A Literatura e o vampiro no século XIX

 

O mal é um ponto de vista – sussurrava agora – somos imortais. E o que temos à nossa frente são os ricos festins que a consciência não pode julgar e que os homens mortais não podem conhecer sem culpa. Deus mata, assim como nós; indiscriminadamente. Ele toma o mais rico e o mais pobre, assim como nós; pois nenhuma criatura sob os céus é como nós, nenhuma se parece tanto com Ele quanto nós mesmos, anjos negros não confinados aos parcos limites do inferno, mas perambulando por Sua terra e por todos os Seus reinos.

Anne Rice[1]

 

A mente humana sempre procurou explicações para fatos ou ocorrências que, aparentemente, não tinham como ser explicadas. Em meio a este torvelinho de tentativas racionais, a busca pelo divino e por sua contra-parte, o maldito, tem sido fonte inesgotável de trabalho para vários estruturadores do pensamento ocidental e oriental. Não só as manifestações do divino como também as do chamado profano estão presentes no cerne comportamental e ideológico das sociedades e apresentam-se sob o foco da oralidade e da formação dos mitos nas civilizações antigas, construindo um léxico de superstições e, posteriormente, de registros escritos, científicos e literários.

A própria manifestação do pensamento teológico ocidental tem início em narrativas heróicas permeadas de intervenções divinas, seja em favor de um determinado segmento étnico ou de um bem maior para a humanidade.

Quase todas as civilizações apresentam ocorrências para tais narrativas: na Grécia, a Ilíada de Homero e a Teogonia de Hesíodo; na Índia, o Mahabarata; em Roma, a Eneida de Virgilio, As Metamorfoses e os Fastos de Ovídio; no Egito, O livro dos mortos, na América Latina, o conjunto de codex-Bórgia, que relata a religião Maia, salvo por Jesuítas espanhóis e etc...

Todas essas manifestações apresentam pontos em comum: entidades que estariam atreladas ao lado que se convencionou chamar ’bem’ contra entidades do ‘mal’. Seres humanos receberiam ajuda ou qualidades divinas para lutar contra outros humanos corrompidos ou contra formas monstruosas enviadas pelo mal.

No entanto, no meio da formação daquilo que se conhece como moral teológica, ainda nos primórdios da formação da sociedade, surgiram conjuntos de mitos menores que reforçariam a autoridade do Estado sobre a moral da população, relacionados principalmente com a morte, o sangue, a sexualidade e a contestação, sob o ponto de vista indireto, da detenção de poder.

Mas para que tal raciocínio se torne mais claro, é necessário recorrer à terceira definição que Roland Barthes faz em Mitologias sobre como o mito se faz finalmente entendido:

Enfim, se eu focalizar o significante do mito, enquanto inextricável de sentido e forma, recebo uma significação ambígua; reajo de acordo como mecanismo constitutivo do mito, com a sua dinâmica própria, transformando-me leitor do mito. O negro que faz a saudação militar deixa de ser exemplo, símbolo e, menos ainda álibi, é a própria presença da imperialidade francesa.[2]

 

Para preservar a autoridade e um senso indiscriminado de moral, era necessário transformar certos hábitos primitivos, como o sacrifício de sangue, em algo impensável. Onde antes havia reverência ao poder divino, passou a existir um crime contra o mesmo Deus que antes pedia sangue. Assim, o mito transcenderia sua função original: de simples relato passa a uma metáfora de controle social.

Os últimos anos do século XVIII, século das luzes e do racional, trouxeram à luz um novo campo temático para a literatura mundial, o mundo do sobrenatural. Formaram-se prolíferos autores nesse campo tal como Horace Warpole (The Castle of Otranto, 1793), Ann Radcliff (Mysteries of Udolpho-1794) e Matthew Gregory Lewis (The Monk – 1794) tidos como modelos de narração sobrenatural que mais tarde influenciariam mestres da literatura gótica como Mary Shelley, Bram Stoker e Anne Rice.

A literatura européia iria recorrer ao mito romeno e criar uma figura eterna, misto de violência, sensualidade, perigo e fascínio que atravessaria os séculos. O primeiro momento literário do vampiro ocorreria através da poesia, por acreditar-se que ela seria um meio mais eficaz de exprimir intensas paixões e preocupações existenciais que seriam ignoradas pela sociedade e que, através das metáforas construídas pelos poetas, eles as trariam à tona de maneira mais eficaz e, ao mesmo tempo, menos explícitas como afirma o estudioso norte-americano Gordon J. Melton, em seu livro A enciclopédia dos vampiros:

O vampiro, especialmente depois que sua irrealidade foi estabelecida pela ciência do Iluminismo, tornou-se um veículo ideal para os escritores expressarem seus próprios sentimentos complexos e para ilustrar suas experiências pessoais aterrorizantes. O vampiro morto–porém-vivo, moldando-se nas sombras da sociedade, obcecado por sangue (e outros fluidos corporais), incorpora o lado mais escuro, porém não menos real da existência humana. Dadas quaisquer das virtudes e/ou emoções positivas humanas comumente aceitas, o vampiro literário imediatamente justapõe em sua pessoa tanto as luzes como as sombras da vida do autor[3]

 

Em 1747 o poeta alemão Heinrich August Ossenfelder iria inaugurar o tema do vampiro na literatura ao escrever o poema “Der Vampir” depois de ouvir uma série de debates em universidades alemães baseados em livros escritos no século XVII (1645 – De graecorum hodie querumdam opinationibus, escrito por Leone Allatius) e no começo do século XVIII (Giusseppe Davanzanti – Disserttatione sopre i vampire, 1744 – Don Augustin Calmet – Dissertations sur les apparitions dês angeas, dês démons et dês esprits, et sur lês revenants, et vampires de Hundrie, de Bohême, de Moravie, et de Silésie, - 1746), que trouxeram ao público acadêmico discussões de cunho científico sobre os vampiros, conforme relata Cid Vale Ferreira em Voivode:

Propagados em escala continental por tratados teológicos do século XVIII, os relatos sobre o ‘levante vampírico’ do Leste Europeu fincaram raízes profundas na literatura de ficção. Desenvolvida por um século e meio – com maior incidência na produção triangulada entre Alemanha, Grã-Bretanha e França - a fértil lavra que antecede Drácula (1897) afastou a lenda de suas origens ‘verídicas’, adaptando-a aos moldes das baladas macabras, das narrativas góticas, do teatro romântico e, finalmente, do formalismo vitoriano.[4]

 

O poema de Ossenfelder, inspirado em tais teorias, trata da jovem Cristina que recusa um pretendente por conselho de sua mãe, que acreditava que ele vinha de uma região assolada por vampiros. Inconformado com a decisão da jovem, o pretendente assume impulsos de vingança com a intenção de invadir o leito de Cristina tal qual um vampiro:

E quando tranqüila dormires

De tuas formosas faces

Sorver o purpúreo.

E enquanto te amedrontares

Conforme eu te for beijando

Tal qual um vampiro beija

E quando enfim tu tremeres

Enfraquecida em meus braços

Caíres quais foras morta;

Então te perguntarei;

Não são minhas lições

Melhores que as de tua boa mãe?

 

A metáfora do vampiro, no poema de Ossenfelder, exemplifica uma sensualidade e sexualidade proibidas nas classes inferiores da sociedade. O jovem não é um vampiro de fato, mas suas ações no desenrolar do poema e a maneira sub-reptícia com que tenta convencer a jovem mostra os artifícios utilizados por tais seres para seduzir suas vítimas.

Em 1753, Gottfried August Burger escreveria Lenora, poema que impressionaria um dos mais notáveis autores alemães e levaria Johann Wolfgang Von Goethe a escrever “Bride Of Corinth”. Baseando-se em relatos gregos, Goethe escreveu sobre um jovem que vai até Atenas pra reivindicar sua noiva, filha de um amigo de seu pai. À noite, em seu leito, ele é visitado pela noiva, sem saber que ela estava morta. Ela lhe pede um cacho de seus cabelos e eles se entregam aos prazeres do leito conjugal. Mas ambos são surpreendidos pela mãe da moça, ao que a noiva diz que, ao amanhecer, ambos estarão mortos e deverão ter seus corpos esquartejados e cremados para que não possam retornar.

O livro Voivode-Estudos sobre vampiros, organizado por Cid do Vale Ferreira, faz uma análise da modificação da imagem que o monstro sofre na entrada do século XIX a partir de “Bride of Corinth”:

A fala conflituosa da vampiresa transborda o lirismo ventrículo de Werther, Fausto e Mefistófeles, que – ao mesclar duas das maiores figuras românticas, a bela defunta e a mulher fatal – prestigiou definitivamente o vampirismo como motivo literário. Doravante, as sanguessugas dificilmente seriam retratadas como camponeses bestiais, sujas da terra de seu próprio túmulo.[5]

 

No ano de 1797, o mito deixa de pertencer apenas ao imaginário popular e passa para os registros literários definitivamente. Da Alemanha, passando pela França até a Inglaterra, o vampiro começará a ser cada vez mais utilizado como uma alegoria para o mal e a libido implícita da perversão como forma de transgressão dos modelos de comportamento como nos diz Bataille:

Se a possibilidade da transgressão falhar, abre-se a da profanação. O caminho da queda, onde o erotismo é associado ao que há de mais sujo, é preferível à neutralidade que a atividade sexual praticada de acordo com a razão teria, não provocando mais nenhum dilaceramento. Se o interdito deixa de agir, se não cremos mais no interdito, a transgressão torna-se impossível, mas um sentimento de transgressão é mantido, se for preciso, na aberração. Este sentimento não se funda numa realidade apreensível. Sem nos referirmos ao dilaceramento inevitável para o ser que a descontinuidade oferece à morte, como apreenderíamos essa verdade que só a violência, uma violência insensata, rompendo os limites de um mundo redutível à razão, nos abre à continuidade?[6]

 

O vampiro é, sob todos os aspectos, nesse começo de manifestação literária, o objeto que leva à perversão, à transgressão da moral social. Sempre associado à beleza e à promessa de prazer, ele é a personificação de nossas possíveis sublimações da morte física, burlando a natureza mortal do ser humano.

O ápice dessa construção de pensamento se dá na Inglaterra, com Coleridge, Keats, Byron e Polidori, onde o mito do vampiro começa realmente a ser explorado.

A temática da morte, do sobrenatural, aliada a uma certa morbidez, encontrou aí sua melhor personificação, pois o romantismo, com seu clima de decadência e depressão, encontra no mito seu Locus Amoenus. O vampiro será a encarnação do homem sedutor, imoral e perverso que fascinará a todos e fatalmente os levará à desgraça.

Um dos mais famosos romances escritos sobre vampiros da literatura inglesa do século XIX é Varney, The vampire: or the feast of blood, romance de transição entre o conto de Polidori, o conto de Le Fanu e o Drácula de Bram Stoker. Escrito por James Malcolm Rymer em 1840, a história apareceu, originalmente, em cento e nove capítulos publicada em sistema de folhetim. Mas tarde foi editado e seu resultado final foi um único volume de oitocentas páginas. No século XX, o romance de Rymer foi mal impresso e suas cópias originais tornaram-se extremamente raras. Poucos autores deste século tiveram acesso a esta obra, mesmo se referindo a ela. A restauração do original e sua publicação na íntegra só ocorreram em 1970, permanecendo esgotado desde então.

Logo após a primeira publicação da história de Rymer, Le Fanu escreveria Carmilla. Em 1849, após a publicação do conto de Polidori, a literatura e o teatro francês subitamente são invadidos pela onda de vampiros que assola a Inglaterra, ecoando primeiro em Le Fanu e depois em um dos mais notáveis precursores do simbolismo-decadentismo francês, Théophile Gautier, e chegando até Baudelaire.

Théophile Gautier, em 1844 escreveria “A morte apaixonada”, conto que descreve como um homem se apaixona terrivelmente por uma vampira e consegue libertar-se dela:

Infelizmente! Ela disse a verdade: senti falta dela mais de uma vez e ainda sinto. A paz de minha alma foi comprada a um preço muito alto; o amor de Deus não era suficiente para substituir o dela. Eis ai, irmão, a historia de minha juventude. Jamais olhe para uma mulher e ande sempre com os olhos fixos no chão, pois, por mais casto e mais calmo que você seja, basta um minuto para fazê-lo perder a eternidade.[7]

 

Tanto Le Fanu quanto Gautier trazem em seus textos a questão romântica da morte entrelaçada com o amor, só que, ao invés da morte ser a suposta libertação que o poeta romântico tanto prezava e procurava, agora ela está personificada na figura feminina da mulher fatal, incapaz de ter filhos ou de sequer desejá-los. É, contudo, a partir da obra de Charles Baudelaire que as distorções de comportamento humano, da devassidão, temas relacionados ao perverso e ao monstruoso serão desenvolvidos com maior maestria e profundidade, influenciando toda uma geração posterior, chegando até mesmo, ao século XX, na obra de Anne Rice.

 O século XIX ainda não havia terminado de produzir textos do gênero envolvendo a figura do vampiro. No final do século, em 1897, um irlandês iria trazer à luz de um fim de século perturbado pelas promessas de Nostradamus, pelas teorias filosóficas de Comte, Marx e Darwin, aquele que seria o retrato definitivo do monstro medieval que havia rondado a Europa. Bram Stoker iria revolucionar com seu texto epistolar, narrado em primeira pessoa, as produções góticas do período, contando a história de um ser imortal preso à vida por ter em si uma amargura e um gosto maior por sangue do que o respeito pela vida humana: o conde Drácula.

 


[1] RICE, Anne.(1976).p-59

 

[2] BARTHES, Roland. (1980).  p-149

[3] MELTON. J.Gordon. (2003). p-638

[4] FERREIRA, Cid Vale. (2002). p-37

[5] FERREIRA, Cid Vale. (2002). p-39.

[6] BATAILLE, Georges. (1987). p-131

[7] GAUTIER, Théophile. (1844)

 

 

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