Linguagem - um convite ao desamparo

               

                                                                    Cristiane Sampaio de Azevedo

                                                                                                

                                                                                                    Tudo é semente

                                                                                                     (Novalis, Polén[1])

 

  A linguagem é um “falar por falar”, é um tagarelar. É o que diz Novalis, em seu fragmento chamado “Monólogo[2]”. E porque é um falar à toa, uma conversa fiada, a linguagem é sempre risco, possibilidade de erro, ao contrário de uma fala já demasiadamente planejada, traçada em seus rumos previamente. No falar por falar, a cada vez a fala se dá, a cada vez está em jogo o falar. Assim, Novalis compara a linguagem com as fórmulas matemáticas que, segundo ele, “jogam com elas mesmas”. Só é possível, desta forma, entrar no jogo, ou não entrar. A linguagem já é, desde sempre, um convite ao desamparo, a um não- lugar, condição de toda criação. Quando o poeta diz moinho de vento, ele faz o moinho de vento ser, aparecer. Antes disso, o moinho de vento não existia.  Criar é, portanto, sempre inaugurar, e só se inaugura a partir de um não-lugar. 

Sob a condição de errância, a linguagem sempre joga o seu jogo, arriscando-se no mais das vezes a ser incompreendida. É na errância que a linguagem se arrisca ao original, ao inaugural. A linguagem não é nunca algo que já nasça de forma ordenada. No “falar por falar” arrisca-se a criar. É preciso quase uma educação às avessas para isso. Novalis, em outro fragmento seu, faz uma espécie de apologia ao confuso ao dizer que o ser, quanto mais confuso é, mais capacidade tem de “auto-educação[3]”. Assim, numa fala sem lugar, numa “fala por falar”, tal como o confuso, ou os chamados “estúpidos”, que para Novalis “aprendem com fadiga a trabalhar, mas também tornam-se então senhores e mestres para sempre”, a linguagem é sempre isso que fica, que inaugura mundo, ao contrário da fala organizada, ordenada, sempre sujeita a novas teorias que apenas a substituam, que digam, a posteriori, melhor o que ela disse.

A linguagem que fala com ela mesma não aparta-se do mundo, da realidade que o mundo apresenta objetivamente, mas compreende essa realidade a partir de sua experiência, do jogo que, como as fórmulas matemáticas, realiza com ela mesma. Então, transforma, transfigura essa mesma realidade, que para os românticos alemães, como Novalis, sonha, imagina, ou seja, ganha existência de fato, no que se perde, no que erra, no que em sua confusão vaga pelo seu mundo afora, pois linguagem é experiência. E pôr-se em experiência é, como diz o próprio Novalis, ter ouvido e sentido bastante para a linguagem. Esse é o mistério da linguagem: o fato de ser ela sempre aquilo de que não podemos nos aproximar sem nela já não estarmos, e quando estamos percebemos que não temos nada, que não há nada preestabelecido, estipulado, ordenado. Mas o que há é desamparo, ou um não-lugar. Rilke, em Cartas a um jovem poeta, comenta sobre o mistério da linguagem com o jovem poeta Franz Kappus dizendo: “As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou[4]”. Suas palavras, ainda que em outro contexto, vêm ao encontro do que Novalis fala, em Monólogo, sobre o falar em intenção das coisas, o falar de algo determinado, prática segundo ele da “linguagem caprichosa”. Toda vez que se pretende falar sobre algo determinado, com a intenção de tornar claro, caímos no “ridículo”. Talvez porque, como diz Rilke, a linguagem sempre se resguarde com o seu enigma, o de ser incomunicável. Assim, não falando de algo determinado, não desejando expressar claramente a realidade, mas se resguardando em seu modo incomunicável, a linguagem fala consigo mesma, estabelecendo, dessa forma, o seu monólogo. É sobre ela que ela fala o tempo todo. Essa é a sua abertura para o mundo, e não o contrário como poderia se imaginar

Rilke, ao não tecer comentários críticos, meramente instrutivos sobre a poesia do jovem poeta que lhe procurara, mas buscando falar a partir da poesia mesma, põe em ação a linguagem, ou seja, toca profundamente em suas questões. Para fazer isso, Rilke se volta para as questões que lhe tocam a alma, que lhe atormentam; ele faz um movimento silencioso consigo mesmo, para só então se voltar para as questões que afligiam o jovem Kappus sobre suas poesias. 

Ao monologar, a linguagem cria, ao mesmo tempo, um diálogo no qual não precisamos pedir licença para entrar, pois ele já é sempre um convite, em que só podemos ou não aceitar. Mas que, também, ao aceitá-lo passamos a ter de sustentar esse diálogo- monólogo. E assim o fazemos quando falamos por falar, quando deixamos a fala se dar . É o que faz o poeta Rilke. Para isso é necessário partir sempre de um não-lugar. Esse não- lugar é o não saber a que Platão, com quem os românticos alemães, como Novalis e Schlegel também dialogaram, em seus diálogos socráticos, sempre se refere como condição do pensamento. Em outro fragmento de Pólen, por exemplo, Novalis faz uma defesa da ignorância. “Quanto mais ignorante se é por natureza, também mais capacidade para o saber[5]

Novalis compreende o saber, assim como a linguagem, não como uma realização, mas como algo que está num contínuo realizar-se. “Tudo é semente”, diz ele em outro fragmento. Tudo é possibilidade de vir a ser. Ou então: “Cada grau da formação começa com uma infância. Por isso o homem terrestre maximamente formado é tão semelhante á criança[6]”.

Assim, o falar determinado, em intenção das coisas, o qual Novalis nega é o falar que estaria fora do movimento da linguagem, ou seja, desse movimento que retornaria a uma infância, ou a um não saber. “O poeta conclui assim que começa o traço. Se o filósofo apenas ordena tudo, coloca tudo, o poeta dissolveria todos os elos. Suas palavras não são signos universais- são sons-palavras mágicas que movem belos grupos em torno de si[7]

Sendo sem lugar, a linguagem é, em sua essência inauguradora; ela é o que não tem margens para se amparar. Em seu monólogo- diálogo ela se sustenta. Falando por falar, tagarelando, ou seja, arriscando a inaugurar, a linguagem sempre cai no princípio fundamental do pensamento, da arte, que é o espanto. A experiência do espanto é a experiência da criação. Falando por falar estamos já dentro da experiência do incomunicável, estamos no movimento da linguagem, lugar do homem por natureza. Em Monólogo, por exemplo, somos convocados para o espanto: para a arché(princípio, gênese, origem)[8] da própria linguagem, do logos, pela própria movimentação dessa mesma linguagem que não nos comunica nada, mas resguarda-se enquanto enigma, enquanto incomunicável. O próprio desfecho desse fragmento em particular, que se coloca como uma indagação, nos lança no espanto, ou poderíamos até dizer que terminamos com o espanto. É o que o fragmento nos deixa, nos presenteia. Assim, Novalis diz as seguintes palavras:

Se com isso acredito ter indicado com a máxima clareza a essência e função da poesia, sei no entanto que nenhum ser humano é capaz de entendê-lo e disse algo totalmente palerma, porque quis dizê-lo, e assim nenhuma poesia resulta. Mas, e se eu fosse obrigado a falar? E esse impulso a falar fosse o sinal da instigação da linguagem, da eficácia da linguagem em mim? e minha vontade só quisesse também tudo a que eu fosse obrigado, então isto, no fim, sem meu querer e crer, poderia sim ser poesia e tornar inteligível um mistério da linguagem? e então seria eu um escritor por vocação, pois um escritor é bem, somente, um arrebatado da linguagem?[9]

 

No espanto retornamos sempre à linguagem, à sua incomunicabilidade. Esse é o jogo da linguagem, é o modo que ela tem de desafiar-nos. Assim, o falar por falar, ou o que Novalis chama de desprezível tagarelar, para os outros, não é um falatório, mas uma fala que se arrisca no falar, que não se arma para dialogar, mas que vê na fala sempre a possibilidade do inexprimível, e assim se põe, ou se impõe, de novo a falar, sabendo que nunca vai poder, simplesmente, comunicar.

A própria estrutura do texto de Novalis, isto é, sob a forma de fragmento, contribui para intensificar e assegurar o incomunicável de sua linguagem. Defendendo a idéia de que o verdadeiro pensamento nascia sob a forma de fragmento, os românticos alemães conseguiram com essa estrutura de texto uma linguagem que não comunicava algo, mas mostrava, acenava em poucas linhas, ao mesmo tempo que resguardava na sua forma aparentemente limitada. Schlegel, por exemplo, diz em um de seus fragmentos: Um fragmento tem de ser igual a uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito em si mesmo como um porco- espinho[10].

Novalis não quer assim fazer nenhum discurso sobre a linguagem, mas chamar a linguagem para o que vem a ser linguagem. Assim, nesse curto fragmento, o que temos são palavras evocadas de tal forma enigmática que dizem na sua perfeita medida o que vem a ser a linguagem, pois promovem o seu movimento, ou seja, o de ser incomunicável.

Jogando com ela mesma, a linguagem torna-se, de certa, forma ineficaz para um mundo prático. No entanto, é aí mesmo que a máxima ação se dá. Mas uma ação inofensiva[11], ineficaz, que não tem a tarefa de articular nenhum discurso, porque a essência da linguagem é a sua gratuidade, por isso, também, ela é um falar por falar, é um tagarelar. Na sua ineficácia, a linguagem transforma, age, inaugura mundo. Esse é o seu paradoxo, é a sua tensão, o seu “entre-lugar”, é o seu vão: sendo inofensiva, ela é a mais perigosa.

O entre é, desta forma, o que funda. Através da linguagem, do entre, tudo o que há passa a ser efetivo, concretizado. Os românticos alemães acreditavam que somente a imaginação podia fundar mundo, podia “fundar o ser pela palavra[12]. Somente a imaginação podia, assim, colocar em risco a idéia de real, podia subverter a realidade e os valores de uma razão modeladora, pois acreditavam em uma cognição baseada na imaginação, como defendia Kant[13], com quem, ao lado de Fichte, eles tanto dialogaram. Assim, Novalis vai dizer a respeito dessa imaginação, em outro fragmento de Pólen: “A vida não deve ser um romance dado a nós, mas um romance feito por nós[14].

 A linguagem seria assim a possibilidade de transformação, de pensar e poetizar a realidade, de recriá-la, ou como diz Novalis, romantizá-la. Falar por falar, tagarelar, é o lado sério da linguagem, ao contrário de um simplicidade, de uma ingenuidade. Sua seriedade se deve ao fato de ser a linguagem sempre um risco, uma possibilidade de errância, pois a linguagem não é nunca algo dado ao homem, não é nada que ele possa de antemão se assegurar, que esteja disponível, mas é sempre o inesperado. Sua experiência é incomunicável. 

No jogo da linguagem com ela mesma, está em jogo o falar. Entretanto, ao contrário de um outro jogo qualquer, em que se pode se colocar de fora, como mero jogador, no jogo da linguagem com ela mesma, está em jogo o jogador[15]. Nesse jogo em que a linguagem fala dela mesma, estabelecendo um monólogo e ao mesmo tempo um diálogo, jogar é se lançar, se arriscar, é errar, ou imaginar, quer dizer transfigurar a realidade como queriam os românticos alemães, através de uma transformação do próprio eu. Assim, Novalis diz em outro fragmento de Pólen: “Como pode um ser humano ter sentido para algo, se não tem o germe dele dentro de si. O que devo entender tem de desenvolver-se em mim organicamente- e aquilo que pareço aprender é apenas alimento do organismo[16].

Poesia e pensamento, essas duas formas de poetizar o mundo, a realidade, ou de romantizá-la, são a forma, também, então, de auto entendimento do eu que se projeta nesse percurso, nessa viagem. Esse pôr-se em busca de uma auto compreensão é a ação para Novalis. Ao falar por falar a linguagem joga com ela mesma, quer dizer, se arrisca a inaugurar, mas também busca um diálogo, na medida em que há no monólogo, nessa busca de auto entendimento, a necessidade de se estar sempre numa relação com o outro. A melhor forma para exemplificar o que vem a ser a relação que Novalis faz entre o monólogo e o diálogo talvez esteja nas próprias palavras de Novalis:

 

Auto- exteriorização é a fonte de todo rebaixamento, assim como, ao contrário, o fundamento de toda genuína elevação. O primeiro passo vem a ser olhar para dentro- contemplação isolante de nosso eu_ Quem se detém aqui só logra metade. O segundo passo tem de ser eficaz olhar para fora- observação auto-ativa, contida, do mundo exterior[17].

A ação que é auto entendimento, que é o movimento de transformação do eu, é o que Novalis chama de uma “saúde transcendental”:

Poesia é a grande arte da construção da saúde transcendental. O poeta é portanto o médico transcendental. A poesia reina e impera com dor e cócega_ com prazer  e desprazer- erro e verdade- saúde e doença. Mescla tudo para seu grande fim dos fins- a elevação do homem acima de si mesmo[18]”.

 

A poesia seria isso que concentra forças antagônicas. Essa superação, ou como chama Novalis, essa elevação do homem acima de si mesmo faz parte desse movimento de “se olhar para dentro” para, então, poder voltar o “olhar para fora”. À escuta da linguagem estão aqueles que estão no movimento dessa saúde transcendental. Isso quer dizer que estão no falar por falar, no tagarelar, pois acatam o monólogo- diálogo que é a linguagem, realizam o movimento de auto entendimento, de que fala Novalis. Em Pólen ele fala sobre essa escuta:

(...) Assim também com a linguagem- quem tem um fino tato para seu dedilhado, sua cadência, seu espírito musical, quem percebe em si mesmo o delicado atuar de sua natureza interna, e move de acordo com ela sua língua ou sua mão, esse será um profeta, em contrapartida, quem sabe bem disso, mas não tem ouvido ou sentido bastante para ela, escreverá verdades como estas, mas será feito de palhaço pela própria linguagem e escarnecido pelos homens, como Cassandra pelos troianos[19].

 

A linguagem, seja na poesia ou no pensamento, é antes de tudo uma escuta[20]. Esse é o seu desamparo. Sobre o que vem a ser escuta, lembramos de um poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado “Campo, chinês e sono”, dedicado a João Cabral de Melo Neto, presente em A rosa do povo. Escutem só. O poema diz assim:

Campo, chinês e sono

                                                                   A João Cabral de Melo Neto

                                                 O chinês deitado

       no campo. O campo é azul,

                                                 roxo também. O campo,

                                                 o mundo e todas as coisas

                                                 têm ar de um chinês

                                                 deitado e que dorme.

           Como saber se está sonhando?

       O sono é perfeito. Formigas

    crescem, estrelas latejam,

                                                             peixes são fluidos.

                                                             E árvores dizem qualquer coisa

                                                             que não entendes. Há um chinês

                                                             dormindo no campo. Há um campo

                                                             cheio de sono e antigas confidências.

                                                             Debruça-te no ouvido, ouve o murmúrio

                                                             do sono em marcha. Ouve a terra, as nuvens.

                                                             O campo está dormindo e forma um chinês

                                                             de suave rosto inclinado

                                                              no vão do tempo.

 

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Carlos Drummond de . A rosa do povo. São Paulo, Círculo do livro, sd

CASTRO, Manuel Antônio de. “Linguagem: nosso maior bem”. In: Aulas Inaugurais. Rio de Janeiro.Faculdade de letras.2004.

ÉSQUILO. Oréstia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991

FOGEL, Gilvan. Da solidão perfeita. Petrópolis, RJ, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Appoche de Hölderlin. Paris, Gallimard,1973.

NOVALIS. Pólen. São Paulo, Iluminuras,2001

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. São Paulo, Globo, 1994.

TERCEIRA MARGEM: Revista do programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós- Graduação, Ano IX. nº 10, 2004.
 


 

[1] Novalis. Pólen, p.159.

[2] _____ p.195

[3] _____.p.  67.

[4] Rilke, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta, p. 21

[5] Novalis. Pólen. p, 87

[6]______p. 65

[7] ______p. 121

[8] Fogel, Gilvan. Da solidão perfeita, p.83

[9] Novalis. Pólen, p.196

[10] Novalis. Pólen. Fragmento da revista Athenaeum, nº 206. Os fragmentos de Novalis e Schlegel foram publicados pela primeira vez, em 1978, na revista Athenaeum.

[11] Heidegger, Martin. “Hölderlin et  l´essence de la poésie. In.: Approche de Hölderlin, p.44. 

[12] Heidegger, Martin.. “Hölderlin et l’essence de la poésie”. In:  Approche de Hölderlin, p.52

[13] Lins, Vera. “Novalis, negatividade e utopia”. In: Terceira Margem, nº 10,.p.114

[14] Novalis. Pólen, p.159.

[15] Heidegger, Martin “Hölderlin et l’essence de la poésie”. In: Approche de Hölderlin,  p.57.

[16] Novalis, Pólen, p.45” 

[17] Novalis. Pólen, p.51.

[18] Novalis. Pólen, p.123 

[19] Novalis. Pólen. p, 195-198.Ver  Ilíada(de Homero); e Agamêmnon(parte da Trilogia Oréstia de Ésquilo). Cassandra, Filha de Príamo, é presa de guerra  de Agamêmnon. Cassandra fora dotada por Apolo do dom da profecia.  

[20] Castro, Manuel Antônio de.  Ver Linguagem: Nosso bem maior

 

 

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