Os herdeiros da tradição: o último discurso de Grotowski e aprendizado do ator

Andrea Copeliovitch

Atriz, Doutora em Poética pela UFRJ, orientador: Manuel Antônio de Castro, atualmente professora adjunta de teatro na UFRN.

Resumo:

Em seu último discurso publicado postumamente, Grotowski, um dos grandes mestres do teatro do século XX nos leva a refletir sobre os caminhos do ator no teatro ocidental. Caminhos que poucos têm a oportunidade de trilhar acompanhados por um guia; caminhos que delineiam formas, fragmentos, mandalas e sobre os quais ainda temos dificuldade de falar, ensinar e aprender em uma linguagem que lhes seja própria.

 

O último discurso:

Texto sem nome por Jerzy Grotowski, Pontedera, Itália, 4 de julho, 1998, de acordo com o desejo de Jerzy Grotowski este texto foi publicado postumamente:[1]

 

(...)Meu último espetáculo, como diretor de teatro, é intitulado ‘Apocalypsis cum figuris’. Foi criado em 1969 e suas representações terminaram em 1980. Desde então eu não fiz nenhum espetáculo.

‘Ação’ não é um espetáculo. Não pertence ao domínio de arte como apresentação. É uma obra criada no campo de arte como veículo. É concebida para estruturar, em um material ligado às artes cênicas, o trabalho em si dos fazedores (doers).

Testemunhas, observadores de fora, podem estar presentes ou não. Depende de várias condições que, sob circunstâncias diferentes, esta abordagem exige. Quando eu falo de arte como veículo, eu me refiro à verticalidade. Verticalidade- nós podemos ver este fenômeno em categorias de energia: energias pesadas mas orgânicas (ligadas a forças vitais, a instintos, a sensualidade) e outras energias, mais sutis. A questão da verticalidade quer dizer passar de um nível, por assim dizer, grosseiro, em um certo senso, poderíamos dizer um “nível cotidiano”, para um nível de energia mais sutil ou até mesmo para a conexão mais elevada. Eu simplesmente indico a passagem, a direção. Aqui, há outra passagem: se alguém se aproxima da conexão mais elevada—quer dizer, falando em termos de energia, se a pessoa chega a energia muito mais sutil—então também há a questão da descida, trazendo este algo mais sutil para a realidade mais comum que é ligada à densidade do corpo.

 (...)

Em relação à verticalidade a questão é não renunciar a partes de nossa natureza—tudo deve reter seu lugar natural: o corpo, o coração, a cabeça, aquilo que está “debaixo de nossos pés” e aquilo que está “sobre a cabeça.”  Tudo como uma linha vertical, e esta verticalidade deveria acontecer entre a organicidade e o estado de atenção - estado de atenção quer dizer a consciência que não está ligada à linguagem (a máquina de pensar), mas à Presença.

(...)

O que uma pessoa pode transmitir? Como e para quem transmitir? Estas são questões que toda pessoa que é herdeira de uma tradição se coloca, porque essa pessoa herda também, de certa forma, o dever transmitir aquilo que recebeu para si. Que participação tem a pesquisa em uma tradição?

(...)

Uma vertente do Budismo Tibetano diz que uma tradição pode viver se a nova geração for um quinto além da geração precedente, sem esquecer ou destruir suas descobertas.

(...)

No campo de arte como veículo, se eu considerar o trabalho de Thomas Richards em ‘Action’, com as antigas canções vibratórias e com todo este vasto terreno que liga a tradição que ocupa as pesquisas aqui, eu observo que a nova geração já avançou em relação à precedente.

 

A Ação

Jerzy Grotowski foi um dos grandes nomes do teatro do século XX. Inovou a cena teatral com sua proposta de um teatro pobre, no qual o ator seria a única peça indispensável. Esse ator era sacerdote e guerreiro, marcado por uma disciplina férrea e um treinamento constante e intensivo.

Nos anos 90, Grotowski estava realizando um trabalho em seu Workcenter em Pontedera, cuja natureza causou enorme polêmica em um simpósio em São Paulo em outubro de 1996.

Esse trabalho, “A Ação”, que é baseado em ações físicas acompanhadas de canções, busca alcançar energias cada vez mais sutis em sua execução.

A Ação é uma seqüência de movimentos e cantos baseados em uma pesquisa de Thomas Richards, discípulo de Grotowski nos últimos anos, sobre uma tradição das ilhas do Caribe, Foi a Mystery play de Thomas Richards que originou A Ação. Mystery play era um trabalho que Grotowski propunha a seus atores que, partindo de uma canção da infância, traziam uma memória, que tornavam presente como ação.

O ator não é mais chamado ator, mas sim, atuante (doer). O corpo e suas manifestações energéticas são estudados minuciosamente, é a realização do “atleta afetivo” de Artaud (um ator tão ciente do uso de seu corpo que seria capaz de enviar jatos de energia direcionados a partes específicas do corpo do espectador), mas no atuante de Grotowski a energia flui verticalmente, ascendente, e não direcionada ao público. Peter Brook chamou esse trabalho de “A arte como veículo”.

 Não há público. Há o que eles chamam de testemunhas. As testemunhas são escolhidas por ele e pelos participantes do grupo e chamadas em suas casas para que compareçam ao local onde será apresentada “A Ação”. Todo um mistério é criado em torno desse convite, não é permitido divulgar local nem horário onde se dará o evento, não é permitido levar outra pessoa consigo. A condição de não interferir deve ser tomada ao pé da letra, as testemunhas devem conter espirros, pigarros exclamações. Mas as testemunhas acabam sendo responsáveis (embora isto não tenha sido discutido na época) por tornar esse evento memorável. E eu fui uma dessas poucas e privilegiadas testemunhas do trabalho de Jerzy Grotowski e Thomas Richards. 

Essa seqüência mobiliza os estados energéticos do ator (e das testemunhas). A Ação se assemelha a um ritual, e ao mesmo tempo traz elementos do humano de cada participante, o indivíduo, o ator desnudo de Grotowski. 

É interessante notar que ao excluir o público (ou o interesse por um público que não fosse previamente escolhido) da sua pesquisa, ela acabou se centrando completamente no ator e em como a partir de sua experiência corporal, ele pode transformar a sua energia. Essa transformação se dá em diversos níveis: a transformação da energia quotidiana em extra-quotidiana[2] e a transformação do que ele chamou de energias mais baixas em energias mais sutis[3].

A Ação foi o último ato de Grotowski, uma dança em parceria com Richards, uma dança com um único espectador: a Morte, e que teve alguns de nós como testemunhas, dispensáveis, sem acento cativos, silenciosos diante da morte e do último ato. 

O fato da exclusão do público foi amplamente questionado no simpósio e a grande questão colocada pelos profissionais da área foi: o que Grotowski faz hoje é teatro?

 

O ator

Grotowski:

-         Podemos então definir teatro como o que ocorre entre o ator e o espectador. [4]

Grotowski, nos anos 60, chegou a essa definição de teatro através da “via negativa”, descartando o que não era necessário para que o teatro ocorresse. E ele descartou, mais tarde, o espectador.

No princípio de sua trilha pelas veredas do teatro, Grotowski propôs que o ator se desnudasse frente à platéia, como um ato de sacrifício, uma oferenda. Deste modo que, através dele, o espectador também estivesse se desnudando.

Grotowski percebeu que para que esse desnudamento tivesse esse poder de um sacrifício, de uma redenção, era necessário que o ator mostrasse algo inusitado. O nu não podia ser banal, mas sim impactante, como um mundo manifesto da arte. E para tal o ator necessitava de recursos que seriam o requinte de sua linguagem. A partir do estabelecimento de uma linguagem própria dessa arte – o teatro – totalmente diversa da linguagem quotidiana, o ator poderia realizar-se como manifestação poética.

 

  Grotowski:

-         Consideramos a técnica pessoal do ator como a essência da arte teatral[5]

A técnica pessoal do ator é forma como ele treina, esculpe e explicita sua linguagem, o teatro. Quando Grotowski fala em técnica ele quer dizer a disciplina com que o ator manifesta sua linguagem através de si mesmo. É o que se chama o processo pré expressivo de ator, que não é necessariamente baseado em um texto ou improvisações sobre um personagem. Vindo das tradições de teatro de rua, do contato com o teatro oriental e baseado nas visões e pensamento de Artaud, que foram desenvolvidos especialmente por Grotowski e Eugenio Barba com a criação de um teatro antropológico surge um ator que treina seu corpo, sua voz e sua energia junto com sua capacidade criativa, como um atleta, um bailarino ou um instrumentista, sendo que a linguagem para este treino não está tão clara, o ator ocidental vai criando a sua própria técnica.

O descobrimento dessa técnica trata-se de uma tentativa de encontrar de uma gramática que esteja contida na linguagem do ator. A linguagem do ator não é a técnica, mas existem elementos técnicos que podem ajudar a chegar a essa linguagem.

Peter Brook afirma que basta uma pessoa atravessar um espaço vazio e outra observar para que se estabeleça o teatro. Mas por que essa pessoa parou para observar esse movimento de atravessar o espaço vazio? E como essa primeira pessoa, o ator, chegou a esse espaço vazio? O caminho que se percorre na tentativa de responder a essas perguntas, para nós, é o processo pré-expressivo do ator, que passa pelos elementos da técnica: o vocabulário e a gramática do ator. Atravessar um espaço vazio e chamar a atenção de um observador não é o mesmo que esbravejar algumas linhas de Shakespeare agitando os braços e forçando os músculos da face. É sobre essa diferença que queremos falar. Há tempos que se chama qualquer coisa sobre a cena de teatro. E qualquer coisa não é teatro. O treinamento busca garantir vocabulário e auto- domínio para os atores, para que eles sejam capazes de atrair a atenção deste observador. É uma maneira do ator aprender a esvaziar o espaço e a atravessá-lo.

O treinamento ajuda a construir o silêncio, ajuda a moldar o corpo do ator.

O ator sacerdote de Grotowski  atua no espaço vazio, à beira do abismo, sabendo que qualquer erro conduzirá à queda e inevitavelmente à morte. Para não cometer erros, ele treina. Por isso Grotowski treinou seus atores tantas horas por dia, e assim fez Luiz Otávio Burnier e faz Eugenio Barba ainda hoje. Treinando, os atores aprendem a improvisar, a jogar com o inusitado, pois só ele os salvará na iminência da queda.

Fala Grotowski:

-         Não são nossas boas idéias, mas a nossa prática que constitui o verdadeiro texto.[6]

Teatro é a arte da praxis do ator e da linguagem que ele desenvolve a partir dela.

 

O encontro

Voltemos à questão do Simpósio em São Paulo: o que é teatro? Não para respondê-la, mas para lançarmos o nosso olhar sobre ela.

Grotowski:

-         A essência do teatro é o encontro. O homem que realiza um ato de auto-revelação é, por assim dizer, o que estabelece contato consigo mesmo. Quer dizer, um extremo confronto, sincero, disciplinado, preciso e total – não apenas um confronto com seus pensamentos, mas um encontro que envolve todo o seu ser, desde os instintos e seu inconsciente até o seu estado mais lúcido.[7]

O encontro é um momento, um ponto na impermanência do tempo.

O que Grotowski busca quando exclui o público desse encontro? Será a vingança do Poeta contra a Pólis que o expulsou?

Esse encontro imprevisível (seja do ator consigo mesmo, mostrado a poucas testemunhas escolhidas para memorizá-lo, seja do ator desnudo frente à platéia, seja do ator proposto por Artaud, espalhando a catarse como se fosse a peste e a peste de forma catártica) é um momento de transformação, e qualquer transformação é perigosa, pois tira o ser humano de seus condicionamentos, apresenta a ele o novo, o desconhecido. O homem associa o desconhecido à morte, e a morte é a perda total do controle, da consciência do ser como ele se conhece. Será o teatro capaz de produzir tamanho terror, de apresentar tal perigo? Se a resposta for afirmativa, então devemos estar muito distantes dele... E será só o terror que se apresenta? Não haverá, porventura, a extrema alegria do encontro?

No teatro, o movimento é ambíguo. É nesse movimento que ele se torna teatro.

É a energia que a movimentação do ator produz que vai colocá-lo em contato com esse movimento, que vai torná-lo aberto à escuta e ao mesmo tempo fluido o suficiente para contar com seu corpo o que as musas sussurraram em seu ouvido, tornar-se personagem – poesia, criador de mundos e de linguagem. Quando o ator encontra seus próprios movimentos, saberá apropriar-se também de movimentos aprendidos.

Sua movimentação produz energia e desloca-se no tempo (possui um ritmo) e no espaço (constitui formas), constituindo a dança do ator. Seu corpo-em-vida-atoral[8] é criado a partir de uma elaboração técnica que utiliza como base esta movimentação inerente a cada ator, acrescida de movimentos pesquisados, observados, aprendidos, imitados que comporão seu repertório próprio. 

Nós no teatro ocidental não temos um mestre que nos ensine técnicas definidas, somos todos meio ronim (um ninja sem mestre), temos de inventar nossos próprios golpes de luta, nossa própria gramática, que não vem de uma tradição do teatro, mas do estudo de outras tradições, da dança, dos teatros orientais, mesmo das artes marciais.

Nesse percurso para tornar-se um atleta afetivo o ator depara-se com questões: o que é esta ação poética, diferente de qualquer coisa? O que é ação e o que a torna poética? E o que é qualquer coisa? Por que eu sou eu e não sou o personagem?Ou sou? O que me torna ator? O que é teatro? O que é espaço vazio? E assim as questões vão levando uma à outra e acabam se tornando a viela do seu pensamento a ser percorrido e não respondido, e nosso ator tenta tornar vivo esse caminhar.  

O último discurso de Grotowski é um testamento, o testamento que esse grande mestre do teatro, aquele que mudou a concepção de ser ator, de atuar, de teatro, deixa para nós atores, aprendizes, para seu dileto aprendiz, Thomas Richards. Nesse discurso, Grotowski lega a Richards os últimos anos de seu trabalho e lega a nós a tarefa de compreender, continuar e ultrapassá-los em pelo menos um quinto. Nesse testamento ele nos deixa a tarefa de questionar o teatro. Ele nos havia falado sobre o que não é o teatro, e agora nos larga em uma viela escura, com a tarefa de seguir adiante, impetuosamente, tendo como armas nossa fé e treinamento de atores guerreiros, que usam a arte como veículo para seguir adiante, sem saber aonde é “adiante”. A arte como veículo é a melhor definição da arte, pois a arte como veículo não é definição, é movimento, não há ponto de chegada. A arte como veículo não serve para nada, não diverte ninguém, não é para o público, não é objeto, muito menos objeto de consumo, a arte como veículo é, verbo ser, intrasitivo. Ser. 

 

8 Referências bibliográficas

ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 1995.                                    

________. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1987.                                                                      

BARBA, Eugenio. Aldilá delle isole galleggianti. Milano: Ubulibri, 1990.                                     

________. A canoa de papel. São Paulo: Brasiliense, 1993.

________, SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. São Paulo –Campinas: HUICITEC - Editora da UNICAMP, 1995.

BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

____________ .  L’ espace vide. Paris: Éditions du Seuil. 1977.

CARVALHO, Sérgio de. Richards fala das pesquisas e aprendizado com  Grotowski. O Estado de São Paulo. Outubro de 1996.

GROTOWSKI, Jerzi. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.  

________________. Untitled. The Drama Review 43, 2 (T162), verão1999.

Hayes, Peter. A Suprema Aventura. São Paulo: Record, 1994.

MELO , Luiz Otávio Burnier Pessoa de. A arte do ator: da técnica à representação, elaboração, codificação e sistematização de técnicas corpóreas  e vocais de representação para o ator. São Paulo: PUC, 1994. ( Tese de Doutorado).

RICHARDS, Thomas. Al lavoro con Grotowski sulle azioni fisiche. Milano: Ubulivri, 1993                               

STANISLAVSKI, Constantin. An actor prepares. London: Reinhardt & Evans, 1949       

_________. Building a character. London: Reinhardt & Evans, 1950. 


 

[1] The Drama Review 43, 2 (T162), Summer 1999. Alguns trechos traduzidos para o português por Andrea Copeliovitch.

[2]Barba: A Canoa de Papel, 1993; como já mencionamos, Barba refere-se a este  tipo de energia como energia extra-quotidiana, e explica que a utilização de energia quotidiana, ou seja para fazer coisas às quais estamos condicionados se dá de forma a economizar o máximo de energia possível em cada ação, no caso da energia extra-quotidiana do ator, ele deve procurar expandi-la o máximo possível.

[3] Essa é uma discussão muito longa mas podemos pensar na passagem da energia dos chakras mais baixos paraos mais elevados. Segundo Peter Hayes, chakra  é “literalmente roda”. No corpo humano existem sete grandes centros energéticos ou plexos nervosos, chamados chakras” (A Suprema Aventura, Record, 1994).

[4] Grotowski, Em Busca de Um Teatro Pobre, 1987:28.

[5] Grotowski, Em busca de um teatro pobre. 1987:14

[6] Grotowski, Em Busca de Um Teatro Pobre pag .48.

[7] Grotowski, Em Busca de Um Teatro Pobre pag 48 e 49.

[8] Termo de Eugenio Barba.


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