Mercúrio e jornais

Leila Danziger

 

No ponto de ônibus, atrás de um casal sem atributos, vi uma mulher de vermelho. Não era a sua roupa, mas a própria pele. Sentada no banco, silenciosa e digna, vestia bermuda jeans e camiseta sem mangas; braços e pernas tinham o tom vermelho escuro.

Perturbada, tentei ignorar sua presença (magnífica, fascinante, trágica). Virei-me então de costas para ela, e busquei a certeza do céu naquela tarde de Ipanema.

Com alívio, logo identifiquei meu ônibus que se aproximava. Fiz-lhe sinal, mas o motorista ignorou meu chamado e seguiu em frente. Reclamei, suspirei, disse qualquer coisa em voz alta. Acho que foi essa a senha, pois como que pontuando a minha indignação, ouvi uma voz feminina e educada, que acreditei dirigir-se a mim: "Moça, você quer mercúrio?" Me virei lentamente em direção àquela que perguntava e, polidamente, recusei: “Não, não, obrigada”. De relance, percebi que no alto da cabeça, faltava-lhe cabelo e que o couro cabeludo estava à mostra. Por alguns instantes, a vi por inteiro: parecia uma imensa ferida; tão brutal quanto um astro visto de perto. Ela parecia um daqueles desenhos anatômicos de esfolados, mas era demasiado humana, vigorosa, ainda jovem, quase bela. Ela era como um retrato de Artaud, um daqueles desenhos em que o lápis duro sulca repetidamente o papel, lacerando-o, perfurando-o. Os traços fisionômicos brutais eram belíssimas cicatrizes de vida.

Não sei se a moça estava realmente ferida. Talvez fosse apenas o efeito do mercúrio-cromo, sinalizando na pele o que devia lhe atravessar a alma. Mas creio que ela se esfola, brandamente, de modo calculado, hoje, agora. Cultiva as feridas como uma espécie de plantação delicada. Em vez de tatuagens, ostenta a carne viva.

Fiquei intrigada com seu oferecimento atencioso. Dirigia-se a todos ou percebeu em mim alguém que, como ela, inspirava cuidados? Desconfiei de certa cumplicidade entre nós.

Um outro motorista de ônibus atendeu meu sinal e segui meu caminho, nem sei mais para onde. Afastei-me da esfolada, mas sua voz solidária, oferecendo-me generosamente seu ungüento, continuou em meus ouvidos, preenchendo a cidade com as cores de sua aparição.

Alguns dias depois, fui à farmácia e perdi mercúrio-cromo, esperando o tradicional frasco vermelho. O vendedor interpretou meu pedido à luz do ano 2005 e colocou em minhas mãos uma caixinha branca, de design corretíssimo, um spray anti-séptico, ‘com agente anestésico’, sem cor e sem cheiro, garantindo que era muito bom. Insisti que queria o mercúrio-cromo tradicional, aquele que é vermelho, mancha a pele, e costuma arder quando em contato com o machucado. Espantado, respondeu-me que não estava mais a venda. “Há muito tempo saiu do mercado” e me ofereceu uma tintura de iodo, numa tonalidade francamente vulgar.  

Inconformada, entrei numa outra farmácia, maior e mais sofisticada, repeti meu pedido e a resposta foi enfática: “Mercúrio-cromo não tem, foi proibido pela Vigilância Sanitária”. Liguei então para um parente médico que confirmou: “o mercúrio saiu do mercado, porque é tóxico, seu efeito é cumulativo e uma vez no organismo, nunca é expelido do corpo”.

Entendi então que a moça vista no ponto de ônibus utilizava algum pigmento vermelho, uma tintura qualquer, que chamava de mercúrio, como o planeta mais perto do sol

Na verdade, esse encontro me despertou para uma súbita vontade de desenhar, e me fez compreender que eu sempre desenhava como se escalavrasse o papel; que sempre via o papel como a superfície da pele.

 

Passei alguns anos perfurando papéis, verso e reverso. Queria penetrar em sua substância opaca, ir além da pele, virá-la pelo avesso, buscar a área ínfima entre as camadas de pele.  Acho que buscava a interioridade da superfície. Perfurar o papel era uma forma de escrita: constelações de signos construídos pelos vazios que iam aparecendo no papel. A escrita pensada, não como acréscimo, como depósito de tinta sobre uma superfície, mas como subtração de matéria, como lesão, cicatriz. “A escrita manual é sempre a marca de um corpo”, disse Barthes em algum lugar. A escrita é o corpo que arranha, que roça, que se desgasta.

 

Esse princípio vale também para os trabalhos com jornais, mostrados na Galeria Sérgio Porto[1], entre agosto e outubro de 2005. Continuo vendo meu trabalho como uma forma de escrita por supressão. Se antes furava os papéis, agora descasco os jornais, milimetricamente, em operações quase cirúrgicas, que devem ser precisas, exatas ou tudo se perde. Os jornais são paisagens. Paisagens sem sentido, a língua meramente informativa. Mallarmé, que detestava os jornais, argumentava que a poesia “deveria ser a antítese das colunas verticais do jornal (...): o efeito geral dessa poesia se basearia nos efeitos ópticos e auditivos das palavras em relações formais puras”[2]. Não compartilho o desejo de pureza de Mallarmé, e vejo os jornais como um território à espera de sentidos, à espera de algo que lhes confira potência poética.

Desfaço os jornais. As informações são transformadas num emaranhado sem fim e suspeito que seja essa a sua forma mais verdadeira. A leitura é um processo de extração, que remove o texto lido, transporta-o para outro lugar, assimilando-o a outras leituras e textos. Ler com todo o corpo. Ler e emaranhar. Ler e esquecer. Leitura ruminante e distraída. O texto jaz. Metros e metros de informação, embolados entre a mesa e o chão, colam, grudam, tornam os gestos lentos e pegajosos (melancolia). Ações modeladas por pequenas decisões, pequenos riscos assumidos: deixar ou não um friso, uma imagem, uma palavra, um vestígio de cor...

O vetor do trabalho é a página imprensa rarefeita, apagada, sabotada em sua função de documento, mas onde o texto jornalístico ainda pulsa pelo avesso. A integridade da página é mantida e o que permanece é uma pele fina e transparente, uma matéria frágil, fugaz, sensível à ação da luz, desafiadoramente mundana.

A leitura dos jornais é compreendida aqui como uma série de operações efetivamente materiais: folhear, selecionar, extrair, dobrar ou estender, passar a ferro, relacionar, acumular, empilhar, fixar... A dupla conotação da palavra journal , que significa imprensa cotidiana e também diário pessoal - é emblemática. No caso, alguma coisa que motiva e guia este trabalho: a construção de um diário público, sem revelações de ordem íntima, mas estruturado pela confrontação entre linguagens distintas. O que quero é interromper o caráter instrumental da linguagem jornalística, quebrando-lhe a sintaxe, voltando-a contra si mesma. “Nada mais velho do que um jornal da véspera”. Gide estava certo. As notícias envelhecem, com a mesma rapidez com que surgem. Como conceder singularidade ao jornal, retirá-lo da temporalidade linear, transformá-lo em pequenos monumentos?

Duas frases são carimbadas sobre as páginas dos jornais esvaziados. O verso de Paul Celan “Para-ninguém-e-nada-estar” é deslocado de seu contexto de testemunho de Auschwitz e informa nossas pequenas e grandes catástrofes de cada dia. a frase de Denílson Lopes – “Pensar em algo que será esquecido para sempre” – marca as páginas que são selecionadas pela leveza, pelo encanto banal, pelo aspecto decididamente efêmero.

Uma série de trabalhos é dedicada ao personagem Irineu Funes, de Borges. Ao sofrer um acidente, Funes perde os movimentos e, no mesmo golpe, adquire uma hiper memória: Mais recordações tenho eu sozinho que as tiveram todos os homens desde que o mundo é mundo. Funes afirma que a paralisia é um preço irrisório diante de sua sobre-humana capacidade de perceber e lembrar.

Camadas de jornais são agrupadas de modo a reconstruir colunas de textos, mas jornais apagados, “esvaziados” da informação jornalística. As páginas são selecionadas e agrupados por tonalidades. As cores impressas são instáveis, sedutoras e mundanas. Aparecem principalmente na publicidade, aquela parte do jornal mais voltada para o descartável e o esquecimento Carimbos com fragmentos do conto de Borges são aplicados sobre as cores semi-apagadas. Não se trata aqui de nenhum elogio ao esquecimento, muito ao contrário... Mas as vezes acho que esquecer é uma medida higiênica e saudável diante da massa informativa e tantas vezes inútil dos meios de comunicação. Cabe esvaziá-la pura e simplesmente, buscando a leveza e o sentido, que também são sempre provisórios e ameaçados pelo esquecimento.

No início desses trabalhos com jornais, estava o Nome, a busca do nome, de nomes próprios, de um nome, todos os nomes. Transformei isso numa equação muito simples: Nome = Poiesis. Como sempre, tudo começa em Aristóteles, passa pelos românticos alemães - a ênfase conferida à poiesis, a prática da produção - chegando a Walter Benjamin, para quem a essência da linguagem é o nome  próprio ponto em que a linguagem humananão pode tornar-se palavra finita, nem conhecimento”. Enfim, o nome detém a dimensão criadora da linguagem.

Durante muito tempo separei os jornais em que constavam a palavranome ou simplesmente um nome próprio. Retirava todo o texto em volta e o nome pulsava sozinho na página. Mas, tão solitário, não chegava a fazer sentido. Passei a colecionar fragmentos de textos em que a questão era o nome. Cecília Meireles: “de dura inconstância é teu nome feito”; Drummond: “Ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve”; e o que considero a fórmula mais perfeita, extraída de Orides Fontela: “A escolha do nome, eis tudo”. Fiz carimbos com esses e muitos outros textos e passei carimbar os jornais com os nomes com os versos que falavam do Nome. Articulei então os jornais carimbados em dobras, superposições que construíam outros textos. Me senti como uma espécie de ventríloquo, fazendo jornais e poetas falarem, de certo modo, o que eu queria. É a série mais austera, mais difícil, talvez, mas a que me é mais querida também e acho que a fórmula continua válida: “Nome = Poiesis”. Continuo a procura, do Nome, do Witz romântico (do chiste), de estranhamentos, deslocamentos, capazes de produzir sentido.    


 

[1] Diários públicos, Espaço Cultural Sérgio Porto, RioArte. Trabalho realizado com o apoio do 7o. Programa de Bolsas RioArte. (Agosto/ Outubro de 2005)

[2] Frascina Francis, Realismo e Ideologia: uma introdução à semiótica e ao cubismo, in: Franscina, Harrison e Perry. Primitivismo, Cubismo e Abstração, São Paulo: Cosac e Naivy Ed, p.162.


 

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