A arte da entrevista:o jornalismo no interstício do texto de Edgar A.Poe

 

Na Paris do século XIX, duas mulheres são brutalmente assassinadas na casa de quatro andares de propriedade das mesmas, onde residiam há seis anos de modo reservado e sem aparentes sobressaltos. Pelas características da violência, uma prática incomum que a Gazette des Tribunaux noticiou como “Crimes extraordinários”.

Os corpos estavam dilacerados. Em uma condição provavelmente nem vista pelos cidadãos que viveram a Revolução Francesa. A senhora L’Espanaye, por exemplo, teve os cabelos arrancados pela raiz.Nas mechas grisalhas encontradas próximas à lareira, as raízes estavam presas às carnes do couro cabeludo.A profundidade do corte no pescoço foi de tal ordem que a cabeça, esfacelada, continuava unida ao corpo apenas por um fio.Bastou a polícia mexer no corpo para a cabeça separar-se dele e rolar pelo chão do pátio onde o cadáver da senhora caiu, lançado da janela do aposento em que se encontrava com a filha quando foram atacadas.

A filha, senhorita L’Espanaye , foi morta por estrangulamento. O documento dos legistas  descrevia fundas marcas de unhas e uma forte pressão de dedos que ocasionaram negras equimoses e manchas lívidas no pescoço, além do fato de os olhos lhe saltarem das órbitas e a língua estar parcialmente cortada.A seguir, ainda de acordo com a perícia técnica, o corpo da moça foi enfiado de cabeça para baixo na chaminé  que não dava passagem “ao corpo de um gato grande”,observação essa feita pelo cavalheiro Auguste Dupin , o que lhe permitiu pensar sobre a força primitiva do agressor e a desvendar o mistério dos assassinatos da rua Morgue.

A Gazette des Tribunaux, principal jornal, espelhou o fato.Não sem competência, descreveu passo a passo o que apurou .  “Esta madrugada, cerca das três horas,  os moradores do Quartier St.Roch foram despertados por uma série de gritos horríveis.(...).Após certa demora foi a porta arrombada com um pé-de-cabra e oito ou dez vizinhos penetraram na casa , acompanhados de dois gendarmes.(...) Ao ser atingida uma ampla alcova nos fundos do quarto andar(...) o espetáculo que se apresentou à vista dos presentes encheu-os de um misto de assombro e horror.O quarto achava-se na mais completa desordem...” .

A Gazette segue figurando o horror no cenário de mobílias quebradas e atiradas em todas as direções, jóias e dinheiro espalhados pelo chão,muita fuligem saindo da lareira ,  uma navalha suja de sangue, manchas de sangue por toda a parte, até chegar nos corpos.

 “ Segundo parece _ finaliza o texto da matéria_ até agora não foi encontrado o menor indício revelador de tão horrível tragédia”. 

No dia seguinte, a Gazette estampava a manchete A tragédia da rua Morgue referente à matéria sobre os depoimentos de pessoas que estiveram no local assim que ouviram os gritos e de conhecidos das vítimas. A lavadeira, o charuteiro, o ourives, o alfaiate, o dono do restaurante, o confeiteiro, o agente funerário,o banqueiro, o empregado do banco, o médico, o cirurgião, e o  policial que arrombou a porta e corrigiu a informação do jornal dizendo que para isso usou sua baioneta, e não um pé-de-cabra. O jornal registrou a polifonia, com as suas muitas impressões e sentimentos, e enfatizou a noção de “ crime misterioso”,salientando que a polícia estava “ absolutamente às cegas” e que não havia

“ sequer sombra de qualquer indício esclarecedor”.

Na outra edição vespertina, o jornal noticiou a prisão de Adolphe Le Bon, o empregado do banco Mignaud et Fils que acompanhou a senhora L’ Espanaye até sua residência levando as duas sacolas contendo  os quatro mil francos em barras de ouro que a mulher sacou de sua conta. Le  Bon já tinha declarado no depoimento à polícia que a senhorita

L’ Espanaye abriu a porta, tomou uma das bolsas de sua mão enquanto a outra foi entregue à mãe, despediram-se e ele foi embora.O jornal registrou o fato e voltou a enfatizar que o mistério permanecia sem resultado.

Foi nesse momento que Auguste Dupin se interessou pelo caso. Ele tinha apreço por Le Bon, conhecia o homem, e percebeu que o que estava ocorrendo era mais um caso daqueles que quando fogem à compreensão do sentido comum têm que reforçar esse sentido para que não haja desconforto ou mal-estar no corpo social que constitui a  opinião pública. No ambiente da doxa, todo o sentido que está para além do comum  é descartado.O texto se torna cânone de formas estereotipadas de pensar. A imprensa nesse lugar de espelhamento das aparências reifica os sentido fechados e põe em questão a aplicabilidade da teoria da recepção na mediação de massa exercida pelo jornalismo.

Quando Jauss fala sobre a liberdade de interpretação do receptor, ele está trabalhando com a subjetividade forjada no “campo livre da compreensão dialogada” , qual seja,

 “ uma estrutura aberta em que deve se desenvolver (...) um sentido que não está previamente revelado, mas que se concretiza no fio das recepções sucessivas cujo encadeamento responde ao das questões e das respostas”.

Paris está perplexa com os aspectos raros do crime, e assim deve continuar a julgar pelo encaminhamento dado pela cobertura jornalística que , tal como o cidadão comum, não enxerga nada além do que foi descrito na Gazette des Tribunaux. Nesse jogo de espelho se situa a impressão disseminada de que a massa é co-autora das narrativas produzidas pelos textos dos jornais.

“ A Gazette , [ observou Dupin], não penetrou ,ao que parece, todo o horror insólito do caso. Abandonemos, pois, as opiniões ociosas desse jornal. Creio que este mistério é considerado insolúvel pela mesma razão pela qual deveria ser considerado de fácil solução, ou seja, pela caráter exagerado de seus aspectos”.

Auguste Dupin não para aí. Ele denuncia a prática grosseira de tomar o obscuro pelo extraordinário, o que aliás foi a marca da cobertura sobre o envolvimento do campo majoritário do PT com o esquema obscuro de arrecadação de verba , e ultrapassa o limite doxa quando desvia o sentido da pergunta do “ que aconteceu?” para “ que aconteceu que nunca tenha acontecido antes?”.

Depois de receber autorização de G, o chefe da polícia, para investigar o caso, Auguste Dupin se dirige à rua Morgue , faz exame minucioso de tudo, e no dia seguinte pergunta ao amigo que o acompanhou se havia observado algo de particular no cenário da tragédia.

“ Não, nada de particular [ diz o amigo] ,pelo menos nada afora do que o jornal descreveu”.

É o caso, então, de se perguntar: qual o limite do ofício do jornalista e do cidadão? Uma corrente acadêmica atual acredita na instituição do cidadão jornalista em decorrência da  internet , já antecedida da idéia de liberdade de reflexão do receptor. O novo meio de comunicação retiraria dos grandes veículos de mediação de massa a propriedade e a  autoridade sobre a informação que  passaria a ser de domínio público, tanto materialmente quanto imaterialmente. Mas esse parece ser um falso problema. A informação sempre foi de domínio público , os cenários políticos é que fazem dela artigo privado a ser disponibilizado conforme a ocasião que lhes favorece.

O cidadão comum não tem obrigação de ofício de saber perguntar, de desviar o sentido comum para encontrar os caminhos que chegam mais perto do muito que pode ser esclarecido. Ele pode, embora não se deseje, se ater a reproduzir a informação dentro de um mesmo sentido, variando apenas a forma. Aliás, uma experiência estética recorrente hoje em dia na internet, sobretudo nos blogs.

Já o jornalista parece condenado a trabalhar sempre para além. Sua pergunta deve ultrapassar o limite da informação. Deve quebrar todo eixo paradigmático com a finalidade de ampliar as perspectivas que, pensadas dentro da dialética do esclarecimento, certamente não tranqüilizam mas também não tomam os acontecimentos como extraordinários quando efetivamente não são.

Dupin tinha todas as condições para ser jornalista. Ele pode ser , inclusive, uma referência para a idéia de cidadão jornalista  que começa a ser disseminada com o objetivo de sistematizar a atuação dos internautas que agem no sentido de noticiar a informação.Esses internautas não são publicistas ou propagandistas dos fatos. Nessa condição de cidadão jornalista, eles têm por ofício informar criticamente os acontecimentos possibilitando a estrutura aberta que amplia as perspectivas e permite o diálogo.

Jornalista sem sê-lo oficialmente, Dupin era um nobre falido que conseguira preservar o mínimo de renda para comprar livros , se alimentar e praticar o exercício da reflexão.Era um intelectual atento e G, o chefe da polícia, o tinha como amigo e consultor para as situações que dava como “estranhas”. Por “estranho”, G. qualificava tudo o que estava além de sua compreensão, o que o fazia viver “em meio a uma absoluta legião de estranhezas”. G sofria de ignorância, condição humana que Barthes muito bem define como a “incapacidade de inferir por outros meios”, e que nos últimos 20 anos, desde a máxima cunhada por Margareth Tatcher,” there is no alternative”, parece ter sido o combustível da retroalimentação entre mídia e massa.

Mas voltando à rua Morgue e ao propósito de Dupin de  reverter o sentido do “extraordinário”, nosso “ jornalista” se coloca outra questão para a qual já tem a resposta:  “Que investigaremos ali em primeiro lugar? Os meios de evasão utilizados pelos assassinos. Não é necessário dizer que nenhum de nós dois acredita em fatos sobrenaturais. A senhora e a senhorita L’Espanaye não foram mortas por espíritos. Os autores da façanha eram seres humanos e escaparam empregando meios materiais”.

 A investigação zelosa de Dupin se dá pelo fato de nosso “jornalista” não se deixar submeter à lógica do extraordinário e nem desprezar a intuição que o racionalismo tecnicista passou a considerar como um recurso intelectual menor.Apesar da barbaridade do crime, evidenciada na desordem física do espaço em que foi cometido e , principalmente , na mutilação dos corpos das vítimas, Dupin manteve a atenção voltada para os detalhes e a partir deles construiu  o raciocínio que o fez chegar aos responsáveis.

Para atraí-los, Dupin publicou o anúncio abaixo no jornal Le Monde, que na ocasião se dedicava aos assuntos da navegação marítima e por isso era muito lido por marinheiros:

ENCONTRADO_  No Bois de Boulogne , ao amanhecer do dia... do corrente ( a manhã do crime), um enorme orangotango fulvo da espécie encontrada na ilha de Bornéu. O proprietário (que se verificou ser um marinheiro, pertencente a um navio maltês) poderá reaver o animal, desde que apresente prova de identidade satisfatória e pague algumas despesas relativas à sua captura e conservação.Dirigir-se à rua...n. ... bairro de St. Germain , terceiro andar”.

“Como pode você [perguntou o amigo a Dupin] saber que o homem é um marinheiro e pertence a um navio maltês?”.

Dupin responde que disso não tinha certeza , mas o formato,o aspecto gorduroso e o nó do pedacinho de fita que encontrou no local do crime eram característicos dos marinheiros malteses. O pequeno  tufo de cabelos fulvos que estavam entre os dedos crispados da senhora L’ Espanaye, o reconhecimento geral de que só uma força “fantástica” seria capaz de tamanho estrago, e a afirmação nos depoimentos de todas as testemunhas de que a fala da voz aguda, ouvida no instante em entraram na casa, era uma língua estrangeira incompreensível e a da voz grossa dizia as palavras diable, sacré e Mon Dieu , o levaram a concluir que um orangotango das ilhas da Índia Oriental era o responsável pelas mortes, e que seu dono sabia dos crimes.

Intuição e conhecimento conduziram Dupin à solução do “crime extraordinário”, que ao receber essa denominação da imprensa já teve seu sentido cristalizado. A partir daí, qualquer tentativa de pensar os dados e as informações fora dessa “realidade” passava a significar um desafio e uma ameaça à perspectiva já consolidada  e agendada pela opinião corrente.Sem dúvida um desconforto para a lógica da doxa que se funda no sentido que se repete e que tem como epígrafe “nega o que é e explica o que não é”.

Numa dura crítica ao jornalismo, Balzac dizia que:

 “Só houve (ele morreu)  um diretor de jornal, na verdadeira acepção da palavra. Este homem era sábio,  tinha uma personalidade forte, tinha genialidade; assim jamais escrevia coisa alguma. Os redatores vinham até ele, todas as manhãs , escutar a orientação dos artigos a serem escritos. Este personagem não tinha ambição: ele fez pares, ministros, acadêmicos, professores, embaixadores e uma dinastia, sem jamais querer algo para si próprio; ele recusou a visita de um rei, tudo, até a cruz da Legião de Honra. Ancião, ele era apaixonado; jornalista, nem sempre in petto tinha a mesma opinião do seu jornal. Todos os jornais de hoje em dia colocados juntos, proprietários e redatores, não são nada perto dessa personalidade”.

O autor da Comédia humana não estava fazendo julgamento moral. Balzac, que uma vez também sucumbiu aos encantos do que pensou se tratar de um diálogo entre o privado e o público, diagnosticava o lugar o jornalismo na então sociedade da comunicação, posição da qual as raízes, num movimento rizomático, vêm se propagando na sociedade contemporânea da informação. “ A imprensa”_ diz ainda Balzac_ “ organizou o pensamento e o pensamento em breve irá tirar proveito do mundo.Uma folha de papel,frágil instrumento de uma idéia imortal, pode nivelar o globo” .

Os papéis da imprensa e da polícia no caso da rua Morgue se assemelharam no sentido de privilegiar o “extraordinário” em sua acepção literal de algo “fora do comum” e, conseqüentemente, de neutralizar as possibilidades para além da doxa. Dupin não se deixou apreender pelo sentido comum. Ultrapassou seus limites e pôde dar ao “extraordinário” o sentido de alguma coisa que nunca havia acontecido em lugar de paralisar o sentido no acontecimento em si.A aventura semiológica de Dupin foi capaz de conduzi-lo ao real do acontecimento. Ele seguiu a intuição e rompeu com a mediação corrente feita em torno da noção de extraordinário”.

Barthes já nos deu a saber que somos todos sujeitos “impuros”, apropriados pelo sistema e tomados pela mediação, ao mesmo tempo em que nos oferece a alternativa do deslocamento, recurso que abre a possibilidade de contar o mundo a partir de um marco zero. Dupin parece situar esse marco zero da sua escritura na intuição que equilibra com o pensamento discursivo. Nos objetos que se permite enxergar no cenário do crime, Dupin trabalha as relações factuais da maneira mais distanciada possível das mediações já previamente conclusivas que limitam tanto a intuição quanto o processo discursivo de passar de uma condição a outra. Uma das bases para a sua tomada de posição frente aos acontecimentos e seu respectivo raciocínio quando instado para tal, é a diferença que faz entre o jogo de xadrez e o jogo de damas, análise que por si só já  representa uma quebra de expectativa para o pensamento comum que considera o primeiro o parâmetro de referência de genialidade e sabedoria.Não à toa, Edgar Allan Poe inicia Assassinatos da rua Morgue dialogando com o leitor sobre as proposições que distinguem análise e habilidade, complexidade e profundidade, e atenção e habilidade. São o levar em conta essas  nuanças que permitirão Dupin saber pensar o acontecimento e elucidar os “ crimes extraordinários”. 

“O melhor jogador de xadrez da cristandade talvez não passe de ser o melhor enxadrista”_ diz o autor-narrador ainda prefaciando a história que vem a seguir. De acordo com Allan Poe, no xadrez, por causa dos movimentos estranhos e dos valores inconstantes das peças, quem vence é o jogador mais atento, e não o mais hábil.No jogo de damas, ao contrário. Os movimentos únicos e com poucas variações das peças, e portanto a reduzida possibilidade de inadvertência, dá vitória à perspicácia, fruto de “uma jogada habilíssima, resultante de um grande esforço intelectual”.Nesse caso, observa o narrador, é sempre necessário que o analista se coloque no lugar do adversário, identificado-se com ele, pois só dessa maneira será capaz de induzi-lo ao erro ou a um mau cálculo.Em outras palavras, o narrador nos adverte, antes de entrar na cena do crime, que“negar o que é e explicar o que não é” se tratará sempre de uma escolha do sujeito. Sem dúvida.Mas, hoje em dia, estará sendo?
 

Bibliografia

ALLAN POE,Edgar. Os assassinatos da rua Morgue .São Paulo: Boa Leitura Editora, s/d.

BALZAC,H. Os jornalistas.Rio de Janeiro:Ediouro, 1999.

BARTHES,R. Aula.São Paulo:Cultrix, 1997.

____________ O óbvio e o obtuso.Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1990.

FERRATER MORA,J. Diccionario de Filosofia Abreviado.Buenos Aires:Editorial Sudamerica, 1974.

FRANCO BUSSE, M.Luiza. Texto sem conforto,uma proposta da redação jornalística.Rio de Janeiro:e-papers,2002.

_______________________ Ensaio sobre a pergunta, uma teoria da prática jornalística.Rio de Janeiro: e-papers, 2004.

 

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