e tentaram proibir a presença dos partidos políticos de esquerda nos atos. Chegaram a agredir e ferir gravemente muitos militantes. Havia grupos moderados, de centro, que desejavam mudanças estruturais no modelo econômico, na formação social e no aparato político. Pretendiam, no entanto, mudar a sociedade através das próprias instituições que existem para perpetuar esta sociedade. Uma receita de fracasso muitas vezes repetida, pois não podemos nos esquecer de Allende. Sempre presentes nas lutas, estavam lá aqueles que desejavam mudanças profundas, a ruptura com o capitalismo e uma verdadeira democracia. Eram desde anarquistas a socialistas que apostam na estratégia revolucionária.

Em todo caso, ficou evidente que os métodos de luta adotados pelo setor mais radicalizado deixaram muita gente confusa. Para a surpresa de todos, inicialmente, uma parte considerável da população apoiou os enfrentamentos com a polícia e as manifestações de revolta contra os símbolos do poder, ocupação dos parlamentos e o libelo de que esta democracia é, para a maioria, opressiva e excludente. Foi esse apoio por parte de um setor massivo que levou a grande mídia a mudar sua linha, que inicialmente criminalizava o movimento, para passar a tentar separar manifestantes pacíficos de um lado e vândalos do outro. No entanto, para quem foi aos atos, o sentimento de unidade era grande, apesar de discordâncias pontuais. Todos sabiam que estavam ali para lutar por um país melhor, cada um à sua maneira, em geral com métodos nada tradicionais, pois as greves não foram grandes, as plenárias e assembleias eram pulverizadas, as organizações fluídas, como o Black Bloc, e as lideranças, anônimas. Enfim, este é um fenômeno de luta que surge de um vácuo político que teve de ser preenchido. Tal vácuo surgiu conforme o PT deixou de ser um partido das lutas para ser um partido das câmaras e dos gabinetes. Fez isso sem deixar de tomar conta dos principais sindicatos. Sem uma organização, sem direção, mas com uma necessidade de lutar que ficou secundarizada por anos devido, principalmente, à ideologia de que não era mais preciso ir às ruas desde que o PT chegou ao poder, os trabalhadores, finalmente, explodiram e, como um rio caudaloso, encontraram caminho por onde era possível passar, já que seu curso tradicional estava bloqueado. O repúdio pelas lideranças, em certa medida, bem como a renúncia dos métodos tradicionais de luta (greves gerais, piquetes, etc) se devem, também, à trajetória política traçada pelas próprias direções majoritárias do movimento dos trabalhadores em nível mundial, os partidos comunistas ligados ao Kremlin. Estes partidos, como afirmamos, foram responsáveis por inúmeras e fragorosas derrotas para os trabalhadores e socialistas. Ficaram muito desacreditados pelos setores mais combativos e, principalmente, pelos jovens que cresceram e entraram para o mercado de trabalho já depois do início do enfraquecimento desta burocracia dos PCs, após a queda da URSS. O movimento radicalizado, não só no Brasil, mas na Europa também, vê claramente que essas direções são traidoras e as rupturas se aprofundam cada vez mais, de modo que a queda das antigas ditaduras foi, neste sentido, uma imensa vitória para a causa socialista. Mas ainda há muitos escombros destas velhas estruturas bloqueando o caminho.

Por fim, duas outras características destas lutas, associadas ao processo histórico a que se ligam, são a extrema rebeldia contra as mazelas do capitalismo e o repúdio à democracia que corresponde apenas à vontade dos 1% mais ricos, por um lado e, por outro, a incapacidade de que estes que se levantam e dizem "não" proponham uma saída, um modelo alternativo de sociedade, uma outra e verdadeira democracia, bem como tenham consciência dos métodos e da organização que são necessários para atingir tais fins. Em suma, no Brasil, os lutadores das Jornadas de Junho sabem muito bem o que não querem mais. Não têm, contudo, a menor clareza acerca do que devem colocar em seu lugar. O gigante acordou, mas não se lembra do seu sonho. Na Europa, este processo se dá de modo mais sutil, talvez porque o proletariado europeu tenha a maior tradição de organização e de luta no mundo, sem a qual não teria conquistado um padrão de vida superior. No mundo árabe, há uma clareza quanto à necessidade de democracia. Contudo, se as eleições por si só pudessem resolver alguma coisa, nós já estaríamos em um país bem diferente, depois de três décadas de eleições no Brasil. Mas a democracia, ainda que seja uma ditadura velada, sem dúvida, é melhor que uma ditadura aberta. Numa democracia, ainda que formal, podemos nos organizar e protestar com restrições um pouco menores.

O que podemos esperar destas lutas? Em primeiro lugar, o simples fato de elas acontecerem já é uma imensa vitória. É na ação que a consciência de milhares pode vir a ter clareza acerca do que é preciso fazer e daquilo em que é ilusório acreditar. Afinal, "quem não se move, não sente as correntes que o prendem"[20]20: Traduzimos: “Wer sich nicht bewegt, spürt die Fesseln nicht”. Esta citação é universalmente atribuída a Rosa Luxemburgo, mas até onde se sabe, não se encontra escrita em sua obra. É possível que ela a tenha dito em algum discurso. Em todo caso, SPITTMAN (1988: 227) confirma a autoria de Rosa Luxemburgo sobre a famosa frase.. Por outro lado, a ausência de maiores êxitos no sentido de transformações políticas, sociais e econômicas pode fazer deste avanço de consciência um tremendo retrocesso. Derrotados, milhões de jovens pensarão, talvez para o resto de suas vidas: "nós tentamos, mas de nada adianta lutar". Contudo, não há estratégia ou organização que possam garantir a vitória, pois "(…) a emancipação dos trabalhadores deve ser conquistada pelos próprios trabalhadores”[21]21: Traduzimos: “(...) the emancipation of the working classes must be conquered by the working classes themselves (...)”. (MARX, 2013).. É preciso abandonar o messianismo. Entretanto, existem outros partidos e organizações, além das grandes legendas eleitorais, que não estão comprometidos com as estruturas tradicionais de poder. São, via de regra, organizações com muito pouca influência, quase invisíveis e em geral desconhecidas da maior parte da classe trabalhadora e dos estudantes. Estas organizações estão nas lutas e nas ruas há muito tempo. Muito antes de nosso esquecido gigante acordar. Em geral, mantém elos com as tradições, a experiência, as táticas e os métodos mais bem testados na prova de fogo da luta de classes. Têm uma relativa clareza programática e uma estratégia definida. Podem trazer, portanto, para estes milhões que se levantam, exatamente aquilo que lhes falta e que pode ser o elemento decisivo para a vitória.

Estas organizações, porém, não raro se mostram esclerosadas, estruturadas com regimes de autoritarismo patente ou latente e atendo-se a dogmas hagiográficos enraizados cuja caducidade já não conseguem perceber. Por sua vez, a capacidade de tais organizações perceberem as possibilidades de vitória abertas pela criatividade das massas em luta e procurarem uma síntese com elas pode ser o movimento que decidirá que rumos tomarãoas lutas.[22]22: Na colocação mais ponderada e precisa de MELO (2013): “O problema maior é acreditar que as únicas forças progressistas existentes na realidade são aquelas que as organizações A, B ou C impulsionam. Isso por que, de saída, o que se perde de vista é um entendimento totalizante. A essa altura da crise, dedicar esforços em combater forças que no campo anti-sistêmico combatem na mesma trincheira contra a ordem é um esforço inócuo, e não contribui em nada para o avanço da consciência das massas. A origem do erro é pressuposição de que seja possível suspender a existência de experiências emergentes que por acaso estejam fora do campo de forças de organização A, B ou C. Melhor seria apostar no crescimento de um movimento que ocorre numa época histórica em que a fragmentação na esquerda socialista é um elemento que não parece ter resolução num prazo médio. E aqui talvez é que esteja o grande debate: que tipo de organização será capaz de absorver o desenho das lutas emergentes? Como constituir uma alternativa de poder dos trabalhadores? Ou seja, como intervir politicamente de modo a impulsionar a auto-organização dos trabalhadores? A essa altura nada que não seja unitário é capaz produzir efeitos progressistas frente aos desafios. Mas unidade não pode significar ausência de debate entre as posições divergentes no interior da esquerda socialista. A idéia de que a polêmica em si deva ser vista com reserva, remete aos piores momentos da experiência socialista no século XX, o stalinismo”. Os métodos radicalizados que a tantos confundem e a outros causam ojeriza[23]23: Lamentavelmente, Marilena Chauí, intelectual ligada ao PT, chegou a afirmar que o Black Bloc agia de forma fascista. Pelo visto, os anos de adesão ao petismo cobraram seu preço, gerando uma posição política em que a fidelidade à bandeira pesou mais que o rigor das categorias de análise. (cf. FOLHA DE SÃO PAULO, 2013). surgem porque as massas sempre encontram seu caminho. Recentemente, as máscaras em manifestações foram proibidas na própria cidade do carnaval.[24]24: Aqui, o próprio aparato supostamente democrático, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, realizou uma verdadeira operação conjunta aos instrumentos mais clara e diretamente repressivos, ao aprovar uma lei de exceção que proíbe o uso de máscaras em manifestações, para facilitar o trabalho de repressão e prisão política por parte da polícia. (cf. NETO, 2013) As prisões políticas banalizam-se a cada dia. Isto é apenas mais um sintoma do cerceamento, da vigilância e da violência estatais que vêm se avolumando desde o fim da Guerra Fria mesmo nas "democracias" mais antigas e estáveis. O regime policial que se tornou fundamental para a sustentação das democracias modernas não expressa uma contradição no seio destas democracias, mas antes, o seu verdadeiro caráter de instrumento de dominação.[25]25: “A situação história é inétida: o Estado se alça à qualidade de único senhor do jogo. Nos úlitmos trinta anos, erigiu um arsenal de vigilância e de repressão que supera tudo o que já se viu, mesmo à época dos Estados ditos “totalitários”. Já imaginamos o que teria acontecido se os nazistas e seus aliados tivessem à disposiçao os mesmos instrumentos de vigilância e de repressão das democracias de hoje? Entre câmeras de vigilância e pulseiras eletrônicas, amostras de DNA e controle de todas as comunicações escritas e verbais, nenhum judeu ou cigano teria escapado, nenhuma resistência teria podido nascer (…). O Estado democrático atual está muito mais equipado do que os Estados totalitários de outrora para fazer o mal, para perseguir de perto e eliminar tudo o que possa fazer-lhe frente. (…) Então, não se trata de justificar ou, ao contrário, de condenar a difusão de práticas classificadas como “ilegais” e o recurso que o Estado define como “violência”. Pode-se simplesmente predizer uma coisa: vai ser muito difícil que os atos de contestação, que não deixarão de aumentar nos próximos anos, respeitem os parâmetros da “legalidade” concebidos precisamente no objetivo de condená-los à ineficácia” (JAPPE, 2013, pp. 22-3 e 28) Este quadro espelha um outro: o das relações internacionais. Na época dita global, a ideologia oficial afirma que o poder internacional está localizado em organismos multilaterais, não mais nos países imperialistas, como se tivéssemos também em nível mundial uma democracia entre as nações. Porém, as violações das decisões da ONU em relação às ofensivas militares e o recente caso de espionagem eletrônica mundial mostram não apenas que o poder global está mais centralizado que nunca – nas mãos dos EUA, o coração do capital -, mas também que o próprio regime policial que se vê crescer dentro das ditas nações democráticas corresponde a um policiamento na chamada democracia global, em que o país dominante vigia, controla e pune todos os seus subordinados. Neste quadro, as formas de luta encontradas pelas massas sempre correspondem às formas de dominação.[25]25: “A situação história é inétida: o Estado se alça à qualidade de único senhor do jogo. Nos úlitmos trinta anos, erigiu um arsenal de vigilância e de repressão que supera tudo o que já se viu, mesmo à época dos Estados ditos “totalitários”. Já imaginamos o que teria acontecido se os nazistas e seus aliados tivessem à disposiçao os mesmos instrumentos de vigilância e de repressão das democracias de hoje? Entre câmeras de vigilância e pulseiras eletrônicas, amostras de DNA e controle de todas as comunicações escritas e verbais, nenhum judeu ou cigano teria escapado, nenhuma resistência teria podido nascer (…). O Estado democrático atual está muito mais equipado do que os Estados totalitários de outrora para fazer o mal, para perseguir de perto e eliminar tudo o que possa fazer-lhe frente. (…) Então, não se trata de justificar ou, ao contrário, de condenar a difusão de práticas classificadas como “ilegais” e o recurso que o Estado define como “violência”. Pode-se simplesmente predizer uma coisa: vai ser muito difícil que os atos de contestação, que não deixarão de aumentar nos próximos anos, respeitem os parâmetros da “legalidade” concebidos precisamente no objetivo de condená-los à ineficácia” (JAPPE, 2013, pp. 22-3 e 28) A ocupação de praças, da Porta do Sol na Espanha à Praça Tahrir no Egito, por exemplo, responde a um crescente processo de privatização das cidades como forma de dominação e também de capitalização do espaço. Há pouco, incendiou-se a Turquia por conta desta mesma questão. Até mesmo a luta por um simples parque, em tal situação de privatização total e de policiamento intensivo e extensivo, consiste, no fundo, em uma luta pela liberdade.

Neste sentido, estas lutas que estouraram em todo globo podem oxigenar as salas de reuniões e os cadernos de teses das organizações políticas e movimentos sociais que não se degeneraram ao longo da difícil trajetória do socialismo no século XX. Tudo dependerá de que estes movimentos e organizações deixem de se comportar como seitas e de repudiar todas formas de lutas que não são capazes de controlar e dirigir. Dependerá, também, de que os que ora saem às ruas como se a luta de classes tivesse dois meses de vida sejam capazes de perceber que, para construir o futuro, temos que partir do presente, que está erigindo sobre o passado. É preciso incorporar um programa claro e ter uma direção precisa. De nada a vale a realidade que não é matéria para moldarmos nossos sonhos. Pouco valem, também, os sonhos que não se sonham enquanto estamos despertos. Está na hora de relembrá-los, de reerguer a bandeira do socialismo, que nada tem de tirania.

[FIM]

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NOTAS

1: De fato, a grande discrepância que se verificou entre as pautas políticas espontâneas das manifestações e os temas oficiais discutidos nos parlamentos como se fossem prioridades são uma mostra do abismo que existe, historicamente, no Brasil, entre a sociedade civil e o Estado. Esta diferenciação entre as classes mais proletarizadas se expressa mediante uma identificação dos trabalhadores e excluídos com um “nós” e dos representantes políticos – quaisquer que sejam as legendas – com um “eles”. Numa dialética bem esclarecida por CHAUÍ (1986), isso é tanto uma das manifestações como uma das razões do autoritarismo extremo do Estado no Brasil e tem raízes históricas no processo mediante o qual a democracia e a República se constituíram no país desde as origens como uma manobra nas alturas que recolocava a subserviência do Brasil no cenário do capitalismo internacional (SAES, 1985). Tanto que o fechamento destas estruturas formais de democracia em meados do século XX no Brasil e na América Latina também atendeu à manutenção da submissão política e econômica (DREIFUSS, 1981). Também na abertura democrática dos anos 80, embora a participação das greves e das lutas sociais tenham sido decisivas, as classes dominantes em acordo com os militares, no Brasil, mais uma vez se anteciparam ao movimento (SADER, 1990), num lance digno do príncipe de Falconeri, para evitar seu fortalecimento e cooptar suas lideranças, mudando tudo para que tudo permanecesse como estava.<<<

2: “Eis o segredo de polichinelo: as massas tomaram as ruas a fim de exigir o cumprimento daquilo que, em 1988, foi prometido pela Constituição brasileira: o direito à saúde e à educação públicas, gratuitas e de qualidade; o direito ao lazer, à moradia e à mobilidade; o direito a um salário que garanta condições dignas de vida para todos. O governo federal sabe bem que o atual modelo não chegou nem perto de entregar o que foi encomendado. Mas, para manter-se no poder, ele procura capturar a indignação social, atribuindo-lhe outro sentido.” (BRAGA, 2013)<<<

3: Em uma fina ironia do processo histórico, as classes dominantes, através de suas duas principais legendas políticas que se alternam no poder, não puderam desta vez utilizar o tradicional argumento contra greves e outras manifestações, que é o de as acusarem de ser movimentos “com vieses ou direções políticas”. A degeneração da política tradicional, eleitoral, parlamentar e executiva, faz com que esse argumento crie repulsa na consciência das massas, que desconfiam de políticos. A classe dominante, com isso, transforma o seu próprio ponto fraco a seu favor: a desconfiança das massas em relação à política. É interessante notar que também aqui se manifesta o distanciamento entre a sociedade civil e o Estado, no Brasil. Então, as Jornadas de Junho, difíceis de localizar politicamente em alinhamento tanto com o PT quando com o PSDB, foram alvo de críticas da grande mídia e pelos defensores do governo com um argumento oposto: eram despolitizadas demais. Não tinham real objetivo a não ser a bagunça. Foi uma ótima cola para segurar o rótulo de “vandalismo”, pois, logo que se reconheceu ser impossível cooptá-las, as forças dominantes voltaram a condená-las, situação em que nos encontramos hoje e que continua a se aprofundar, no sentido da criminalização e da criação de leis de exceção.<<<

4: Conforme GARCIA (2011), num exaustivo estudo sobre as origens no movimento operário e a trajetória de incorporação ao Estado do PT, podemos identificar X vetores deste processo de degeneração: 1) Estratégia política essencialmente eleitoral de sua direção majoritária, a “Articulação” encabeçada por Lula; 2) Um programa essencialmente reformista e Estatista, apenas com alguns matizes socialistas, desde sua origem; 3) A progressiva perda da independência que ocorreu num complexo desdobramento em que, para ter êxito na sua estratégia eleitoral, o partido se viu obrigado a receber cada vez mais financiamento de setores burgueses (processo que foi lento, mas se intensifica a partir da segunda metade da década de noventa); 4) a burocratização dos movimentos sociais e sindicais sob sua influência através da cooptação de suas direções ao aparato que foi construído pelo partido em sua trajetória rumo ao poder.<<<

5: “(...) é preciso distinguir o que foi o governo Lula das percepções que ele deixou. A sua popularidade oculta mais do que revela sobre a sua verdadeira natureza. O crescimento econômico entre 2004 e 2008 (…), recuperado com exuberância em 2010, foi inferior à media do crescimento dos países vizinhos, mas a inflação foi, também, menor. (…) reduziu o desemprego a taxas menores que a metade daquelas que o país conheceu ao longo dos anos 1990; permitiu a recuperação do salário médio que atingiu, finalmente, em 2011, o valor de 1990; aumentou a mobilidade social, tanto a distribuição pessoal, quanto a distribuição funcional da renda; garantiu uma elevação real do salário mínimo acima da inflação e permitiu a ampliação dos benefícios do Bolsa Família. O crescimento econômico teve duas dimensões: foi favorecido pelo aumento da demanda mundial de commodities e pelo aumento interno do consumo. (…) Mas esta popularidade não é suficiente como argumento da tese de que Lula seria o governo de esquerda possível nas relações políticos e sociais de força que encontrou. (…) Governos de direita podem também ter, conjunturalmente, popularidade (…). Lula não foi eleito, com a tolerância burguesa que pode usufruir, porque o Brasil estava em uma situação revolucionária, mas porque a sua presença no governo era um fator que deveria preveni-la (…). Os grandes capitalistas nunca ganharam tanto dinheiro como nos oito anos de Lula na presidência, uma façanha que ele próprio, despudoradamente, reivindicou. Basta lembrar que os bancos bateram todos os recordes de rentabilidade. (…) No Brasil, desde 2003, Lula fez o ajuste do superávit primário, (…), fez a reforma da previdência que Fernando Henrique ambicionava fazer e não conseguiu, e ainda se reelegeu. Quando da crise mundial de 2008, Lula protegeu o capitalismo dos capitalistas: o BNDES foi acionado para favorecer a formação de grandes corporações nacionais financiando aquisições e fusões.” (ARCARY, 2011, pp. 13-17)<<<

6: Os diferentes processos de construção e degeneração do socialismo são estudados por HERNÁNDEZ (2008)<<<

7: “Científica e politicamente – e não só terminologicamente – o problema se coloca da seguinte forma: a burocracia representa um tumor temporário em um organismo social ou este tumor já se transformou em um órgão historicamente indispensável? As excrescências sociais podem ser produto de uma combinação ‘acidental’ – ou seja, temporal e excepcional – de circunstâncias históricas. Um órgão social – e toda classe o é, inclusive uma classe exploradora – não pode se constituir a não ser como resultado das profundas exigências internas da própria produção” (TROTSKY, 2011, p. 26). “A justificativa histórica de toda classe governante sempre consistiu nisto: em que o sistema de exploração por ela dirigido colocou o desenvolvimento das forças produtivas em um nível superior”. O salto nas forças produtivas da URSS se deveu, porém, à expropriação da burguesia e à planificação da economia, não à chegada da burocracia ao poder. Esta, ao contrário, é o maior entrave o desenvolvimento, de maneira menos perceptível na fase inicial de transplante de tecnologia de produção do capitalismo avançado, onde a ousadia e a criatividade não eram tão necessárias, mas cada vez mais claramente conforme avançam as necessidades do desenvolvimento. Assim, a burocracia não é uma nova classe que desenvolve um novo sistema econômico, mas uma excrescência do Estado operário (cf. ibidem, pp. 26-7).<<<

8: TROTSKY, 2005 e 2011; CARR, 2011; FIGES, 1996, p. 555ss.<<<

9: Conforme Engels explicita na sua introdução para A Guerra Civil na França, de Marx: “Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado” (ENGELS, 2011, p. 197). E sobre o caráter da Comuna, nos diz Marx: “A verdadeira antítese do próprio Império – isto é, do poder estatal, do Executivo centralizado do qual o Segundo Império fora somente a fórmula exaustiva – foi a Comuna. (…) Foi, portanto, uma revoluçao não contra essa ou aquela forma de poder estatal, seja ela legítima, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o Estado mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade, uma reassunção, pelo povo e para o povo, de sua própria vida social. Não foi uma revolução feita para transferí-lo de uma fração das classes dominantes para outra, mas para destruir essa horrenda maquinaria da dominação de classe ela mesma” (MARX, 2011, p. 127)<<<

10: “Uma ruptura qualitativa separa o stalinismo, por um lado, de Marx e Lenin, por outro.” CALLINICOS, 1992, p. 29<<<

11: LUXEMBURG, 1991, pp. 61-98; DEUTSCHER, 1967, pp. 17-26; TRAGTENBERG, 1986, pp. 34-5, 72-3<<<

12: Interessantes análises da situação ideológica que se configura com o fim dos Estados socialistas encontra-se em HOBSBWAN (1995) e MILIBAND (1995).<<<

13: BROUÉ, 2007.<<<

14: “Compreensivelmente, a atenção dos trabalhadores e dos jovens da Europa está centrada nas consequências do “fim de caminho” e do “salve-se quem puder” das burguesias europeias. A crise política da UE e da zona euro, assim como as intermináveis vacilações do BCE acerca do financiamento direto dos países em maiores dificuldades, são suas manifestações mais visíveis. A tendência é endurecer as políticas de austeridade e montar uma operação de “resgate total” da qual não escape nenhum país. No entanto, a situação europeia não pode ser compreendida independentemente da consideração da situação da economia mundial em sua totalidade” (CHESNAIS, 2012).<<<

15: Referimo-nos, obviamente, não à esquerda radical e minoritária, mas à esquerda que é direção majoritária da classe trabalhadora política e sindicalmente, os epígonos dos PCs e do Eurocomunismo. Estes setores estiveram envolvidos diretamente na implementação dos planos de austeridade, ataques às leis de aposentadoria e ao seguro desemprego, de modo que sua retórica eleitoral confusa de alternativa à crise foi derrotada. (KORANYI, 2013)<<<

16: HOURANI, 1994, pp. 405-407<<<

17: “As políticas das maiorias dos regimes favoreciam também outras partes poderosas da sociedade: os que controlavam certos setores privados da economia, indústrias de propriedade privada, comércio de importação e exportação, muitas vezes ligados a corporações multinacionais (...)” (HOURANI, 1994, p. 446)<<<

18: Neste sentido, uma carta aberta de um dos porta-vozes da revolução em curso na Síria, o romancista Khaled Al-Khalifa, é sugestiva. Autor de "In Praise of Hatred", romance selecionado para o Prêmio Internacional de Ficção Árabe, a obra de Khaled al-Khalifa, que retrata a vida de uma família afetada pelo conflito entre o governo sírio e a Irmandade Muçulmana, foi censurada na Síria. Traduzidos os excertos publicados em inglês em ARABIC LITERATURE (29/08/2013): "Ditadores trazem invasores; isso é um fato inegável. Invasores nunca trazem liberdade para o povo, e isso é outro fato que não devemos esquecer. Entretanto, o que deveríamos afirmar neste momento crucial de nossas vidas e da vida de nossa revolução é que os ditadores não são os únicos que trazem invasores, mas que eles contribuem para que tal grupo de políticos e "mercadores da revolução" que vendem nosso sangue - ora para o Qatar, ora para a Arábia Saudita e ora para organizações cuja natureza eu desconheço - sem sentir a menor vergonha. Imagine Samir Nashar e Zuheir Salem representando esta grande revolução - que estranho! Vocês querem saber qual a minha posição? Eu sou contra a intervenção militar dos EUA e tenho minhas razões, eu, o filho desta revolução, quer você goste disto ou não. Numa situação como a nossa, os mercadores do sangue e a Coalizão deveriam todos admitir que eles são parceiros dos ditadores, e que são uma cópia exata deles e não uma cópia ou representantes da honestidade de nossa revolução. Vocês têm que se colocar diante do espelho, vocês, que foram pagos por nosso sangue, antes de falar coisas que nós já sabemos sobre o ditador fascista e o regime sectário. Mas vocês não devem ser nem fascistas, nem ditadores, nem sectários se querem ser parte de nossa revolução. Ouçam com atenção: Digam-me quando é que invasores trouxeram liberdade? Enfim, eu nunca serei a favor de nenhuma intervenção americana em nossa terra, porque eu os conheço muito bem. Eles poderiam ter defendido estes valores desde o primeiro dia da revolução e poderiam nos ter ajudado, mas esperaram até que o país estivesse destruído. A queda do regime irá me satisfazer, mas não quero que nossa revolução fique incompleta depois de todo este sangue. Esta não é uma carta para a história, mas uma despedida para todos os meus amigos, caso eu morra. Se eu morrer em meio a este bombardeio ou por qualquer outra razão, eu quero que meus amigos me enterrem num túmulo escondido em um lugar que apenas meus amigos e os que me são queridos conheçam". [Samir Nashar é uma das principais figuras da oposição burguesa ao regime de Assad, ou seja, representa a ala liberal, "democrática", do capitalismo. Não à toa, é o porta-voz do Partido Nacional Livre Sírio, oposição estabelecida desde 2005, e que tem sido financiado pelos EUA desde o início da revolução. É o setor em que os EUA sempre apostaram caso houvesse a necessidade de substituir Assad. O financiamento se destina a ajudar este grupo a se tornar a direção da revolução, garantindo um desfecho favorável aos EUA tanto se Assad vencer, como se o campo rebelde - liderado pelo grupo de Nashar - sair vencedor. A hipótese que o imperialismo norte-americano quer evitar é que o campo revolucionário saia vitorioso sem que haja uma liderança submissa aos EUA. Zuheir Salem - um dos líderes da Irmandade Muçulmana na Síria. A IM é um grupo que atua em diversos países do mundo árabe. No Egito, encabeçou o governo recém deposto de Mursi. É uma oposição religiosa, ligada ao fundamentalismo islâmico, que não tem um programa de ruptura com o imperialismo (como as ações do governo Mursi no Egito mostraram) e só se opõem às ditaduras seculares, isto é, que não se afirmam enquanto ditaduras que governam com base nos preceitos do fundamentalismo islâmico. Com "mercadores do sangue", ele se refere aos grupos que aparentam estar do lado da revolução, mas que recebem dinheiro dos EUA para tentar se projetar como direção da revolução e garantir os interesses do imperialismo na região. Com "Coalizão", o autor refere-se à Coalizão Internacional que os EUA pretendem formar para intervir na Síria].<<<

19: BRAGA, 2013(b)<<<

20: Traduzimos: “Wer sich nicht bewegt, spürt die Fesseln nicht”. Esta citação é universalmente atribuída a Rosa Luxemburgo, mas até onde se sabe, não se encontra escrita em sua obra. É possível que ela a tenha dito em algum discurso. Em todo caso, SPITTMAN (1988: 227) confirma a autoria de Rosa Luxemburgo sobre a famosa frase.<<<

21: Traduzimos: “(...) the emancipation of the working classes must be conquered by the working classes themselves (...)”. (MARX, 2013).<<<

22: Na colocação mais ponderada e precisa de MELO (2013): “O problema maior é acreditar que as únicas forças progressistas existentes na realidade são aquelas que as organizações A, B ou C impulsionam. Isso por que, de saída, o que se perde de vista é um entendimento totalizante. A essa altura da crise, dedicar esforços em combater forças que no campo anti-sistêmico combatem na mesma trincheira contra a ordem é um esforço inócuo, e não contribui em nada para o avanço da consciência das massas. A origem do erro é pressuposição de que seja possível suspender a existência de experiências emergentes que por acaso estejam fora do campo de forças de organização A, B ou C. Melhor seria apostar no crescimento de um movimento que ocorre numa época histórica em que a fragmentação na esquerda socialista é um elemento que não parece ter resolução num prazo médio. E aqui talvez é que esteja o grande debate: que tipo de organização será capaz de absorver o desenho das lutas emergentes? Como constituir uma alternativa de poder dos trabalhadores? Ou seja, como intervir politicamente de modo a impulsionar a auto-organização dos trabalhadores? A essa altura nada que não seja unitário é capaz produzir efeitos progressistas frente aos desafios. Mas unidade não pode significar ausência de debate entre as posições divergentes no interior da esquerda socialista. A idéia de que a polêmica em si deva ser vista com reserva, remete aos piores momentos da experiência socialista no século XX, o stalinismo”.<<<

23: Lamentavelmente, Marilena Chauí, intelectual ligada ao PT, chegou a afirmar que o Black Bloc agia de forma fascista. Pelo visto, os anos de adesão ao petismo cobraram seu preço, gerando uma posição política em que a fidelidade à bandeira pesou mais que o rigor das categorias de análise. (cf. FOLHA DE SÃO PAULO, 2013)<<<

24: Aqui, o próprio aparato supostamente democrático, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, realizou uma verdadeira operação conjunta aos instrumentos mais clara e diretamente repressivos, ao aprovar uma lei de exceção que proíbe o uso de máscaras em manifestações, para facilitar o trabalho de repressão e prisão política por parte da polícia. (cf. NETO, 2013)<<<

25: “A situação história é inétida: o Estado se alça à qualidade de único senhor do jogo. Nos úlitmos trinta anos, erigiu um arsenal de vigilância e de repressão que supera tudo o que já se viu, mesmo à época dos Estados ditos “totalitários”. Já imaginamos o que teria acontecido se os nazistas e seus aliados tivessem à disposiçao os mesmos instrumentos de vigilância e de repressão das democracias de hoje? Entre câmeras de vigilância e pulseiras eletrônicas, amostras de DNA e controle de todas as comunicações escritas e verbais, nenhum judeu ou cigano teria escapado, nenhuma resistência teria podido nascer (…). O Estado democrático atual está muito mais equipado do que os Estados totalitários de outrora para fazer o mal, para perseguir de perto e eliminar tudo o que possa fazer-lhe frente. (…) Então, não se trata de justificar ou, ao contrário, de condenar a difusão de práticas classificadas como “ilegais” e o recurso que o Estado define como “violência”. Pode-se simplesmente predizer uma coisa: vai ser muito difícil que os atos de contestação, que não deixarão de aumentar nos próximos anos, respeitem os parâmetros da “legalidade” concebidos precisamente no objetivo de condená-los à ineficácia” (JAPPE, 2013, pp. 22-3 e 28)<<<

REFERÊNCIAS

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BRAGA, Ruy. “Anhangabaú: centelha de esperança” (12/08/2013), disponível em , acesso em 15/08/2013.

BRAGA, Ruy. “Sob a sombra do precariado.” In. Cidades Rebeldes. São Paulo: Carta Maior e Boitempo, 2013(b).

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JAPPE, Anselm. Violência, mas para quê? São Paulo: Hedra, 2013.

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LUXEMBURG, Rosa. A Revolução Russa. Petrópolis: Vozes, 1991.

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NETO, José Francisco. “Para advogado, leis que querem criminalizar manifestantes no Rio são “de exceção”” (11/09/2013), disponível em , acesso em 11/09/2013.

SADER, Emir. A Transição no Brasil. Da ditadura à democracia? São Paulo: Atual, 1990, 8ª ed.

SAES, Décio. A formação do Estado Burguês no Brasil (1888-1891). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, 2ª ed.

SPITTMAN, Ilse, Der 17. Januar und die Folgen, in: Deutschland Archiv, nº 3, 1988.

TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões sobre o Socialismo. São Paulo: Moderna, 1986.

TROTSKY, Leon. A Revolução Traída. São Paulo: Sundermann, 2005.

__________. Em Defesa do Marxismo. São Paulo: Sundermann, 2011.

ensaio sobre o novo / gleyson dias de oliveira

Há duas coisas que animam[1]1: Palavra derivada do latim anima, que significa animar, dar movimento ao que é vivo. Neste texto, o termo guarda o seguinte sentido: o movimento da compreensão humano que coloca o ser humano em um estado de atuação com o mundo. o espírito humano, - talvez aqui eu vá me prostrar sobre uma reflexão que se liga umbilicalmente com o espírito academicista, por ser esta a minha realidade e, por extensão, a realidade da grande maioria que andam empreendendo mudanças sociais: o desejo do novo que quer se esquecer, - consciente ou inconscientemente, - das fontes que bebe, e o desejo de um novo que olhe e transfira à realidade o que foi bebido das fontes anteriores. O que me impele, quando escrevo, como se estivesse a semear algo de novo, é uma vontade de seguir a risca o primeiro exemplo. Esquecer ou se deslocar conscientemente da posição de ter de sustentar o Atlas[2]2: Titã grego condenado por Zeus a sustentar eternamente o mundo sobre as costas., sendo este carregado pelo meu pensamento e pelo magistral pensamento dos que me antecederam, e, ah, quantos bons há e houveram por aí. É um desejo de explorar o novo apenas com o pouco aparato que adquirimos, mas que, mesmo sendo pouquíssimo, e certamente é, já é um sopro que nos levaria a novos impasses na compreensão do mundo. As concepções que ainda são paradigmáticas na cabeça de nossos velhos – inspiradores e, porque não teorizadores, - em nossas já não o são. Eles ainda esperam, com um aparato mental que ainda concebe tabus, estruturas rígidas etc. assimilar e, se não podem aceitar, ao menos querem compreender, a fim de que não se tornem cabeças obsoletas, e nisto os novos paradigmas realizam em suas cabeças uma dança ininteligível na realidade.

Não se verifica em que medida estamos renovando a sociedade com uma compreensão do velho, que já é superado, seguido de uma modificação do novo que não quer mais repetir os erros do passado. Pois, que de olhar pra trás e sugerir algo novo, Hitler o fez magistralmente. Ele viu em um passado remoto, influências, sempre as influências!, que poderiam orientar uma nova sociedade a um novo modelo. Mas nos guardemos e não contemos o fim desta história, pois nossas retinas ainda estão impregnadas de imagens, nossas narinas com cabelos a derreter pelo imundo cheiro que nos vêm, e nossos ouvidos a controlar o som em uma altura razoável que não nos ensurdeça de vez. O natural na sociedade, pois que é capcioso na sociedade falar em natural, - vemos novos corpos a serem reconfigurados, novas identidades a serem cambiadas, - é sempre colocar em cheque que nova natureza humana esperamos quando propomos novas revoluções. Sendo já, esta palavra, um conceito deliberadamente mutável que caminha com o social, pois que já serviu para legitimar barbaridades, bem como para amparar novos modelos que trouxeram ao mundo feitos que jamais poderão ser mensurados na esfera da evolução humana. Mas retomemos a meada, ou, o fio que nos leva a ela. Falávamos do novo. Pois bem, dos espíritos que estão clamando por uma revolução social, econômica e, graças nos valha qualquer ser divino, política. Este clamor foi tão grande que até falamos já em gigantes que não dormem mais, que acordaram de vez. Estranho que nas epopéias que nos foram legadas não tenhamos muitos gigantes politizados, talvez Hobbes com seu Leviatã. Mas o que se nos avizinha como a figura de um gigante é mais um ser bestializado, com fome. E que de fome entendemos bem. Se somos feitos de olhos de fome e de fome por tudo! Mas cabe lembrar que um gigante com fome não faz política, apenas quer comer e, processo biológico natural, transformar em m.e.r.d.a o que comeu. Ao cabo, talvez tenhamos dado bom termo a este gigante, ele anda obstruindo nosso sol ideológico; talvez, sentado em cima da nossa galinha dos ovos de ouro, ou, até mesmo esperando que nos desfaçamos em simples pessoas a fim de que ele se transforme em pó, pois ele só existe porque nós o formamos nas ruas. A máxima daqueles nos vale, ubuntu: “eu sou porque nós somos” (não guardando a veracidade literal). É de crer que este gigante ainda não viu o novo, apenas o acordar de um sono intranquilo, no máximo, um sono com ruídos escondidos que vem dos cofres da ditadura, mas tão distante que já nem o/nos chama a luta. Este gigante dormiu por muito tempo e, quando acordou, tinha se esquecido de quem era ou quem deveria ser. Foi açoitado nas masmorras, perdeu a vontade de beber Coca-Cola, já não canta mais a sua geração, em suma, não sabe mais enfrentar o governo porque este já não usa mais as armas do passado, agora, bem trajado e mudado, anuncia a luta democrática. O gigante finge que entende o que é democracia, sonolento por certo ainda!, o governo adora esta compreensão torta e o país mascara a verdadeira discussão, ou, mascara o rosto por não saber o que mostrar aos que os acompanham pela TV. O velamento do rosto talvez seja o velamento da alma, entenda-se espírito humano, uma alma tão ambígua que luta por um impulso menos humano que animal, mais de defesa que de certeza. Enquanto isso, na terra do novo, habitado pela utopia, aqueles que nos esperam sorriem, um sorriso chocho com ar de quem sabe que lá nunca chegaremos porque não cuidamos de conhecer um pouco mais a fundo as coisas e de não nos guardarmos mais ainda em verdades verificáveis, ou talvez, melhor cuidadas por um senso crítico que não nos nivela na frente da mídia, mas que nos diferencia como massa desigual, mas desigual por foça do conhecimento que compartilhamos.

[FIM]

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anarquismo coletivo/ camila mendes

Depois de ter passado as últimas quatro horas marchando e correndo de bombas de gás lacrimogêneo, estávamos, eu e uma amiga, voltando da grandiosa manifestação de 20 de junho. Só queríamos pegar a nossa condução, que naquele momento ainda custava o preço exorbitante de R$ 2,95, e voltar para nossas respectivas casas. Procuramos o ponto de ônibus mais próximo, e claro! Todos estavam inutilizados, a rodoviária estava um caos, o metrô fechado. Parece que todos os manifestantes tiveram a mesma ideia ao mesmo tempo: Ir embora dali. Então, pegamos o General Osório com o intuito de descer no meio do caminho e pegar um metrô no sentido oposto em outra estação.

Pois então, no ônibus, estávamos tranquilas. Em nossas cabeças, se havia algum perigo já o tínhamos superado. Pude perceber que o motorista não sabia por onde seguir, afinal de contas, as ruas do Centro da cidade estavam interditadas ou servindo de campo de batalha. Em um determinado ponto do caminho o ônibus ficou no meio de um confronto entre mascarados, que naquela época ainda não eram chamados de Black Blocks, e a polícia. Ficamos muito nervosos e nessas horas parece que todos possuem alguma solução porque cada um tinha um conselho para dar ao motorista. Ele avisou várias vezes que estávamos deixando-o nervoso. De repente, no meio de um falatório, bombas e tiros o motorista levanta, pega suas coisas e diz: “estou indo embora!”. Sim, ele levantou, foi embora e largou sua colega, a cobradora, ali.

Estávamos perplexos, algumas pessoas também saíram do coletivo e mascarados entraram nele. Queríamos sair dali, mas na rua as coisas pareciam piores, meus olhos arderam, era o gás jogado pela polícia que foi parar dentro do ônibus. Uma pessoa (não sei se por nervosismo ou humor negro), perguntou se por acaso alguém saberia dirigir o ônibus. Para nossa surpresa, um passageiro respondeu que sim e assumiu o volante. Foi inacreditável. O motorista salvador da pátria nos tirou dali e como para Black Block anarquismo pouco é bobagem, resolvemos encher o ônibus como numa lotação e de graça. Anunciávamos o itinerário do ônibus aos gritos e cada vez que recontávamos o que acabara de acontecer para quem adentrava o coletivo a história parecia mais surreal ainda.

Em um dia em que todos nós lutávamos contra o aumento abusivo de 20 centavos na passagem de um coletivo, fato este que somente impulsionou o início das manifestações, e em prol de questões como a situação precária da saúde e educação, a falta de estrutura da cidade, o Belo Monte, a situação da Aldeia Maracanã e mais uma lista de causas e revindicações que todos estamos calejados de saber, posso dizer que naquele 485 não se cobrou passagem alguma. A roleta foi simplesmente ignorada. E o que imperava ali era a vontade de ajudar.

[FIM]

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a arte cavalheiresca de outro arqueiro zen / marcus vinicius caetano de freitas

dispara contra a lebre
a flecha o arqueiro insápio,
em certo tiro coxo e cego
por longe passa, suave brisa

tensão no corpo todo faz
e mais: olhos de águia,
tal olharia todo o mundo
e cegueira lhe seria vista

em treinamento contínuo
tenciona músculo, firmeia olho
e a flecha o arqueiro faz
morrer em percurso insonso

— mestre, é impossível
do corpo toda força apliquei,
como contra a lebre disparar
constante alvo em movimento?

flecha pós flecha pós flecha,
de força os músculos não cantam,
tremem-lhe dedos, dói-lhe orgulho,
lebre saltitante mais intacta

— desisto, mestre, impossível
lebre nasceu a não morrer,
saltita a esquivar-se dos disparos,
caros meus esforços vãos

e o mestre, vendado, atira
uma flecha, e não mira o alvo,
atinge lebre em meio salto,
os braços bailam pelo ar

atento, pasmo, embasbacado,
descrê no disparado certeiro,
jaz na terra fria a prova
do olho cego do mestre seu

— o alvo você não vê,
que vê não te pertence,
a lebre não te conjuga,
a flecha não a seduz

arqueiro, entresápio, intriga
dispara flecha chamando lebre
saltitante saltita sempre
disparo se perde em vento

— a força não se é de uso,
você tem de estar suspenso,
a lebre não se faz lebre,
você não se fará você

— mestre, é impossível,
tensão é suporte de arco,
força impulsiona flecha,
olho que caça lebre

dispara arqueiro incrédulo,
sem força, sem olho bom,
flecha de coração erra
outro lebre tão viva ainda

arqueiro, sujeito insápio,
lebre, objeto alvo,
flecha: em entre mundo,
disparo: impossibilidade

quando já não tenta,
quando só relaxa,
quando mira a si,
dispara flecha exata

quando não mais Eu,
quando tudo um,
quando tudo calmo,
dispara flecha exata

dispara contra arqueiro
a flecha arqueiro entresápio
em tiro cego, claro e certeiro
por lebre passa, suave acerto...

[FIM]

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polemochoque/ordem das coias/demiurgia do espírito / caetano neves magalhães

polemochoque

Não sei se erro para estar só
Ou porque sou só
À noite.

Incongruências de mim.
Espiriladas nebulosas sob o céu
Criam nódoas de rubro infernal
Onde o anil se espraia com fachos
Iluminando límpido as ruas da cidade
Enegrecidas com a noite de meu olhar.
Ouço o sentir de cada passo
O estribilho de todas as ilusões
E sigo na rua ladrilhada com o elã
De meus pés enraizados no chão sem verbo
E miro a real humanidade de todos
O pedinte esfarrapado, a mulher prenhe
As crianças crassas de noite avançando —
E a minha viandou em suas almas sedentas
Que imploravam aos ecos deste claustro.

Viver! Viver toda a alegria
Ambígua no passar dos vultos
Aceitar ser não mais
Estar títere no fio das três meretrizes
No telúrico solo onde estâncias grassam
E todo passo é uma luz.

ordem explicada

Nos tempos em que ouço o balbucio
Dos passos, das gentes, das vidas destas
Que me conhecem, se repetem sem ciência,
Acontecem sem querência da essência latente das paisagens,
Sem sentido mas formando o mundo
Sem significado mas renovando as coisas.

Sinto-me feliz em meio essa rua sem rostos
Resignado sem pensamento
Qual um cão que só segue na chuva,
A criança sem rumo e admiradora das mortes que fui,
A que nunca dei a chance de meu filho ser.
Desde sempre que vi santos sem corpos no chão
Exalaram todos seu cheiro deletério na morte.
Deus das doenças — resguarde-me de não ser podre!
De não participar do principal onde há nada
De ser uma luz na vida que não necessita
De abrir mão do que nunca se foi
De não me esbater frente ao céu sem cores
Aos prédios sem passos, às pessoas sem estradas.
Torno-me numa reza sem deuses
Minha alma é um féretro e meu corpo a terra.
Estou só por distúrbios, latência das formas.

Impressionismo das ocorrências, espaço das sensações.

Demiurgia do espírito

Um dia de trabalho. Só mais um único dia em que o burburinho das pessoas ao meu redor zune nas orelhas, como a espuma do mar no barco de meus sonhos. O debater da água ao longo do casco, olhando da proa o horizonte, com o vento que me gela as faces, fazendo as maçãs do rosto avermelhadas na tentativa de nos esquentar. Uma embarcação que anda tão longe, para lugar nenhum de um tempo eterno que não cessa de nos consumir em navegar e viajar no meio da imensidão azul. A tela do computador que em minha frente apresenta imagens e mais imagens de números e mentiras dos homens, e aos poucos vou digitando número por número, tamborilando os signos da “verdade excelsa”. Era tão curioso o momento de uma vida que viaja sem sair do lugar em mundos tão distantes, num coração abissal, numa fissura de distância inigualável. O sonho que tão vivaz nos retira o espírito do corpo, do momento infeliz despropositado.

Ao canto da tela o relógio, a ampulheta gráfica, determinado grão a grão do momento de me levantar do sono profundo a que me incumbi de ter. Passo a passo, o passar do cartão-ponto do intervalo e olhar o delicioso céu que em campo anil trotam as nuvens. Sempre vão elas silenciosas, em luto, em seu aspecto cinzento, prestes a entrar nos prantos do fado cantado do sol para a sua vinda. Chove; suas lágrimas se misturam ao chão que encharca e minhas mãos à janela observando o dia mais infeliz da água que se desfaz em tristeza. Rebato o cartão-ponto, é hora de embarcar e partir do cais, com as mãos no timão, partindo para o azul infinito de minha solidão tão minha. O que fez de mim, ó Senhor? Sentado digitando os valores, as importâncias mesquinhas dos homens que me encarregou, num sentimento preguiçoso de viver sob esta dimensão sensual, a letargia me consome, pois criou um mundo sem propósito, uma vida sem necessidade de ser vivida; quis que tua criação sofresse.

Quisera eu ser forte, sem medo do pensar e do discurso que fizeste. Cada palavra arranjada para me enganar nesta embarcação que a tão longe segue, dos elementos que me fez fascinar, que os me fizeste aparecer. Não temo, pois se enganaste ao me dar a liberdade de pensar em tua obra e vociferar a respeito dela, gritar, arranhar e destruir. Sentado em meu navio, desfruto do prazer incrível, majestoso e, sobretudo, imperfeito de não ter em momento algum o teu toque cruel de tua falsa bondade. Política, mundo, dinheiro, pessoas, até a dizer de mim me enganaste! Preciso navegar, mais do que nunca a lugar algum, num mundo infinito da vida que vive sem tuas cruzes e as trindades, pois da dor não cederei e dos teus amores não fraquejarei. Como um bardo viajante, faço da minha música nas cordas que ressoam sobre a beleza de viver sem ser e do rio que navego, que a correnteza me leve.

O caminho de volta para o lugar que escolhi como meu. O lar do meu coração, recinto terno e delicioso que é minha casa. De lá, taverna doce e simples, viveria longe da necessidade de me culpar. Nunca Soares em seu quarto andar teve palpite tão certeiro, desacreditar em ti é como acreditar, é, pois, indiferente saber quem és, ó Senhor. Quero que a felicidade junto daqueles que a carregam vivam longe de mim, caluniadores do destino mais do que claro. Pois, dos teus pecados, das tuas bondades e maldades, de tuas máscaras que pregas, em teus filhos hão de sucumbir. A libertação é breve, simples e indolor, pois a morte só poderia ser digna de um deus pagão. Viver é sonhar, e quisera eu sonhar agarrado ao dorso de Apolo, que me rege para nunca mais crer em tuas mentiras, a verdade só poderia estar na idéia de um mundo em que a dor fosse a beleza. E se um dia, da idéia de dor eu me libertar, darei a ti um cálice de água, que em sua aparência cristalina verias do pé a mão que o turvo e o vinho são dos irrequietos com tuas pragas. Sou teu maior herege, com amor.

Finalmente, em minha cama, acocorado à cabeceira de minha cama, fito toda a criação e criatura que mais um dia se foi e não compreendeu a ternura do vazio que dia-a-dia nos dá o sonhar. Arrependo-me amargamente da finitude de meu sonhar. Meus pés na areia que sentem os grãos entre os dedos ouvindo o barulho, vendo a embarcação retornar. Os cabelos que dançam com os sopros etéreos de uma leveza pura, dançante e musical junto da água que reflete o sol num caleidoscópio de cores, um arco-íris de diversidade. Enfim, como poderia ser a liberdade de sonhar tão desastrosa para não se poder amar a dor? Pecado maior é existir, delícia maior é não ter medo de viver. Sonhar sempre foi preciso.

[FIM]

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contradicao + as duas faces/bruna baldez

contradição

Faz-se dia
Eu anoiteço
Cai a gota
Endureço

Na sombra
Eu acendo
No vácuo
Me preencho

Nasce o rio
Eu definho
Cai o corpo
Regenero

Mascarada
Me desnudo
Em festejos
Ando armada

Porque sou muito e pouco
Tudo
E nada.

As duas faces

D’um gesto descuidado
O corpo desconfia:
Quem é essa, do outro lado,
Que me anula e me copia?

Com olhar ambíguo,
Ora ousado,
Ora esquivo,
Repara, mais de perto,
O excesso e o vazio

De pó branco e roupa fina
Um sorriso dócil encena:
Hoje, sou Maria,
Amanhã, Madalena!

[FIM]

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ideia/vinícius loureiro

E a palavra não dita
Que antes se precipitava na ponta da língua
- Um pequeno deus ávido por existir -
Escorrega, contendo-se tímida
No canto da boca escondida
Sob a abóbada palatina, cobertor infindo
Úmida, vai perdendo a cor
E o vigor que antes exasperava, pressionando
Fazendo deslizar garganta abaixo
Desfalecida, sufocando lentamente
Somando-se às irmãs, algumas gêmeas
Aumentando o peso até que se desfaz
Um engolir seco - um suspiro cansado

Ideia apenas.

[FIM]

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sonho/danilo diógenes

um kamikaze me abraça
com seu colete explosivo
não posso perdoar seu pecado
digo
ele me olha nos olhos
e explode

nossos pedaços são recolhidos
ninguém vai saber
quem era eu
quem era ele

ninguém vai saber quem amava
quem tinha filhos
nem vai saber quem era um centímetro e meio
mais alto do que o outro
ninguém vai saber quem carregava no bolso
um número de telefone
um isqueiro
um chiclete

um borrão vermelho na terra
nosso sangue entrelaçado nossas almas
nossa perplexidade incontornável
eu era eu
ele era ele
não vão saber disso

Aumentando o peso até que se desfaz
Um engolir seco - um suspiro cansado

[FIM]

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poemas visuais/felipe andrade

[FIM]

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quando nasci + ode súfera/sérgio outante

Quando eu nasci
Eu nasci...
Não chorei,
Fingi-me morto
Pois a vida
Já me cansava.

ode súfera

Até quanto estarei mentindo a mim
Que vivo, vivendo assim?
Quando deixarão de ser minhas fugas
Frutos de quimeras, sonhos?
Terei algum dia a grande chance
De sofrer sangue em meu rosto?
Não durmo, não sonho, não hoje mais
Existo pra fora e só.

Sinto-me incrível, terrível
Sonho o sonho de ninguém
Anseio a pior das ansiedades que não querem
Existo na linha da existência que nunca achei
Quero as formas, todas as formas de mulher,
Homem, criança, inseto e água
Acima de tudo a forma deformada dos que odeiam a vida
Jogar-me de cara no poço das doenças da humanidade
Como me banhasse com as ninfas e sereias
Colhesse flores com o jovem Adônis
Sorrisse com Lua-Ártemis
E vivesse numa mistura Nyx-Mercúrio
Projetando-me às longínquas breves paragens plutônicas.
Tenho os ódios de todas as pessoas que existem ou não
Todos os ressentimentos e medos de toda morte insensível
E como se a vida fosse perfeita e pudesse ser diferente
Esgarço-me numa explosão esquizofrênica cotardiana
Sorrio-me cadáver vivo a sentir repentinamente a carne apodrecer
O mundo tornar-se âmago
A vontade esmorecer em chorume
A face tornar-se fauce
O sorriso infantil descer à cintura
O bufê tornar-se mofo Os seios secar o homem
As esperanças tornar-se grandes
A mensagem perder-se na Hora
O vagido tornar-se pele
A vida esvoaçar-se estilhaços
A vida tornar-se mundo
O mundo engolir o mundo
O mundo tornar-se mudo
O mundo tornar-se surdo
O mundo tornar-se enxuto
O mundo continuar mundo
E tudo por um capricho
Pelo mais inocente desejo de viver como nunca
Ter o desespero onde fica o coração
A modorra onde fica o cérebro
Desejo de sangue transviado pra pele
Inundando as ruas e rios de meu ver
De que vale a carcaça que não seja rubra?

Só pelo acidente de tudo existir
Anseio as angústias das palavras
Que o verbo encruste tão profundo em mim seus gritos
Junto de todos os gritos de guerra, de queda
O estouro do canhão e clarim das primaveras.

Quando ontem eu era jovem e não sabia o que fazer da vida
Meus desejos eram outros e eu sentia diferente
Hoje, após tantas horas, consigo enxergar
Os ensinamentos que não entendia fizeram sentido
As normas impostas foram seguidas
As dívidas todas devidamente pagas
Hoje eu cresci e parece ontem
Quando eu tinha em mim os sonhos supernos
Quando as coisas tinham uma possibilidade descomunal Uma independência de gozo e esquecimento
A brincadeira mudou, o coração se escondeu de riso
O contorno das coisas se tornou grosso
O meu corpo, antes com os limites da desimportância, se esvai hoje
Na liquidez grossa do que me faz, insosso
Um contorno tal que não se sabe se perdi ou nunca tive profundidade
Me lanço no chão e repito até quebrar e saber se há algo
Se algum dia tive.
Apenas sei que nunca terei.

Solidão e fome extremas
Rejeição, nojo de mim e do que serei
Deformação de meus ossos para atingir o belo
Para ser o que há de belo no mundo
Revolta de glóbulos celestes em matéria eu
Toda abnegação e fé adentram-me arenosos
Num desejo hepático de ser aquele que reinará
Sem cruz nem caminho
Cegueira, vingança e suicídios trágicos:
Desejo a todos os homens
De cada um para mim de volta
Tudo de uma só vez, como o doce único
De sentir-me mulher estuprada, criança enterrada viva,
A humanidade inteira esquartejada sem morte
Frente todas as fobias da alma
Uma psicopatia das paixões.

Que poema é o mais belo?
O que data todas as guerras, invasões,
Incendiamentos, saqueamentos, inquisições, holocaustos
Com a grande pilhéria de Auschloch;
O que conta das pessoas todas cujos gritos
Fazem meu sangue esquentar, revirar e dar piruetas;
Cujas lágrimas nutrem meus versos. Sim, quero a ação prévia de quem vai perder a idade
Perder a utilidade.

Pessoas máquinas, pessoas armas
Pessoas mutantes, transmutantes
Pessoas sem voz, olhos, ânus
Pessoas ciclopes, bifurcadas
Pessoas vivas e natimortas
Ah, é muita insônia e amor patético
Para uma pele que exploda sofrer.

Em meio ao festival, pessoas alegres
Correm de um lado pro outro as crianças, minhas iguais
Tão distantes de mim por destroços
Odeiam-me pela mutação que implorei ser
Me tornaram escória – sinto-me feliz
Ao ser jogado no chão por um bêbado
Ele me chuta e escarra em minhas costas
Vai, e eu não choro, não me movo
Não respiro, não olho, não ouço
Mas sei, sim, eu sei que me rondam
Todos me olham e se indignam com a bituca.
Dentro de mim, com os olhos na terra,
Vejo tudo o que sou neste instante
Um ponto lacrimejante, desesperado
Tão minúsculo, corpo de mulher que nunca fui,
E absurdamente real.
Nunca conseguirei me aproximar,
Sendo o que sou, não posso sê-la...

Quanta beleza nas lágrimas
Que estática corporal!
Vagorosamente cansado
Diminuo em grau eterno Minha alma se encolhe em mim:
Há nada, ela se solta.
Estamos mortos, sós
Descreço, descreço
Ínfimo, vejo-a
Chora, menina
Eterno eu.

[FIM]

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o inverno de mil vozes + espinha de peixe / angel cabeza

O inverno das mil vozes

É preciso mais de mil vozes
para se erguer uma voz
que cale os muros
os postes
o cimento
solitário do arranha-céu
O uníssono marcha para
a queda das vigas
para a tristeza das janelas
que olham o futuro
A poeira é limpa pelo fogo dos gritos
pela impressão que o sangue causa
Os cavalos não relincham
olham atônitos
para a força das mãos
e se deixam levar
para a batalha já vencida
A fumaça dá o sinal
que o vento ergue como bandeira:
os supostos gigantes
caíram pela marcha seca
daqueles que sequer possuíam
as intenções de Davi
É preciso mais de mil vozes
para fazer tremer
uma única voz
para torcer um grande alicerce
É preciso mil olhos
para se rasgar a escuridão
e entoar hinos que aprisionem
a liberdade
mais de mil vozes
para que do silêncio
se levante
um horizonte

Espinha de peixe

Não era sempre
que comíamos peixe no almoço
Meu avô cuidadoso
retirava as espinhas para
que não as engolisse
Deixava o aviso:
percebido o sufocamento
comesse pão
Batia com a mão mostrando
como o animal fazia antes de ser morto e acrescentava:
um homem do mar jamais se sufoca em terra firme
Temo essa espinha da memória
osso de outro ser
dentro de mim
escombros marítimos que
contam história de
navios naufragados
Fui obrigado a comer sob
os olhos arregalados do capitão
e seus grossos dedos
Cada espinha um olvidar de ondas
Atracado o navio
hoje engulo todo o mar
propositalmente
Não há mais espaço
para terra firme.

[FIM]

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lolla / weliton oliveira santos

Minha torneira
Estava intermitente, amor.
Quis, louco, tomar banho.
Pois, debaixo de tua roupa,
Tua pele era um carnaval.
Debaixo da tua roupa,
Tua derme, mordaz, rebolou para mim.

Teu olho steampunk
Piscou num complicado
Processo mecânico.
Eu entendi-te, baby, mas minha torneira
Estava louca, me deixou intermitente:
Cal e poeira cósmica me agrediam.

Teu cabelo alaranjado me desordenou o senso, Lolla.
É o que diz tua gíria:
Coração, bombeado
Numa longa cadeia de dominós indecisos.

Lembrei de ti e me veio uma poesia
Muito petulante: uma poesia baby.
Todavia eu nem tinha papel
Meu lápis acabara.
Cantar ao vento nem podia.

Aí pichei um muro, marquei lá.
Não podia deixar escapar,
Você estava nos meus dedos,
Na minha homenagem transgressora.

Acabei preso, amor:
Era proibido riscar poesias no muro.
Debocharam do meu crime,
Eles mal sabiam.
Ninguém sabia.
Eles riam, o zelador ria, o carcereiro ria.
Xinguei todo mundo,
Aí me compliquei.
Mandaram-me para
A cadeira elétrica.
Assobiei.
Eles não sabiam
. A cadeira elétrica, para mim, seria besta.
Eu conhecia a tua eletricidade
E o resto era à toa.

Morri de tanto rir naquilo, baby.
Fui para o Inferno,
Isso era esperado.
Satã, de cara, não gostou de mim.
Assim, no começo, foi duro.
Mas depois a vida melhorou.
Até jogamos uma partida de xadrez, eu e Satã.
Vez ou outra conversávamos,
Mesmo sendo ele um Anjo muito solicitado:
Esse negócio de pactos
É muito dispendioso, se reclamou uma vez.
Porém não entendi direito,
Pois, em seguida, rio malignamente.

Então eu me entretinha
Com uma diaba, com outra diaba,
E nada de você morrer.
Sua demora me frustrava.
Mas, naquela época, eu andava já irritado
Com todo aquele enxofre,
Com todo aquele ranger de dentes.
O fogo, depois do primeiro mês, já não incomoda.

Meu medo era você bandear-se.
Que fosse para o Céu eternamente.
Mas, aí, você morreu amor.
Inferno baby!
Você era perversa, logo ganhou status.
Muitos demônios até te temiam
Sendo você tão você.
Outros tantos te invejavam:
Seus olhos, duas lanternas encarnadas.
Você encantou.
Então nem teve modo de ser minha.
Você sempre fora assim, só sua.
Aí me debrucei, assim, intermitente.

[FIM]

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morimorto/leonardo a. alves de lima

Maldito calor que se faz em velórios! É um tipo de calor que só se faz em presença de féretros e velas acesas, mais úmido e estalante que o calor comum. Pessoas suam por sovacos selvagens e pescoços roliços, ficam inquietas. Moscas, moscas enormes atraídas por aquela gente suada cheirando a desodorante, rodopiante e sem rumo, pousam suavemente sobre as narinas algodoadas do morto. Ninguém que as espante.

Recebo os cumprimentos do lado da viúva, deve ser ela. Mulher choraminguenta de vestido de cetim e lenço branco emprestado por um cunhado. Vez em quando abre um berreiro longo é amparada e principia um desmaio, mas a mosca que é bom ninguém espanta. Sentadinho de onde estou vejo só a fronte do morto e o nariz algodoado, cisma dessa gente em por o caixão baixo, deveria ter ido para a capela do lado, lá o cuidado com o morto inclui regulagem das hastes e uma tia de blusinha de viscose que empunha a raquetinha mata-moscas elétrica verde fluorescente. Vez em quando o estalar que a raquete faz ao assassinar uma mosquinha assusta a gente toda, mas é bom, uma parte ri e até serve pra descontrair um pouco. Ouvi de ouvido longslongo que o morto deles ia gostar que fosse assim. Não fui, fiquei perdi aqui é mais tradicional. Os berros, as convulsões os desmaios, os cunhados do lado de fora contando piadas e sendo repreendidos por um avô ou qualquer outro cuja barba branca confira autoridade. Malditas moscas! Não ia querer moscas pousando no meu algodão. E vão ficando mais desavergonhadas, moscas são assim, se não são espantadas fazem pior. Agora pousavam na boca entreaberta do sujeito. Desconjuro sete vezes!

Pinga sempre aparece não que haja botequins nos cemitérios, o que seria imensa falta de respeito, Padre Chico não aprovaria. Vem carregada em copinhos descartáveis ou já impregnada nos buchos dos parentes que já bebem ao receber a notícia e depois se lançam em forma de suor sobre sovacos selvagens em cheiros e odores que misturados às flores baratas do caixão formam o cheiro da morte, o próprio Zé Maria travestido em negro longo de brim e foice à mostra deve de ter aquele cheiro. Moscas malditas, cheiro do rio Estige, calor úmido e velas acesas. Não demora e um parente etílico se joga sobre o caixão maldizendo a Deus e bendizendo o diabo pela morte de homem tão bom. A viúva desmaia de novo e sai carregada. É seu momento. É diva carregada por fãs enlouquecidos. Água, mais água! Com açúcar. Abana, abana mais. Mede a pressão. Leva pra UPA! “Não, pra UPA eu não vou, perco o enterro e a ressurreição! Fico”. Ficou pra daqui a pouco desmaiar de novo. Pra que ir?

Fiquei. Delicioso momento que às vezes custa mais a acontecer. A pinga acelera, mas nem sempre. Há ainda uma falta, depois vou embora. A loira há sempre uma loira. Descoloridas, pintadas em tons de cobre. Alisadas, marroquinas ou progressivas, tem sempre uma loira pra botar fogo no inferno. E não é ela ali que surge qual crepúsculo brilhantino envelopada em tubinho?

Finalmente, chegou.

Neide de coxas grossas e vestido colado. Estampa de oncinha e chapéu de abas longas. Neide louraça belzebu que se debruça sobre o caixão lançando seios fartos sobre o morimorto de morte morrida. Gritos de “meu homem” ecoam por todo o lugar. Pranto e choro estridente enquanto um parente qualquer vira uma garrafa de água ardente barata sentado ao meio fio do outro lado da rua.

Treme a terra e rugem os céus, abalam-se os mais altos montes. Os titãs se apresentam à batalha épica, a luta que decidirá o destino dos poucos bens do defunto. Um Fiat Uno 1992, uma casa alargada por um puxadinho lá na baixada e a pensão. Ah, a pensão! Por aquilo se vive ou morre-se à mingua. A viúva, que até então desmaienta e fraca apruma-se qual soldado de Napoleão, totalmente a postos. Garras à mostra, dentes serrilhados e impropérios lançados ao vento contra a oponente. O público vai se acomodando para assistir a luta do card principal. Do lado azul uma recém-viúva, oitenta quilos, um e setenta de envergadura, pela primeira vez pondo seu título em disputa. Do lado vermelho a desafiante, uma amante de setenta quilos, um metro e sessenta e oito de altura e possuidora do melhor do jiu-jitsu tupiniquim, unhas e lábios vermelhos qual o inferno. Ladies e gentleman, it’s time!

O chapéu voou, o cabelo voou, o seio voou que à mostra trouxe frisson ao público pagante. Neide, a desafiante era mais experiente, já havia combatido sem sofrer derrotas ao contrário da viúva que a pesar de defender seu cinturão era a primeira vez que enfrentava um oponente de outra categoria. Corpos lanhados, um lábio rasgado e sangue ao chão. Aplausos do público até que a intervenção do juiz se fizesse necessária. Neide vencia por finalização. Um armlock encaixado com perfeição suíça. Entre o público, delírio. E quando os parentes do morimorto de morte morrida se preparavam para lançar mãos às armas a viúva fez o que qualquer viúva derrotada faria em seu lugar, mais uma vez desmaiou. Mas desta vez não voltou a si, virou os olhos e espumou. Incrível como o público tende a apoiar o mais fraco, os que aplaudiam Neide Belzebu vitoriosa, agora tomavam partido da viúva combalida. Carro! Tragam um carro! Samu! Chamem o Samu! Não dá tempo. Aquele parente berrão gritou de lá: “Se morreu enterra”. E terminou com aquelas gargalhadas de arrepiar qualquer Zé Pelintra.

E morreu. Não, não era truque de derrotado, não era migué de gente esperta pra desviar a atenção de um assunto qualquer. Morreu a viúva e Neide de morte matada, agora era acusada. Um moleque saiu correndo pelo bairro. O que foi moleque? Foi lá no cemitério sinhô. Foi o quê moleque? Deu os polícia no enterro. Nome? Maria Aparecida dos Santos. Disso eu sabia, mas não aquela tia, outro parente e o bebum do meio fio. Neide era nome de guerra, pois não? Pois sim que a guerra se fez em plena capela mortuária de um cemitério sem nome. Cabo Pacheco era um mulato bonito, alto de porte nobre e olhar fixo. Escrevia em folhinhas soltas enquanto o rabecão dava o carreto no corpo da viúva. Os coveiros inquietos reclamavam do tempo, pois é fato sabido que horário de enterro é sagrado e do mortomarido já estava atrasado. Pacheco, o Cabo deu a ordem, repousou o féretro em sua última morada, isso eu vi, vi eu só, pois toda aquela turba já debandada deixou o pobre morimorto só em sua última jornada. Nem padre e nem bispo era eu e o Janilson o coveiro. Eu não sou de falar e coveiro que se presa também não. Jogamos a terra e então tá.

Tá lá o Cabo Pacheco conduzindo Maria Aparecida dos Santos para o banco do camburão, banco de trás em que ele também sentou. E ficou lá. E ficaram lá. E Neide saiu, saiu de lá. Vestido ajeitado, cabelo arrumado. Andar rebolativo e aprumado Neide dos Santos Aparecida da batalha. A patamo acendeu as luzes, giroscópio a toda, sirene escandalosa. Deu no rádio do Janilson que na Cinelândia, em polvorosa, o povo pedia por seu direto em verso e prosa. Voltei caminho abaixo, pois naquele cemitério morto se enterra em colina e encontrei lá naquele meio fio o bebum parente que dizia que dali não sairia, pois a viúvamatadamorrida já já voltava.

[FIM]

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Certa vez alguém me disse que homens inteligentes e sensíveis não são bons de cama.../letícia buendia

Certa vez alguém me disse que homens inteligentes e sensíveis não são bons de cama. Não... Não vou começar esse texto com este parágrafo deveras libertino, quero começar com coisas idílicas, porque sou idílica deveras. Chamei-te de príncipe, mas você é bem mais que isso... Você é o homem de olhos mais dançantes e sinceros... O meu prato preferido ( pra não dizer meu comedor), meu solstício e minha realeza...Ah meu bem como te amo um tanto! Você me salva e me aprimora! Meu aconchego no teu peito não é fácil de ser descrito... Então me calo. Me calo diversas vezes por que escutar o ronronar do teu peito é a coisa mais deleitosa do mundo. Eu só sinto e nada comento... Você me cala e me aconchega e me morde a nuca como felino enquanto me desfolha as orelhas e me deflagra o corpo com beijos inimagináveis... Certa vez alguém me disse que homens inteligentes e sensíveis não são bons de cama... Não... Não vou prosseguir o texto com frase tão chula... Onde resides afinal? No meu peito? Na minha cama? Na minha mente doente? Ou na minha novela mexicana? Você ainda me ama? Diz-me agora, pois preciso escutar todas às vezes possíveis... Escutar que sou sua mulher me penetra de outra forma... enquanto me penetra daquela forma. Sou sua... Muito mais que preciso... mas sou...Agora peço licença ...e poética: os meus planos são os de bombear teu sangue mais rapidamente...te deixar impaciente em cima de mim (ou embaixo, tanto faz desde que dentro), te gritar caladamente nomes irreconhecíveis e insignificáveis e você respondendo com ar quente na minha nuca. Certa vez alguém me disse que homens inteligentes e sensíveis não são bons de cama... Não, não vou me expor tanto assim... Pois certa vez me repreenderam... Mas então pra quê sentimentos se não for pra expô-los ao ridículo ?Sou deveras ridícula... Você tem cheiro de sol de varal, de palha, de trigo, de água calma, de chá de frutas vermelhas. Você tem o cheiro das minhas roupas íntimas engolfadas de desejo. Estou acostumada a teu corpo sem que isso signifique rotina... por que a cada dia descubro uma senda , um cheiro , um gemido um prazer diferente,...Você é meu canto , minha hora boa, meu sopro de vida. Então imploro: Não cumpras tantas distancias em mim. Certa vez alguém me disse que homens inteligentes e sensíveis não são bons de cama... Não vou continuar desse jeito pra não causar qualquer inveja em centopeias desejáveis e descaradas. Você é meu... e eu já disse. . Povoa então minhas idas e vindas com seu corpo entrelaçado no meu... com seu dente marcando minha nuca, com sua boca lustrando todo o sexo e seio, com sua voz de cantor de modinhas tristes no ouvido esquerdo, com seu cabelo encaracolado na minha boca. Meu corpo será tua releitura, a chama da tua pele, a alvorada do teu desejo. Morro nos teus braços e revivo logo após. Contigo não estou abreviada e tenho ânsia de me jogar às feras... às feras que o seu corpo revela. Tenho urgência das tuas pernas, das tuas coxas... dos teus pés, Não quero a escassez do teu corpo ...quero a escassez da escassez...A riqueza que desejo é a tua e só a tua. Sim estou gesticulando pateticamente juras de amor... você detesta? Vontade louca de te ocultar em mim... ocultar inteiro até que nem eu mesma ache. A vontade é a de te comer em poesias temperadas... de agredir tua insônia enquanto eu durmo. A vontade é de me dedicar às ciências ocultas que predizes inconscientemente só pra ter o que conversar...

A vontade é de te arrancar os cachos pra dizer que isso não é coisa de homem. Ah meu mais precioso bem, a vontade é de te saciar todas as vontades... qual dessas tuas é a mais urgente? Estou quente só de escrever coisas... estou de pelos arrepiados e de boca salivante. Aparece agora no meu quarto de insônias estimuladas? Descrever-te é meu mistério. Quero desmoronar em você, enquanto vira liquido em mim. Certa vez alguém me disse que homens inteligentes e sensíveis não são bons de cama... e eu de fato não me pronunciarei quanto a isso.

[FIM]

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arma/diego viana da costa pinto

Ele vê a arma nas mãos do policial, uma espingarda de cor tão escura quanto a sua farda, e se sente calmo. Sabe que nos dias anteriores a polícia não foi gentil com os manifestantes, mas ainda assim se acalma diante de sua presença, talvez não pelo rótulo da força policial, mas pelo uniforme, que lhe traz algum conforto diante de tudo que se passa ao seu redor, uma espécie de calma trazida pela existência de um sistema que o protege. As pessoas começam a chegar de diversas formas, em diferente número, e logo está rodeado por seus compatriotas. O sol ainda dá sinal de que continuará lhes acompanhando por uma hora, no mínimo, mas logo dependerão de uma luz comandada por seus inimigos, se é que essa é a palavra certa. Na concentração, todos estão animados, há uma atmosfera no ar que contagia a todos, como uma corrente elétrica que passa de mão em mão. Começam então a andar, a conversar, a cantar e a gritar. “Liberdade”, “Igualdade”, “Justiça” etc são palavras jogadas ao vento que lhe rodeiam com mais ou menos significado. Os últimos momentos ensolarados são regados de uma alegria contagiante. O pôr-do-sol de um dia, para que venha outro, completamente diferente.

Sente-se pela primeira vez em sua vida parte de algo maior que si mesmo. Não é mais apenas uma pessoa que senta em seu sofá e observa o mundo que passa devagar, sempre do mesmo jeito, na tela da sua televisão. Não é mais alguém por quem a vida perpassa sem que haja marca qualquer de sua breve existência. Aqui ele é parte de algo. Algo tangível e permanente. Aqui ele é alguém, mesmo no meio de tantas pessoas, tantos milhares. Pessoas que ele provavelmente nunca verá novamente, mas que estarão sempre conectadas a ele por um momento brilhante de algumas horas no qual foram um. Nunca esperara poder um dia dizer que fora parte de algo assim. Imagina-se dizendo a seus netos, daqui a dezenas de anos, que participara do movimento que mudara o país, que fora responsável, mesmo que de forma diminuta, por aquilo que os rodeia. Vê seus pequenos olhares admiradores, agradecidos, observando cada movimento de sua boca, que conta a história de um momento único na história do mundo, do seu país. Um momento que, mesmo há décadas de distância deles, ainda existe e é tão presente que parece correr por suas veias. Sorri sozinho, pensando no prospecto de um futuro brilhante que o aguarda, não amanhã, nem depois, mas daqui a muitos anos. É o começo do futuro, o fim de um passado que parecia eterno. É quando tudo se renova. Na euforia do movimento, tudo parece passar rápido demais. Aquelas horas que deveriam durar milênios são afinal não mais do que horas, mas ainda assim não perdem seu significado. Eles andam, lado a lado, e de braços juntos, caminham contra o vento quente que lhes atinge, como que para lhes dar um novo sopro de ar. Não há luta, não há destruição, há apenas a vontade de construir um futuro melhor, de mudar o mundo, o país, a cidade, e quiçá, mudar a si mesmos.

As horas passam e todos se dispersam, vagarosamente. De pouco a pouco, alguns saem, e a multidão logo se torna desconexa. Parece que o dia acabou, mas que algo aconteceu ali. Haverá outros dias. Amanhã, depois, sempre. Há muita correria ao seu redor, ele percebe, e decide ir atrás dessas pessoas. Talvez o dia, afinal, não tenha acabado. Chega a um grupo muito diferente daquele do qual fazia parte. As palavras que sobem ao ar são as mesmas, mas, ao mesmo tempo, soam completamente diferentes. O ar é mais pesado. Não são mais as mesmas pessoas, as mesmas ideias, quiçá não é nem mesmo o mesmo dia. O barulho de vidro quebrado, os gritos enfurecidos, os pedidos de mudança que agora carregam um tom violento, mostram todo um novo lado da luta. A insatisfação tem muitas facetas. Sem nunca ter visto uma guerra, ele pensa que ali, poderia muito bem estar acontecendo uma.

Há uma estática no ar que parece prestes a transformar aqueles milhões de metros cúbicos de oxigênio em puro fogo. Repara então que já queima a rua, os carros e tudo mais em sua volta. A faísca foi lançada. Não há mais volta. Dançam alguns em volta de uma fogueira, numa espécie de danse macabre diante do fim do mundo. Resta então saber se é o fim de todo o mundo. E se for mesmo o começo de um novo, como ele imaginara, se é desse mundo que ele quer fazer parte. Ele está parado no meio de um turbilhão. No olho do furacão, ele se pergunta se todos querem a mesma coisa. Se é possível que um grupo de pessoas queiram a mesma coisa. Se todos têm conceitos diferentes do que é a paz, do que querem para o futuro, como ser um só? Logo, se vê se perguntando se era real aquilo que sentira mais cedo. O confronto começa e ele logo se vê no fogo cruzado. Um espectador que chegou perto demais do espetáculo. A magia, então, logo se dispersa. A polícia está de um lado, os manifestantes de um outro, e a razão muito longe dali. Ele vê pessoas que tentam fugir da confusão. Gente que não quer estar ali. Ele pensa em ir embora, mas não consegue se mover. É tudo demais para ele. Olha para o lado e vê a arma do policial, o que o acalma. É o uniforme, com certeza, que lhe traz essa ideia de ordem e que o deixa relaxado. Eles o protegem afinal. É para isso que eles estão aqui. Ele vai sair dessa. Logo, estará em casa, vendo na TV as imagens do que aconteceu mais cedo, ouvindo de outras pessoas o que vai acontecer no futuro. Ele é novamente tomado por aqueles sentimentos esperançosos. A calma o traz de volta a seus pensamentos mais serenos. O policial está ali, em seu uniforme, e tudo está bem. Ele olha para o policial e sorri despreocupadamente. Tudo está bem. Ele vê a arma e a arma atira. Ele só então vê que foi contra ele.

[FIM]

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a caça e a complexa palavra alheia/maíra ferreira

Lançado em 2012 pelo diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, e com Mads Mikkelsen, protagonista do seriado Hannibal, no elenco, A Caça assusta, primeiramente, pela veracidade incômoda que traz em sua trama. A história dos injustamente condenados não é recente, nem na arte nem – muito menos – na vida, mas, ainda hoje, tanto em uma esfera quanto em outra, continua a nos perturbar sempre que um novo caso aparece. No caso de A Caça, a condenação parte das palavras de uma criança que, sem ter ideia da dimensão do que diz, acaba por traçar um caminho sem volta na vida de Lucas, personagem de Mikkelsen, sentenciando-o a pagar por atos nunca cometidos.

Antes de tal condenação, no entanto, o diretor cria, espertamente, uma atmosfera extremamente agradável na vida aparentemente pacata da cidade pequena. Todos conhecidos, ajudando uns aos outros, vivendo em uma comunidade singela e unida, na qual Lucas é situado como um personagem querido pelos outros – o que fica evidente em variadas cenas no começo do filme, como o momento em que todos vão nadar no lago ou quando bebem juntos, além de, claro, a solícita atenção que Lucas dá a Klara, filha do melhor amigo, o que, posteriormente, será interpretado como mais uma evidência contra ele.

A pintura da realidade pré-condenação se faz necessária conforme o segundo momento do filme chega, de forma que, lentamente, acompanhamos a dissolução daquela atmosfera anterior, substituída agora por um clima de tensão e de hostilidade crescente em relação ao personagem. É interessante perceber, porém, que, embora o ponto de vista adotado durante o filme seja o de Lucas (cabendo ao espectador a identificação com o personagem, sua colocação no lugar dele e, a partir daí, o consequente incômodo que vem junto à sensação de estar sendo injustamente condenado), também temos vislumbres da perspectiva dos outros envolvidos na situação, percebendo quão igualmente frágeis são as suas posições: aos pais da criança, resta a indecisão entre acreditar no que diz a filha e acreditar no que diz o melhor amigo; e a própria Klara, em sua confusão infantil, se mostra quase que uma segunda vítima, visto que é colocada no olho do furacão. É nítido que a menina não tinha ideia do que dizia e muito menos do efeito que tal afirmação teria na vida de todos, o que torna compreensível seu dilema (não verbalizado, mas muito bem transmitido pela pequena Anikka Wedderkopp) com relação a já não saber o que de fato ocorreu e o que ela própria imaginou – afinal, se a própria mãe diz que ela deve estar esquecendo o mal que lhe fizeram, o que fazer senão acreditar?

Já nesse segundo momento, o que salta aos olhos é também a reação da população, que – diante das declarações – não espera para confirmar a culpa de Lucas, condenando-o precipitadamente e fazendo dele alvo de uma hostilidade quase ferina. A teórica calmaria da cidade é não apenas desmontada, mas desmascarada - uma cidade pacata, até que haja motivos pra não ser; civilizada, até que alguém nos acorde a selvageria; amiga, até que não mais. A necessidade humana por um bode expiatório, em quem jogar a responsabilidade por todos os pecados, se mostra aí com evidência, em cada um dos atos desnecessariamente cruéis, desde o espancamento no mercado até o assassinato da cachorra de Lucas.

Mais do que uma trama interessante ou outro enfoque sobre a sempre discutida questão de pedofilia, A Caça assusta por ser, em sua essência, uma história universal, atemporal, plenamente viável de acontecer com qualquer um de nós. Pior: assusta não apenas por isso, mas por nos mostrar, através de uma situação extrema, como somos, em maior ou menor grau, determinados pela palavra do outro. Afinal, até que ponto conta aquilo que fizemos e que não fizemos diante da certeza alheia? Frente à completa falta de evidências, resta o tradicional "uma palavra contra a outra" – e, se uma dessas palavras (como a de uma criança) possui maior valor, por qualquer motivo que seja, cabe à outra o apagamento de sua própria verdade, verdade em si mesma inteiramente inútil já que não encontra fora de si nenhuma espécie de comprovação, muito pelo contrário.

Nesse contexto, a cena final vem trazendo todo o peso da situação: já não é possível voltar a ser o que se era. A Lucas, resta o novo presente, a possibilidade de futuro, mas nunca sem a marca de se saber condicionado pelo outro, com tudo que esse condicionamento carrega. Em A Caça, não há diálogo possível simplesmente porque a palavra de Lucas não encontra espaço para se manifestar diante do peso que a palavra de Klara possui (e, desencadeada por ela, a palavra de uma cidade inteira). A marca irretirável acorda ao menor sinal e a cidade, depois de mostrados os dentes, já não é capaz de retomar a antiga e ilusória calmaria - não depois de já ter trazido à tona tudo que jazia sob ela.

Por trás dos tradicionais injustiçados, o que encontramos vai muito além da decisão a respeito de qual dos lados possui a versão verdadeira dos fatos: o que os injustiçados, como Lucas, nos obrigam a enxergar – perplexos e incomodados – é precisamente a impossibilidade de se contar apenas com a própria voz para determinar o que é a verdade e, mais do que isso, a nossa inescapável condição de reféns do discurso alheio. Quando se trata de uma palavra contra a outra, às vezes a uma cabe o papel de caça e à outra o de caçador.

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um secretário, uma cozinheira e um general/Pablo Baptista Rodrigues

A leitura pode ser entendida como uma das atividades mais sublimes que um ser humano pode realizar. Desvendar um código, como as letras, é algo que permite ao leitor a entrada em mundos desconhecidos, em mares nunca antes navegados. A Literatura vista como um desses mundos é um espaço que está aberto a todos. Há uma porta aberta esperando somente, que entrem por ela.

Sendo a Literatura esse mundo e compreendendo as páginas de um livro como um meio que permite a entrada, este mesmo livro não é somente o caminho para um novo lugar, como também é a chegada. Dessa forma temos a narrativa do escritor Gabriel José García Márquez como a estrada e a chegada a esse universo literário. Por meio de seus escritos podemos sentir o aroma e o clima de uma América Latina muitas vezes somente idealizada e desconhecida.

O General em seu labirinto é um dos brilhantes livros escritos por esse autor colombiano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (1982). De construção singela o livro é um tipo de narrativa que nos leva a olhar para a história Latino-americana através de uma percepção nova. Não importa se somos estudiosos da literatura, historiadores, leitores em início da jornada, a escrita de Márquez consegue nos cativar e nos prender. A simplicidade do autor não significa falta de exímio trabalho. Em agradecimentos que acompanham a edição de O General em seu labirinto, lançada pela editora Record (1989) tradução de Moacir Werneck de Castro, ele nos revela a complexidade de escrever os últimos dias da história do grande Simón Bolívar. Escolhendo um “tempo menos documentado da vida do general” indicando que “fundamentos históricos” não foram à centralidade do seu projeto.

Temos então, em O general em seu labirinto, não a presença do glorioso Bolívar, aclamado no ano de 1813 como Libertador da Venezuela, ou o grande personagem histórico simplesmente, mas um General que “já esta carcomido pela moléstia”, um Bolívar completamente desconhecido. O autor coloca em discussão em seu livro questões como a monumentalização do grande General, tocando em pontos como a reconstrução do próprio discurso histórico.

Alberto Manguel nos aponta que um monumento sempre traz a inscrição “lembre-se e pense”, e essa é a nossa atitude diante da imagem histórica do General Bolívar. Uma estátua equestre do General sobre uma base de granito em plena cidade do Rio de Janeiro gera em nós o sentimento de magnitude, e entendemos que somente os grandes homens podem ocupar tal espaço. Os elementos de uma estátua declaram interruptamente que os tempos não podem apagar o que este símbolo representa.

Porém, o que vemos na escrita de Márquez é um comandante que agora pertence ao passado, que rememora os tempos de glória. Uma personagem que deixa evidente que morrerá, nos apresentando uma monumentalização às avessas, ou em palavras de Joachim du Bellay “Aquilo que é sólido, pelo tempo é destruído,/ E aquilo que passa, resiste ao tempo”. O processo de humanização contido nas páginas d’O general em seu labirinto faz com que o leitor tenha uma aproximação com um Bolívar desconhecido. Doença, fragilidade e cansaço são intempéries da vida que só atingem ao humano, e não ao monumento. Detalhes esses que são extremantes bem elaborados por Gabriel García Márquez e que passam a somar à imagem coletiva do grande Libertador.

O autor não só demonstra os elementos de fragilidade como também elementos como o amor e amizade. José Palácios não é somente o “servidor mais antigo”, mas é também digno de estar presente no fim da história do General, é o servo que é “cumplice em tudo”. É uma espécie de secretário que desempenha o papel de confidente, “José Palácios sabia o quanto o general era sensível”, “o viu lutando para conter as lágrimas”. Para Palácios a maior herança, portanto, é morrer com o General.

García Márquez destaca ainda a grande relação de um general e suas inúmeras mulheres, entre elas, Manuela Sáenz, que o acompanha nos últimos dias de sua vida, ainda que em pensamento, e também as suas amantes, que buscava inutilmente esconder. Todas as personagens que giram em torno do grande General morrem sem a glória de um dia antes desfrutada, e ainda reforçam a decadência de um Bolívar abandonando.

O leitor se surpreende ao encontrar essas histórias paralelas a do General e de ler em certos momentos a história de simples personagens. Um caso particular no livro é o da cozinheira Fernanda Barriga, uma “índia plácida, gorda, tagarela”, que ocupava um papel de destaque na vida do General. Chamada por Carreño, especialmente, para cuidar da falta de apetite de Bolívar durante a viagem de exílio, pelo rio Magdalena, essa personagem pode apontar para essa “nova história”, em que apresenta o grande e o pequeno. Uma história olhada por baixo.

Saindo dessa “história tradicional” e essencialmente política, que se interessa pelas grandes figuras públicas em detrimento de uma história da arte, da ciência, do medo, García Márquez constrói sua obra levando em consideração tema ocultos que permeia a vida do Grande Símon Bolívar. Se os últimos dias do Libertador são desconhecidos, de raros documentos, o autor boliviano reconstrói a história pelas lacunas documentais, não tendo a serviço a historiografia simplesmente, mas a literatura. A história nas páginas de O General em seu labirinto é entendida através de elementos esquecidos: um secretário, uma cozinheira, entendendo que “tudo tem um passado que pode em princípio ser reconstruído e relacionado ao restante do passado.”

O General em seu labirinto é um dos grandes livros de uma literatura que segue a grande temática latino-americana, mas que ao mesmo tempo não se resume nisso. Sendo, então, a porta, o caminho, e a chegada ao mundo Literário. Entrar nesse universo de grandes frases será um deleite para os que ousarem ler as páginas de Gabriel Gárcia Marquez.

REFERÊNCIAS

Burke, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. Tradução: Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992.

Manguel, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Márquez, Gabriel Garcia. O general em seu labirinto. Tradução: Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro.

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. O general em seu labirinto. Trad. Moacir Werneck de Castro. Record: Rio de Janeiro, 1982.

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pensei estar na alemanha e fui à feira do livro.../Thais Lima

Como uma boa estudante e amantes das letras nacionais e internacionais separei um sábado de sol para ir à Bienal do Rio que aconteceu no segundo semestre deste ano. Bem disposta e animada, saí de casa de manhã para aproveitar bem o evento do meu final de semana. Mas como nem tudo é perfeito meu primeiro tropeço foi não ter um helicóptero para chegar à Zona Oeste do meu querido estado. Após enfrentar três longas horas dentro do transporte público, que o nosso querido “perfeito” não usa, chegamos ao Rio Centro, o top em centro de convenções do Rio de Janeiro. Mas por que fica tão longe e é tão mal abastecido de transporte coletivo? Não sabemos.

Para quem chega num evento às 13 horas, aproximadamente, a primeira coisa que se faz é comer algo para poder aproveitar o resto do dia. Então, eu e meus amigos fomos a “praça de alimentação” e foi aí que quis voltar para casa. O preço exorbitante do lanche nos faz até perder a fome, mas aí você pode pensar: “É na Barra da Tijuca o evento”. Ok, mas se não é para a grande massa ir, avise. Mesmo assim comi e fiquei para apreciar e adquirir alguns “xodós” novos. Observei em toda minha estada na feira que o público presente era muito mais jovem do que na última edição e confirmei ao verificar que os números divulgados apontavam o domínio do público com idade entre 15 e 29 anos. Isso pode ter ocorrido, talvez, pela presença de escritores mercadológicos que faziam suas tardes de autógrafos e artistas-autores que participavam dessa edição.

Este ano foram 3,5 milhões de títulos vendidos e público de 660 mil visitantes. Será que isso é um indício de que o interesse do povo brasileiro pela literatura está crescendo? Outra marca importante registrada pelos números da feira foi o crescimento da presença de profissionais da educação que tinham sua entrada gratuita mediante cadastramento prévio ou feito no local.

A novidade deste ano foi a criação do Placar Literário que abordava a literatura do futebol com debates e participação do público, sem contar a presença de dois gigantes da internet que embelezaram a feira com suas inovações: O Google trazia novidades do Android e divulgava o Google Play; e a Amazon trazia o seu tradicional leitor de ebooks Kindle. Outra inovação foi o #acampamento dedicado ao público adolescente sob o comando de João Alegria. As tradicionais presenças de Ziraldo, Ferreira Goulart entre outros autores consagrados no Café Literário dividiram a cena com os debates e encontros culturais que aconteceram nos palcos da Bienal do Rio. Debates sobre as manifestações populares que marcaram a história política do país em 2013 e a lembrança do centenário do nosso querido poetinha Vinícius de Moraes não podiam ficar fora desta festa, e não ficaram.

Bons livros estavam em promoção já nos primeiros dias, com obras a R$20,00. Sem contar a participação da Prefeitura do Rio que proporcionou a venda de livros por R$3,00 (!) em seu estande do poupa tempo que já atua em outras localidades da cidade. Contudo, as atenções estavam voltadas para os romances da moda e as inúmeras séries que saem a cada momento. Não que sejam ruins, até gosto de algumas, mas as grandes obras acabam ocupando o segundo plano na Feira do Livro que, em minha opinião, deveria proporcionar ao público o conhecimento de grandes obras literárias.

Meu saldo final da Bienal do Rio 2013 foi que “toda bela rosa tem seus espinhos”. Marcada por grandes contradições, a feira teve números estrondosos de público que contrastaram com quilômetros de engarrafamento; um debate vivo sobre os problemas políticos vividos pelo nosso país neste ano junto da presença dos autores “do momento”.

Enfim, iniciei o texto lembrando-me da Alemanha, talvez porque este ano, em Frankfurt, o Brasil foi país da vez. Mas a única semelhança entre lá e cá foram as homenagens trocadas.

Em 2015 temos uma nova edição da Bienal do Rio prevista para agosto e lá estaremos (ou não) para observar as novidades e o que, ou quem, mais se “destacou”.

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bienal - o paraíso caótico dos amantes dos livros / Larissa Fernandez Carvalho

A 16° edição da Bienal do Livro do Rio de Janeiro contou com a presença de 660 mil visitantes. De acordo com o portal de notícias G1, a edição que marca os 30 anos da feira de livros bateu um recorde de vendas, com 3,5 milhões de títulos vendidos, ultrapassando a estimativa dos organizadores, que era de 2,5 milhões de exemplares.

Com tanta gente envolvida, era de se esperar que as filas fossem constantes nos três pavilhões da feira. E foi isso o que aconteceu, principalmente nos dias que tiveram sessões de autógrafos. Conhecido como o dia "D" para os amantes dos livros, dia 31 de agosto foi, sem dúvida, o mais disputado da feira, com a presença de autores como Emily Giffin (O Noivo da Minha Melhor Amiga, Novo Conceito), de Matthew Quick (O Lado Bom da Vida, Intrínseca), Nicholas Sparks (Uma Longa Jornada, Arqueiro), Carina Rissi (Perdida, Verus), Laurentino Gomes (1889, Ediouro), Thalita Rebouças e Maurício de Souza (Ela Disse, Ele Disse - O Namoro, Rocco). Com a presença de tantos autores, a entrada da Bienal ficou obstruída por uma massa de pessoas, que chegaram horas antes dos portões abrirem, na tentativa de conseguir uma das trezentas senhas que seriam distribuídas para cada autor. No final das contas, Nicholas Sparks decidiu autografar mais do que as trezentas senhas, o que causou grande alvoroço nos corredores do pavilhão azul, e seus fãs formaram uma fila que se estendia por quase todo o pavilhão. O autor autografou 1.800 livros, e ainda assim nem todos foram atendidos. Para quem não estava na feira em busca de um dos autógrafos, escolher esse dia para visitar a feira foi uma opção caótica e infeliz.

O público jovem foi o mais presente nessa edição, sendo responsável pelo maior indíce de vendas nos estandes das editoras. Esse tipo de leitor, que está começando a trilhar seu caminho na literatura, aproveitou o evento para investir em histórias, em sua maioria, de ficção fantástica. As editoras que investem em títulos infanto-juvenis tiveram, estampados em seu ranking de maiores vendas, os nomes desses livros. No estande da Editora Intrínseca, um dos mais disputados em todos os dias da edição, era possível encontrar livros por preços muito abaixo do normal, que iam de R$2,00 a R$9,00. Para os lançamentos, como os livros Cidades de Papel, de John Green, autor também de A Culpa é das estrelas, fenômeno editorial e bestseller mundial e Extraordinário, de R. J. Palácio, a editora optou por um sistema de desconto progressivo que daria 15% de desconto na compra de 3 ou mais livros. Um método também utilizado por outros estandes como o da Editora Rocco, que tem a literatura fantástica como carro forte, sendo a casa de J.K. Rowlling, Suzanne Collins (Jogos Vorazes) e Veronica Roth (Divergente) no Brasil. O Grupo Editorial Record, que conta com selos populares como o da Bertrand e da Galera Record, optou pelo sistema de descontos progressivo, mas também colocou uma bancada com livros por R$10,00. As promoções, em geral, deixaram muito a desejar, pois obrigavam o visitante a comprar uma quantidade relativamente grande de livros de uma só vez - considerando que o brasileiro lê, em média, seis livros por ano, não era muito lógico esperar que alguém comprasse três livros em um estande, quando haviam mais de 40 deles nos três pavilhões. Alguns estandes, como o da Editora Objetiva, optaram por colocar vários títulos com 50% de desconto. O estande mais chamativo, e considerado o mais organizado pela organização do evento, foi o da Editora Novo Conceito, que tem como público principal os amantes de romances como os de Nicholas Sparks e Cecilia Ahern, autora de P.S. Eu Te Amo. Os preços da editora já são, normalmente, mais baixos que o da concorrência, o que ajudou a fazer com que o lucro da editora fosse de 590% a mais que na última edição.

Para aqueles que não fizeram uma programação do que fazer durante a feira, a experiência deve ter sido, no mínimo, cansativa. As filas eram constantes, tanto nos estandes de livros quanto na praça de alimentação. E, nesse caso, os preços exorbitantes acabavam adicionando mais um ponto ao fator desconforto, afinal de contas, para aqueles que pretendiam comprar livros entre R$20 e R$40 reais, pagar essa quantia em um lanche é definitivamente doloroso. Para aqueles que foram de carro, outra despesa: era cobrado R$18 pelo estacionamento, e a fila para entrar no Riocentro era enorme.

Fazendo um levantamento geral, não era um programa muito proveitoso para aqueles que esperavam economizar nas compras. Nesse caso, seria mais fácil ficar no conforto de casa e pesquisar descontos pela internet - que eram bem maiores que os dados na feira, em geral. Mas é uma das únicas oportunidades que o leitor tem de conhecer autores estrangeiros e encontrar tantas pessoas que tem o mesmo objetivo e paixão que ele. Podia não ser confortável, mas não era em busca de conforto que a maior parte do público dessa edição da Bienal estava lá, e sim pela atmosfera agradável de leve compulsão e histerismo pelos livros que raramente é encontrada em outro lugar.

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autores desta edição

Angel Cabeza é jornalista, poeta, cronista, produtor gráfico e editorial. Publicou os livros Vidro de guardados e Sempre existe um último momento. Possui textos em mídias impressas e digitais, no Brasil e na Espanha, e faz parte de algumas antologias. www.angelcabezza.blogspot.com

Caetano Neves Magalhães, 27 anos. Porteiro. Nômade.

Danilo Diógenes vive na cidade do Rio de Janeiro, tem 23 anos e cursa o segundo período de Português-Literaturas na Faculdade de Letras da UFRJ.

Diego Braga é mestre e doutor em Letras pela UFRJ. Poeta, professor e pesquisador, é autor de 5 livros e de ensaios e artigos publicados em revistas especializadas no campo dos Estudos Literários. Participou ativamente das Jornadas de Junho, como tantos outros.

Diego Pinto, estudante de Letras Português-Francês na UFRJ, Diego Pinto tem aspirações de tornar-se um grande escritor. Se não for bom o suficiente, contenta-se com um emprego fixo.

Felipe Andrade, estudante de Letras-Literaturas na UFRJ. Além de ser aficionado por azulejos portugueses, acredita que os bancos de praça são, na verdade, cães acinzentados imóveis amigos de todos os mendigos. Principalmente os que residem o centro da cidade.

Gleyson Dias de Oliveira, graduado em licenciatura em Filosofia pela Universidade Caxias do Sul – UCS (2013), pesquisador bolsista durante de três anos (2011 a 2013), com ênfase nas áreas de filosofia da mente e teoria do conhecimento. Aluno especial no programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ.

Leonardo Alves de Lima nasceu em Barra Mansa RJ. Estudou em escola pública ingressando ainda jovem na indústria metalúrgica até se voluntariar em uma ONG de cunho humanitário. É aluno do 4° p. noturno de Letras/UFRJ

Letícia Buendía (o Buendía é tirado do livro Cem Anos de Solidão de Gabriel García Marquez do qual é pateticamente viciada) tem 28 anos, é pedagoga, professora de educação infantil no Municipio do Rio e educação musical na rede particular de ensino.Graduanda em letras - Portugues e Literaturas na UFRJ. Carioca que detesta sol, se arrisca na música desde 2007, e até hoje corre o boato que é de fato uma musicista, porém agora encontra--se em pausa para gerar uma guria que já se encontra quase pronta para vir ao mundo.Ou seja Letícia Buendía agora é também mãe de Serena. Escreve desde os 16 anos como forma de expurgar sentimentos vadios e tristezas terrenas no blog : http://leticiabuendia.blogspot.com.br

Maíra Ferreira nasceu em 1990, no Rio de Janeiro, onde mora até hoje. Atualmente, estuda Letras na UFRJ e trabalha na escrita de seu primeiro livro, além de publicar textos variados em http://mairanaomoramaisaqui.blogspot.com

Marcus Vinicius é poeta, e isso, incluindo todo o resto, é irrelevante.

Marina Albuquerque, 19 anos, estudante do 4º período de Português-Literaturas na Faculdade de Letras, UFRJ.

Patrick Gert Bange é graduando em Letras (Português e Literaturas) na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desenvolve projeto de pesquisa sobre Walter Benjamin, sob orientação da professora Flávia Trocoli, e é monitor-bolsista de Teoria Literária do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ. E-mail: patrickbange@gmail.com.

Paulo Batistella tem 20 anos e estuda Jornalismo. Contudo, para quando crescer, pretende ser fotógrafo, jogador de futebol e poeta. Valoriza muito o poder da síntese, contido tanto numa bela fotografia, quanto numa curta apresentação - como esta, em que não sei por que, tratei de mim mesmo em terceira pessoa." ps: faz jornalismo na UFRJ

Sérgio Outante, 16 anos.

Vinícius Loureiro é aluno de Literaturas na Faculdade de Letras da UFRJ. Leitor – principalmente - de Poe e Borges, experimenta diariamente testar seu ceticismo através da paixão que tem pelo fantástico e inexplicável.

Welliton Dheymis Oliveira dos Santos, 22 anos estudante do 1° período em Letras e literatura da Língua Portuguesa. Nestes textos apresento algum material, escrito sob a forma de conto e poema, escrito entre os anos de 2011 e 2013.

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