A  REBELDIA  DO  CORPUS   WILDIANO  

STELLA MARIA FERREIRA 

 

                                                                             HELÁS

 “Deixar-me arrastar por todas as paixões até que minha alma seja um alaúde encordoado
                     Que todos os ventos possam fazer vibrar, para isto foi que renunciei à minha antiga
                             sabedoria e domínio austero? Parece-me que minha vida é um pergaminho
                             duplamente escrito e rabiscado, em algum dia de férias infantis, de ociosas canções
                             para flauta e rondó, sem outro fim que o de profanar todo o seu segredo...”

                       (WILDE, 2003, p. 861). 

 

A inquietação advinda do estudo do corpus wildiano é constante e é conseqüência do desejo acalentado pelo esteta: o de ser uma esfinge cuja proximidade nos seduz , mas da qual não ousamos decifrar os segredos. A dança a que somos convidados não nos permite a linearidade que condensa e aprisiona. Assumimos, assim as regras de seu jogo: onde as palavras podem não ser só o que parecem para o príncipe dos paradoxos.

 

“...for if Society does not ask you to be

 intrinsically good, it asks you to make

                                                                                            a goodly show of morality…” 1
 

         No século XVIII, o público se oporia ao privado como lugar de distinção, criação humana. O aristocrata circulava pelos cafés e clubes e vestia-se elegantemente para o olhar do outro. Ele dispunha de liberdade para constituir sua imagem. O espaço da cidade se tornaria um grande cenário.

Com a Revolução Industrial, sensíveis mudanças se operaram e o brilho da distinção seria ofuscado pela sombra de uma grande e crescente massa urbana operária. A diferença, no entanto, permaneceria clara quanto ao lugar próprio de cada um.

Em meados do século XIX, Charles Baudelaire (1821-1867) inaugura uma reação ao percurso restrito e controlado e, na figura do flanêur – andarilho que se sente recompensado em devanear pela cidade – mantém sua individualidade, propondo uma resistência à incorporação. Ao flanêur, junta-se – completando-o - o dândi, que cultivando a elegância e o culto a si mesmo restituiria uma originalidade esquecida, procurando paradoxalmente manter-se eterno como um capricho. O artista, assim, novamente, aparece como o sonhador de uma existência mais nobre. Junto à indivíduos que “han dejado de ser hombres para convertise en objetos fabricados en serie, instrumentados en serie, cosificados en serie, envilecidos en serie, es el artista el que gracias a su incapacidad de adaptación, a su rebeldia, a su locura, há conservado parodojicamente los atributos más preciosos del ser humano.”2. O movimento circular do flanêur incorporado pelo dândi remete a uma nova ordem mais ideal – a des-ordem. Um novo tipo de aristocrata formado sobre as mais preciosas faculdades que nem o trabalho nem o lucro podem dar.O corpo antes circunscrito adquire novamente seu caráter de hieróglifo – escrita sagrada e misteriosa. O discurso gerado adquire aí todas as condições para se desenvolver. O indivíduo é chamado a não apenas levar em conta a concepção denotativa dos nomes, mas percebê-los como dissimulação, estímulo para criação de ilusão.

         Na Inglaterra, o trajeto de casa para o trabalho institucionalizado na sociedade vitoriana estabeleceu o padrão de uma dignidade construída. No final do século XIX, o Decadentismo assume a relatividade do tempo, abalando fronteiras e propondo uma nova leitura do real circundante, pois “o descontentamento é o primeiro passo no progresso de um homem ou de uma nação...” (WILDE, 2003, p. 684) e ainda “a arte começa com uma decoração abstrata, com um trabalho puramente imaginativo e agradável, aplicado ao irreal e ao não existente. É esta a primeira etapa. Depois, a Vida, fascinada por esta nova maravilha, solicita sua entrada no círculo encantado. A Arte toma a Vida entre os materiais toscos, cria-a de novo e torna a modelá-la em ovas formas e com uma absoluta indiferença pelos fatos, inventa, imagina, sonha e conserva a intransponível barreira do belo estilo, do método decorativo ou ideal. A terceira etapa se inicia, quando a Vida predomina e atira a Arte ao deserto. Esta é a verdadeira decadência e é por isso que sofremos atualmente...” (WILDE, 2003, p. 1069). Os decadentes sentem o apelo do mistério diante da frustração e revolta contra o mundo civilizado: o fantástico que dá vida e faz um mergulho nas camadas mais obscuras do eu. Configura-se um espaço de engano – forma de evasão de um homem em crise, dividido consigo mesmo. Um novo encantamento se insinua nas fissuras do tecido social.

Oscar Wilde – extravagante, excêntrico, enigmático, manequim engenhoso, herdeiro da náusea baudelairiana – mascara seu rosto ávido por uma modernidade que tem no instante algo de sagrado. Re-aquece a noção de homem público gerada pelo século XVIII (ver SENNETT, R.) e, diante de uma cidade anestesiada pela rotina estabelecida, viciada pela atividade econômica, define a importância “de não se fazer nada”3.  A ação impedira o indivíduo de sonhar, de superar-se pela imaginação. Suas personagens sentam e conversam. A crítica era ao movimento excessivo, desordenado, em nome de um sucesso ilusório. Diz Wilde em O jardim de Eros:  

        “...Que se aproveita se esta era científica irrompe através de nossas portas com todo o seu    cortejo de modernos milagres! Pode ela aliviar o magoado coração de um amante?...”4 

 Para esta nova proposta, ressuscitaria um cenário de mistério tendo como sua capital, a suntuosa Bizâncio, trazendo de volta um clima de esplendor e morte visível aos poucos eleitos. Antigas belezas retornariam no espelho do tempo. São descobertos os segredos dos perfumes raros, das jóias, a procura de caminhos que levariam à fruição de. sensações requintadas

Seu disfarce é reconhecido como vontade agônica de poder assumir a vida como palco, ver o ocultamento como sinônimo de epifania, no instante algo de sagrado, desejando garantir o caráter múltiplo da verdade opondo-se abertamente à obsessão míope de categorizar. A ânsia de atingir o singular, o exótico, descobrir na vida o êxtase espiritual que é a eternidade é assim definida por Wilde em O renascimento inglês da arte, conferência proferida em Nova Iorque (1892):

                “ Descreveram-no como um simples retorno aos modos gregos de pensamento e também

      como simples retorno ao sentimento medieval. Diria eu antes que acrescentou a essas formas

                  do espírito humano aquilo que a confusão, a complexidade e a experiência da vida moderna

                  podem trazer de valor artístico, tomando das primeiras sua clareza e visão e sua serenidade

                  constante, e da outra sua variedade de expressão e o mistério de sua visão...não há mais do

                  que uma origem para todas revoluções, o desejo do homem de uma forma mais nobre de

                  vida, de um método mais livre de uma oportunidade de expressão.”4

Às portas de um labirinto, onde a similaridade das câmaras obrigaria a um movimento interior circular, o indivíduo teria de volta o prazer inicial. Ao ver-se sem a saída que julgava segura, a conexão com o fio condutor seria definitivamente cortada, fazendo com que ele passasse da morte, do tédio invencível à vida inebriada de luz. No eterno retorno às origens e, conseqüentemente, reverência à juventude, nenhum acontecimento seria irreversível e nenhuma transformação definitiva. Tudo para ser natural devia ser eterno. Se a ciência havia plantado no solo um real absoluto, a reação deveria vir pela estufa, enfatizando o ornamental no plano da linguagem (ver BOUÇAS). O vago, o indistinto e o incorpóreo seriam a contrapartida ao objeto descrito com precisão, de forma concreta, inteligível e lógica.

O esteta irlandês num jogo de sedução (e auto-sedução) protesta contra a lassitude da alma, vestindo a mente com novas e audaciosas cores. No campo da literatura, por suas linhas de fuga, seria possível para a humanidade o existir num mundo frio, assumindo a máxima de que amar a si mesmo é o início de uma longa história de amor.

Realidade posta entre parênteses, nenhuma afirmação verdadeira pode ser evidenciada, já que a linguagem passa a estar a serviço das máscaras. O prazer da vida só poderia ser encontrado na intenção de lhe falsear a imagem. Este novo indivíduo “moldado de uma argila mais nobre”5 como nos diz Nietzsche, apostaria em sua re-invenção, buscando a completitude. Oscar Wilde, além de criar exemplos magníficos como Lorde Henry Wotton em O retrato de Dorian Gray, Lorde Illingworth em Uma mulher sem importância e Lorde Goring em O marido ideal, recria-se a si mesmo, já que acreditava que a arte mais perfeita é a que reflete o homem em toda a sua infinita variedade, podendo exprimir todos os estados de alma e todas as paixões. O segredo estaria no estilo e Barthes dirá mais tarde: “...é a autoridade do estilo, vale dizer, o elo completamente livre entre a linguagem e seu duplo de carne que impõe o escritor como um frescor acima da história.”6 .O discurso desterritorializado, pontuado pela heterodoxia convidava a uma dança sensual e singular. A ‘loucura’ decadente, descaracterizando o limite entre o sano e o insano, aproxima o que parece distante e permite ao indivíduo a abertura aos vários sintomas da turvação dos sentidos. Se o evidente era violento, escravizava, somente as aparências poderiam diferenciar os homens entre si. Recorrer, então à superficialidade parecia ser a solução para que fosse devolvida à vida sua ‘magia’ e ardor iniciais. Diz Wilde em A decadência da mentira

                                   “É evidente que há de produzir-se uma mudança antes que esse século acabe.                   

                    Cansada da charlatanice fastidiosa e moralizadora dos que carecem de espírito

                    hiperbólico e de talento imaginativo, cansada dessas pessoas inteligentes, cujas

                recordações se baseiam sempre na memória e cujas asseverações estão limitadas

                   pelo verossímil e podem ver conformadas nas suas palavras por qualquer filistino                         

                   presente voltará mais tarde ou mais cedo ao seu líder perdido: ao fascinante e

                  refinado mentiroso. A arte, evadindo-se do cárcere do realismo, correrá a saudá-lo

                  e beijará seus lábios falazes, sabendo que somente ele possui o segredo de que a

                  verdade é absoluta e inteiramente questão de estilo...”7

            Os escritos wildianos vêm sob ‘camadas’, permitindo aos leitores o exercício de inúmeras interpretações. Acreditava que quanto mais rico o trabalho artístico, maior diversidade de entendimento e isto, para ele, era garantia da sobrevivência de uma obra. Diz o esteta no capítulo II de O retrato de Dorian Gray que “só o medíocre não julga pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível...” (WILDE, 2003, p.72). Portanto, a mentira seria enaltecida enquanto manifestação de uma verdade que se via, então, esfacelada. De fato, para os pensadores no sentido grego e clássico do termo, a mentira não era o oposto da verdade, nem ao menos estaria separada dela; está além da razão. A arte para Wilde afirma a verdade pela mentira. Na esteira do pensamento helênico para quem pessoa ou personagem é sinônimo de máscara, Wilde expressa por meio dela sentimentos tão intensos que sabia não poder retirá-la sem arrancar, simultaneamente, a pele. O paradoxo não era visto como pura e simples antítese, mas como recurso que equilibra a verdade com seu oposto numa contínua síntese de tese e antítese.

         Foi flagrante a comunhão de pensamentos entre artistas dentro do movimento decadente. Baudelaire, Gautier, Huysmans, Wilde num pacto silencioso que permite até hoje a superposição dos textos, sendo impossível não conceber as ressonâncias de suas poéticas. Afastaram o definitivo porque desejaram triunfar sobre o ‘indizível’, arriscando-se num jogo perigoso. Wilde,  levando à culminância o desejo de ser obra de arte que se erguia, indivíduo completo, combinação apolínea e dionisíaca, improvisou a vida. Quis descobrir-se pouco a pouco, admitindo para si o destino imposto a seus personagens, apresentando-se aberto ao sofrimento, capaz de suportar a existência que via como banhada de glória. Recusa a forçosa simplificação da divisão dos homens em heróis ou vilões, das mulheres em boas ou más, do comportamento entre virtude e vício e da personalidade entre verdade e mentira. Aparentemente à deriva, arrastado pelo sabor das seduções, seu texto cumpre o papel de permanecer fiel a liberdade num desempenho altamente estilizado. A imprevisibilidade permitiria a transposição de uma passividade imposta combinando a indolência e o moderno. Essa pretensa futilidade gerando despreocupação, indiferença e evidente tranqüilidade interior – herança grega – chamaria a atenção, modificando atitudes.

Como artesão literário, Wilde buscou dar à linguagem a dimensão da consciência – e da inconsciência – agredindo, atraindo e conquistando. Não se poderia mais ver a linguagem como esse invólucro transparente de uma significação pura: é mascarada, produz e revela segredos. O esteta foi construção e desmoronamento, exercitando um contínuo movimento de mascaramento e desmascaramento, encarnação da vertigem de final de século. O efeito hipnótico destes escritos permite ao leitor passear por entre sedas e escombros, o luxo e perfumes dos salões e o grotesco e repudiado das ruas. Este é o mundo regido pelo dândi: inventado num cenário textual postiço capaz de dar conta do estado febril dos nervos. Para se vencer a batalha contra a mediocridade, só a fúria poderia arrombar as portas e devolver a essência.             Com um discurso repleto de ironia, Wilde subverteu a ordem do útil e do inútil, do sério e do fútil com o escudo da originalidade. Figura poética, primando pela elegância no corpo e no corpus textual, valoriza o que era aviltado pela civilização mercantil: a sensibilidade individual - é um homem “... possuidor da arte de improvisar a vida; espanta mesmo os mais sutis observadores: uma vez que parece nunca se equivocar, ainda que se arrisque sempre no jogo mais perigoso. (NIETZSCHE, aforismo 303 – A gaia ciência,p. 158). Pergunta-se constantemente pelo limite da pele; as palavras se interpenetram e ele é atravessado por elas, já que “muitas vezes, pensando em fazer uma experiência sobre os outros, fazemo-la na realidade sobre nós mesmos...” (WILDE, 2003, p.100). 

Delineou cada momento, avançando para águas cada vez mais profundas. Trocou a dor que pode durar a vida inteira pelo prazer que dura um instante, no decorrer da vida e conheceu a força da dor. Acreditava que a medida da multiplicação das fantasias era a garantia da vida. Disse Elysio de Carvalho que “o que menos vale em Wilde é a forma. Do vago e misterioso do seu estilo é preciso procurar a alma das suas palavras, que são como relâmpagos a abrir a nossos olhos o pavor de noites tenebrosas.” (WILDE, O. A balada do enforcado- nota explicativa, 1990). Arte e vida forma para ele performances similares, os objetivos, dramáticos.

Em Um sábio chinês (WILDE, 2003, p. 1301), Wilde diz na voz de Chuang Tzu (nascido no século IV antes de Cristo, às margens do Rio Amarelo, na Terra Florida): “... as pessoas ficam desengonçadas quando começam a moralizar. Os homens deixam de ser espontâneos e de atuar por intuição...”. Pode-se fazer uma clara conexão com a história contada por Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio (citado em Borges no Brasil, p. 18): “ Entre as muitas virtudes de Chuang Tzu estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang Tzu disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e de uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. “Preciso de mais cinco anos”, disse Chuang Tzu. O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang Tzu pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito que já se viu.”. Wilde dramaturgo, poeta, ensaísta e autor de um único romance primou pela multiplicidade e pela excelência. Seus quarenta e seis anos foram suficientes para que seu nome suscite até hoje controvertidas opiniões e encontros imaginários no texto-pele, carne, com vários outros artistas que se enveredam pelo labirinto wildiano.  

 

 

 

NOTAS


1 anonymous. Teleny or the reverse of the medal, p. 158.
2 SÁBATO, E. El escritor y sus fantasmas in JOZEF, B. O espaço reconquistado, 1974, p.65.
3 ELLMANN, Oscar Wilde, 1991, p.14
4
WILDE, 2003, p. 870
5
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia , p.35.
6 BARTHES, R. O grau zero da escrita, p.22
7 WILDE, 2003, p.1082        

 

 REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS: 

1-     BARTHES, R. O grau zero da escrita. S.P.: Cultrix, 1971.

2-     BOUÇAS, E. Formas e truques de um écrivan-dandy in O labirinto finissecular e as idéias do esteta. R.J.: 7Letras, 2004. 

3-     JOZEF, B. O espaço reconquistado. Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1971. 

4-     NIETZSCHE, F. A gaia ciência. S.P.: Martin Claret, 2004.

5-     SENNETT, R. O declínio do homem público – as tiranias da intimidade. S.P.: Companhia das Letras. 

6-     WILDE, O. Obra Completa. R.J.: Nova Aguilar, 2003. 

 


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