O ADENSAMENTO CRÍTICO E IRÔNICO SOBRE O ÓPIO ALIENADOR DA CULTURA DE MASSA NO FILME CRONICAMENTE INVIÁVEL DE SERGIO BIANCHI
Giovane da Silva Santos
(Mestrando em Ciências da Literatura, Teoria Literária, UFRJ)
Professor Orientador: Aberto Pucheu
Espetacularizar a violência social como uma mera imagem-mercadoria. Internalizar naturalmente o mal-estar crônico da crise social brasileira, na fase tardia do capitalismo avançado, através de imagens estetizadas da barbárie, recebidas pelos consumidores pós-modernos acriticamente, sem espessura histórica ou resquícios da memória de seus conflitos internos, na sociedade do espetáculo. Essa tendência contemporânea, que se desenvolveu na arte fetichizada da pós-modernidade, tanto na literatura sobre a vida nos grandes centros urbanos quanto em alguns filmes comerciais da cinematografia brasileira do final do século XX, não pode ser atribuída a uma das obras mais polêmicas da Retomada do Cinema nacional. O filme Cronicamente Inviável de Sérgio Bianchi desvela o mal-estar crônico da sociedade brasileira e a suspensão do projeto civilizatório nacional, na fase aguda do capitalismo avançado, através das imagens de variadas formas de violência e miséria social, abordadas com adensamento critico e a ironia cética.
Com a perda da criticidade, uma grande parcela da sociedade tendeu a mergulhar alienadamente na fruição do entretenimento confortável, do apelo encantatório do fetiche da imagem. E as diversas formas de violência social e o choque entre classes perderam sua densidade histórica, sua potência crítica, o resquício do registro temporal dos seus conflitos internos para figurar como imagens vazias, toleráveis, risíveis, facilmente assimiladas e até desejáveis para satisfazer os minutos orgásticos de prazer alienado de uma sociedade cega diante das telas dos cinemas. A miséria social estetizada na película filmica tornou-se asséptica, repleta de clichês, distante da realidade crua e nua acessível do outro lado do murro das salas de projeção. E as imagens da violência converteram-se em mero desencadeador de adrenalina e da satisfação catártica do instinto de agressividade humana através da experiência ficcional, segura e tolerável. A percepção do inteligível tornou-se embotada pela repetição maciça do sensível impactante.
Entretanto, pensadores da tradição crítica nacional, artistas e intelectuais conscientes das iniqüidades sociais derivadas da incorporação passiva da cultura, da economia e da dissolução das políticas nacionais na lógica voraz do capitalismo financeiro internacional, articulam teses elucidativas sobre o caótico mundo pós-moderno e sobre as formas da crise da condição humana no capitalismo avançado, sejam em ensaios densamente reflexivos ou em peças artísticas, romances, filmes que não se omitem em desvelar o desencanto do mundo contemporâneo.
A narrativa do filme Cronicamente Inviável de Sérgio Bianchi parece encarar sem máscaras ou canduras estéticas esse mal-estar social que solapa os países capitalistas dependentes como o Brasil, desvelando as imensas contradições dessas imagens bárbaras a eclodir em todo seu extenso território nas formas mais variadas de violência social.
O enredo dessa obra narra trechos da vida de seis personagens comprimidos entre a elite dominante brasileira e os níveis mais baixos das camadas populares. Quatro são representantes da típica elite burguesa nacional, cooptada pelo capital financeiro internacional e desencantada com sua cínica e conformada consciência de exploração econômica dos segmentos sociais excluídos. O irônico e pungente Luis, interpretado por Cecil Thiré, refinado dono do restaurante Pellegrinus em um bairro rico de São Paulo, explora seus garçons tanto na desvalorização da sua mão-de-obra quanto em aventuras sexuais para satisfazer seus desejos hedonistas. A gerente do restaurante, Amanda, vivida pela atriz Dira Paes, oculta um passado miserável sob os mitos ufânicos das promessas grandiosas da miscigenação racial brasileira e, cooptada pelo sistema, atua no tráfico de órgãos e no comércio ilegal de recém-nascidos. Carlos, interpretado por Daniel Dantas, surge como um empresário com uma visão pragmática sobre as vantagens a serem tiradas do desacerto social da nação e Maria Alice, atuação de Beth Goffman, encarna uma carioca de classe média alta, defensora de atitudes filantrópicas destituídas de organicidade para amenizar seu sentimento de culpa por compactuar com o crescimento do abismo entre as classes sociais. Os outros dois protagonistas dessa radiografia ferina do falido projeto civilizatório nacional são Adam, (papel do ator Dan Stullbach), um garçom polaco, que se destaca por sua descendência européia, sua consciência ferina do desacerto social do país e por suas radicais reações ao jogo estabelecido pela hipócrita ordem econômico-social. E o antropólogo Alfredo Brum, escritor intelectual, interpretado por Umberto Magnani, que viaja pelo país, fazendo a entrega de pacotes suspeitos e estudos desencantados com conclusões aporéticas dos problemas de dominação e opressão social brasileiros.
As imagens de barbárie explícitas e da ironia ácida que norteiam a montagem de cenas aparentemente autônomas e sem sincronia umas com as outras são costuradas sob uma temática constante: a inviabilidade do projeto civilizatório nacional na omissão cúmplice entre a cínica elite burguesa, cooptada pelo capital internacional, e a conformada camada popular, absorvida pelo ópio alienador das mercadorias fetichizadas da sociedade do espetáculo. Essa dimensão da alienação conformista dos segmentos excluídos das diretrizes do jogo econômico será abordada neste artigo através da analise de um bloco temático de cenas, aparentemente autônomas, onde a ironia articula o discurso verbal (diálogos e narrações em off), o imagético (movimentos de câmera e composições cênicas) e o sonoro (trilhas musicais) de forma inusitada. Já as questões cruciais que produzem a crise social brasileira serão articuladas com as contribuições teóricas de alguns pensadores marxistas da tradição critica nacional e estrangeira.
O bloco temático a ser analisado será intitulado como ditadura da felicidade e corresponde a três seqüências cênicas. Na primeira filmada no carnaval Baiano, uma nítida elite burguesa branca, uniformizada com vestimentas de um bloco de rua, dança alienadamente sob o som de um vazio axé-music e é protegida por um cordão de isolamento que a separa da massa de excluídos sociais, espancados por policiais armados de cacetetes. Essa cena se encerra com a incômoda imagem da urina de um folião escorrendo para a boca de um menino de rua que dormia no meio fio. A segunda seqüência narrada toda em off questiona ironicamente a venda da imagem exótica do país como paraíso tropical através do cartão postal do Rio de Janeiro, o Cristo Redentor.E a terceira aborda a mercantilização da miséria social nas seqüências de uma apresentação de um grupo de afro-regaee na praia do Arpoador no Rio de Janeiro, onde um eufórico promotor cultural pós-moderno emite um discurso cínico sobre a sua filantropia benemérita com a infância desvalida do país.
A questão nodal desvelada por essas seqüências narrativas enfoca o caráter alienador que assumiram os bens culturais de massa na lógica do capitalismo avançado, tornando-se aparatos ideológicos do sistema financeiro internacional, uma vez que sua vacância desprovida de espessura critica e histórica, contribui para aprofundar as agressivas políticas neoliberais de dissolução do nacionalismo estatal e para inviabilizar reações contra-hegemônicas de uma classe politicamente organizada.
Roberto Schwarz no artigo “Os sete fôlegos de um livro”, identifica que a consolidação de nosso sistema literário e cultural não coincidiu com as mutações fundamentais no modo de inserção do país nas relações econômicas internacionais. As demais esferas do processo formativo brasileiro, a econômica e a política, não se integraram à consolidação do civilizatório sistema literário nos fins do século XIX. Ocorreu o que o Schwarz descreve como “progresso à brasileira, com acumulação muito considerável no plano da elite, e sem maior transformação das iniqüidades coloniais”.
Essa ausência de criticidade, esse ópio alienador do fetiche da imagem, defendido euforicamente pelos multiculturalistas da pós-modernidade propicia o terreno perfeito para a naturalização das diversas formas de violência social. A ditadura da felicidade oculta os bolsões de miséria e de abandono social, desvelado pela incômoda cena em que o folião baiano alivia sua bexiga na porta da própria casa e sua urina escorre para a boca de um menino de rua que dormia no meio-fio. Nesse caleidoscópio da lógica cultural do capitalismo avançado parece que aos miseráveis somente resta a submissão alienada aos desejos da elite, a fome do lixo, o frio da calçada, o veneno da urina.
A identidade cultural do país passa a ser vendida como exotismo para estrangeiros. O carnaval baiano e seus elementos fundadores nas raízes do substrato místico-religioso tornam-se mais uma mercadoria, um kit identitário que pode ser adquirido como a vestimenta do bloco de rua ostentado pela elite burguesa que pulava freneticamente, protegida da escória excluída da sociedade por um cordão de isolamento. A idéia cristalizada no senso comum de que o carnaval seria uma festa democrática é desconstruida ironicamente nessa cena onde o discurso imagético (o plano geral da multidão sambando e o plano em conjunto do bloco de burgueses e dos pobres apanhando dos policiais) endossa o discurso verbal (as reflexões em off do antropólogo Alfredo):
ALFREDO (OFF)__Uma perfeita forma de dominação autoritária, a felicidade. É interessante como se insiste em criticar a Bahia. É só inveja da genialidade do projeto baiano. Enquanto o resto do mundo se esforça por dominar as massas seja pelo capitalismo, o socialismo, a guerra, (...) eles só fazem o suficiente para gerar a felicidade. Mantem todo mundo pobre, bota um som pra tocar e pronto. Tudo bem que eles sejam gênios, mas porque os que não querem ser felizes são obrigado a participar.
Assumir a ditadura da felicidade imposta pela lógica cultural do capitalismo tardio, através da aquisição das últimas novidades tecnológicas e da assimilação passiva do seu lixo cultural, esvaziadores dos conflitos internos de nossa sociedade, implica em aceitar confortavelmente a alienação reinante que domina as massas desorganizadas politicamente e que considera natural a condição inumana dos miseráveis abandonados na sarjeta pelas inoperantes políticas de bem-estar social. O olhar de Sérgio Bianchi desvela esse ópio alienador da imagem como um dos fatores que corrobora com a falência do projeto civilizatório nacional, seus angustiantes impasses, através do discurso irônico do antropólogo Alfredo que percorre o país numa viagem de estudo sobre as relações entre a dominação e opressão.
Tão grave quanto a alienação via cultura de massa, nessa seqüência cênica, é a reificação do corpo convertido em imagem-mercadoria, atrativo para os ímpetos hedonistas do turismo sexual. O conjunto de imagens enfatiza também a exploração permissiva da miséria. Meninas, em sua maioria negras e mulatas, dançam a som dos trios elétricos para desfrute de uma elite rica, seja nativa ou estrangeira. As camadas populares plenamente entorpecidas pela dominação “via felicidade” adquirem uma cumplicidade cínica nesse jogo exploratório, pois parecem cumprir satisfeitas sua função de entreter a classe dominante, seja pela música ou pela permissividade sexual.
A segunda seqüência narrativa levanta a questão da importação da imagem do exotismo tropical e a exaltação dessa característica no senso comum das camadas populares como meio de aprofundar o processo de alienação instaurado pela cultura de massa. A cena apresenta uma tomada aérea do Corcovado, seguida de um plano geral de Alfredo entregando uma suspeita mala preta a um interceptador aos pés do Cristo Redentor. Entre eles um bando de turistas. O discurso verbal em off do antropólogo não poderia ser mais irônico e dessacralizador do conteúdo do discurso imagético (planos em close do Cristo de braços abertos).
ALFREDO (OFF)__ Não é estranho que ele fique sempre de braços abertos. Pode dar a impressão de que ele diz: venham de todos os cantos do mundo, homens de todos as raças, culturas e credos e explorem sem piedade, toquem fogo em tudo.
Esse vigor irônico adensa o mal-estar do espectador, convocado a refletir sobre o mito do desenvolvimento e de grandeza pátria que se ocultam sob nossos assépticos cartões-postais. A trilha sonora dessa seqüência é uma musica instrumental de bossa-nova, produto intimamente associado à imagem de nossa identidade cultural no exterior, esteticamente harmônico com a ilusão de paraíso tropical que se busca vender, porém esvaziada dos conflitos internos de nossos descalabros sociais.
Os cartões-postais desse país tropical ora convertem nossas cidades e seus habitantes em meras mercadorias, superficiais, vazias, desprovidas de densidade histórica, ora espetacularizam a sua miséria promovendo passeios turísticos para a elite estrangeira em favelas, como num safári, onde as imagens de violência social podem ser deglutidas naturalmente, registradas fotograficamente como souvenir de uma viagem a Disney. Essa mercantilização da miséria alheia como bem cultural tipicamente nacional é abordada na terceira seqüência narrativa que se desenvolve na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro, onde um grupo de ex-meninos de rua faz uma apresentação de afro-regaee na chamada “Semana Cultural Baiana”, para jovens da classe média alta da zona sul. O promotor do evento interpretado pelo ator Petrônio Gontijo expõe, num monólogo para o antropólogo Alfredo, o seu papel social de resgatar a infância desvalida do pai, e as possibilidades de lucro com a exportação da música associada à imagem de miséria daqueles jovens.
PROMOTOR__ Tem gente que me critica! Quero ver o que os outros fazem. Tirei essa moçadinha toda da rua rapaz. Estou falando de dignidade (...) Arrumei emprego para todos eles. A gente vai viajar, fazer muito show, ganhar muito dinheiro. (...) Porque não levar eles para Nova York. O Brasil realmente tem muito que mostrar.
A questão nodal nessa seqüência é a euforia hipócrita dos multiculturalistas pós-modernos que assimilam passivamente a conversão de todas esferas da vida humana como mercadoria, até as implicações mais complexas de nossos conflitos internos como a miséria e o abandono social dos meninos de rua. Questões essenciais como o investimento na dignidade da condição humana, na educação formadora de pensadores críticos, capazes de articularem-se politicamente numa contra-hegemonia, conforme já antevira Gramsci em suas reflexões, são relegadas ao simples bater lata, o som emburrecedor e alienante que transfere, segundo o discurso irônico do antropólogo, esses menores da “seleção darwinista das ruas para a seleção do mercado”.
ALFREDO__Explorar a miséria como atração turística deve ser no mínimo perigoso. Assim a miséria ao invés de ser um problema passa a ser desejável, lucrativa. Se a criança não tem educação você dá uma lata para bater. É melhor que deixa-las na rua para serem exterminadas.
As discussões dialéticas das noções de justiça, democracia, virtude e compromisso ético com a polis contemporânea são rotuladas como anacronismos metafísicos pelos pós-modernos multiculturalistas. No esteio dessa sociedade do espetáculo que converte tudo em mercadoria, inclusive a miséria, prevalece então a vitória da ignorância, da mediocridade e do iletramento. Naturalizar a miséria social ou fazer dela material de investimento comercial significa agir em cumplicidade com a lógica cultural do capitalismo tardio para alargar profundamente o fosso social que separa os segregados da sociedade de sua classe mais elitista. Transferir a sociedade do espetáculo a tarefa de educar os cidadãos consiste em ofertar a qualquer nação, seja de primeiro ou terceiro mundo, paradigmas perigosos com o consumo desenfreado, o universo hobessiano da competição, os mitos da fama, a pornografia e a barbárie.
A alienação consciente dos multiculturalistas pós-modernos e a acomodada aceitação das camadas populares desse ópio alienador da cultura de massa favorecem apenas a celebração do mercado, a reificação da cultura e a fetichização das diferenças sociais, raciais e culturais, caracteres inerentes da cultura de massa. Miséria usada como filantropia social e respaldada pela sociedade é um sinal evidente da inviabilidade do projeto civilizatório nacional. A ironia dessa cena aproxima o contexto da narrativa e o contexto do espectador, reproduzindo uma situação prontamente identificável junto à instância receptora, que reconhece como suas as atitudes de alienação expostas na narrativa filmica.
O ópio alienador do mito do desenvolvimento e hegemonia do fetiche da imagem criaram uma névoa densa na criticidade da sociedade brasileira. Todos caminham como cegos optando pela vitimização e pelo conformismo alienador ou pela consciente omissão cínica e pungente da elite dominante. Equilibram-se na corda bamba de um país cronicamente inviável, onde os impasses de seu projeto civilizatório ganham um nó górdio.
BIBLIOGRAFIA
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