Sobre cães e ossos: a vontade de poder e o poder da vontade em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dogville

 

Francesco Jordani Rodrigues de Lima

Mestrando em Literatura Brasileira – UFRJ

            A presente comunicação possui como principal objetivo discutir a utilização da metáfora crítica dos cães em relação ao egoísmo, à indiferença e, sobretudo, à voracidade do ser humano por instrumentos de poder e dominação social em duas obras dramáticas de diferentes origens: Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, romance fundamental da moderna literatura brasileira e universal e Dogville, filme dirigido por Lars Von Trier, que, desde suas primeiras reproduções, já fora reconhecido pela unanimidade crítica como obra-prima do cinema contemporâneo.

            O homem, em guerra constante pelo domínio e conservação dos ossos que saciam sua fome contumaz – valendo-se, para isto, de qualquer meio necessário, sob qualquer preço a ser pago e das mais diversas e variadas formas de discriminação, indiferença e subjugação do próximo, desde que deste modo alcance êxito e destaque social –, emerge como protagonista e chave principal do questionamento imprimido pelas realizações artísticas do escritor brasileiro e do cineasta dinamarquês. O injusto tecido social, no qual, contraditoriamente, firma-se a estrutura da sociedade capitalista (baseada na ideologia da livre iniciativa privada, que culmina na busca desabalada do homem por “bens preciosos”, e, conseqüentemente, na franca e acirrada concorrência por êxito e/ou benefício individual), é esgarçado e investigado pelas vozes críticas da narrativa de Machado de Assis, publicada em 1881, e da película de Lars Von Trier, lançada ao grande público em 2003.

Em ambas as obras o que se nota, sempre sob uma atmosfera fria e cáustica (sobretudo no filme que não conta com o ferino humor machadiano; mas, sim, com um recurso alegórico de reconstrução da sociedade americana dos anos 30 após o crash da bolsa de Nova York que levou milhões de pessoas à miséria), é o tema do homem lançado em busca da plena satisfação pessoal, individualista ao extremo e que só participa das atividades mútuas (ou seja, dos eventos em comunidade) quando vislumbra a possibilidade concreta de lograr benefício próprio. O homem, materializado, contido e obcecado pelo projeto estritamente pessoal, acaba por silenciar sua face sentimental; transformando-se, pouco a pouco, na outra metade da fria moeda que tanto almejara ter. Morto em vida, desiludido, amargurado e profundamente distanciado emocionalmente dos semelhantes, resta ao homem revisar sua existência e procurar (sem sucesso como nos demonstram as tramas dramáticas) as respostas para a compreensão do mecanismo social que o tritura. Fiquemos por enquanto com a concepção de homem enquanto animal voraz, canino e em permanente batalha pela sobrevivência tão-somente compreendida (mas, sobretudo, vivida e sentida) como um caminho a ser traçado solitariamente, ou seja, sem companhia de outrem, ou de um provável inimigo que atrapalhe, ou mesmo usurpe, os frutos colhidos durante a empreitada. O homem-cão, definitivamente, lança as garras de fora e, pouco a pouco, trágica e assustadoramente, tanto na narrativa machadiana quanto em Dogville, a fim de obter todos os “ossos” que tanto almejara.     

Passemos à comparação mais detalhada das obras por meio de dois trechos que, em analogia, salientam o distanciamento cínico e a frieza impassível com que os protagonistas das tramas observam as pessoas e os objetos que os circundam. Reparemos, sobretudo, no tom indiferente e soturno do capítulo XLV, intitulado “Notas”, no qual o narrador-protagonista Brás Cubas descreve o enterro do próprio pai:

 

Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sério e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d’água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o toma da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e traspassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo. (MPBC[1], cap. XLV)

 

            Em Dogville, por outro lado, não há presença de um narrador-protagonista como na obra machadiana. Deparamo-nos, sim, com um enunciador onisciente que é responsável pela mediação entre os eventos dramáticos e o espectador. Somos guiados por uma voz que entra no inconsciente dos personagens e traz à tona as contradições, os conflitos e os desejos reprimidos, os quais, no longo decorrer do filme, envolverão tragicamente o destino dos cidadãos da pequena e pacata cidade de Dogville. Na película, o personagem que mais se assemelha ao defunto-autor machadiano, Brás Cubas, chama-se Tom, escritor e filósofo mal-sucedido, espécie de porta-voz não-escolhido dos habitantes da província “abandonada” nas montanhas geladas, que procura manter uma unidade comunitária entre os quinze habitantes por meio de reuniões semanais. Envolvidas de tédio e sentimento de obrigação, os encontros são, no fundo, uma forma banal dos habitantes de Dogville se encontrarem e fingirem, hipocritamente, que a cidade mantinha uma espécie de “rotina”, além de certo convívio social. Já para Tom, aquela era sua maneira de explicitar suas teorias e alçar ares de “comandante local”.

A virada fundamental no insosso cotidiano da cidade se dá com a chegada misteriosa da bela fugitiva Gracie. Tom procura a todo custo mantê-la na cidade, que, a principio, fora contra a hospedagem da moça, como forma de exemplificar sua teoria da “aceitação” social. Alcançado o objetivo de Tom, embora firmado sob o compromisso da realização de “pequenos favores” por parte de Gracie a cada cidadão de Dogville, somos, nós espectadores, surpreendidos pela carga dramática, sutilmente implícita, da cena na qual o anfitrião apresenta à recém-chegada, os habitantes do lugarejo:

 

                                                           NARRADOR

Naquela mesma tarde, Tom levou Gracie para um passeio na rua Elm para apresentá-la a cidade que ele amava.

 

TOM

Bem, é aqui que Olívia e June moram. June é aleijada. Elas moram aqui como prova da liberalidade do meu pai. Chuck e Vera têm sete filhos. Eles se odeiam. Ao lado, temos os Hensons. Eles ganham a vida raspando a boca de copos baratos para que pareçam copos caros. Aqui, temos o Jack Mackay. Ele está cego, a cidade toda sabe. Mas ele acha que pode esconder isso e nunca sai de casa. Ali Bem guarda a caminhonete. Ele bebe, visita o bordel uma vez por mês e se envergonha disso. (...) Agora só faltam MaGinger e Glória. Elas têm uma loja muito cara e exploram o fato de que ninguém sai da cidade. (OLHA PARA OS BONECOS NA VITRINE) Esses bonecos horríveis descrevem melhor essa gente do que palavras.

 

                                                           GRACIE

Você escolheu um jeito estranho de mostrar a cidade que você ama. 

 

            A estranheza sentida por Gracie pode ser partilhada pelo leitor do romance machadiano e pelo espectador do filme. Tanto o frio inventário de pessoas e objetos, unidos num emaranhado discursivo como que indissolúveis – pessoas-objetos, seres reificados e coisificados –, diante do desdém do olhar do narrador em Memórias póstumas, quanto o olhar mordaz de Tom que despe e revela as mais recônditas fragilidades dos habitantes de Dogville, maculados, já desde o intróito da narração do filme, guardam a similitude da indiferença do homem frente ao homem. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o narrador-protagonista, em outro trecho, salienta ao leitor: “Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados” (MPBC, cap. XXIV). 

Analisando com mais profundidade é ainda possível chegar ao nível de certo deleite mórbido do homem em relação aos defeitos e debilidades dos outros, excedendo o já terrível e temível desinteresse e alienação social para, vaidosamente, ou cínica e hipocritamente, valer-se do domínio do bem e do mal em relação aos seres à volta. Tom, em Dogville, e Brás Cubas em Memórias póstumas de Brás Cubas, não chegam a sentir prazer, mas sabem que poder conseguido ter sobre seus semelhantes, ao abrir as chagas e feridas numa eventual batalha, pode lhes ser muitíssimo benéfico. Num trecho de Memórias póstumas, Brás Cubas diz que “o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças”, dá ao homem a possibilidade de “embaçar os outros” (MPBC, cap. XXIV).  Isto fica claro na narrativa, posto que no discurso de verve irônica do romance a crítica ao homem é mais aparente do que na sutileza discursiva dos personagens da película. Em Memórias póstumas contamos com um defunto-autor que, por sua condição sui generis, sente-se acima de todo julgamento e inquirição; pode, enfim, dizer e criticar o que quiser. A crítica aos destinos e atitudes de Brás Cubas em vida e dos personagens é feito por meio de um humor corrosivo em contraposição à tragédia da existência e da experiência realmente vivida e sentida. Forja-se a narrativa tragicômica machadiana. Em Dogville, por outro lado, a tragédia existencial das personagens ultrapassa a latência do discurso literário, posto que se firma na patência imagética da película. O recurso da imagem constante, indubitavelmente potencializada em Dogville, em função ausência de paredes nas casas dos habitantes (o que denota a explicitação do drama íntimo dos caracteres; isto é, há um firme propósito de revelar o cotidiano e a tragédia privada do homem em geral), acaba por ressaltar os gestos endurecidos, as fortes marcas de expressão que saltam de rostos amargurados, os escorrer dos suores, o ressaltar das dores, o andar lento e taciturno dos mortificados, embora ainda ferozes, habitantes de Dogville.

Este ataque do homem ao próprio homem, esta espécie de “carnificina social’ que ocorre, conforme vimos, tanto na narrativa quanto no filme, fica explícita na utilização da metáfora dos cães e da luta pelos ossos, o alimento que gera a sangrenta e obsessiva batalha. O título do filme, Dogville, ou seja, a cidade ou vila dos cães, causa estranheza à primeira vista e vai sendo compreendido à medida que os habitantes do sombrio lugarejo vão, primeiramente hospedando, logo após, pedindo a ajuda de Gracie em “pequenos trabalhos” que se tornam grandes e pesados (como plantar e colher maças nas encostas de uma montanha durante dias inteiros), até escravizar, sexualmente inclusive, mente e corpo da moça.

Leiamos um trecho no qual o narrador de Dogville revela os recônditos sentimentos de Gracie ao ser chantageada pelas mulheres da cidade, demonstrando, conseqüentemente, como se corroem as relações humanas quando a inveja e a cobiça se fincam como pressupostos de manutenção ou ganho de poder. Não gratuitamente o capítulo VI intitula-se “Quando Dogville mostra os dentes”; leiamos:

 

NARRADOR

 

Em toda sua vida, Gracie tinha prática em esconder as emoções e não achou que seria difícil controla-las agora. Mas a porcelana espatifada no chão era como tecido humano a se desintegrar. Os bonecos que comprou eram resultado do seu encontro com a cidade. Eles eram a prova de que, apesar de tudo, seu sofrimento havia criado algo de valor. (GRACIE CHORA) Gracie não agüentava mais. Pela primeira vez, desde a sua infância, ela chorou.   

 

Outro dado interessante para a análise do filme é o nome da rua principal da cidade, Elm St., ou Rua Elmo, em português. Sabemos que elmo é a parte superior da armadura dos cavaleiros medievais, utilizada durante as guerras entre reinos ou religiões. Notamos, então, que, por meio de alusões e referências vindas das mais diversas origens, constrói-se o território da batalha travada entre os personagens que subirão ao palco dramático chamado Dogville.Deste modo, toda a história tramada na película toma contornos de tragédia universal protagonizado por homens, mulheres e crianças animalizados e em luta velada pela sobrevivência a qualquer custo.       

Em Memórias póstumas de Brás Cubas notamos no capítulo “Os cães”, em que o narrador-protagonista caminha ao lado do seu excêntrico mentor intelectual, o enigmático filósofo Quincas Borba (lembremos de Tom, em Dogville, é também filósofo, ou seja, um homem que privilegia a razão, a ciência e a lógica em detrimento dos sentimentos e volições humanas para apreensão, análise e respostas em vista dos problemas da sociedade e do homem, em especial) para, assim, estabelecermos as últimas comparações entre as duas obras:

 

Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dous. Notou que ao pé deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar minha atenção para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com furor nos olhos... Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase. (MPBC, cap. CXLI)

 

O trecho de “Os cães”, impactante e horripilante como todo tecido trágico, é firme em seu propósito de exemplificar a teoria do Humanitismo, eixo filosófico de Memórias póstumas, em semelhança a Dogville. Desvela de forma soberba a atmosfera de aparente tranqüilidade, de rotina imutável, ainda que terrível e desigual de ponto de vista social, com a qual convivemos cotidianamente. Os cães, nós, aqui e  ali, matam-se por um “simples osso nu”, demonstrando nossa total incapacidade em olhar solidariamente o problema alheio. Espantados diante da hipertrofia dos conceitos de vontade e de poder (intimamente entrelaçados e inseparáveis na dinâmica perversa da sociedade capitalista) nós, leitores e espectadores de duas obras-primas da literatura e do cinema, assistimos estas realizações, dispensando o olhar alheio ou passível. Memórias póstumas de Brás Cubas e Dogville são um chamado à necessidade urgente de se concretizar uma profunda transformação social no mundo.  Machado de Assis e Lars Von Trier desempenham em suas obras o motivo principal  de toda e qualquer manifestação artística: aguçar o olhar e a crítica dos seres humanos para que seus erros e injustiças mais temíveis não se repitam mais.     

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA:

 

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1997.

 

 

FILMOGRAFIA:

 

TRIER, Lars von. Dogville. França/Alemanha/Dinamarca/Holanda/Inglaterra/Suécia, 2003. 


 

[1] Todas as citações de Memórias Póstumas de Brás Cubas seguirão a edição destacada na bibliografia.



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