O Náufrago: a individualidade em colapso
Juliana Nascimento Berlim Amorim (UFRJ/ UERJ)
Todo homem é um ser humano único e, contemplado em sua individualidade, ele é com efeito a maior obra de arte de todos os tempos.(Bernhard: 129)
O Náufrago, de Thomas Bernhard, é um romance que dá prosseguimento à tradição moderna do desfacelamento da estrutura romanesca linear. Construído sobre fragmentos de memória de um narrador-personagem, o tempo passado dá a tônica das ocorrências do presente, meras decorrências de situações anteriores definitivas, o que resulta em um monólogo interior niilista, pessimista, rascante, exageradamente crítico e que por isso, em determinados momentos, beira o humor, muitas vezes intencional e típico da escrita de Thomas Bernhard, autor conhecido pela alta voltagem de sua violência verbal. Nesse ponto, é escusado dizer que a obra de Bernhard não é em nada rotulável, em especial se levarmos em conta sua soberba capacidade retórica, única na literatura de língua alemã contemporânea, quiçá mundial.
A história começa pelo fim, ou seja, narrando o término de uma amizade longa e profunda, na qual violentos laços emocionais interligavam as três personagens centrais, cujos sentimentos nutridos mutuamente eram ambíguos. Nos dois primeiros parágrafos do livro deparamo-nos com as mortes de duas destas personagens, uma delas de causa natural e a outra ocorrida por intermédio de um suicídio, pontuando, desde o princípio, que a morte, neste livro, é o grande tema. Tudo na história ou está literalmente morto, ou estagnado, ou em estado de aporia. Duas das personagens centrais, Wertheimer e o Narrador, este sintomaticamente sem nome pelas similaridades que guarda com o próprio Bernhard, vivem de maneira emocionalmente precária, em contínuo processo de autodestruição. Suas existências arrastadas, vazias, assemelham-se a um suicídio em estado contínuo, apenas aguardando o ato final. As evidências tornam-se tão claras que Wertheimer chega a acusar com freqüência o Narrador de suicida potencial, ao passo que o Narrador acredita no mesmo, só que em sentido contrário. Muita desta enorme incapacidade de ambos deve-se a uma incapacidade ainda maior de se desligarem da onipresença de seu antigo colega da Escola Superior de Música de Salzburgo, denominada Mozarteum. O nome do colega: Glenn Gould.
Os conhecedores de música clássica sabem da importância do gênio de Glenn Gould. Um dos mais prestigiados pianistas do século XX, considerado por muitos o melhor do século, dedicou sua vida integralmente à música, vivendo de maneira misantrópica. Suas interpretações de Bach são consideradas únicas, em especial a das Variações Goldberg, inigualável. A apropriação da biografia da figura célebre de Glenn Gould por Thomas Bernhard faz parte de um procedimento regular na obra do autor austríaco, que costuma ficcionalizar as biografias de intelectuais ou artistas famosos, além de utilizar com regularidade elementos da sua própria vida. Tal proceder não se presta, contudo, a um elogio direto da pessoa retratada tampouco a intenção de transformá-la em porta-voz de possíveis considerações teóricas do autor sobre a arte, no caso, a arte pianística – este papel, em Bernhard, costuma ser função do Narrador. A despeito das notas (auto)biográficas, a figura de Glenn Gould se presta à necessidade de auto-comparação das outras duas personagens com a genialidade artística do pianista, tomado como emblema da superação humana e da busca do sublime pelas vias da arte, em contraponto ao tédio, à frustração, ao desânimo e à fraqueza espiritual de seus dois pares.
Dessa forma, compreende-se o impacto dramático da cena do romance em que se dá o primeiro encontro entre os três estudantes, futuros amigos. O cenário é a cidade de Salzburgo, Áustria; a época, a década de cinqüenta. Ao se matricularem no Mozarteum com a finalidade de estudar com o mundialmente respeitado professor Horowitz, mal podem prever que os próximos vinte e oito anos de suas vidas serão conduzidos de acordo as impressões advindas deste primeiro contato e da própria convivência conjunta entre os três, durante o período de estudos. Dali em diante, assiste-se à trajetória vitoriosa de Glenn Gould e à derrocada pessoal de Wertheimer e do próprio Narrador. Por fim, ambos, apenas alguns anos de estudo após o encontro no Mozarteum, abandonam a carreira de concertistas, para poderem se dedicar às “ciências do espírito”, no caso de Wertheimer, que passa a empreender uma pseudofilosofia baseada na escrita de aforismos e, no caso do Narrador, à preparação de um sempre inacabado ensaio intitulado Sobre Glenn Gould. Mal preparadas em seus procedimentos metodológicos e perspectivas teóricas, tais iniciativas fracassam. De fato, o mau resultado obtido, no caso dos dois, é tão óbvio quanto o sucesso de Glenn Gould; estamos diante de personagens que adotam para si a poética do fracasso, nada mais. Para eles, o trabalho é uma casualidade, não uma necessidade vital ou uma atividade imprescindível. Herdeiros de enormes fortunas, tão logo abandonam os estudos pianísticos e assumem suas atividades de perfil diletante, passam a dedicam boa parte de seu tempo à autocomiseração, à acusação e à constatação mútua de suas limitações, sempre em relação direta com os sucessos profissionais de Glenn Gould (chamado, na intimidade, de Glenn). Se levarmos em conta as condições sócio-culturais, as três personagens possuem vidas muito similares, a ponto de cursarem a mesma escola de música. O que as diferencia, afinal, é a habilidade pessoal de cada uma em superar suas limitações em prol de um projeto de vida. Wertheimer tinha um: tornar-se o melhor pianista de sua geração, no mínimo. O sonho megalômano, contudo, é limitado pela constatação de que tal posto era ocupado por Glenn Gould. Ao perceber que não poderia ser de fato Glenn Gould, torna-se um anti - Glenn, ou seja: tudo aquilo em que Glenn poderia ter se transformado caso não fosse quem era.
Embora também tenha abandonado sua carreira na música e os efeitos do encontro com Glenn Gould tenham-lhe sido letais sob vários aspectos, o Narrador não é “mortalmente ferido” , como Wertheimer, pelo gênio do piano. Isso é evidente, já que é ele quem nos narra a história, foi ele quem sobreviveu ao naufrágio de uma existência desperdiçada. Mas, ainda mais fundamental do que investigar a influência da presença de Glenn Gould na vida do narrador, é perceber sua função central na trama como testemunha ocular. Os narradores são fundamentais para a compreensão da escrita bernhardiana, que costuma utilizar o recurso do Eu-Narrador (Ich-Erzähler, em alemão) em seus livros. Além da parcialidade dos relatos inerente a um narrador-personagem, seus narradores costumam escrever com virulência, ter temperamento idiossincrático e misantrópico, serem racionalistas e subjetivistas ao extremo, emitindo pareceres que, em muitos momentos, são antes opiniões do que testemunhos confiáveis. Mas, em todo o caso, privilegiam a observação atenta, perscrutam, investigam, analisam com critério seus “observados” , como quando, sendo um dos três alunos do curso de Horowitz, o Narrador assiste ao momento inicial do desmoronamento profissional de Wertheimer, quando ouvem juntos, pela primeira vez, a execução das Variações Goldberg de Bach por Glenn Gould. Ao fechar os olhos para poder melhor apreciar o som das notas emitidas pelo piano, Wertheimer decreta ali o fim de sua carreira, pois, como jovem aspirante a virtuose, reconhece, como poucos saberiam fazê-lo, a grandeza da arte de Glenn Gould. Embora seja um livro que verse sobre o meio musical, a visão é o sentido mais privilegiado na trama. É pela observação que as personagens se reconhecem mutuamente, é no ato de observar Wertheimer, mal o conhecendo, que Glenn o sentencia à morte, apelidando-o de O Náufrago, apelido que dá nome ao livro. Assim como Glenn Gould carregava consigo a marca do sucesso, Wertheimer trazia estampada em si a marca do fracasso, o que leva a entender que, mais cedo ou mais tarde ele afundaria, faltando apenas o motivo. Tendo encontrado o motivo, desaba. O Narrador, em dado momento, tenta entusiasmar o amigo a abandonar o estado de catatonia existencial:
O artista do piano, disse a Wertheimer – e eu empregava com bastante freqüência essa expressão “artista do piano” quando conversava com ele sobre a arte do piano, a fim de evitar o repugnante pianista -, o artista do piano, pois, não pode se deixar impressionar tanto por um gênio a ponto de ficar paralisado, e o fato é que você, com efeito, se deixou impressionar tanto por Glenn que está aí paralisado, você, o talento mais extraordinário que o Mozarteum já conheceu, eu lhe disse e estava falando a verdade, pois Wertheimer era de fato esse talento extraordinário, aliás, um talento extraordinário que o Mozarteum jamais voltou a ver, embora não tenha sido, como já disse, um gênio como Glenn. Não se deixe derrubar assim por um redemoinho américo-canadense, disse a Wertheimer, pensei. (Bernhard: 146)
Tendo entrado no terreno das questões corporais do romance, podemos observar as descrições físicas das personagens. Glenn Gould é, ainda mais uma vez, o melhor exemplo: embora, como destaca o Narrador, sempre fosse descrito ou conhecido pelo público em geral como uma figura frágil, débil, “quase um aleijado” sobre seu piano, sua força, sobretudo sua resistência física, são descritas no livro como quase sobre-humanas. Em nome de sua arte, Glenn suplanta as limitações do corpo. Em pleno período de estudos no Mozarteum, ao perceber que um ramo de árvore “atrapalhava” sua concentração, ele imediatamente transforma a árvore em lenha a machadadas, para logo em seguida notar que bastaria ter fechado a cortina. A insuspeita força física de Gould corresponderia de maneira direta àquilo que poderíamos considerar sua força interior. É ela que o compele a estudar seu instrumento ininterruptas horas diárias, a tocar quase até o fim das forças, a dormir apenas quatro horas e a acordar revigorado, a transformar seu corpo numa máquina de produzir música. Mais do que isso: ele quer ultrapassar os limites que se interpõem entre ele e Bach, metamorfoseando-se em piano. Com a eliminação do corpo humano que se coloca entre ele e Bach, deixaria de ser uma mediação para ser uma das pontas da cadeia da música:
A vida inteira, Glenn quis ser o Steinway; ele odiava a idéia de estar entre Bach e o Steinway, apenas como um intermediário da música, e de um dia, entre Bach e o Steinway, ser triturado. (...) O ideal seria que eu fosse o Steinway; não precisaria do Glenn Gould, disse; sendo o Steinway, eu poderia tornar Glenn Gould absolutamente supérfluo. Ms nenhum pianista jamais conseguiu se fazer supérfluo sendo o Steinway, disse Glenn. Acordar um dia e ser Steinway e Glenn a um só tempo, ele disse, pensei, Glenn Steinway, Steinway Glenn somente para Bach (Bernhard: 114, 115).
Como se percebe, o piano ocupa lugar de destaque no processo de reconhecimento das personagens, porque o instrumento não só corresponde a uma extensão do corpo do instrumentista como, no caso de O Náufrago, indicia o estado espiritual de cada um dos pianistas em questão. Glenn Gould só permitia para sua arte o piano Steinway, pois qualquer outra marca de piano impediria a realização plena de sua ambição artística. O Narrador, por sua vez, doa, sem escrúpulos, seu caríssimo piano para que a filha de um professor de província o destrua com sua inabilidade, fruto de sua tendência autodestrutiva. Seguindo a postura do desperdício, muitos anos antes de o piano ser doado, tanto ele quanto Wertheimer haviam abandonado o estudo pianístico em prol de estudos teóricos que contemplam a habilidade física exatamente oposta à da prática pianística diária. Os pianos são, portanto, assim como Glenn Gould, onipresentes, e seja qual for a forma com a qual se apresentem, ou presencialmente, ou pela memória, ou através da audição dos discos de Glenn Gould, eles sempre representam um martírio às duas personagens. Nenhuma cena ilustra com maior adequação a visceralidade da relação homem-instrumento e a angústia dela proveniente como a do último concerto de Wertheimer. Realmente, não se trata de um recital convencional, mas de um ato desesperado de despedida: após anos sem tocar uma única nota, o pianista decide convocar para sua luxuosíssima casa de campo dezenas de pessoas, em sua maioria desconhecidos, para que passem mais de duas semanas às suas expensas. Enquanto usufruem o luxo proporcionado pelo dinheiro de Wertheimer, ele as submete a concertos diários e quase ininterruptos de Bach e Haendel, executados em um piano de estado lastimável:
O piano era um Ehrbar, e não valia nada. E estava, como constatei de pronto, totalmente desafinado, um instrumento única e exclusivamente para diletantes, pensei. (Bernhard: 232,233).
O resultado é, como esperado, deprimente e as pessoas hostilizam Wertheimer sem reservas. Pouco tempo depois ele viria a se suicidar por enforcamento, a poucos metros da casa da sua irmã. Aliás, em se tratando de vilipêndio, nenhuma figura é mais rebaixada do que a feminina, sendo seu corpo tratado com desrespeito. A figura feminina em Bernhard é com freqüência descrita como degradada, repulsiva ou maliciosa. Em O Náufrago, ela é inclusive submissa e humilhada. Que não se entenda aqui um subliminar contexto homoerótico. O amor é inexistente em O Náufrago e a sexualidade tratada com desprezo. Em todo o romance, existem apenas duas personagens femininas de monta: a dona da pousada e a irmã de Wertheimer. Sobre aquela, o Narrador tece um comentário duro, ao se lembrar, durante o encontro dos dois após o enterro de Wertheimer, que ela e o amigo morto mantinha relações sexuais ocasionais. A dona da pousada é descrita inclusive com vulgar e baixa. Contudo, nenhuma mulher é mais assediada do que a irmã de Wertheimer, massacrada psicologicamente pela fúria destrutiva de seu irmão. Extremamente masoquista, ela se submete a todo tipo de sujeição: é proibida de vestir-se à sua maneira, de decorar a casa a seu gosto, de passear por lugares desautorizados pelo irmão. Somente aos quarenta e seis anos de idade ela consegue (ou decide) se libertar através do casamento com um suíço, situação que a obriga a mudar de país e precipita o processo autocorrosivo final da personalidade doentia de Wertheimer. Ele a culpa de tê-lo abandonado e, ao se matar a apenas alguns metros da casa dela, pretende mandar um aviso e fazê-la sentir-se culpada para sempre. Na verdade, como bem constata o Narrador, o suicídio de Wertheimer liga-se muito mais à morte de Glenn do que ao casamento da própria irmã. Wertheimer não teria suportado a idéia de permanecer vivo após a morte de Glenn, mas mais uma vez forja uma saída psicológica eficiente para seu projeto pessoal de infelicidade.
Por fim, ao concluirmos a leitura de O Náufrago, percebemos que, no fim, retornamos ao ponto de partida. Não obstante as muitas informações agregadas ao conflito inicial, nada aconteceu de fato, porque tudo o que importava, as pessoas mais importantes da vida do Narrador, já tinham morrido e haviam sido enterradas. Percorremos, ao longo de mais de duzentas páginas, a vida de três personalidades excepcionais: artistas excepcionalmente acima da média, cujos desvios de personalidade contribuíram para sua ascensão ou queda, dependendo do caso. Um prospera, outro naufraga vítima de uma existência vazia e o outro se situa eqüidistante dos dois, observando, avaliando, perscrutando e estabilizando sua neurose num processo de escritura que é sua redenção.
Referências Bibliográficas:
BERNARD, Thomas. Alte Meister. Komödie. Frankfurt/Main: Suhrkamp: 2004.
BERNHARD, Thomas. O Náufrago. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Tradução de Sérgio Tellaroli.
HUYSSEN, Andreas. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. Tradução de Patrícia Farias.
REICH-RANICKI, Marcel. Sein Heim war unheimlich. In: Thomas Bernhard. Aufsätze und Reden. Mit Fotografien von Barbara Klemm. Zürich: Amann, 1990.
Dados Curriculares:
Juliana Berlim licenciou-se em Letras, Português- Alemão, pela UFRJ e cursa atualmente o Bacharelado em Letras, Português-Francês, no Instituto de Letras da UERJ. Concomitantemente, conclui o Mestrado em Ciência da Literatura pela UFRJ, sob a orientação do Prof. Dr. Fabio Akcelrud Durão. Seu projeto é a tradução da obra Alte Meister, de Thomas Bernhard, inédita em Português do Brasil, anotada, comentada e com ensaio introdutório.