PALAVRA
E
CRIAÇÃO
A
PARTIR DO
PENSAMENTO DE NIETZSCHE
Flávio Pimentel
flavio-pimentel@uol.com.br
Mestrando
em
Filosofia, UFRJ
«...os
poetas devem
aumentar o
mundo
com as
suas
metáforas.»
Manoel de
Barros
O
título
palavra e
criação traz no
seu
fundo
um
tema ao
mesmo
tempo
comum e
inusitado: o
tema da
linguagem.
Como
bem
nota Octavio
Paz,
todo o
problema
acerca da tematização da
linguagem,
todo o
controverso de
sua
questão,
talvez advenha de
sua impossibilidade de se
converter
absolutamente
em
um
saber
objetivo, de a apanharmos
em
sua
realidade
última,
pelo
simples
fato de
que
nós
só podemos
nos
debruçar
sobre
ela falando e
já
desde
ela
mesma,
como
meio de
acesso; «a
linguagem», diz o
poeta mexicano, «em
sua
realidade
última,
nos
escapa.»
A
linguagem, antecedendo a
sua
própria
conversão
em
objeto de
estudo
ou
tema
para o
pensamento, preparando-os e perfazendo
seus
caminhos
essenciais,
salta
por
sobre
toda
objetivação,
como
esse
manancial enigmático de
palavras,
pontos de
vista,
pensamentos,
frases entrecortadas
ou
concretamente formuladas numa
interpretação.
Fonte
que é, a
linguagem se apresenta
em
todo
pensamento e
fala, abrindo
pensamento e
fala,
sem,
por
isso,
nos
desvendar
por
completo
seus
segredos,
ou seja,
sem
poder
caber
por
inteiro
em uma
só
fala
temática.
Justamente
porque estamos a
todo
tempo no
meio da
linguagem,
ela, ao
mesmo
tempo
que abre a possibilidade de
toda
fala,
inclusive
sobre
ela,
salta
por
sobre, tornando-a
um
olhar
possível
sobre
seu
movimento de
dizer.
Fonte,
conserva
seu
mistério.
Como
todo
enigma, gera
polêmica e
sustenta a
fecundidade
ininterrupta de
abordagens e
pontos de
vista. O
comum _
isto
em
que
sempre estamos _, e o misterioso _
isto
em
que,
paradoxalmente,
sempre estamos _, nela se encontram reunidos.
Nos
cadernos de
um de
seus
cursos,
datado de 1872, publicado postumamente
com o
título de Os Filósofos Pré-Platônicos,
Nietzsche diz,
acerca do élan filosófico: «Eis
o
verdadeiro
signo do élan filosófico: o
espanto
diante do
que se
encontra
sob
nossos
olhos. O
fenômeno
mais
cotidiano é o
devir.»
E
em
um dos
fragmentos de 1868-1869: «A
linguagem é a
coisa
mais
cotidiana.»
O
mais
cotidiano é o
devir, o
mais
cotidiano é a
linguagem, o
mais
cotidiano é o
mais
espantoso: o
espantoso do
cotidiano, do
que há de
mais
comum é o
devir,
esse
aparecimento e
desaparecimento
contínuo de todas as
coisas,
esse
surgimento e ocultamento
incessante do
mundo; o
espantoso do
cotidiano é a
linguagem.
Linguagem e
devir,
linguagem e o
movimento de
surgir e se
ocultar do
real se encontram, desta
forma, unidos
como o
mais
espantoso, ao
mesmo
tempo
que o
mais
comum e
trivial. O
que há de
mais
comum
que o
surgimento de
coisas compreensíveis à
nossa
volta, e,
em
meio a
elas,
nós
mesmos? O
que há de
mais
dado, de
mais
claro e
mais
óbvio
para
nós
que o
fato de as
coisas estarem
diante de
nós,
já
tomadas num
sentido,
já sendo
elas mesmas, e
isso
com
tanta
força de
evidência
que
não
nos é
necessário
pensar
justamente
em
seu
sentido,
mas
apenas usá-las
como
elas se oferecem?
Mas,
não é,
também, essa
força de
evidência do
comum e
trivial o
que
torna o
fenômeno do
sentido das
coisas
impensado, e,
assim,
nada
claro,
mas misterioso?
Visto
por
outro
prisma: o
que há de
mais
comum e
mais
trivial do
que as
coisas terem
nome, do
que o
nosso
uso das
palavras nas
lidas
com o
mundo, do
que as
palavras terem
um
sentido,
um
significado, de
tal
maneira
que
não
nos é
necessário
pensar
justamente
em
seu
sentido,
mas
apenas usá-las
como
elas se oferecem?
Não é a
língua «precisamente
lo
que el individuo no crea
sino
que halla establecido
em su
contorno
social,
em su tribu,
em su polis,
urbe o nación»? «Los
vocablos de la lengua»
não tem
já «su
significación impuesta
por
el
uso
colectivo»? «Hablar»
não é «por
lo
pronto,
usar
una
vez
más ese
uso
significativo,
decir lo
que
ya se sabe, lo
que
todo
el
mundo
sabe, lo consabido»?
Mas,
não é,
também, essa
força de
evidência do
comum e
trivial, co-sabido, o
que
torna o
fenômeno das
palavras
impensado, e,
assim,
nada
claro,
mas misterioso, resguardando-as em suas
possibilidades?
Esse
mistério da
realidade
em
seu
devir e das
palavras
nos atravessa
sem
cessar,
mesmo
que
não atentemos
para
ele. Oferece-se,
mesmo, a
todo
tempo, a possibilidade de
nos encontrarmos à
deriva, na
correnteza desse
rio de
coisas e de
palavras,
onde o
comum dos
significados consolidados, dos
sentidos
dados se perde e afunda,
enquanto
assoma à
superfície
coisas e
palavras
em
sentidos
inusitados,
como se estivessem aparecendo
pela
primeira
vez,
como se estivessem sendo
descobertos. Nestes
momentos,
então, perdendo os
significados consolidados,
nós perdemos
toda
confiança
em
nós
mesmos e no
mundo,
nós
nos esquecemos de
nós
mesmos, de nossas
manipulações e
usos, e
nos entregamos ao
movimento
com
que as
coisas e as
palavras, surgindo
por
nosso
intermédio, se descobrem, se destacando da
zona de
mistério e de
silêncio
que
nos envolve. Essa
experiência,
que
ronda
por
toda
parte
como a possibilidade de se
ser tomado
pelo
movimento
criativo da
linguagem,
marca,
também, a
experiência de
criação
com a
palavra.
Apelemos
para
um
trecho do
poema
Trabalhos do
Poeta,
em
que Octavio
Paz diz o
seguinte
acerca da
experiência criadora
com a
palavra:
...
rompem-se os
laços
com o
mundo,
com a
razão e
com a
linguagem _
esse
cordão umbilical
que
nos
ata ao
abominável
ventre
ruminante. Atreves-te a
dizer
Não,
para
um
dia
poder
dizer
melhor
Sim. Esvazias
teu
ser de
tudo o
que os
Outros o encheram:
grandes e
pequenas
ninharias, todas as
ninharias de
que está
feito o
mundo dos
Outros. E
logo
te esvazias de ti
mesmo,
porque
tu _ o
que chamamos
eu
ou
pessoa _
também é
imagem,
também é
Outro,
também é
ninharia.
Esvaziado,
limpo do
nada
purulento do
eu,
esvaziado de tua
imagem,
já
não és
mais
que
espera e
aguardar. Vêm
eras de
silêncio,
eras de
seca e de
pedra. Às
vezes, uma
tarde
qualquer,
um
dia
sem
nome, cai uma
Palavra,
que
pousa
levemente
sobre essa
terra
sem
passado.
Octavio
Paz
fala dessa
experiência
como sendo uma
experiência
radical de
rompimento e de
perda, de esvaziamento,
onde o
que se perde,
aquilo
com
que se rompe, o
que se esvazia é
nada
menos
que o
mundo, a
razão e a
própria
linguagem.
Curiosamente,
eles se encontram reunidos e se
vê
que
somente
mediante a
perda de
tal
reunião,
até a
seca do
silêncio, «num
dia
sem
nome», a
linguagem, a
palavra, pode se
liberar
para
si
mesma e
acontecer numa
experiência criadora.
Nós podemos
perguntar:
por
que o
mundo, a
razão e a
linguagem se enlaçam dessa
forma e
por
que se os perde na
experiência criadora
com a
palavra?
Esse enlaçamento a
que o
poeta se refere, traz
muito
que
pensar. Nietzsche o pensou,
por
exemplo, de uma
forma
radical.
Para
ele,
mundo,
razão e
linguagem se co-pertencem, o
que
funda a
crítica de Heidegger a
seu
pensamento _
pelo
menos,
tal
como se
vê na
carta
que
ele envia ao
colóquio «O
Problema de
um
Pensamento e de uma
Linguagem Não-objetivantes na
Teologia
Atual», publicada
em Phaenomenologie und Theologie,
onde o
autor de
Ser e
Tempo diz
ter sido o
pensamento de Nietzsche
um dos «determinantes
para a afirmação do
caráter objetivante de
todo
pensamento e de
toda
linguagem.» Heidegger cita,
para essa afirmação, o
texto de A
Vontade de
Potência n. 715 (1887⁄1888)
que diz: «Os
meios de
expressão da
linguagem
são inutilizáveis
para
expressar o ‘devir’:
pertence à
nossa
inevitável
necessidade de
conservação o
estabelecer
insistentemente
um
mundo
grosseiro de
permanência, de ‘coisas’,
etc.» E Heidegger conclui: «isto é:
de
objetos». Se os
meios de
expressão da
linguagem
são inutilizáveis
para
expressar o
devir, se depreende
que cabe à
linguagem
ser
instrumento de
expressão de
um
mundo pensável,
um
mundo
que o
pensamento fabula,
dada «nossa
inevitável
necessidade de
conservação», objetivando o
devir, transpondo-o
para
um
mundo ficcional,
humano,
demasiado
humano. Neste
mundo da
linguagem e da
razão, o
mundo
deixa de
ser
surgimento e
desaparecimento
incessante
para se
converter
em
idéia
ou
significado
que as
palavras exprimem. O
mundo
fala,
aqui, do
âmbito dos
objetos
que
nos
são
familiares,
que estão
diante de
nosso
intelecto
humano
em
termos de
representações significativas,
que
nós podemos
conhecer
bastante
bem,
tão
logo desviemos
com
sucesso os
olhos das
coisas
sensíveis e mutáveis.
Elas giram
em
torno de
nosso
eu, dessa
unidade
indissolúvel
que
nós somos e
que sabemos
mais
claramente,
com
mais
evidência
ainda
que
qualquer
outra
coisa.
São essas
representações significativas,
inclusive,
que constituem verdadeiramente o
sentido daquilo
que aparece,
que o põem
sob uma
forma
comum e
genérica,
unitária e
regular, de
tal
modo
que,
assim re-apresentadas,
nos é
possível o enquadramento de
toda
novidade do
mundo nesse proto-esquema. Dessa
forma, se oferece a possibilidade de
que
nada do
que possamos
presumir possa
nos
espantar.
Tudo
nos é
conhecido,
familiar, subsumido nesta fôrma
prévia.
Isto é
apenas
isto,
aquilo é
apenas
aquilo, acontece deste
ou daquele
modo,
conforme esta
ou aquela
regra, significa
isto
ou
aquilo. Chamemos,
aqui,
razão a essa
capacidade
unitária e unificadora de
subsumir os
fenômenos a
formas
ideais, de enquadrá-los
em
esquemas de
unidade e de
identidade, de unificá-los e identificá-los
por
meio de
representações
objetivas. As
representações apresentam
um
conteúdo
objetivo à
razão,
um
conteúdo
ideal
que vem a
ser a
pura
expressão do
sentido de uma
coisa e a
que a
palavra serve de
índice
expressivo.A
palavra
pão «coisifica»
algo
como
pão, subsumindo o
singular
que aparece a uma
unidade
genérica
significativa, a
palavra
vinho «coisifica»
algo
como
vinho. Essas
metáforas da
realidade teriam a
função de
ser esquecidas
enquanto
tais, convertendo-se
em
conceitos cristalizados
para o
uso
comum da
compreensão e
para a boa
comunicação
entre os
homens.
Elas exprimem o
poder da subjetividade
humana,
não
menos
que
sua ingenuidade
necessária
para se
conservar.
Dessa
forma,
com a
palavra sendo
índice
expressivo de
um
conteúdo
idêntico e
unitário, se
torna
possível a redução de
todo
novo ao
velho, de
todo
incomum ao
já
sabido e consolidado.
Contudo, continuando no
pensamento de Nietzsche, se
ele
assim encara a
potência da
linguagem,
não é
menos
certo
que
ele a
pensa
desde a
criação. Esta
experiência é,
até
aqui,
algo
impensado. É
certo
que
pertence à
palavra a possibilidade de se
tornar
instrumento de
uso e
expressar
um
significado consolidado.
Mas devemos
pensar
também
que
toda essa
metafísica da
linguagem
guarda
ainda
consigo os
ecos do
momento
em
que aconteceu num
pensamento, se fez
compreensão e ganhou
corpo nas
palavras, num
momento
em
que
não se repete uma
compreensão
anterior,
não se enquadra o
inusitado
em
um
esquema
prévio,
mas se o
deixa
aparecer
sob a
forma da
palavra, numa
evidência reveladora,
como se
somente essa
palavra e
não
outra pudesse
dar
vida
àquilo
que acaba de
nascer e
que,
sem
ela, estaria afundado
para
sempre no
silêncio do
nada. É o
momento
em
que
todos os
índices e todas as
representações se derrubam e se calam, o
consolidado e
obsoleto se
quebra, e as mesmas
palavras de
sempre, velhas e desgastadas
pelo
uso, aparecem num
raio de
sentido
nunca
visto,
nem esperado, na
explosão de uma
evidência misteriosa. A
palavra,
aqui,
não representa a
idéia
genérica de uma
coisa,
mas a presentifica, a faz
vir a
ser, a encarna e a faz
visível, é
todo
um
novo
mundo
que transparece
por
ela.
Como diz Octavio
Paz no
poema
Um
Poeta, «abolida a
distância
entre o
nome e a
coisa,
nomear é
criar, e
imaginar,
nascer.»
Exercício de uma subjetividade, de
um
eu? Se nesse
momento
todos os
índices e todas as
representações se derrubam e se calam, se se perde
esse
mundo
já
sabido e consolidado,
não é
menos
certo
que se perde
também o
eu e a
razão e,
sem
nome,
sem
identidade, perdido do «mundo
dos
Outros»,
como diz Octavio
Paz, a
vida se
lança na
direção do
que está
em
vias de se
desvelar,
como se
apenas
ver e
dizer fosse
preciso,
viver (se
conservar),
já
não. Se há alguma
unificação,
ela é
movimento de
unificação,
mas, de
todo
modo,
todo governado
pelo
que está
em
vias de
surgir.
Ela é
concentração no
nada, no
vazio,
como as
nuvens se concentram numa
tempestade, prenunciando o
raio.
Ela é o unificar-se no
aguardar e
esperar: «já
não és
mais
que
espera e
aguardar.» É a
espera do
raio do
surgimento
quem
tudo dirige e unifica.
Pensamos
que é
desde
este
momento,
desde esta
hora
poética, criadora,
em
que,
como diz Platão, se «promove a
passagem do não-ser
para a
existência»,
que Nietzsche
pensa a
linguagem,
mesmo
quando a critica. A
palavra é inutilizável
para
expressar o
devir, entendendo-a
precisamente
como
expressão do pensável de
um
sujeito
pensante.
Ela
não o exprime,
porque perfaz
seu
movimento de
surgir, de se
determinar na
forma da
palavra. Esta, se revela ao
pensamento,
como diz Nietzsche
em Ecce Homo:
A
noção de
revelação, no
sentido de
que subitamente,
com
inefável
certeza e
sutileza,
algo se
torna
visível,
audível,
algo
que comove e
transtorna no
mais
fundo, descreve
simplesmente o
estado de
fato. Ouve-se,
não se
procura; toma-se,
não se
pergunta
quem dá;
um
pensamento reluz
como
relâmpago,
com
necessidade,
sem
hesitação na
forma _
jamais tive
opção.
Um
êxtase
cuja
tremenda
tensão desata-se
por
vezes
em
torrentes de
lágrimas, no
qual o
passo involuntariamente
ora se precipita,
ora se arrasta. (...)
Tudo ocorre de
modo
sumamente
involuntário,
mas
como
que
em
um
turbilhão de
sensação de
liberdade, de incondicionalidade, de
poder, de
divindade... A involuntariedade da
imagem, do
símbolo é o
mais
notável;
já
não se tem
noção do
que é
imagem, do
que é
símbolo,
tudo se oferece
como a
mais
próxima,
mais
correta,
mais
simples
expressão. Parece
realmente,
para
lembrar uma
palavra de Zaratustra,
como se as
coisas mesmas se acercassem e se
oferecessem
como
símbolos.
Nós pensamos
possuir as
palavras
que usamos,
como pensamos
possuir as
coisas e
nossa
vontade.
Aqui Nietzsche diz o
contrário: as
palavras é
que
nos possuem, no
sentido de, inevitavelmente, sermos arrebatados
por
seu
surgimento no
meio do
pensamento,
como a
forma
com
que o
pensamento acontece,
como o
pensamento
mesmo acontecendo.
Extáticos, somos
atirados na
direção da
palavra e esta se descerra, de
repente,
como diz Ortega y Gasset, «como
uma
visão
imediata de
um
mundo
que
até
então desconhecíamos e
com o
qual,
por
isso
mesmo,
não contávamos.»
Nessa
visão
imediata, as
coisas
são
seus
próprios
símbolos, o
sentido é a
própria
aparência.
Que significa
dizer
que as
coisas mesmas se acercam e se oferecem
como
símbolos? Significa,
antes de
mais
nada,
que a
palavra
como
índice simbólico ligado a uma
representação das
coisas é inadequada,
mas
que
ela se
mostra
como
seu
movimento de
aparição,
como o
modo
com
que se revela
em
sentido,
como
sua
revelação
súbita e
originária.
Isso retoma
um dos
sentidos
originários da
palavra
fantasia,
como se
mostrar,
como
aparecer numa
aparência. O
irromper de uma
palavra no
movimento
criador, poético do
pensamento é o
mesmo
movimento
com
que a
coisa aparece, irrompe
em
um
determinado
aspecto,
em
que
ela é
tomada
como a
coisa
que é, fazendo-se
visível numa
perspectiva.
Não se pode
falar de uma anterioridade da
compreensão, do
pensamento
ou da
representação
em
relação à
fala, neste
sentido. Nietzsche acentua
bastante
claramente,
em
seu
texto
supracitado,
que a
irrupção do
pensamento
em
seu
ato
criador é a
própria
irrupção da
palavra, a
tal
ponto
que
ele pode
dizer
jamais
ter escolhido uma. «Um
pensamento», repitamos o
texto de Nietzsche, «reluz
como
relâmpago,
com
necessidade,
sem
hesitação na
forma.»
Então o
pensamento e a
forma
com
que
ele se
mostra na
palavra
são a
mesma
coisa. Essa
forma,
que é a
palavra
com
que o
pensamento e a
coisa se apresentam, diz Nietzsche
em uma
outra
passagem de Ecce Homo, é a
imagem.
Por
isso,
ele diz: «A
mais
poderosa
energia
para o
símbolo
até
aqui existente é
pobre
brincadeira,
frente ao
retorno da
linguagem à
natureza
mesma da
imagem.»[10]
A
natureza da
linguagem é a
imagem, no
sentido de
tornar
algo
manifesto,
visível numa
compreensão de
sentido, de
fazer presentificar-se
algo numa
perspectiva,
onde
ser e
aparecer
são o
mesmo.
Dizer
que a
palavra é
imagem
não significa
dizer
que há uma
realidade
por
trás dela a
qual
ela remeteria,
que
ela seria a representante,
nem
que
ela é uma
ficção
que encobriria a
verdade. Nenhuma
obra do
pensamento
ou da
poesia, ao se
compor
como
imagem, se
forma
como uma
linguagem
cifrada,
como uma
linguagem
trampolim
para
outra
coisa.
Por
isso, nenhuma
palavra
outra pode traduzi-la e explicá-la,
mas,
apenas,
compartilhar
com
ela, a
seu
modo,
sua
experiência criadora, se inserindo
ela
mesma no
seu
movimento revelador. A
imagem significa
que o
sentido de
algo
não pode se
revelar
sem
estar atado a uma
experiência criadora,
quer seja a do
autor,
quer seja a da
leitura. A
imagem
não diz
nada
além dela
mesma. É a
sensação verdadeira
que temos
quando,
diante de
um
texto poético
ou
pensante,
nos sentimos desamparados
diante das
palavras, tendo
por
vezes a
tentação de
procurar,
em
vão,
por
um
manual
que
nos explicasse de
forma
definitiva e
determinada o
sentido
que se esconde naquela
forma.
Nós vemos
que o
sentido
que se esconde é o
mesmo
sentido
que a
palavra traz
consigo e permite
aparecer,
mas
que
não vemos de
todo,
que
não apreendemos,
que
nos
escapa. A
experiência da
leitura do
texto filosófico
ou poético
nos põe largados
entre
dois
mundos: o
nosso,
trivial e
cotidiano,
onde as
palavras
são as mesmas de
sempre,
comuns,
onde
tudo é dizível e pensável,
onde
tudo
fala, e
um
outro,
descomunal,
indizível e
impensável,
estranho e
silencioso, fechado a
nosso
olhar
comum. A
nosso
olhar
comum
ele está
oculto,
sem
deixar de
ser aquelas mesmas
palavras conhecidas,
mas
que,
agora, estão atravessadas
por
um
sentido
inusitado.
Então a
imagem
tanto revela
quanto oculta,
tanto descerra
quanto esconde. O
signo sinaliza, indica,
acena
para
algo
que o ultrapassa e se oculta,
impensável,
indizível. E
eis
que de
repente
tudo se faz
sentido, o
novo
mundo do
texto se revela de
forma
extraordinária, e
suas
palavras
são,
para
nós, deste
momento
em
diante,
insubstituíveis,
como o
lugar
onde o
impensável se faz
pensamento, o
indizível,
dito.
Nós costumamos
dizer
que
aquilo
que tentamos
descobrir e
dizer
em
centenas de
páginas, o
poeta
ou
pensador dizem
em algumas poucas palavrinhas,
em uma
frase
inesquecível e
que,
agora, é
para
nós
mais
clara
que uma
expressão
usual de
nossa
língua e
que
nos faz
vislumbrar
todo
um
mundo de
coisas,
até
então
desconhecido. No
signo, na
imagem, o
indizível e o dizível, o
impensável e o pensável, o
oculto e a
aparência apontam
um
para o
outro. O
que a
palavra,
enquanto
imagem, sinaliza, comunica, escondendo e
revelando, oferecendo e guardando é,
então,
por
fim, a possibilidade da
própria
experiência criadora
em
que
ela se revela?
B I B L I O G R A F I A
HEIDEGGER, M. Phaenomenologie und Theologie. Frankfurt: Victorio
Klostermann, 1970.
NIETZSCHE, F.
Ecce Homo. Trad. Paulo César Souza.
São Paulo: Ed. Max Limonad, 1986.
ORTEGA Y
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