DO CÔMICO AO EXCELSO: Um
prefácio rosiano
Maria Lucia Guimarães de
Faria
Em
Tutaméia, o autor se prefacia quatro vezes, num procedimento análogo ao
adotado por Sterne em The Life
and Opinions of Tristram Shandy,
que só apresenta o Prefácio do Autor no capítulo 20 do livro III. Um autor tem o
direito de decidir como, quando e quantas vezes deseja prefaciar-se. Os
prefácios instalam o domínio do autor, o jogo da autonomia da criação e
da liberdade de invenção do seu universo próprio, diverso de tudo o mais. É
também em seus prefácios que Fielding instaura a “nova província do escrever”. O
Prefácio do Autor, de Sterne, conjuga os dois elementos-chave de uma obra
realmente inovadora: wit and judgment, vale dizer, a sagacidade, a
originalidade, a audácia criativa, e o discernimento crítico. Em fundo e forma
tão distintos de Sterne, Rosa, no entanto, tempera, também, a sua obra com um
balanceamento entre a paixão criadora e a razão reflexiva, precisamente porque
estes são os dois ingredientes básicos da grande tradição literária ocidental. O
prefácio é aquele ponto médio onde poesia e pensamento se aliam, onde a
imaginação se urde com a razão, onde o engenho e o juízo unem forças, e onde
mais fecundamente pode vicejar o diálogo entre o autor e o leitor. No prefácio,
o autor se “desesconde” do leitor, e mesmo se, ao gosto de Rosa, ele continua a
praticar um certo brincar de esconde-esconde, nem por isso ele deixa de se
revelar, velando, ou de se velar, desvelando, como o próprio ser, que se compraz
num ritmo de máscara e ostentação.
Prefaciar-se quatro vezes significa ver-se sob quatro pontos de vista
diferentes, em quatro momentos diversos de escritor, atitude que coloca a
criação sob um perspectivismo, que divulga o quanto ela tem de brincadeira, de
confissão, de autobiografia, de ebriedade, de caos, cuja mistura, num caldeirão
mágico, compõe o subsolo selvagem da obra, infenso a qualquer determinismo
lógico e afeito àquela loucura sagrada que constitui a verdadeira fonte da
inspiração. Quatro vezes prefaciar-se significa, também, incessantemente
recomeçar, de modo a jamais se enquistar numa modalidade única de criar e de
sentir, mas abrir-se aos quatro ventos, endereçar-se às quatro direções
cardeais, buscando sempre o princípio quaterniforme sobre o qual se assenta a
harmonia do universo. Significa, sobretudo, enfatizar que a grande obra
literária se engendra na interação constante do vigor e do rigor – vigor
criativo e rigor técnico – no diálogo entre o criar passionalmente e o refletir
criticamente, no intercâmbio do poetar e do pensar. A antiga comédia grega tinha
uma figura para a intromissão crítica do autor no universo criativo da obra:
parábase. Em notável ensaio intitulado “Introdução à poética da ironia”,
Ronaldes de Melo e Souza explicita esse procedimento poético-pensante:
“A parábase
ocorre quando o coro momentaneamente se desliga do contexto das ações e, sozinho
em cena, transmite ao público o apelo do dramaturgo. Disponível, na estrutura da
comédia ática, para as múltiplas reflexões e polêmicas que são inseridas no
próprio texto das peças, a parábase é o contraponto crítico das questões
relativas à representação teatral. (…) O interlúdio coral da parábase (…)
veicula a metalinguagem crítica que o comediógrafo insere na trama das ações”
(SOUZA, 2000b: 29).
Ampliando e aprofundando a abrangência da parábase, Friedrich Schlegel a propõe
como o grande procedimento artístico da modernidade literária:
“A revolução
crítica de F. Schlegel consiste em elevar a parábase ao estatuto privilegiado de
princípio supremo da composição artística. Axiomaticamente se considera que a
grandeza da poesia do verso e da prosa é pendente da intensidade constante do
movimento parabático. A obra literária é considerada superior se apresentar um
movimento parabático contínuo. Postula-se que a literatura, além de representar
acontecimentos, tem de ser uma forma de conhecimento. O primado artístico da
parábase intensifica a força cognitiva do discurso literário. Uma parábase
permanente, eis o ideal da obra de arte. (…) A ironia é uma parábase permanente,
principalmente porque subordina o acontecimento representado ao processo crítico
da reflexão” (SOUZA, 2000b: 30).
A
narrativa se credencia como obra de arte superior quanto mais refletir sobre o
ato de narrar. Precisamente os prefácios são o campo da atuação
crítico-reflexiva do autor e, por essa razão, instauram o movimento parabático
no interior do livro. Percebendo claramente essa função metaficcional dos
prefácios rosianos, Irene Gilberto Simões observa:
“Cada
prefácio é uma peça que revela humor e arte e, acabado em si mesmo, surge na
obra como um parâmetro disfarçado. Cada um deles funciona como uma “fronteira”
nos limites do texto, alterando todo um processo habitual de leitura, forçando o
leitor a pensar em elementos componentes anteriores à estória. Instaura-se,
perante ele, uma nova percepção do mundo, uma visão lúcida, crítica e poética da
realidade” (SIMÕES, 1988: 26).
Escrever
e ver-se a escrever, escrever-se a si mesmo no ato da escritura, narrar e
saber-se narrando, criar literariamente e perceber o alcance cognitivo da
criação, em suma, como no verso de Fernando Pessoa, “ter a alegre inconsciência
e a consciência disso”: eis a terceira margem da ficção contemporânea.
Por quatro vezes, portanto, o autor de Tutaméia adianta-se ao proscênio,
e, direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente, fala de sua arte.
“Aletria e hermenêutica” é o primeiro pórtico que se atravessa para o ingresso
neste mundo “diverso diferente” e estabelece, por assim dizer, o começo da
iniciação. Uma visão totalmente nova se descortina aos olhos fascinados e algo
perplexos do leitor, que terá de pendurar no cabide da entrada “os bons hábitos
estadados” de leitura e compreensão, se quiser cruzar os umbrais e “replegir-se”
do sentido inédito que o aguarda “do lado do outro lado”. “Aletria” é a arte de
ler a vida, não em seu senso, “mas em seu supra-senso” (p. 4). “Hermenêutica” é
a arte de tecer “malhas para captar o incognoscível” (p. 5). Juntas, a aletria e
a hermenêutica propõem “realidade superior” e arquitetam “dimensões para mágicos
novos sistemas de pensamento” (p. 3). A leitura do livro da vida proporciona e
solicita uma hermenêutica da existência humana. Ler a vida “dentro” e “fora” do
homem, como espírito e como natureza, na interação do espiritual e do natural,
de tal maneira que um dá visisibilidade ao outro, é um procedimento tipicamente
rosiano, para o qual se aliam a aletria e a hermenêutica.
A leitura da legenda da vida e a hermenêutica existencial são atividades
dinâmicas, sempre em gestação e realização. Não podem, por isso, exercer-se
sobre coisas acontecidas, que há muito deixaram de ser e repousam sobre uma
imutabilidade de morte. A aletria e a hermenêutica de que fala o primeiro
prefácio sintonizam com a matéria vertente da vida e visam, das coisas, a sua
perpétua mobilidade. Precisamente por essa razão não cuidam da história
nem da História, mas da
estória:
“A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a
História”, afirmam categoricamente as primeiras palavras do prefácio, como um
anúncio de abertura, alerta de viagem. A estória não narra o acontecido, como a
história, nem se processa como uma sucessão de acontecidos, como a História. A
estória é o próprio acontecer. A esse respeito, escreveu Rosa para
Franklin de Oliveira, que lhe reprovara a abertura bombástica, sob o argumento
de que o escritor seria tachado de esotérico ou alienado: “E, pois, mudando de
prosa: / o ‘A estória contra a História’, / você, perjuro de Glória, / acho que
não entendeu. / História, ali, é o fato passado / em reles concatenação; / não
se refere ao avanço da dialética, em futuro, / na vastidão da amplidão. / Traço
e abraço. João” (OLIVEIRA, 1991b: 185). A estória é o ato inaugural de um viver.
O seu tecer-se anula a história pregressa, que se gastava como um simulacro de
vida. Na história, arrasta-se o “inerme, humano, inerte”; na estória, apruma-se
e floresce o psiquiartista. Quando o personagem se transforma em personagente,
ele é capaz de assumir a escrita do seu próprio destino, e, nesse momento, a
história se transfigura em estória. A gênese do personagente e o ato genesíaco
que engendra a estória são operações poéticas simultâneas e indissociáveis. O
advir do homem a si mesmo é o acontecer primordial, e é ele que subage em cada
nova estória que se projeta.
A estória quer-se um pouco parecida à anedota. Ambas requerem “fechado
ineditismo” (p. 3). O ineditismo pede que elas sejam originais, inauditas; o
fechado solicita um abrir-se, que se dá mediante um interpretar afeiçoado ao
mistério. A estória é inédita porque não se assemelha a coisa alguma; fechada,
porque exige que se busque a sua interpretação em si mesma, desarticulando
esquemas interpretativos que a precedam e que se lhe queiram impor à força. A
estória é a sua própria abertura. Tanto a anedota quanto a estória lançam mão do
humor, porque o humorismo e a comicidade, trazendo o transcendente para o plano
concreto e imanente, atuam como “catalisadores e sensibilizantes ao alegórico
espiritual e ao não-prosaico” (p. 3). Porque convocam o humor, ambas provocam
graça, mas a estória o faz nas três acepções de “gracejo, dom sobrenatural e
atrativo” (p. 3), vale dizer, a estória diverte, encanta e fascina, ela mexe com
os sentidos do corpo e do espírito, ela é sensível e inteligível, terrena e
supraterrena. Ambas, anedota e estória, por sua concisão e precisão, centelham
rápido e se assemelham ao chiste, que “não é rasa coisa ordinária”, porque, ao
“escanchar os planos da lógica” (p. 3), escancara as portas de uma dimensão mais
ampla e desconhecida. No chiste, coisas díspares e incongruentes são postas lado
a lado, e, da fricção do absurdo, uma nova realidade toma alento. A aproximação
entre a estória e a anedota vem referendada por uma consciência irônica da
existência, que vê a vida duplamente, sob uma ótica trágica e cômica, que
lhe confere o certeiro caráter tragicômico. Tudo o que acontece pode
simultaneamente suscitar o pranto e concitar o riso. Nessa perspectiva, cria-se
um “risilóquio” (p. 10), um expressar-se pelo riso, valendo o rir como um estado
de espírito superior, que anuncia um haver superado o dualismo antagônico do bem
e do mal. Partidário e praticante do risilóquio, o homem logra rir sobretudo de
si mesmo, de suas próprias dores, porque a força que, agora, o impele ao riso
angariou-se em fundo sofrimento suplantado. O risilóquio instaura uma “gaia
ciência”, que celebra as bodas do riso e da sabedoria, unidos em parceria para
viverem felizes para sempre. O riso sábio ou a sabedoria jocosa alcançam um
existir mais pleno, que estimula um contínuo diálogo entre o ser e o pensar,
entre a experiência e a consciência, entre o viver e o julgar, a fim de nunca
superdimensionar um sofrer nem subaproveitar uma ocasião para rir. O adepto da
gaia ciência do risilóquio nunca se leva demasiadamente a sério, o que lhe
assegura uma renovada capacidade de transcender-se e reinventar-se. A quadrinha
de Nietzsche, que vale como inscrição sobre sua porta, bem se ajusta ao
risilóquio rosiano: “Habito em minha própria morada, / jamais imitei alguém, /
troço de todos os mestres / que nunca se riram de si” (NIETZSCHE, 1976: 16).
Mas as estórias não se assemelham a anedotas quaisquer, senão a “anedotas de
abstração” (p. 3). A anedota de abstração é aquela que permite que se lhe
extraia um sentido que nela não está, “seja, o leite que a vaca não prometeu”
(p. 3/4). Abstrair significa arrancar, separar, levar consigo, retirar, extrair.
Melhor abstrai quem primeiro se abstrai, retira-se de si, eleva-se, a fim de
superar a “posição-limite de irrealidade existencial ou de estática angústia”,
ultrapassando “a goma arábica da língua quotidiana” e libertando-se do
“círculo-de-gis-de-prender-peru”, onde vegeta, abjeto e objeto, o “inerme,
humano, inerte” (p. 4). É de notar a idéia de inação contida nestas expressões,
e reforçada através de vários recursos: semanticamante, pelas palavras “goma”,
“círculo” e “prender”; graficamente, na seqüência de hífens que amarram as
palavras umas às outras; transidiomaticamente, na inusitada grafia de “giz” com
“s”, lembrando o verbo francês gésir (je gîs, il gît), que
significa “jazer”, sublinhando a noção de imobilidade do humano inerte e inerme,
já anunciada pela “estática angústia”. Abstraindo-se e elevando-se, o homem
atinge o “satori”, a “iluminação, estado aberto às intuições e reais percepções”
(p. 8). O “satori” equivale à transcendência, que constitui a origem primeira e
o fim último de todas as estórias. Origem primeira, porque a vocação
transcendente do espírito abriga-se, desperta ou adormecida, na alma humana,
como um convite, acicate permanente, imperativo existencial. Fim último, porque
quase sempre esta vocação se encontra soterrada debaixo de atulhamento diverso,
seu resgate “exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que
obstrui o crescer da alma”, tarefa, precisamente, a que se consagram as
estórias, como “mão de indução nos tratos da poesia e da transcendência”.
Abstrair significa, também, deduzir o sentido oculto de formulações enigmáticas
como os “koan”, cuja elucidação promove o “satori”. Os “koan” apõem a mente às
grandes questões da existência, que giram em torno do maior de todos os enigmas,
que é o homem. Interrogar pelo que é equivale a questionar o que somos.
Resolver um enigma conduz a decifrarmo-nos a nós mesmos. “Matar a charada” de
cada estória é, pois, em última análise, revelar o sentido de nossa própria
existência. As duas operações mutuamente se implicam e se provocam, pois toda
descoberta de sentido supõe a capacidade de superação do sujeito. Ao deslindar o
impasse da sua própria vida, o homem se ultrapassa. O homem, contudo, só
deslinda o impasse, porque se ultrapassou. Resolver para superar-se, mas
superar-se para resolver. Quando o homem atinge as cercanias do círculo
hermenêutico, ele já entabulou fecundo diálogo com o ser. As terceiras estórias
– curtas, concisas, enigmáticas – assemelham-se aos “koan”. Apreender o seu
sentido maior, muitas vezes estúrdio e intransparente, equivale a atingir o
satori. Mas o que se afigura inusitado, extravagante, delirante, denuncia quase
sempre apenas a incapacidade humana de adotar outros pontos de vista, horizontes
mais largos de visão. Se o homem se situar em novas perspectivas, ele poderá
“corrigir o ridículo ou o grotesco, até levá-los ao sublime” (p. 11). O
alargamento da visão ocasiona uma ampliação do horizonte vital e é a condição
básica para a “decifração” das estórias. Sem uma decisão existencial do novo,
assumida com a força do espírito e com o calor do sangue, o homem não é capaz de
realizar a rotação estelar do seu eixo vital, que lhe ganhará novas perspectivas
para ver mais longe e mais claro. Periagogé holes tes psychés: as
palavras de Platão nomeiam a revolução total da alma, que se afina com a sua
porção celeste e, “tidas asas”, se dispõe a transcender tudo o que é e existe.
Desse giro completo da alma é que falam as estórias, e dele carece também o
intérprete, se almeja atingir o satori.
As anedotas de abstração volteiam em redor do nada, que é o grande assunto do
primeiro prefácio, justamente porque constitui o substrato abissal do livro. O
nada é o princípio de toda criação. No nada, suspende-se o homem, no nada,
precisa edificar o seu existir. A operação poética segundo a qual o nada vem a
ser tudo é a matéria do livro, e ela se assume já em seu título, no qual “tuta e
meia” chega a ser “mea omnia”. Mas o nada – o grande abismo, o insondável vazio,
o vácuo inenarrável – é impossível de se apreender, mais ainda de se
compreender. Como entender o hiato, o “irremediado intervalo”, em que tudo não
é? O “nada residual” (p. 5) é uma tentativa de escorar o nada em alguma coisa,
de diminuir o seu excesso de não-ser, de reduzir o “desimaginável” (p. 9) a
proporções concretas e imagináveis. O nada, apreendido, por exemplo, como “uma
faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo”, ou como “um balão sem pele” (p. 5/6),
está mais para faca e balão do que para invencível vazio. Também o “nada
privativo” é recurso de “anti-poeta” (p. 9) para reduzir e conter a desmesura.
O nada residual, por “eliminação parcial, total ou seriada”, ou o nada
privativo, por supressão do desregramento, representam um esforço para resistir
ao nada excessivo, exorbitante, imoderado, que alimenta o “mistério geral, que
nos envolve e cria” (p. 4). Este é o autêntico nada, tal como o divulga o poema
de Rilke, citado no prefácio, no qual a desmedida existência do Licorne,
criatura imaginária, é fortemente ressaltada por “niilificação enfática”: “Oh,
este é o animal que não existe…” (p. 9). O que sobeja e transborda, e sobra para
além das marcas, “é o-que-é que mais e demais há, do que nem não há…” (p. 9). O
não-senso da frase é capaz de abranger e exprimir o supra-senso de um nada
descomunal, que nos antecede e excede. A exuberância desse nada inspira as
máximas que encerram o prefácio, e se faz particularmente notável no pensamento
proposto como conclusão geral: “O livro pode valer pelo muito que nele não deveu
caber” (p. 12). O que não deveu caber é o que descabe de todos os limites, o
excessivo, jamais alcançável, fascínio que mobiliza e convida, nada que acena e
se ausenta.
Do nada ao tudo anima-se um trajeto, que não cessa de se refazer: “Se viemos do
nada, é claro que vamos para o tudo” (p. 12). Esse itinerário ascendente é
realizado pelas estórias, que, por isso mesmo, deflagram como “moventes
importantes símbolos” (p. 4) rumo à transcendência, e exprimem – “e de modo
original” – a busca de Deus. Para dar conta de tão elevado escopo, e assim mesmo
manter os pés na realidade terrena, as estórias aproveitam “o mecanismo dos
mitos – sua formulação sensificadora e concretizante, de malhas para captar o
incognoscível” (p. 5). O símbolo, que mergulha raízes nos mais recônditos
abismos da alma humana, é uma apreensão instantânea e fulgurante de um sentido
intemporal, que, através dele, se desoculta. O mito, por sua vez, é a exegese do
símbolo (BACHOFEN, 1992: 48/49). Entenda-se: o que se imprime em totalidade numa
imagem inicial desdobra-se numa constelação imagética e numa sucessão de atos,
que realçam a revelação primordial. Assim as estórias evolam-se de uma intuição
fundamental, que sensificam e consumam na carnadura concreta da vida, de modo a
costurar a perfeita continuidade entre os planos celeste e terrestre, entre o
além e o aquém, entre o espiritual e o natural, construindo uma via de
realização, que conduz do nada ao tudo. O singelo e o sublime caminham lado a
lado. O “drolático” tem mais chances de roçar uma verdade do que o circunspecto.
Trabalhando, muitas vezes, com o não-senso, as estórias apontam para o
supra-senso. O fabuloso, o irreal, o absurdo, o ilógico são a única senda de
acesso ao mistério geral que nos envolve e cria. Tudo revém ao mistério, fonte e
meta de toda criação. Em carta de 9 de fevereiro de 1965, Rosa fala desse
mistério a seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason:
“A excessiva
iluminação só no nível do raso, da vulgaridade. Todos os meus livros são simples
tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa
movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada
‘realidade’, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro que o óbvio,
o frouxo. Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação
contém boa dose de inevitável verdade. Precisamos também do obscuro”
(MEYER-CLASON, 1969: 45/46).
Bem se
vê que a hermenêutica, que dá título ao prefácio, não pode ser uma que ilumine
excessivamente, antes, pelo contrário, ela deve acercar-se do mistério,
arriscar-se em suas veredas, intimizar-se com o que ele tem de mais secreto,
falar a sua linguagem. Mas esta é, por essência, a Hermenêutica, como revela
Emmanuel Carneiro Leão:
“A palavra
Hermenêutica deriva-se de hermeneutike, cujo sentido se determina pelo
verbo hermeneuein, que os romanos traduziram com interpretari.
Hermeneuein, hermeneia e hermeneus não dizem (…) esclarecer
no sentido de conduzir uma coisa estranha e obscura para o âmbito claro e
familiar da razão e do discurso. Esta maneira de se entender a hermenêutica
parte de pressupostos indiscutidos. Por um lado, supõe que razão e discurso são
a coisa mais clara do mundo. Por outro, que o originário e decisivo é a
discursividade e a racionalidade. (…) O originário e decisivo não é o
inteligível e racional, mas o inefável e o mistério. Neste questionamento se
elabora a identidade e diferença de língua e linguagem. E é esta con-juntura de
identidade e diferença que evoca o radical grego herm-, cuja forma
primitiva iniciava com um digama, werm-, posteriormente substituído pelo
fonema h do spiritus asper. Como o latim verb-, o alemão Wort
e o inglês word, o radical grego werm- provém de uma mesma raiz,
wer ou wre, que significa o falar e o dizer da língua enquanto
interpretação do mistério. E só por isso foi possível chamar o intérprete dos
deuses de Herm-es e identificá-lo com a língua. Assim, hermeneuein,
interpretar, não diz conduzir alguma coisa para a claridade da razão e o
discurso da língua, mas reconduzi-la a seu lugar de origem no mistério da
Linguagem” (LEÃO, 1977: 248).
A
hermenêutica, assim concebida, necessariamente requer uma a-letria, uma leitura
não literal, que não se destine ao claro da língua, mas se enderece aos
interstícios da linguagem, que não se contente com o senso, mas aspire ao
supra-senso, que leia como um legein, um colher que discerne e acolhe os
esparsos sinais que escrevem a legenda da vida. É sob a chancela de Hermes, o
deus do duplo domínio diurno-noturno, que incessantemente vai-e-vem no caminho
do visível ao invisível, que se dá essa leitura. Uma aletria e uma hermenêutica:
eis o título do prefácio. Eis a dupla tarefa para quem se dispõe a acompanhar as
estórias.
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