VIGÊNCIA DO TRÁGICO: A
SAGA EDIPIANA
Lá no
alto,
na
luz,
vós
andais
Sobre
um
chão
macio,
bem-aventurados
deuses!
Radiante
sopro
divino
Toca-vos de leve,
Como
os
dedos
da artista
Sagradas cordas.
Libertos
do
destino,
como
adormecida
Criança
ao
seio,
respiram os
imortais;
Protegido
na
pureza,
Em
singelo
botão,
Floresce-lhes
eternamente
O
espírito,
E os
olhos
ditosos
Cintilam
tranqüilos
Eterna
claridade.
Mas
a
nós
não
é
dado
Nenhum
lugar
sobre
o
qual
descansar;
Desfalecem, caem
Os
homens
sofredores,
Às
cegas,
De
um
momento
para
o
outro,
Como
água
jogada
De
rocha
em
rocha,
Anos
a
fio
atirados
ao desconhecido.
(Friedrich Hölderlin, “Canção do destino
de Hipérion”)
RESUMO:
A
saga
edipiana apresenta
características
únicas, comparada à das
demais
personagens
da tragediografia.
Enquanto
estas praticam
atos
que
lhes
trazem a
perdição
deliberadamente,
como
se
passa
por
exemplo
com
Antígona, a
qual
enterra
o
irmão
enfrentando o
edito
de Creonte –, Édipo
assassina
o
pai
e desposa a
mãe
involuntariamente,
em
razão
de
desconhecer
suas
origens
(génos). Édipo se julga
capaz
de
tudo
decifrar,
mas
pratica
tais
atos
em
desconhecimento.
Como
alguém
que
está
inocente
em
relação
às
ações
que
pratica tem de
sofrer
tão
grave
expiação,
ainda
mais
se levando
em
conta
que
o
oráculo
de Delfos vaticinara
que
ele
mataria
seus
pais?
A
tradição
metafísica
ocidental,
de
fonte
platônica
e judaico-cristã,
não
compreende o
trágico,
porque
identificou o “ser”
com
o
Bem
ontológico
(República,
Platão),
assim
excluindo de
seu
horizonte
o “não-ser”.
Com
base
nesta
exclusão,
veio
a
ser
fundada a
razão
abstrata
ocidental
(ratio). A
culpa
(áte) edipiana
não
é a da retributividade da
justiça
humana
(jus),
mas
a da díke,
concernente
à
justiça
ontológica.
A
noção
chave
para
entender
a
expiação
edipiana é a do
erro
(hamartía)
ontológico.
Sua
saga,
consumada
em
Édipo
Rei
e Édipo
em
Colono, de Sófocles, encena o
trágico
destino
(génos) de
um
personagem
que,
justamente
por
se
guiar
pela
iluminância de uma
razão
abstrata,
como
o faz a modernidade –, se
vê
obrigado
a
descer
à
obscura
senda
do “não-ser”.
a)
Uma aproximação hermenêutica: destino e contemporaneidade
Neste
momento
em
que
nos propomos a
compartilhar uma
reflexão
sobre o
trágico e a
interpretação de algumas
questões levantadas
pela
saga edipiana, configurada nas
peças Édipo
Rei e Édipo
em
Colono, de Sófocles, parece-nos
fundamental
que, de
antemão, ponderemos
sobre o
que é o
interpretar.
Interpretar
um
texto
não é
buscar
um
sentido “transepocal” e
universalmente
válido. O
horizonte
histórico
em
que se
encontra o
intérprete participa necessariamente da
compreensão. O que, por exemplo, a
Divina Comédia queria
dizer
para
um
homem do medievo, inserido
em uma
moldura teocêntrica do
universo,
certamente diferirá do
que
ela
quer
dizer
para
nós,
homens do
século XXI,
habitantes de
um
cosmos dessacralizado e imersos na plena vigência da construção
técnico-científica do real. Encontramo-nos, com efeito, cada
vez
mais sujeitos ao
poder
avassalador da
técnica. Sua expansão
irrefreável sobre
todo o
planeta,
com os riscos
que encerra para a humanidade, talvez seja a
marca
mais
característica e inquietante de
nosso
tempo.
O
mundo
em
que estamos
imersos
já é outro, e, é
claro,
outros
são os
contextos
que se
nos apresentam.
Mas
isto
não importa
que uma ou outra interpretação – a feita no
horizonte histórico do medievo ou contemporaneamente – esteja errada. Ou
que, ao invés, haja uma
interpretação “correta”
sobre o
poema de Dante. As
interpretações
são construções de
realidade efetuadas
em
torno de
questões
que se fazem perpassar pelo
contexto
histórico
em
que o
intérprete se
acha inserido.
Isto se deve ao
caráter não-instrumental da
linguagem.
Diferentemente de uma
mesa,
um
vaso
ou
um
automóvel, a
linguagem
não é uma
entre outras
coisas
que o
homem
usa e possui.
Ela
não é
um
mero
instrumento de
compreensão.
Muito ao
contrário, o
homem é, no
sentido
ontológico,
linguagem. É a
palavra, é o
fato de o
homem
falar
que o põe
em
sua
humanidade,
em
seu
ser
homem. Lógos, antes mesmo de significar
“razão” lógico-instrumental ou divina, quer dizer “linguagem”. Na potencialidade
dialogal ofertada ao homem pela linguagem, ele entra em relação com as coisas e
a elas é convidado a conferir sentido. Por isso, não é o homem quem possui
prioritariamente o sentido das coisas: quando ele vem ao mundo, já encontra
sentidos, previamente projetados pela linguagem, do que as coisas são. O que
caracteriza uma coletividade humana é justamente o compartilhamento de uma
prévia compreensão do sentido das coisas – o sentido do ser –, facultada pela
linguagem. Coletividade – termo formado pela preposição latina “cum”, que
significa integração, e pela raiz indo-européia “leg-”, que dará origem ao verbo
leguéin (colher, reunir), e igualmente a lógos – quer dizer a
reunião e a colheita comum de sentido que a linguagem oferta a uma comunidade
humana. Modificando-se o sentido do ser através da caminhada histórica da
coletividade, eclodem novas construções de real. Nos múltiplos modos de
realização de uma coletividade, o homem como ser dialogal experimenta a errância
de instituir realidades, mas jamais esgotar a indagação sobre o que é o real.
Porque o que significa o real é uma questão em aberto, que antes deve concitar o
intérprete a novas realizações, do que simplesmente determiná-lo com base em
alguma substancialidade estanque.
É, portanto, na
linguagem, e
não
com a
linguagem,
que o
mundo e a
realidade são construídos, aparecem e se mostram
para o
homem. A realidade – o que equivale dizer, o
ser das coisas, o seu sentido – é
um
constructo
que se opera na
linguagem.
Como diz Heidegger, “a
linguagem é
a
casa do
ser.
Em
sua
morada
habita o homem”.
Por
ser ontologicamente
linguagem, o
homem
não pode
ter a
pretensão de uma
compreensão
objetiva,
neutra e distanciada das
coisas.
Nem o
intérprete a
veleidade de uma
interpretação
correta e
universalmente
válida de
um
texto. A
linguagem e o
mundo
que
ela faz
surgir
já transportam as
questões
que se oferecem
em
um
dado
momento
histórico.
Por
isso, ao interpretarmos
um
texto, é
preciso
que estejamos
abertos a “ouvir” as
questões de
que
ele é
portador, fazendo-as
dialogar
com as
questões
que, uma
vez transportadas
pela
linguagem, se oferecem
em
nosso
horizonte
histórico. A meta de uma efetiva interpretação, de
um efetivo diálogo com o texto, deve ser, portanto, a fusão das questões do
texto com o sentido do mundo como questão. E aí é preciso estar atento: questões
são diferentes de problemas. Estes são passíveis de uma solução cabal – um
problema matemático por exemplo. Questões são apelos por respostas que jamais
esgotarão o mistério do sentido das coisas. Um texto encarado como portador de
questões convida o intérprete à produção de real – isto é, de sentido das coisas
–, de modo a iluminar o horizonte existencial do intérprete e da coletividade em
sua dinâmica de realização. Dinâmica de realização que se opera nas viragens do
sentido do ser – do sentido do que é o real – ao longo das peripécias da
História.
Assim, a
meta de
um
autêntico
diálogo
com as
peças Édipo
Rei e do Édipo
em
Colono
não será a de
reconstituir
aquilo
que
elas significavam
para o
mundo e para a realidade grega. Se ficássemos a
isso restritos,
não passaríamos de uma
abordagem
própria da
ciência arqueológica
ou da
história
literária.
Não negamos
que
conhecer os
contextos
históricos
em
que as
obras foram realizadas
não seja importante. Afinal,
todo
texto é
um cronótopo,
isto é, se situa
em
um
lugar e
em
um
tempo.
Mas,
para
que sejamos
capazes de
superar os
limites de uma
mera
reconstituição arqueológico-historiográfica,
nossa
interpretação deve
incidir
sobre as questões centrais
que as citadas
tragédias
nos levantam contemporaneamente. Seja para melhor
compreender a realidade em que estamos imersos, seja para encontrarmos vias de
superação de seus impasses.
Este é o
verdadeiro
modo de
dar
vida
àqueles
textos
que distam do
nosso
mundo 2.500
anos.
Como diz Ítalo Calvino, as
grandes
obras
são aquelas que,
por
mais
que respondamos,
jamais cessam de
nos
interrogar. Tais obras, quando com elas nos deparamos,
continuam a operar, ainda que possam estar distantes na linearidade temporal.
Por isso, devemos
nos
valer de
um
critério axiológico –
ou seja, valorativo, e
não
meramente cronológico-linear –
para julgarmos o
que é
efetivamente
contemporâneo. Se
assim o fizermos, perceberemos
que
aqueles
textos
são dotados de uma
muito
maior contemporaneidade –
isto é, estão
muito
mais
próximos das
questões decisivas
que se apresentam ao
nosso
tempo – do
que o
último
achado
tecnológico
pelo
qual ficam
boquiabertos os
basbaques,
ou boa
parte de uma
literatura “pseudomodernosa”
que se reveste de
ares de
grande
importância e novidade.
Freqüentemente, as interpretações sobre a saga edipiana incidem
somente
sobre uma das peças,
em
geral
sobre o Édipo
Rei,
em
detrimento d’ O Édipo
em
Colono. Esta
última é muitas
vezes esquecida, o
que, a
nosso
ver, constitui
um
sério
equívoco,
pois a trajetória edipiana
só se
deixa
apreender na
amplitude de
sua significação se as considerarmos conjuntamente.
Como sabemos, as
peças
nos falam de uma
maldição
familiar, de
crimes praticados involuntariamente e de
predições
oraculares. Foram
escritas
em
um
universo sacralizado,
cercado pelas
divindades pagãs. Vemo-nos,
então,
obrigados a
perguntar: o
que haverá de tão contemporâneo na
saga edipiana, apresentada
por Sófocles há
tanto
tempo,
já
que se reporta a
um
universo
aparentemente
tão
diferente do
nosso? A
resposta não
poderia
ser
mais abrangente. A
saga edipiana traz
em
si
todo o
destino do
Ocidente, daí a
sua
inquestionável contemporaneidade. É
isso o
que pretendemos apontar com a presente
interpretação.
As peças Édipo
Rei e Édipo em Colono foram
encenadas,
pela
primeira
vez, no século V – aquela aproximadamente
em 430 a.C., esta
por
volta de 401 a.C. O
período
em
que surge a tragediografia ática, e
em
que foram
escritas aquelas duas peças, foi
absolutamente
crítico
para os
rumos
que o
Ocidente viria a
tomar.
Estes
rumos
são
responsáveis
pelo
que
hoje somos.
Mas, o
que aconteceu de
tão
sério naquele
tempo
que
ainda
hoje
nos afeta? É
preciso
saber
diferenciar
início de
origem.
Início é
um
ponto
em uma
sucessão
linear,
assim
como o
meio e o
fim.
Origem é o
que se doa e está
presente
em
todos os
momentos da
sucessão
temporal. O
que esteve
em
jogo, naquele
período, foi a
origem do
que chamamos
Ocidente, e
conseqüentemente o
nosso
próprio destino (génos).
b) O
choque pedagógico e a paidéia trágico-poética
Na Hélade do
século V a.C.,
que gestava os
caminhos
que o
Ocidente viria a
trilhar, confluíram
forças
que entraram
em
convivência
problemática.
Não indagaremos
aqui,
por
fugir ao
objetivo deste
trabalho, as
razões econômicas,
políticas e
sociais
que determinaram
este
entrechoque.
Basta observarmos
que o
impasse se deu
em
torno da
tradição
pedagógica
que deveria
prevalecer na Hélade. Pedagógico, aqui, quer dizer não
metodologia de ensino, mas paidéia, formação do homem em sua dinâmica de
realização. Esta dinâmica é ontológica, portanto
mais funda do que aquelas razões. E isto porque, no âmbito daquela disputa
pedagógica, o que estava em jogo, o que se estava se decidindo, era o próprio
real, o sentido do que as coisas são – o ser das coisas. As razões de ordem
econômica, política ou social são normalmente enfocadas por um pensamento
representativo e ideológico, baseado nesta ou naquela metodologia. Mas costumam
silenciar quanto às suas próprias bases representacionais, porque o que
possibilita o pensamento representativo já não pode ser pensado
representativamente, senão ontologicamente. Toda representação e ideologia que a
ela se atrele tem por pano de fundo o sentido do ser, o que equivale dizer: o
sentido do que as coisas são, do que é o real. Pensar representativa ou
ideologicamente, sem descer mais fundo ao plano ontológico – o plano em que se
questiona o que as coisas são –, é sinal, no mínimo, de uma inocente mauvaise
conscience.
Daquela disputa pedagógica desencadearam-se forças com brutal dinâmica de
realização.
Três foram estas
tradições pedagógicas relativas à paidéia
ou
formação do
homem
grego: a paidéia
homérica, a paidéia socrático-platônica e a
paidéia trágico-poética. Se compreendermos
este
entrechoque
pedagógico, compreenderemos o
lugar
ocupado
pela tragediografia, e
especialmente
aquilo
que na
saga edipiana se
mostra
tão
contemporâneo.
A paidéia
homérica é aquela
que se
liga às
origens míticas da
formação da Hélade. A Ilíada e a
Odisséia, plasmadas a
partir da
tradição
oral dos aedos e
rapsodos –
poetas
que cantavam as
aventuras das
personagens da
Idade
Heróica,
que remontavam ao séc. XII a.C. –, eram na
verdade
poemas
que,
sem deixarem de
ser
monumentos
artísticos, apresentavam
forte
dimensão
pedagógica. Na Hélade,
até o
surgimento da sofística e da
filosofia socrático-platônica e
aristotélica,
já no séc. V a.C.,
como é
óbvio
não havia
escolas,
nem
academias,
nem
universidades.
Até
mesmo as
profissões eram ensinadas
pelos
pais a
seus
filhos. Os
ideais
cívicos e a
identidade cultural de uma
sociedade
guerreira dominada
pelos génos –
clãs
familiares
proeminentes,
socialmente legitimados
por uma
ordem mítico-guerreira – eram veiculados
por aquelas
epopéias. A Ilíada e a
Odisséia eram
cantadas e metrificadas, e serviam
mesmo
para
marcar os
passos dos
soldados na
marcha do
combate. O
ideal
pedagógico
que os
poemas projetam é o do
guerreiro agathós kai kalós,
ou seja,
bom e
belo,
mas
isto no
sentido propriamente
grego: o
guerreiro
nobre,
audacioso,
destemido e
glorioso. Nas
epopéias homéricas há uma
reflexão
sobre a finitude do
homem e das
coisas, e
por
isso devem
ser consideradas
como
já impregnadas de
um
sentido
trágico e
como precursoras da
forma
teatral da
tragédia.
Face à
mortalidade dos
homens, contraposta à
imortalidade dos
deuses
olímpicos, o
objetivo da
vida
humana projetado pelas
epopéias
era o de
perdurar
gloriosamente na
memória
pelos
feitos
heróicos. Esta
era a
tarefa do
bardo, do
poeta,
aquele
que
canta o
que permanece
face à deveniência e à
constante mutabilidade das
coisas.
Aliás,
segundo Émile Benveniste, o
sentido
primeiro da
palavra
filosofia
era “o
saber do
bardo”, e
não
um
simples
amor ao
saber.
Por
volta do
século VII,
com os
pensadores das
colônias
gregas, surge na Hélade o
que começamos a
entender
por
reflexão filosófica,
ou seja, a
procura da
verdade
através de
um
discurso
que
não
mais está na
dependência
estrita do
discurso mítico-religioso.
Mas, na
reflexão destes
pensadores
originários, o mítico
ainda
não se
encontra separado do lógos.
Tais
pensadores meditaram
sobre a
origem (arché) da
natureza (phýsis), e
por
isso foram chamados de fisiólógos. Entretanto, a
phýsis
não
era
vista
por
eles
como
mera
relação
seqüencial de
causas e
efeitos do
mundo fenomênico,
tal
qual
modernamente a entendemos. É
por
isso
que a
tradução de phýsis
por
natureza trai o
sentido
que
tinha
para
aqueles
pensadores. A phýsis
era encarada
como
aquilo
que, ao se
manifestar,
também oculta
sua
origem (arché). Lógos
não
era
juízo de uma
razão lógica ou abstratamente municiada (ratio),
mas a
colheita
que se faz
em
diálogo
com a phýsis. A
própria
palavra lógos, e
conseqüentemente
diálogo, vem de leguéin, que, como já
dissemos, queria
dizer
colheita.
Para os fisiólógos, a
verdade se dizia alétheia,
vocábulo proveniente da deusa do
esquecimento
ou velamento Léthe, antecedido da
partícula
negativa
ou
privativa
alfa. A-létheia é o des-ocultamento,
aquilo
que ao se
manifestar
também se oculta. A
natureza (phýsis) é o
que,
em
permanente
devir e
mudança, se desoculta
mas
também oculta
sua
origem (arché). O
entendimento da
verdade,
para
tais
pensadores,
ainda
não está dominado
pela
noção de
adequação das
coisas a
um
juízo
humano.
Tais
pensadores podem
ser considerados
trágicos,
porque, ao pensarem
sobre o
ser das
coisas,
não expurgaram de
seu
horizonte o não-ser: a
natureza e a
verdade se mostram,
mas
também se ocultam.
No
século V,
com os filósofos a
partir de Sócrates –
ditos antropólógos
em
contraposição aos fisiólógos – instaura-se uma
outra
noção de
verdade e de lógos, e
conseqüentemente a
aspiração de uma
outra dinâmica de realização pedagógica. Assistimos
ao
surgimento de uma paidéia filosófica
que pretende
negar e
superar ao
mesmo
tempo a paidéia mítica.
Não é
por
outro
motivo
que Platão
expulsa de
sua
República os
poetas. Na
ótica socrático-platônica, a
verdade
só se alcança
por
via
metódica. No
caso de Sócrates,
pelo
método
maiêutico;
em Platão,
pelo
método dialético; e, em Aristóteles, pela lógica,
entendida como um conjunto de regras abstratas a serviço do exercício de um
pensamento que se supõe “correto”. Lógos deixa de ser a
colheita de
sentido
em
diálogo
com a
natureza (phýsis) e se torna o
juízo humano epistemologicamente
municiado.
Epistemologia, a
ciência do
saber
correto, reporta-se originariamente a epístasis,
que
quer
dizer a
ação de
assumir a
postura adequada
para se
defrontar
com as
coisas –
postura esta
que, na
pedagogia socrático-platônica,
passa a
ser a metodológica. A
separação da phýsis
em
dois
mundos, o
mundo
inteligível e o
mundo
sensível, vai
embasar a
meta da paidéia filosófica,
que
passa a
ser a de
buscar a
verdade das
essências
inteligíveis,
cuja
idéia
suprema,
como está estampado na
República, seria a do
Belo e do
Bem. A
verdade
deixa de
ser des-ocultamento, des-velamento,
para
ser orthótes,
conhecimento
correto e
universalmente
válido. Esta
pretensão de
correção e universalidade
só é
possível
porque, de
antemão, a phýsis foi separada
em
dois
mundos. O
mundo
dito
sensível é tomado
como
falso, e o
mundo
dito
inteligível é tomado
como a
essência da
realidade,
aquilo
que permanece
face à deveniência e à mutabilidade das
coisas. A
idéia
platônica, apriorística e
abstratamente concebida, constitui o prius,
o próteron, o
primeiro, o
ser
que está
para
além (metà) da phýsis, e
que
por
isso é
metafísico. Nasce,
assim, a
tradição
metafísica
ocidental
que instaura o
modelo paradigmático da paidéia filosófica.
Com
base no
conhecimento apriorístico das
essências
inteligíveis, assiste-se à transformação do
lógos
em
razão
abstrata. É esta
razão
abstrata
que se
encontra na
origem da
técnica e da objectualização da
vida, da
natureza e da
linguagem
que
tanto ameaçam o
homem
contemporâneo. É
ela
também
quem instaura a
dicotomia
em
que
ainda
hoje transitamos, expressa nas
contraposições antagônicas
entre
corpo e
alma,
forma e
conteúdo,
falso e verdadeiro, e, modernamente, a partir de
Descartes, também entre sujeito e objeto.
Neste
momento da
história da Hélade,
em
que se decidiam os
rumos do
Ocidente, houve uma paidéia
que se contrapôs à filosófica. Estamos falando da
paidéia
poética dos tragediógrafos. Ela não se baseava no
estabelecimento de um
conhecimento abstrato, e sim dirigido à concretude
da existência humana. Diferentemente da paidéia filosófica,
que pretende
educar e
doutrinar o
homem a
partir de uma
razão
abstrata, a paidéia trágico-poética se
apresenta
como
um
saber
feito de
vida,
não de
esquemas metodológicos
como
são a
dialética
platônica, a
lógica
aristotélica e o
método
analítico cartesiano. O
sentido desta formação trágico-poética do homem é
aquele
que
já
fora pronunciado no Agamenon
por Ésquilo (séc. V a.C.): páthei máthos (verso
212).
Máthos, ligado a máthema,
quer
dizer
originalmente aprendizagem,
conhecimento,
mas
não
exclusivamente
conhecimento
lógico. Esta
acepção
só se afirmaria
depois de se
impor a
tradição
metafísica, vindo a
designar a
matemática
como a
ciência
abstrata
por
excelência. Páthos,
freqüentemente traduzido
por sofrimento,
quer
dizer de
modo
mais
amplo
aquilo
que se
experimenta e
agita a
alma,
tanto
sentimentos
como
paixão,
prazer e
amor,
quanto
mágoa,
tristeza,
cólera. O
aprendizado
pela
experiência,
pelo sofrimento,
pela
paixão é
aquele
que se dirige ao
homem
integral, o
qual pode
até se utilizar da
razão,
mas é
antes de
tudo constituído de
sentimentos e
volição. Por reconhecer que o
homem é formado
por
um
plexo de pulsões, a paidéia trágico-poética
entende que não é
suficiente educá-lo
com
base
em uma
razão lógico-abstrata. Esta pode
servir
para
fazer
cálculos:
resolver
problemas matemáticos,
construir
pontes,
levantar
edifícios.
Mas o
homem é
também
aquele
que contraria
todos os
cálculos: destrói
pontes e
edifícios – destrói
até a
si
mesmo –, faz
arte e faz
guerra,
ama e desama, se levanta, cai e
torna a se
levantar... O alcoólatra
que sacrifica
sua
vida no
altar da bebida
acaso
não sabe,
racionalmente,
que está se matando? O
que
falta a
ele é o
fortalecimento da
vontade de
não
mais se
prejudicar. Os
sentimentos e as
paixões,
que podem
conduzir ao
êxtase,
mas
também a
regiões autodestrutivas –
são uma “escolha” do
homem,
são
fruto de
sua
deliberação
racional? É
ele
quem “decide”
possuir o
desejo
ou é
por
este possuído? O
humano,
como
ser
vivente, é
um dos
entes gerados
pela phýsis: é
ela
quem originariamente tem o
desejo, o
qual,
por
assim
dizer, traspassa-o.
Por
isso, o
homem tem
sua verdadeira aprendizagem nas
dimensões
emocional e volitiva,
não
em
bases
puramente
lógicas,
que se dirigiriam a
um
homem
abstrato,
jamais ao de “carne
y hueso” –
este
que,
nos
dizeres de Miguel de Unamuno, “nasce, sufre y
muere –
sobre
todo muere –, el
que come y bebe y juega y duerme y piensa
y quiere, el hombre
que se ve y a quien se oye, el hermano,
el verdadero hermano”.
A
razão
abstrata (ratio) pode
servir
para
produzir
instrumentos,
não
para
conduzir o
homem
concreto
nos
sempre
tortuosos
caminhos da
vida. Afirma o
autor
espanhol:
El hombre, dicen, es
um
animal
racional.
No
sé
por
qué no se haya dicho
que
es
um
animal
afectivo o
sentimental.
Y
acaso
lo
que
de los demás
animales
le diferencia sea más el sentimiento
que
no la razón. Más veces he
visto
razonar a uma
gato
que
no reír o llorar.
Acaso
llore o ría
por
dentro,
pero
por
dentro
acaso
también el cangrejo resuelva ecuaciones de
segundo
grado.
No
aprendizado
pela
experiência do sofrimento (páthei máthos),
propugnado
por Ésquilo, e que condensa o sentido da paidéia
trágico-poética, encontra-se a
reflexão
sobre o não-ser,
sobre o
nada e a finitude que subjazem ao homem e a todas
as coisas. É o
que
sustenta Gadamer:
Esta
fórmula
não
significa
somente
que
nos
tornamos
inteligentes
através
do
dano
e
que
somente
no
engano
e na
decepção
chegamos a
conhecer
mais
adequadamente as
coisas.
Assim
compreendida a
fórmula
deveria
ser
tão
velha
como
a
própria
experiência
humana.
Porém
Ésquilo
pensa
mais
do
que
isso.
Refere-se à
razão
pela
qual
isto
é
assim.
O
que
o
homem
deve
aprender
pelo
sofrer
não
é
isto
ou
aquilo,
mas
a
percepção
dos
limites
de
ser
homem,
a
compreensão
de
que
as
barreiras
que
nos
separam do
divino
não
podem
ser
superadas. No
último
extremo,
é
um
conhecimento
religioso
–
aquele
conhecimento
a
partir
donde se dá a
origem
da
tragédia
grega.
De
fato, a
tradição
metafísica inaugurada
por Sócrates e Platão instaurou
um
otimismo na
razão
estranho ao
universo da
tragédia
grega.
Como diz Nietzsche,
em O nascimento da
tragédia, as
máximas socráticas “virtude
é
saber;
só se peca
por
ignorância; e o
virtuoso é o
mais
feliz”
são as
três
fórmulas básicas
em
que reside a
morte do
saber trágico que se expressa no páthei máthos.
No
magistério
socrático, o
homem estaria
sujeito a
eventos
funestos
ou cometeria
equívocos ao
longo da
vida
por
ignorância a
respeito da idéa, identificada
com o
Bem
metafísico. Se o
homem soubesse o
que constitui o
Bem
em
si,
não erraria,
nem sofreria. O
meio de
chegar a
esse
conhecimento seria o
exercício da
dialética.
A
tragédia
grega, ao
contrário, reflete
sobre a finitude do
homem
em
contraposição ao
símbolo de
imortalidade representado
pelos
deuses.
Como diz Píndaro,
Uma
só
é a
raça
dos
deuses
e do
homem:
A
mesma
mãe
natureza
nos
deu a
respiração.
Contudo,
o
que
nos
diferencia
são
os
nossos
poderes,
Porque
eles
têm no
brônzeo
céu
a
sua
eterna
morada,
Enquanto
que
nós
não
somos
nada.
O sofrimento
ou os
erros
humanos não acontecem
por
falta de
dialética. O
desfecho
trágico
que se abateu,
por
exemplo,
sobre Antígona, a
qual teve sacrificar a
própria
vida
para
não
deixar
seu
irmão Polinices
insepulto, pode
ser considerado
como decorrente de
falta de
dialética
ou de
virtude?
Seu
erro – se
algum
erro cometeu – foi
antes o
excesso de
virtude, e a
dialética
jamais a teria livrado da auto-imolação:
como
personagem
trágica
que é,
ela se dispôs a
enfrentar a
morte
não
por
considerações de
ordem lógico-racional, e
sim
porque se sentia vinculada a
um
compromisso de
maior
valor do
que
sua
própria vida.
Através da aprendizagem
pela
experiência e
pelo sofrimento, ao
homem é
dado
conhecer o fatum
trágico
que
governa
tudo o
que existe, a finitude
que a todas as
coisas subjaz,
inclusive a
ele,
um
ente
entre
outros entes.
A saga edipiana, encenada por Sófocles, não é, assim, uma mera veiculação ou
cópia dos
mitos homéricos. Ao contrário, ela consigna a
posição de uma paidéia trágico-poética que se abebera e dialoga com a
memória mítica de uma coletividade, recriando-a artisticamente. Com esta
recriação artística, a paidéia trágico-poética contrapõe-se, em um
momento absolutamente crítico para os rumos que o Ocidente viria a tomar, à
paidéia filosófica instauradora da tradição metafísica em que ainda hoje
transitamos.
b)
O sentido ontológico da tragédia edipiana
Em
meio à
célebre
galeria de
personagens
integrantes da tragediografia Ática, uma há
cuja
saga desponta
como
espécie de
suma
trágica
entre as
demais: Édipo, pertencente à
estirpe amaldiçoada dos labdácidas, a
criança abandonada no
monte Citéron
para
que
não se cumprisse o
vaticínio do
oráculo de Apolo; Édipo, o
jovem e
glorioso
rei tebano
destruidor da
Esfinge,
célebre decifrador de
enigmas; Édipo, o
cego e mendicante
ancião
que deverá
finalmente
descansar de
tanta
desdita no
bosque
em
Colono consagrado às
Fúrias,
divindades vingadoras das
iniqüidades cometidas
em
família.
Muito
embora afirme Nietzsche
que se
trata da
mais
dolorosa
figura do
palco
grego,
nem
tanto
pela
extensão de
sua
penúria o Édipo de Sófocles, delineado nas
peças Édipo
Rei e Édipo
em
Colono, pode
ser considerado a
personagem
trágica
por
excelência.
Afinal, outras encontraram na
pena dos tragediógrafos
vicissitudes equivalentes,
senão
ainda
mais cruentas.
Em
verdade, cotejando-se o
destino (moira)
das
demais
figuras da tragediografia
com o de Édipo, há, nele,
um
caráter
que
lhe é
totalmente
peculiar: trata-se de
seu
desconhecimento a
respeito da
natureza dos
atos
que
lhe trazem a
perdição,
como
decorrência de
ignorar
suas próprias
origens.
Quando Édipo vem ao
mundo,
pesa
sobre
ele o
vaticínio de
que mataria o
pai e desposaria a
mãe,
monarcas de
Tebas.
Seus
pais,
então, o entregam a
um
pastor,
para
ser exterminado,
mas
este, movido
por
piedade, desvencilha-se da
criança, dando-a a
um
habitante de Corinto. Será
então Édipo adotado
pelos
monarcas desta
cidade, Pôlibo e Mérope, os
quais
ele supõe serem
seus
pais
naturais. Na
juventude, ao ser-lhe revelado o
vaticínio de Apolo, foge de Corinto
para
que
não se cumpra a
predição. Na
fuga da
cidade, na
encruzilhada de uma
estrada,
assassina os
membros de uma
comitiva,
dentre
eles Laio, respondendo a
um
desacato
que sofrera.
Posteriormente, num
desfiladeiro
perto de
Tebas, decifra o
enigma da
Esfinge, libertando
toda uma
cidade do
terrível
jugo do
fabuloso
monstro
devorador de
carne
humana, “com
cabeça e
busto de
mulher,
corpo de leoa,
cauda
em
forma de
serpente,
asas de
ave,
garras de leoa e
voz
humana”
, o
que
lhe
outorga o
trono
vago
pela
morte do
rei e o
leito nupcial da
rainha
viúva, Jocasta.
Quando
já
rei
em
Tebas,
muitos
anos
após
ter cometido o
parricídio e
estar desposado
com a
própria
mãe,
sem o
saber – desencadear-se-á a
peste, e
então Édipo se lançará, na
condição de
chefe de
Estado e
grande decifrador de
enigmas, à
tarefa de
descobrir a
identidade do
responsável pelas
iniqüidades
que maculam o
solo tebano.
Por
tais
circunstâncias o
caráter
trágico
em Édipo obedece a
parâmetros
totalmente
específicos
em
relação às
demais
figuras da tragediografia: a
personagem desconhece de
onde vem,
assim
como
não possui
nenhum
indício,
até o
instante do
desencadeamento da
peste e o
começo da
investigação de
suas
razões,
que
lhe permita
desconfiar de
sua
identidade.
Entretanto, no
que tange a Édipo, é
certo
que a
partir de
um
dado
momento da
investigação
sobre
quem seria o
causador da
peste
em
Tebas,
ele
passa a
ser
vivamente dissuadido de continuá-la
por Jocasta,
todavia o
rei mostra-se
cada
vez
mais
obstinado.
E
não
somente a
rainha
tenta demovê-lo,
quando
começa a
intuir a
terrível
revelação e
desfecho:
também o
cego Tirésias, “o
vate guiado
pelos
deuses”,
ciente de
que Édipo é o
causador da
peste, prefere calar-se,
mas é impedido e acusado de
conspirar
contra o
rei
juntamente
com Creonte, o
irmão de Jocasta. O
mesmo se
passa
com o
pastor
que
lhe poupara a
vida
quando
criança, o
qual se verá constrangido,
sob
ameaça, a anunciar-lhe a
identidade,
ainda
que tentasse
sem
sucesso
omitir a
dolorosa
notícia,
até o
fim,
por
meio de sucessivas
respostas
evasivas.
Esta
obstinação edipiana seria
um dos
aspectos de
sua hýbris (“desmedida”),
e
como
tal tem participação
direta no
pungente
desfecho de Édipo
Rei,
quando Jocasta se enforca e Édipo
fura os
próprios
olhos, ao
finalmente ser-lhe revelada a
sua
identidade.
Em se falando de Édipo, no
entanto,
não há
que se
confundir a
projeção do
caráter
psicológico da
personagem
sobre a
trágica
revelação de
sua
identidade –
um dos
modos
pelos
quais se opera a
sua hýbris –
com os
atos (o
assassinato do
pai e o esposamento da
mãe)
por
ele
anteriormente praticados, no
mais
completo
desconhecimento.
É
bem
verdade
que Édipo se erige na
condição de
quem pretende uma
onisciência
sobre
todos os
acontecimentos,
tal
como Apolo
em
sua
previsão
oracular.
Mas a
ele
não se pode
imputar
responsabilidade
por
seus
atos, a
não
ser na “desmedida” de se
supor
aquele
que pode
decifrar
todos os
enigmas – e a
vitória
sobre a
Esfinge é o
exemplo
mais
veemente disso.
Como
frisa Françoise Dastur, é
esse
excesso de
procura de
quem
ele é,
esse
excesso de
interpretação na
busca de se
apropriar do
seu
próprio
destino,
que, ao
cabo,
lança
seu
espírito
abaixo do
espírito de
seus
servidores, e destitui o
rei Édipo.
Mas,
porquanto
não pratique os
atos
que
lhe condenam de
modo
voluntário,
diferentemente,
por
exemplo, de Antígona, Édipo
não encena propriamente a
tragédia da
vontade,
muito
embora
ela
também esteja
presente no
afã
especulativo da
personagem. Édipo encena a
tragédia
ontológica, a
tragédia da
revelação de
sua
própria
origem.
O
fato dos
atos
que viria a
praticar,
em
desconhecimento, estarem vaticinados
pelo
oráculo délfico,
bem
como Édipo
ignorar
suas
origens –
por
isso
inocente
em
relação àquelas
ações – e
ainda
assim
sobre
ele se
abater
tão
violenta
desgraça
quando se descobre
parricida e
incestuoso, força-nos a
indagar
sobre o
significado da áte (“culpa”)
edipiana e o
sentido de
sua
expiação.
No
âmbito da
configuração desta áte, poderíamos
nos
perguntar: se o
oráculo prediz, e a
maldição se cumpre, estará Sófocles a
articular uma
visão
determinista da
vida
humana?
Serão
suas
personagens
meros
títeres de
um
destino previamente traçado
por
divindades impiedosas? De
que
modo se articula a
predição
oracular e a
expiação edipiana?
Qual o
significado da
ignorância de Édipo a
respeito de
suas raízes?
A
trajetória de Édipo
como
herói
trágico pode
ser
expressa
em
termos de uma
dolorosa
saga de individuação,
mediante a
qual
ele deve “tornar-se o
que é”,
ou seja,
um
cego, arrancando os
próprios
olhos e fazendo-se
guiar nas
trevas pelas filhas,
já
em Édipo
em
Colono. É a
encenação desta
metamorfose trágico-dionisíaca, do “ser
que é e
não é”,
por
isso a
própria deveniência, a
própria
expressão da
unidade
entre perecimento e nascimento,
quem
fala
com
mais veemência da
constituição aporética do “ser”
edipiano:
ele é o
que
tudo sabe,
mas
não sabe de
si
mesmo;
ele é o
que
procura o “criminoso”
tentando
salvar a
pólis,
mas
ele é o
próprio “criminoso”
que desencadeia a
peste;
ele é a personificação de
um
afã decifrador,
mas,
por
ironia,
ele é o
próprio
enigma;
ele é o
que se guiava
pela
luz
excessiva, e
agora terá de
caminhar na
mais
profunda
treva
para se
descobrir.
O
vaticínio
oracular de Apolo
sobre
seu
destino é a
expressão e a
interpretação deste desequilíbrio
originário, desta
necessidade de
expiação
pelo sofrimento
para
que se revele a Édipo o seu ser, ou seja, quem
ele
realmente é.
Neste
sentido é
que o páthos
dionisíaco da individuação e
metamorfose se faz
presente
como
processo de purgação e aprendizagem. Édipo desvenda o
conhecido
enigma
esfíngico (“Que
animal
anda
com
quatro
pés de
manhã,
dois ao
meio
dia, e
três à
tarde?”) de
modo
abstrato e
puramente
intelectivo. Responde
ele
que é o
homem,
como
gênero,
mas desconhece o
homem
concreto, a
começar
por
si
mesmo: sabe das raízes de
todos os
homens na sujeição do
decurso
temporal,
mas desconhece
seus
próprios “pés”, as
raízes de
sua
existência – Oidípous, “o de
pés inchados”, atado
pelos
pés
quando
criança,
como uma
rês a
ser
abatida,
para
que
não se cumprisse a
predição do
oráculo. É no
aprendizado
passional e
concreto,
pelo sofrimento (páthei máthos) –
um gnóthi seautón
por
via
patética –
que,
tal
como o
deus
que morre
para
renascer, a Édipo será
dado conhecer-se
em
sua
constituição
ontológica.
Por
isso é
que
não se há de
falar
em
determinismo
quanto à
previsão
oracular. Apolo
não tem uma
função
cibernética na
saga edipiana,
tal
como
um
ventríloquo
que falasse e agisse
por
intermédio de
seu
fantoche. Schelling chega a considerar, bem ao
contrário,
que a
destruição do
herói
trágico é o
símbolo
grandioso
através do
qual emerge a
liberdade humana.
Como afirma Kitto, reportando-se ao Édipo
Rei, Sófocles
não
tenta fazer-nos
sentir
que
um
destino
inexorável
ou
um
deus
maligno está a
conduzir os
acontecimentos.
Mas faz-nos
sentir,
como
em Electra,
que a
ação está
em
movimento, ao
mesmo
tempo num
plano
paralelo e
mais
elevado.
Se a
personagem pratica os
atos condenatórios
para
seu
destino
em
desconhecimento,
por
outro
lado,
sem que incorresse na hýbris
não
poderia operar-se o
cruel
desfecho de Édipo
Rei: o
protagonista,
como
personagem
trágica, arquetípica e
ideal,
desde o
momento
em
que
lhe é revelado,
ainda
em Corinto, o
vaticínio,
não fugirá ao
imperativo de a
ele
contrapor
sua
vontade de
controle
sobre
seu
próprio
destino. E
este é o
ponto
em
que a
previsão
oracular e o
sentido
ontológico da
expiação edipiana se comunicam: o “plano
paralelo e
mais
elevado”
em
que se desenvolve a
ação
trágica se faz
determinar
pela
violação da díke
por
parte de Édipo.
Díke
não pode
ser traduzida
por “justiça” (jus)
senão defeituosa e redutoramente,
porque esta
noção está centrada no
fator de retribuição
moral.
Em Antígona,
ainda estaríamos numa
parte da díke
que coincide
com o
sentido de
justiça
moral,
pois se, ao
final da
peça, Creonte é condenado
por
seus
atos, é
porque
ele
viola deliberadamente a díke
expressa na
lei não-escrita,
que obriga os
vivos ao
cuidado
fúnebre.
Mas
em Édipo,
que
justiça
poderia
haver na
expiação de
alguém
que desconhecia a
natureza dos
atos
que praticou?
Em
face dos
atos praticados
por Édipo na
mais
completa
inocência, de
nada importa se é “justo”
ou
não
que
ele tenha de expiá-los. Esta retributividade é a
díke,
não a
justiça.
Ainda
que Édipo
não soubesse o
que estava fazendo,
assim
mesmo cometeu a adikía.
Muito
embora
isto ofenda o
sentido
comum de
justiça,
assim é a verdadeira
face da
experiência
vital de
todos os
homens:
atos
que praticamos
inocentemente
ou
não podem
ter
suas
conseqüências funestas.
Este é o
momento no
qual a
vida
volta a
sua
face
que chamaríamos de
cruel, e
como
tal, constitui a
própria
matéria
prima da tragediografia.
E é
próprio da díke
que
alguém
que constitui
um
enigma tenha de se
decifrar,
assim
como
também é
próprio da
mesma díke
que
alguém
que desconheça
suas
origens possa
praticar
atos
que
lhe tragam a
perdição, possa
incorrer na hamartía (erro).
Esta é a
razão
pela
qual a áte edipiana,
muito
embora tenha
conotações
morais
pelo
parricídio e
incesto,
não é originariamente
um
assunto
concernente à
moralidade: trata-se da
encenação da
saga humana e da totalidade das coisas, ambas
governadas simultaneamente
pela díke.
Na operacionalidade da díke acha-se figurado
um lógos
que rege o
mundo
natural (phýsis) e
humano, e
que é a
própria
determinação do “plano
paralelo e
mais
elevado”
com o
qual se comunica a
tragédia edipiana.
Tal
qual se
passa na cosmovisão dos
pensadores
originários, em que os universos humano e
natural
não estão separados, a díke
não
precisa
ser necessariamente
moral,
mas
expressa uma
ordem cósmica
que, uma
vez violada, exigirá a
sua
reparação. A
idéia
central deste lógos, e
que se faz
presente no
processo gnosio-metamórfico edipiano, é a de
que o
tempo vinga (Kronos dikáxei)
seu desequilíbrio.
Pois se Édipo é o
próprio
erro
ontológico; se
ele,
que constitui o
primeiro
enigma, é
também
aquele
que
tudo
quer
controlar e
decifrar, a
começar
por
si
mesmo e
seu
próprio
destino, pode
estar fadado a encontrar-se na
ímpia
solidão de
sua
própria
ignorância,
ainda
que
inocente
em
relação aos
atos
que
lhe ocasionam a
ruína.
Édipo,
por
via de
seu
trânsito metamórfico, deve
expiar o desequilíbrio
ontológico originador de
seus
atos,
porque o lógos
que rege as
coisas, o
mundo
natural e
humano, vive em um jogo tensional e
complementar de
contrários.
Assim
como o
protagonista, no
seu
doloroso
processo de individuação,
não
era
quem se supunha;
assim
como
não podia
continuar guiando-se
somente
pela
luz
excessiva de
seu
ímpeto decifrador, devendo
aprender a
caminhar pelas
trevas;
assim
como a “verdade”
que responderia a
sua enigmática
origem
não se decifraria de
modo
puramente
intelectual e
abstrato,
mas na
patética (páthos) concretude de
sua
revelação
ontológica (alétheia) –, do
mesmo
modo a
dimensão
ontológica das
coisas obedece
àquele lógos
que é
permanente deveniência. A
existência
humana e a
natureza falam
empírica e
veementemente a
linguagem da
unidade e complementaridade de
contrários,
expressa na
ordem trágico-dionisíaca do
mundo:
luz e
treva;
amor e
ódio;
alegria e
tristeza;
bem e
mal;
vida e
morte.
Nem se saberia o
que
cada
um desses
elementos significa se o
seu
contrário
não o dimensionasse.
Como testemunha-nos Heráclito:
O
mesmo
é
vivo
e
morto,
vivendo-morrendo a
vigília
e o
sono,
tanto
novo
como
velho:
pois
estes
se alterando
são
aqueles
e
aqueles
se modificando
são
estes.
E
aqui reside a
razão
pela
qual a adikía edipiana,
por
ferir uma
ordem cósmica,
não é
um
problema
somente
seu: o
cosmos acha-se conflagrado. Na
verdade, Édipo
não é o
único a
sofrer na
peça.
Toda uma
cidade tem a
sua
Sorte
em
xeque. A
peste –
como
fenômeno de
ligação das
esferas
celestial e
terrena – devasta
Tebas e
seus
habitantes, e o
corpo
social se putrefaz
pela áte do
monarca.
A
reestruturação da díke
como
fenômeno cósmico acha-se encenada, no
conjunto das duas
obras enfocadas, na
contraposição
entre as
divindades
solar (Apolo) e das
trevas (Fúrias).
Em Édipo
Rei, Apolo preside a
tragédia, a
exigir do
protagonista a
reparação da díke;
em Édipo
em
Colono, o
cego
ancião será recebido no
bosque consagrado às Eumênides,
que acolherão o sofredor no
seio da
natureza. Édipo,
que no
auge de
sua
glória se fazia
com
orgulho
somente
guiar
pela
luz,
como o
próprio Apolo, e
que
após cegar-se cumpre
seu
périplo de
expiação, purga-se da adikía reintegrando-se
ao lógos cósmico.
Luz e
treva irmanar-se-ão na
trajetória edipiana entrelaçando a
esfera
transcendente (divina)
e
terrena (humana):
este é o
teor simbólico contido no
fato de
que Édipo, uma
vez acolhido no
bosque consagrado às Eumênides, na
localidade de
Colono,
próxima à Atenas, sirva de
oferenda e
proteção a esta
cidade
contra os
ataques
estrangeiros.
Édipo
em
Colono tem sido
amiúde considerada
pela
crítica uma
peça de
menor
contrição
cênica do
que Édipo
Rei,
pois
seu
desfecho
não é o da
dor lancinante,
mas o da reconciliação do
protagonista
com a
ordem trágico-dionisíaca da
realidade.
Todavia,
somente uma
leitura compartimentalizada e redutora
não levará
em
conta
que ambas
são
complementares, e,
como
tais, na
tentativa de
compreensão da construção de real que projetam,
devem
ser interpretadas simultaneamente.
Édipo
em
Colono foi encenada
pela
primeira
vez
em Atenas,
em 401 a.C., postumamente, vinte e
quatro
anos
após Édipo
Rei, e constitui a
última
tragédia de Sófocles,
escrita
quando
já contava
com
mais de noventa
anos.
Razão
pela
qual nesta
derradeira
peça pode-se
enxergar a
expressão
poética do
fechamento de
seu
ciclo existencial, poeticamente forjando
sua
extrema
hora metamórfica.
Mais de
dois
mil
anos
nos separam do
autor e da
pequena
mas
grandiosa
parte de
sua
obra
que chegou
até
nossos
dias.
Por
tal
motivo, numa
época
como a
nossa,
onde a
confiança extremada na
razão
analítica
como
fonte de
todo
conhecimento “verdadeiro”
seduz o
homem
contemporâneo
em
seu
afã de
controle e
manipulação das coisas –
talvez a
reflexão
sobre a
tragédia
grega soe aos
incautos
como
mera
curiosidade arqueológica,
quando
não, aos “novos
bárbaros”,
como
descabido
anacronismo.
Todavia, a considerar-se
que as
tentativas de
compreensão
não podem submeter-se a
critérios
exclusivamente cronológico-lineares, devendo
fazer-se
conduzir,
em
essência,
por uma
orientação axiológica, teremos na
expressão
teatral surgida no séc. V a.C., na Hélade,
não
somente
um
perene
painel da existência
humana e das
relações do
homem
com o
mundo,
mas
em
especial
um
manancial
inesgotável de
elementos
críticos
sobre a
própria contemporaneidade.
O
espaço de
reflexão
em
que o
presente se move constitui o desdobramento das
questões
que
nos foram
remotamente legadas. O
mito
trágico teatralizado se inscreve historicamente no
embate
entre uma mundivisão trágico-poética, de
um
lado, e
um
ímpeto de racionalização
crescente na construção do real, de
outro, representado
pela
filosofia socrático-platônica, ambas
visões disputando a
primazia no
seio da
cultura
grega. A
História da
Filosofia nos
conta de
quem foi a
vitória.
Por
isso, em um mundo como o nosso, plenamente
mergulhado na construção técnico-científica do real, não
raro usurpadora da
legitimidade de outras formas de conhecimento que
não sejam a da ciência, e que confere à razão analítica
ares de divinização
ou o
trono de
que
outrora Édipo se
punha
orgulhosamente a
tudo decifrar –, estejamos
atentos à
reversão
hierárquica
brutal
que,
segundo Dastur, repousa no
fundo da tragediografia:
A
tragédia
expõe o
retorno
categórico,
quer
dizer,
a
conversão
do
excesso
especulativo
(o
homem
quer
ser
deus)
no
excesso
de
submissão
à finitude (o
homem
abandonado
pelo
deus).
O
que
está
em
questão
na
tragédia
é a impossibilidade do
equilíbrio
entre
o
humano
e o
divino.
Quanto
mais
o
divino
se aproxima do
homem,
mais
ele
se afasta
como
divino;
eis
a
armadilha
da
familiaridade
e o
perigo
da captação
especulativa.
Quanto
mais
o
divino
se afasta do
homem,
mais
ele
se
torna
autenticamente
divino,
abandonando
ainda
mais
o
homem.
Antônio
Máximo Ferraz
Mestre em Teoria
Literária pela Universidade de Brasília
Doutorando em
Teoria Literária na Universidade Federal do Rio de Janeiro
Este é o poema “Hyperions Schiksalslied”, que acima traduzimos: “Ihr
wandelt droben im Licht / Auf weichem Boden, selige Genien! / Glänzende
Götterlüfte / Rühren euch leicht, / Wie die Finger der Künstlerin / Heilig
Saiten. / Schicksallos, wie der schlafende / Säugling, atmen die
Himmlischen; / Keusch bewahrt / In bescheidener Knospe, / Blühet ewig /
Ihnen der Geist, / Und die seligen Augen / Blicken in stiller / Ewiger
Klarheit. / Doch uns ist gegeben, / Auf keiner Stätte zu ruhn, / Es
schwinden, es fallen / Die leidenden Menschen / Blindlings von einer /
Stunde zur andern, / Wie Wasser von Klippe / Zu Klippe geworfen, / Jahr lang
ins Ungewisse hinab”.
PÍNDARO (Pi.N.,
frag. 6.1-7).
Fragmento
da
Sexta
Neméia, intitulada ΑΛΚΙΜΙΔΑΙ ΑΙΓΙΝΗΤΗΙ ΠΑΙΔΙ ΠΑΛΑΙΣΤΗΙ (“Para
Alcimida
menino
egineta
pugilista”).
A
ode
foi
composta
por
ocasião
da
vitória
do
garoto
Alcimida
nos
Jogos
Nemeus,
modalidade
de
pugilismo
para
meninos.
Alcimida, nascido
em
Egina, uma das
ilhas
mais
próximas de Atenas,
junto
com
Salamina –, pertencia à
importante
família
dos Bassidas, considerada uma das
mais
antigas.
Referências
ao
nome
de
seu
treinador,
o
famoso
Milésias,
leva
os
estudiosos
a considerarem a
ode
escrita
por
volta
de 460 a.C. A
ode
inteira
ressalta as
vitórias
e as
derrotas
da
família.
Daí,
em
sua
primeira
estrofe,
Píndaro
fazer
alusão
à
diferença
entre
os
mortais
e os
imortais,
embora
ambos
tenham uma
origem
comum.
Este
é o
texto
original
do
fragmento
citado:
Ἕν
ἀνδρῶν,
ἓν
θεῶν
γένος·
ἐκ
μιᾶς
δὲ
πνέομεν
ματρὸς
ἀμφότεροι·
διείρ-
γει δὲ
πᾶσα
κεκριμένα
δύναμις,
ὡς
τὸ
μὲν
οὐδέν,
ὁ
δὲ
χάλκεος
ἀσφαλὲς
αἰὲν
ἕδος
μένει
οὐρανός.
Comentando a
personagem
de Édipo,
sustenta
Schelling: “Muitas
vezes
se perguntou
como
a
razão
grega
podia
suportar
as
contradições
de
sua
tragédia.
Um
mortal,
destinado
pela
fatalidade
a
ser
um
criminoso,
lutando
contra
a
fatalidade
e no
entanto
terrivelmente castigado
pelo
crime
que
foi
obra
do
destino!
O
fundamento
dessa
contradição,
aquilo
que
a tornava suportável, encontrava-se
em
um
nível
mais
profundo
do
que
onde
a procuraram, encontrava-se no
conflito
da
liberdade
humana
com
o
poder
do
mundo
objetivo,
em
que
o
mortal,
sendo
aquele
poder
um
poder
superior
–
um
fatum –,
tinha
necessariamente
que
sucumbir,
e, no
entanto,
por
não
ter
sucumbido
sem
luta,
precisava
ser
punido
por
sua
própria
derrota.
O
fato
de o
criminoso
ser
punido,
apesar
de
ter
tão-somente sucumbido ao
poder
superior
do
destino,
era
um
reconhecimento
da
liberdade
humana,
uma
honra
concedida à
liberdade.
A
tragédia
grega
honrava a
liberdade
humana
ao
fazer
seu
herói
lutar
contra
o
poder
superior
do
destino:
para
não
ultrapassar
os
limites
da
arte,
tinha
de fazê-lo
sucumbir,
mas,
para
também
reparar
essa
humilhação
da
liberdade
humana
imposta
pela
arte,
tinha
de fazê-lo
expiar
–
mesmo
que
através
do
crime
perpetrado
pelo
destino...
Foi
grande
pensamento
suportar
voluntariamente
mesmo
a
punição
por
um
crime
inevitável,
a
fim
de,
pela
perda
da
própria
liberdade,
provar
justamente
essa
liberdade
e
perecer
com
uma
declaração
de
vontade
livre”.
(F.W.J. Schelling, Briefe über Dogmatismus und Kritizismus [Cartas
sobre
dogmatismo
e criticismo],
apud
SZONDI, Peter.
Ensaio
sobre
o
Trágico.
Tradução
de Pedro Süssekind.
Rio
de
Janeiro:
Jorge Zahar
Editor,
2004, p. 29.
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