VIGÊNCIA DO TRÁGICO: A SAGA EDIPIANA

 

Lá no alto, na luz, vós andais

Sobre um chão macio, bem-aventurados deuses!

Radiante sopro divino

Toca-vos de leve,

Como os dedos da artista

Sagradas cordas.

Libertos do destino, como adormecida

Criança ao seio, respiram os imortais;

Protegido na pureza,

Em singelo botão,

Floresce-lhes eternamente

O espírito,

E os olhos ditosos

Cintilam tranqüilos

Eterna claridade.

Mas a nós não é dado

Nenhum lugar sobre o qual descansar;

Desfalecem, caem

Os homens sofredores,

Às cegas,

De um momento para o outro,

Como água jogada

De rocha em rocha,

Anos a fio atirados ao desconhecido.

 

(Friedrich Hölderlin, “Canção do destino de Hipérion”) [1]

 

RESUMO: A saga edipiana apresenta características únicas, comparada à das demais personagens da tragediografia. Enquanto estas praticam atos que lhes trazem a perdição deliberadamente, como se passa por exemplo com Antígona, a qual enterra o irmão enfrentando o edito de Creonte –, Édipo assassina o pai e desposa a mãe involuntariamente, em razão de desconhecer suas origens (génos). Édipo se julga capaz de tudo decifrar, mas pratica tais atos em desconhecimento. Como alguém que está inocente em relação às ações que pratica tem de sofrer tão grave expiação, ainda mais se levando em conta que o oráculo de Delfos vaticinara que ele mataria seus pais? A tradição metafísica ocidental, de fonte platônica e judaico-cristã, não compreende o trágico, porque identificou o “ser com o Bem ontológico (República, Platão), assim excluindo de seu horizonte o “não-ser”. Com base nesta exclusão, veio a ser fundada a razão abstrata ocidental (ratio). A culpa (áte) edipiana não é a da retributividade da justiça humana (jus), mas a da díke, concernente à justiça ontológica. A noção chave para entender a expiação edipiana é a do erro (hamartía) ontológico. Sua saga, consumada em Édipo Rei e Édipo em Colono, de Sófocles, encena o trágico destino (génos) de um personagem que, justamente por se guiar pela iluminância de uma razão abstrata, como o faz a modernidade –, se obrigado a descer à obscura senda do “não-ser”.

 

a)      Uma aproximação hermenêutica: destino e contemporaneidade

 

            Neste momento em que nos propomos a compartilhar uma reflexão sobre o trágico e a interpretação de algumas questões levantadas pela saga edipiana, configurada nas peças Édipo Rei e Édipo em Colono, de Sófocles, parece-nos fundamental que, de antemão, ponderemos sobre o que é o interpretar.

            Interpretar um texto não é buscar um sentido “transepocal” e universalmente válido. O horizonte histórico em que se encontra o intérprete participa necessariamente da compreensão. O que, por exemplo, a Divina Comédia queria dizer para um homem do medievo, inserido em uma moldura teocêntrica do universo, certamente diferirá do que ela quer dizer para nós, homens do século XXI, habitantes de um cosmos dessacralizado e imersos na plena vigência da construção técnico-científica do real. Encontramo-nos, com efeito, cada vez mais sujeitos ao poder avassalador da técnica. Sua expansão irrefreável sobre todo o planeta, com os riscos que encerra para a humanidade, talvez seja a marca mais característica e inquietante de nosso tempo.

            O mundo em que estamos imersos é outro, e, é claro, outros são os contextos que se nos apresentam. Mas isto não importa que uma ou outra interpretação – a feita no horizonte histórico do medievo ou contemporaneamente – esteja errada. Ou que, ao invés, haja uma interpretaçãocorretasobre o poema de Dante. As interpretações são construções de realidade efetuadas em torno de questões que se fazem perpassar pelo contexto histórico em que o intérprete se acha inserido.

            Isto se deve ao caráter não-instrumental da linguagem. Diferentemente de uma mesa, um vaso ou um automóvel, a linguagem não é uma entre outras coisas que o homem usa e possui. Ela não é um mero instrumento de compreensão. Muito ao contrário, o homem é, no sentido ontológico, linguagem. É a palavra, é o fato de o homem falar que o põe em sua humanidade, em seu ser homem. Lógos, antes mesmo de significar “razão” lógico-instrumental ou divina, quer dizer “linguagem”. Na potencialidade dialogal ofertada ao homem pela linguagem, ele entra em relação com as coisas e a elas é convidado a conferir sentido. Por isso, não é o homem quem possui prioritariamente o sentido das coisas: quando ele vem ao mundo, já encontra sentidos, previamente projetados pela linguagem, do que as coisas são. O que caracteriza uma coletividade humana é justamente o compartilhamento de uma prévia compreensão do sentido das coisas – o sentido do ser –, facultada pela linguagem. Coletividade – termo formado pela preposição latina “cum”, que significa integração, e pela raiz indo-européia “leg-”, que dará origem ao verbo leguéin (colher, reunir), e igualmente a lógos – quer dizer a reunião e a colheita comum de sentido que a linguagem oferta a uma comunidade humana. Modificando-se o sentido do ser através da caminhada histórica da coletividade, eclodem novas construções de real. Nos múltiplos modos de realização de uma coletividade, o homem como ser dialogal experimenta a errância de instituir realidades, mas jamais esgotar a indagação sobre o que é o real. Porque o que significa o real é uma questão em aberto, que antes deve concitar o intérprete a novas realizações, do que simplesmente determiná-lo com base em alguma substancialidade estanque.

É, portanto, na linguagem, e não com a linguagem, que o mundo e a realidade são construídos, aparecem e se mostram para o homem. A realidade – o que equivale dizer, o ser das coisas, o seu sentido – é um constructo que se opera na linguagem. Como diz Heidegger, “a linguagem é a casa do ser. Em sua morada habita o homem”.[2]

            Por ser ontologicamente linguagem, o homem não pode ter a pretensão de uma compreensão objetiva, neutra e distanciada das coisas. Nem o intérprete a veleidade de uma interpretação correta e universalmente válida de um texto. A linguagem e o mundo que ela faz surgir transportam as questões que se oferecem em um dado momento histórico. Por isso, ao interpretarmos um texto, é preciso que estejamos abertos a “ouvir” as questões de que ele é portador, fazendo-as dialogar com as questões que, uma vez transportadas pela linguagem, se oferecem em nosso horizonte histórico. A meta de uma efetiva interpretação, de um efetivo diálogo com o texto, deve ser, portanto, a fusão das questões do texto com o sentido do mundo como questão. E aí é preciso estar atento: questões são diferentes de problemas. Estes são passíveis de uma solução cabal – um problema matemático por exemplo. Questões são apelos por respostas que jamais esgotarão o mistério do sentido das coisas. Um texto encarado como portador de questões convida o intérprete à produção de real – isto é, de sentido das coisas –, de modo a iluminar o horizonte existencial do intérprete e da coletividade em sua dinâmica de realização. Dinâmica de realização que se opera nas viragens do sentido do ser  – do sentido do que é o real – ao longo das peripécias da História.

            Assim, a meta de um autêntico diálogo com as peças Édipo Rei e do Édipo em Colono não será a de reconstituir aquilo que elas significavam para o mundo e para a realidade grega. Se ficássemos a isso restritos, não passaríamos de uma abordagem própria da ciência arqueológica ou da história literária. Não negamos que conhecer os contextos históricos em que as obras foram realizadas não seja importante. Afinal, todo texto é um cronótopo, isto é, se situa em um lugar e em um tempo. Mas, para que sejamos capazes de superar os limites de uma mera reconstituição arqueológico-historiográfica, nossa interpretação deve incidir sobre as questões centrais que as citadas tragédias nos levantam contemporaneamente. Seja para melhor compreender a realidade em que estamos imersos, seja para encontrarmos vias de superação de seus impasses. Este é o verdadeiro modo de dar vida àqueles textos que distam do nosso mundo 2.500 anos.

            Como diz Ítalo Calvino, as grandes obras são aquelas que, por mais que respondamos, jamais cessam de nos interrogar. Tais obras, quando com elas nos deparamos, continuam a operar, ainda que possam estar distantes na linearidade temporal. Por isso, devemos nos valer de um critério axiológico – ou seja, valorativo, e não meramente cronológico-linear – para julgarmos o que é efetivamente contemporâneo. Se assim o fizermos, perceberemos que aqueles textos são dotados de uma muito maior contemporaneidade – isto é, estão muito mais próximos das questões decisivas que se apresentam ao nosso tempo – do que o último achado tecnológico pelo qual ficam boquiabertos os basbaques, ou boa parte de uma literatura “pseudomodernosa” que se reveste de ares de grande importância e novidade.

            Freqüentemente, as interpretações sobre a saga edipiana incidem somente sobre uma das peças, em geral sobre o Édipo Rei, em detrimento d’ O Édipo em Colono. Esta última é muitas vezes esquecida, o que, a nosso ver, constitui um sério equívoco, pois a trajetória edipiana se deixa apreender na amplitude de sua significação se as considerarmos conjuntamente. Como sabemos, as peças nos falam de uma maldição familiar, de crimes praticados involuntariamente e de predições oraculares. Foram escritas em um universo sacralizado, cercado pelas divindades pagãs. Vemo-nos, então, obrigados a perguntar: o que haverá de tão contemporâneo na saga edipiana, apresentada por Sófocles há tanto tempo, que se reporta a um universo aparentemente tão diferente do nosso? A resposta não poderia ser mais abrangente. A saga edipiana traz em si todo o destino do Ocidente, daí a sua inquestionável contemporaneidade. É isso o que pretendemos apontar com a presente interpretação.

            As peças Édipo Rei e Édipo em Colono foram encenadas, pela primeira vez, no século V – aquela aproximadamente em 430 a.C., esta por volta de 401 a.C. O período em que surge a tragediografia ática, e em que foram escritas aquelas duas peças, foi absolutamente crítico para os rumos que o Ocidente viria a tomar. Estes rumos são responsáveis pelo que hoje somos. Mas, o que aconteceu de tão sério naquele tempo que ainda hoje nos afeta? É preciso saber diferenciar início de origem. Início é um ponto em uma sucessão linear, assim como o meio e o fim. Origem é o que se doa e está presente em todos os momentos da sucessão temporal. O que esteve em jogo, naquele período, foi a origem do que chamamos Ocidente, e conseqüentemente o nosso próprio destino (génos).

 

b) O choque pedagógico e a paidéia trágico-poética

 

            Na Hélade do século V a.C., que gestava os caminhos que o Ocidente viria a trilhar, confluíram forças que entraram em convivência problemática. Não indagaremos aqui, por fugir ao objetivo deste trabalho, as razões econômicas, políticas e sociais que determinaram este entrechoque. Basta observarmos que o impasse se deu em torno da tradição pedagógica que deveria prevalecer na Hélade. Pedagógico, aqui, quer dizer não metodologia de ensino, mas paidéia, formação do homem em sua dinâmica de realização. Esta dinâmica é ontológica, portanto mais funda do que aquelas razões. E isto porque, no âmbito daquela disputa pedagógica, o que estava em jogo, o que se estava se decidindo, era o próprio real, o sentido do que as coisas são – o ser das coisas. As razões de ordem econômica, política ou social são normalmente enfocadas por um pensamento representativo e ideológico, baseado nesta ou naquela metodologia. Mas costumam silenciar quanto às suas próprias bases representacionais, porque o que possibilita o pensamento representativo já não pode ser pensado representativamente, senão ontologicamente. Toda representação e ideologia que a ela se atrele tem por pano de fundo o sentido do ser, o que equivale dizer: o sentido do que as coisas são, do que é o real. Pensar representativa ou ideologicamente, sem descer mais fundo ao plano ontológico – o plano em que se questiona o que as coisas são –, é sinal, no mínimo, de uma inocente mauvaise conscience.

Daquela disputa pedagógica desencadearam-se forças com brutal dinâmica de realização. Três foram estas tradições pedagógicas relativas à paidéia ou formação do homem grego: a paidéia homérica, a paidéia socrático-platônica e a paidéia trágico-poética. Se compreendermos este entrechoque pedagógico, compreenderemos o lugar ocupado pela tragediografia, e especialmente aquilo que na saga edipiana se mostra tão contemporâneo.

            A paidéia homérica é aquela que se liga às origens míticas da formação da Hélade. A Ilíada e a Odisséia, plasmadas a partir da tradição oral dos aedos e rapsodospoetas que cantavam as aventuras das personagens da Idade Heróica, que remontavam ao séc. XII a.C. –, eram na verdade poemas que, sem deixarem de ser monumentos artísticos, apresentavam forte dimensão pedagógica. Na Hélade, até o surgimento da sofística e da filosofia socrático-platônica e aristotélica, no séc. V a.C., como é óbvio não havia escolas, nem academias, nem universidades. Até mesmo as profissões eram ensinadas pelos pais a seus filhos. Os ideais cívicos e a identidade cultural de uma sociedade guerreira dominada pelos génosclãs familiares proeminentes, socialmente legitimados por uma ordem mítico-guerreira – eram veiculados por aquelas epopéias. A Ilíada e a Odisséia eram cantadas e metrificadas, e serviam mesmo para marcar os passos dos soldados na marcha do combate. O ideal pedagógico que os poemas projetam é o do guerreiro agathós kai kalós, ou seja, bom e belo, mas isto no sentido propriamente grego: o guerreiro nobre, audacioso, destemido e glorioso. Nas epopéias homéricas há uma reflexão sobre a finitude do homem e das coisas, e por isso devem ser consideradas como impregnadas de um sentido trágico e como precursoras da forma teatral da tragédia. Face à mortalidade dos homens, contraposta à imortalidade dos deuses olímpicos, o objetivo da vida humana projetado pelas epopéias era o de perdurar gloriosamente na memória pelos feitos heróicos. Esta era a tarefa do bardo, do poeta, aquele que canta o que permanece face à deveniência e à constante mutabilidade das coisas. Aliás, segundo Émile Benveniste, o sentido primeiro da palavra filosofia era “o saber do bardo”, e não um simples amor ao saber.

            Por volta do século VII, com os pensadores das colônias gregas, surge na Hélade o que começamos a entender por reflexão filosófica, ou seja, a procura da verdade através de um discurso que não mais está na dependência estrita do discurso mítico-religioso. Mas, na reflexão destes pensadores originários, o mítico ainda não se encontra separado do lógos. Tais pensadores meditaram sobre a origem (arché) da natureza (phýsis), e por isso foram chamados de fisiólógos. Entretanto, a phýsis não era vista por eles como mera relação seqüencial de causas e efeitos do mundo fenomênico, tal qual modernamente a entendemos. É por isso que a tradução de phýsis por natureza trai o sentido que tinha para aqueles pensadores. A phýsis era encarada como aquilo que, ao se manifestar, também oculta sua origem (arché). Lógos não era juízo de uma razão lógica ou abstratamente municiada (ratio), mas a colheita que se faz em diálogo com a phýsis. A própria palavra lógos, e conseqüentemente diálogo, vem de leguéin, que, como já dissemos, queria dizer colheita. Para os fisiólógos, a verdade se dizia alétheia, vocábulo proveniente da deusa do esquecimento ou velamento Léthe, antecedido da partícula negativa ou privativa alfa. A-létheia é o des-ocultamento, aquilo que ao se manifestar também se oculta. A natureza (phýsis) é o que, em permanente devir e mudança, se desoculta mas também oculta sua origem (arché). O entendimento da verdade, para tais pensadores, ainda não está dominado pela noção de adequação das coisas a um juízo humano. Tais pensadores podem ser considerados trágicos, porque, ao pensarem sobre o ser das coisas, não expurgaram de seu horizonte o não-ser: a natureza e a verdade se mostram, mas também se ocultam.

            No século V, com os filósofos a partir de Sócrates – ditos antropólógos em contraposição aos fisiólógos – instaura-se uma outra noção de verdade e de lógos, e conseqüentemente a aspiração de uma outra dinâmica de realização pedagógica. Assistimos ao surgimento de uma paidéia filosófica que pretende negar e superar ao mesmo tempo a paidéia mítica. Não é por outro motivo que Platão expulsa de sua República os poetas. Na ótica socrático-platônica, a verdade se alcança por via metódica. No caso de Sócrates, pelo método maiêutico; em Platão, pelo método dialético; e, em Aristóteles, pela lógica, entendida como um conjunto de regras abstratas a serviço do exercício de um pensamento que se supõe “correto”. Lógos deixa de ser a colheita de sentido em diálogo com a natureza (phýsis) e se torna o juízo humano epistemologicamente municiado. Epistemologia, a ciência do saber correto, reporta-se originariamente a epístasis, que quer dizer a ação de assumir a postura adequada para se defrontar com as coisaspostura esta que, na pedagogia socrático-platônica, passa a ser a metodológica. A separação da phýsis em dois mundos, o mundo inteligível e o mundo sensível, vai embasar a meta da paidéia filosófica, que passa a ser a de buscar a verdade das essências inteligíveis, cuja idéia suprema, como está estampado na República, seria a do Belo e do Bem. A verdade deixa de ser des-ocultamento, des-velamento, para ser orthótes, conhecimento correto e universalmente válido. Esta pretensão de correção e universalidade é possível porque, de antemão, a phýsis foi separada em dois mundos. O mundo dito sensível é tomado como falso, e o mundo dito inteligível é tomado como a essência da realidade, aquilo que permanece face à deveniência e à mutabilidade das coisas. A idéia platônica, apriorística e abstratamente concebida, constitui o prius, o próteron, o primeiro, o ser que está para além (metà) da phýsis, e que por isso é metafísico. Nasce, assim, a tradição metafísica ocidental que instaura o modelo paradigmático da paidéia filosófica. Com base no conhecimento apriorístico das essências inteligíveis, assiste-se à transformação do lógos em razão abstrata. É esta razão abstrata que se encontra na origem da técnica e da objectualização da vida, da natureza e da linguagem que tanto ameaçam o homem contemporâneo. É ela também quem instaura a dicotomia em que ainda hoje transitamos, expressa nas contraposições antagônicas entre corpo e alma, forma e conteúdo, falso e verdadeiro, e, modernamente, a partir de Descartes, também entre sujeito e objeto.

            Neste momento da história da Hélade, em que se decidiam os rumos do Ocidente, houve uma paidéia que se contrapôs à filosófica. Estamos falando da paidéia poética dos tragediógrafos. Ela não se baseava no estabelecimento de um conhecimento abstrato, e sim dirigido à concretude da existência humana. Diferentemente da paidéia filosófica, que pretende educar e doutrinar o homem a partir de uma razão abstrata, a paidéia trágico-poética se apresenta como um saber feito de vida, não de esquemas metodológicos como são a dialética platônica, a lógica aristotélica e o método analítico cartesiano. O sentido desta formação trágico-poética do homem é aquele que fora pronunciado no Agamenon por Ésquilo (séc. V a.C.): páthei máthos (verso 212).

Máthos, ligado a máthema, quer dizer originalmente aprendizagem, conhecimento, mas não exclusivamente conhecimento lógico. Esta acepção se afirmaria depois de se impor a tradição metafísica, vindo a designar a matemática como a ciência abstrata por excelência. Páthos, freqüentemente traduzido por sofrimento, quer dizer de modo mais amplo aquilo que se experimenta e agita a alma, tanto sentimentos como paixão, prazer e amor, quanto mágoa, tristeza, cólera. O aprendizado pela experiência, pelo sofrimento, pela paixão é aquele que se dirige ao homem integral, o qual pode até se utilizar da razão, mas é antes de tudo constituído de sentimentos e volição. Por reconhecer que o homem é formado por um plexo de pulsões, a paidéia trágico-poética entende que não é suficiente educá-lo com base em uma razão lógico-abstrata. Esta pode servir para fazer cálculos: resolver problemas matemáticos, construir pontes, levantar edifícios. Mas o homem é também aquele que contraria todos os cálculos: destrói pontes e edifícios – destrói até a si mesmo –, faz arte e faz guerra, ama e desama, se levanta, cai e torna a se levantar... O alcoólatra que sacrifica sua vida no altar da bebida acaso não sabe, racionalmente, que está se matando? O que falta a ele é o fortalecimento da vontade de não mais se prejudicar. Os sentimentos e as paixões, que podem conduzir ao êxtase, mas também a regiões autodestrutivas – são uma “escolha” do homem, são fruto de sua deliberação racional? É ele quem “decide” possuir o desejo ou é por este possuído? O humano, como ser vivente, é um dos entes gerados pela phýsis: é ela quem originariamente tem o desejo, o qual, por assim dizer, traspassa-o. Por isso, o homem tem sua verdadeira aprendizagem nas dimensões emocional e volitiva, não em bases puramente lógicas, que se dirigiriam a um homem abstrato, jamais ao de “carne y hueso” – este que, nos dizeres de Miguel de Unamuno, “nasce, sufre y muere – sobre todo muere –, el que come y bebe y juega y duerme y piensa y quiere, el hombre que se ve y a quien se oye, el hermano, el verdadero hermano”.[3] A razão abstrata (ratio) pode servir para produzir instrumentos, não para conduzir o homem concreto nos sempre tortuosos caminhos da vida. Afirma o autor espanhol:

 

      El hombre, dicen, es um animal racional. No por qué no se haya dicho que es um animal afectivo o sentimental. Y acaso lo que de los demás animales le diferencia sea más el sentimiento que no la razón. Más veces he visto razonar a uma gato que no reír o llorar. Acaso llore o ría por dentro, pero por dentro acaso también el cangrejo resuelva ecuaciones de segundo grado.[4]

 

            No aprendizado pela experiência do sofrimento (páthei máthos), propugnado por Ésquilo, e que condensa o sentido da paidéia trágico-poética, encontra-se a reflexão sobre o não-ser, sobre o nada e a finitude que subjazem ao homem e a todas as coisas. É o que sustenta Gadamer:

 

         Esta fórmula não significa somente que nos tornamos inteligentes através do dano e que somente no engano e na decepção chegamos a conhecer mais adequadamente as coisas. Assim compreendida a fórmula deveria ser tão velha como a própria experiência humana. Porém Ésquilo pensa mais do que isso. Refere-se à razão pela qual isto é assim. O que o homem deve aprender pelo sofrer não é isto ou aquilo, mas a percepção dos limites de ser homem, a compreensão de que as barreiras que nos separam do divino não podem ser superadas. No último extremo, é um conhecimento religioso aquele conhecimento a partir donde se dá a origem da tragédia grega.[5]

 

            De fato, a tradição metafísica inaugurada por Sócrates e Platão instaurou um otimismo na razão estranho ao universo da tragédia grega. Como diz Nietzsche, em O nascimento da tragédia, as máximas socráticas “virtude é saber; se peca por ignorância; e o virtuoso é o mais felizsão as três fórmulas básicas em que reside a morte do saber trágico que se expressa no páthei máthos.[6] No magistério socrático, o homem estaria sujeito a eventos funestos ou cometeria equívocos ao longo da vida por ignorância a respeito da idéa, identificada com o Bem metafísico. Se o homem soubesse o que constitui o Bem em si, não erraria, nem sofreria. O meio de chegar a esse conhecimento seria o exercício da dialética.

            A tragédia grega, ao contrário, reflete sobre a finitude do homem em contraposição ao símbolo de imortalidade representado pelos deuses. Como diz Píndaro,

 

Uma é a raça dos deuses e do homem:

A mesma mãe natureza nos deu a respiração.

Contudo, o que nos diferencia são os nossos poderes,

Porque eles têm no brônzeo céu a sua eterna morada,

Enquanto que nós não somos nada. [7]

 

            O sofrimento ou os erros humanos não acontecem por falta de dialética. O desfecho trágico que se abateu, por exemplo, sobre Antígona, a qual teve sacrificar a própria vida para não deixar seu irmão Polinices insepulto, pode ser considerado como decorrente de falta de dialética ou de virtude? Seu erro – se algum erro cometeu – foi antes o excesso de virtude, e a dialética jamais a teria livrado da auto-imolação: como personagem trágica que é, ela se dispôs a enfrentar a morte não por considerações de ordem lógico-racional, e sim porque se sentia vinculada a um compromisso de maior valor do que sua própria vida.

            Através da aprendizagem pela experiência e pelo sofrimento, ao homem é dado conhecer o fatum trágico que governa tudo o que existe, a finitude que a todas as coisas subjaz, inclusive a ele, um ente entre outros entes.

            A saga edipiana, encenada por Sófocles, não é, assim, uma mera veiculação ou cópia dos mitos homéricos. Ao contrário, ela consigna a posição de uma paidéia trágico-poética que se abebera e dialoga com a memória mítica de uma coletividade, recriando-a artisticamente. Com esta recriação artística, a paidéia trágico-poética contrapõe-se, em um momento absolutamente crítico para os rumos que o Ocidente viria a tomar, à paidéia filosófica instauradora da tradição metafísica em que ainda hoje transitamos.

 

b)      O sentido ontológico da tragédia edipiana

 

 

            Em meio à célebre galeria de personagens integrantes da tragediografia Ática, uma há cuja saga desponta como espécie de suma trágica entre as demais: Édipo, pertencente à estirpe amaldiçoada dos labdácidas, a criança abandonada no monte Citéron para que não se cumprisse o vaticínio do oráculo de Apolo; Édipo, o jovem e glorioso rei tebano destruidor da Esfinge, célebre decifrador de enigmas; Édipo, o cego e mendicante ancião que deverá finalmente descansar de tanta desdita no bosque em Colono consagrado às Fúrias, divindades vingadoras das iniqüidades cometidas em família.

            Muito embora afirme Nietzsche que se trata da mais dolorosa figura do palco grego8, nem tanto pela extensão de sua penúria o Édipo de Sófocles, delineado nas peças Édipo Rei e Édipo em Colono, pode ser considerado a personagem trágica por excelência. Afinal, outras encontraram na pena dos tragediógrafos vicissitudes equivalentes, senão ainda mais cruentas.

            Em verdade, cotejando-se o destino (moira)9 das demais figuras da tragediografia com o de Édipo, há, nele, um caráter que lhe é totalmente peculiar: trata-se de seu desconhecimento a respeito da natureza dos atos que lhe trazem a perdição, como decorrência de ignorar suas próprias origens

            Quando Édipo vem ao mundo, pesa sobre ele o vaticínio de que mataria o pai e desposaria a mãe, monarcas de Tebas. Seus pais, então, o entregam a um pastor, para ser exterminado, mas este, movido por piedade, desvencilha-se da criança, dando-a a um habitante de Corinto. Será então Édipo adotado pelos monarcas desta cidade, Pôlibo e Mérope, os quais ele supõe serem seus pais naturais. Na juventude, ao ser-lhe revelado o vaticínio de Apolo, foge de Corinto para que não se cumpra a predição. Na fuga da cidade, na encruzilhada de uma estrada, assassina os membros de uma comitiva, dentre eles Laio, respondendo a um desacato que sofrera. Posteriormente, num desfiladeiro perto de Tebas, decifra o enigma da Esfinge, libertando toda uma cidade do terrível jugo do fabuloso monstro devorador de carne humana, “com cabeça e busto de mulher, corpo de leoa, cauda em forma de serpente, asas de ave, garras de leoa e voz humana10 , o que lhe outorga o trono vago pela morte do rei e o leito nupcial da rainha viúva, Jocasta. Quando rei em Tebas, muitos anos após ter cometido o parricídio e estar desposado com a própria mãe, sem o saber – desencadear-se-á a peste, e então Édipo se lançará, na condição de chefe de Estado e grande decifrador de enigmas, à tarefa de descobrir a identidade do responsável pelas iniqüidades que maculam o solo tebano.

            Por tais circunstâncias o caráter trágico em Édipo obedece a parâmetros totalmente específicos em relação às demais figuras da tragediografia: a personagem desconhece de onde vem, assim como não possui nenhum indício, até o instante do desencadeamento da peste e o começo da investigação de suas razões, que lhe permita desconfiar de sua identidade.

            Entretanto, no que tange a Édipo, é certo que a partir de um dado momento da investigação sobre quem seria o causador da peste em Tebas, ele passa a ser vivamente dissuadido de continuá-la por Jocasta, todavia o rei mostra-se cada vez mais obstinado.

            E não somente a rainha tenta demovê-lo, quando começa a intuir a terrível revelação e desfecho: também o cego Tirésias, “o vate guiado pelos deuses”, ciente de que Édipo é o causador da peste, prefere calar-se, mas é impedido e acusado de conspirar contra o rei juntamente com Creonte, o irmão de Jocasta. O mesmo se passa com o pastor que lhe poupara a vida quando criança, o qual se verá constrangido, sob ameaça, a anunciar-lhe a identidade, ainda que tentasse sem sucesso omitir a dolorosa notícia, até o fim, por meio de sucessivas respostas evasivas.

            Esta obstinação edipiana seria um dos aspectos de sua hýbris (“desmedida”)11, e como tal tem participação direta no pungente desfecho de Édipo Rei, quando Jocasta se enforca e Édipo fura os próprios olhos, ao finalmente ser-lhe revelada a sua identidade.                    Em se falando de Édipo, no entanto, nãoque se confundir a projeção do caráter psicológico da personagem sobre a trágica revelação de sua identidadeum dos modos pelos quais se opera a sua hýbriscom os atos (o assassinato do pai e o esposamento da mãe) por ele anteriormente praticados, no mais completo desconhecimento.                   

            É bem verdade que Édipo se erige na condição de quem pretende uma onisciência sobre todos os acontecimentos, tal como Apolo em sua previsão oracular. Mas a ele não se pode imputar responsabilidade por seus atos, a não ser na “desmedida” de se supor aquele que pode decifrar todos os enigmas – e a vitória sobre a Esfinge é o exemplo mais veemente disso.          

            Como frisa Françoise Dastur, é esse excesso de procura de quem ele é, esse excesso de interpretação na busca de se apropriar do seu próprio destino, que, ao cabo, lança seu espírito abaixo do espírito de seus servidores, e destitui o rei Édipo.12

            Mas, porquanto não pratique os atos que lhe condenam de modo voluntário, diferentemente, por exemplo, de Antígona, Édipo não encena propriamente a tragédia da vontade, muito embora ela também esteja presente no afã especulativo da personagem. Édipo encena a tragédia ontológica, a tragédia da revelação de sua própria origem.   

            O fato dos atos que viria a praticar, em desconhecimento, estarem vaticinados pelo oráculo délfico, bem como Édipo ignorar suas origenspor isso inocente em relação àquelas ações – e ainda assim sobre ele se abater tão violenta desgraça quando se descobre parricida e incestuoso, força-nos a indagar sobre o significado da áte (“culpa”)13 edipiana e o sentido de sua expiação.

            No âmbito da configuração desta áte, poderíamos nos perguntar: se o oráculo prediz, e a maldição se cumpre, estará Sófocles a articular uma visão determinista da vida humana? Serão suas personagens meros títeres de um destino previamente traçado por divindades impiedosas? De que modo se articula a predição oracular e a expiação edipiana? Qual o significado da ignorância de Édipo a respeito de suas raízes?

            A trajetória de Édipo como herói trágico pode ser expressa em termos de uma dolorosa saga de individuação, mediante a qual ele deve “tornar-se o que é”, ou seja, um cego, arrancando os próprios olhos e fazendo-se guiar nas trevas pelas filhas, em Édipo em Colono. É a encenação desta metamorfose trágico-dionisíaca, do “ser que é e não é”, por isso a própria deveniência, a própria expressão da unidade entre perecimento e nascimento, quem fala com mais veemência da constituição aporética do “ser” edipiano: ele é o que tudo sabe, mas não sabe de si mesmo; ele é o que procura o “criminoso” tentando salvar a pólis, mas ele é o própriocriminosoque desencadeia a peste; ele é a personificação de um afã decifrador, mas, por ironia, ele é o próprio enigma; ele é o que se guiava pela luz excessiva, e agora terá de caminhar na mais profunda treva para se descobrir.

            O vaticínio oracular de Apolo sobre seu destino é a expressão e a interpretação deste desequilíbrio originário, desta necessidade de expiação pelo sofrimento para que se revele a Édipo o seu ser, ou seja, quem ele realmente é.

            Neste sentido é que o páthos dionisíaco da individuação e metamorfose se faz presente como processo de purgação e aprendizagem. Édipo desvenda o conhecido enigma esfíngico (“Que animal anda com quatro pés de manhã, dois ao meio dia, e três à tarde?”) de modo abstrato e puramente intelectivo. Responde ele que é o homem, como gênero, mas desconhece o homem concreto, a começar por si mesmo: sabe das raízes de todos os homens na sujeição do decurso temporal, mas desconhece seus própriospés”, as raízes de sua existênciaOidípous14 , “o de pés inchados”, atado pelos pés quando criança, como uma rês a ser abatida, para que não se cumprisse a predição do oráculo. É no aprendizado passional e concreto, pelo sofrimento (páthei máthos) – um gnóthi seautón15 por via patéticaque, tal como o deus que morre para renascer, a Édipo será dado conhecer-se em sua constituição ontológica

            Por isso é que não se há de falar em determinismo quanto à previsão oracular. Apolo não tem uma função cibernética na saga edipiana, tal como um ventríloquo que falasse e agisse por intermédio de seu fantoche. Schelling chega a considerar, bem ao contrário, que a destruição do herói trágico é o símbolo grandioso através do qual emerge a liberdade humana.16 Como afirma Kitto, reportando-se ao Édipo Rei, Sófocles não tenta fazer-nos sentir que um destino inexorável ou um deus maligno está a conduzir os acontecimentos. Mas faz-nos sentir, como em Electra, que a ação está em movimento, ao mesmo tempo num plano paralelo e mais elevado.17

            Se a personagem pratica os atos condenatórios para seu destino em desconhecimento, por outro lado, sem que incorresse na hýbris não poderia operar-se o cruel desfecho de Édipo Rei: o protagonista, como personagem trágica, arquetípica e ideal, desde o momento em que lhe é revelado, ainda em Corinto, o vaticínio, não fugirá ao imperativo de a ele contrapor sua vontade de controle sobre seu próprio destino. E este é o ponto em que a previsão oracular e o sentido ontológico da expiação edipiana se comunicam: o “plano paralelo e mais elevadoem que se desenvolve a ação trágica se faz determinar pela violação da díke por parte de Édipo.

            Díke não pode ser traduzida porjustiça” (jus) senão defeituosa e redutoramente, porque esta noção está centrada no fator de retribuição moral. Em Antígona, ainda estaríamos numa parte da díke que coincide com o sentido de justiça moral, pois se, ao final da peça, Creonte é condenado por seus atos, é porque ele viola deliberadamente a díke expressa na lei não-escrita, que obriga os vivos ao cuidado fúnebre. Mas em Édipo, que justiça poderia haver na expiação de alguém que desconhecia a natureza dos atos que praticou?

            Em face dos atos praticados por Édipo na mais completa inocência, de nada importa se é “justoou não que ele tenha de expiá-los. Esta retributividade é a díke, não a justiça. Ainda que Édipo não soubesse o que estava fazendo, assim mesmo cometeu a adikía.

            Muito embora isto ofenda o sentido comum de justiça, assim é a verdadeira face da experiência vital de todos os homens: atos que praticamos inocentemente ou não podem ter suas conseqüências funestas. Este é o momento no qual a vida volta a sua face que chamaríamos de cruel, e como tal, constitui a própria matéria prima da tragediografia.

            E é próprio da díke que alguém que constitui um enigma tenha de se decifrar, assim como também é próprio da mesma díke que alguém que desconheça suas origens possa praticar atos que lhe tragam a perdição, possa incorrer na hamartía (erro).

            Esta é a razão pela qual a áte edipiana, muito embora tenha conotações morais pelo parricídio e incesto, não é originariamente um assunto concernente à moralidade: trata-se da encenação da saga humana e da totalidade das coisas, ambas governadas simultaneamente pela díke.

            Na operacionalidade da díke acha-se figurado um lógos que rege o mundo natural (phýsis) e humano, e que é a própria determinação do “plano paralelo e mais elevadocom o qual se comunica a tragédia edipiana.

            Tal qual se passa na cosmovisão dos pensadores originários, em que os universos humano e natural não estão separados, a díke não precisa ser necessariamente moral, mas expressa uma ordem cósmica que, uma vez violada, exigirá a sua reparação. A idéia central deste lógos, e que se faz presente no processo gnosio-metamórfico edipiano, é a de que o tempo vinga (Kronos dikáxei) seu desequilíbrio. Pois se Édipo é o próprio erro ontológico; se ele, que constitui o primeiro enigma, é também aquele que tudo quer controlar e decifrar, a começar por si mesmo e seu próprio destino, pode estar fadado a encontrar-se na ímpia solidão de sua própria ignorância, ainda que inocente em relação aos atos que lhe ocasionam a ruína.

            Édipo, por via de seu trânsito metamórfico, deve expiar o desequilíbrio ontológico originador de seus atos, porque o lógos que rege as coisas, o mundo natural e humano, vive em um jogo tensional e complementar de contrários.

            Assim como o protagonista, no seu doloroso processo de individuação, não era quem se supunha; assim como não podia continuar guiando-se somente pela luz excessiva de seu ímpeto decifrador, devendo aprender a caminhar pelas trevas; assim como a “verdadeque responderia a sua enigmática origem não se decifraria de modo puramente intelectual e abstrato, mas na patética (páthos) concretude de sua revelação ontológica (alétheia) –, do mesmo modo a dimensão ontológica das coisas obedece àquele lógos que é permanente deveniência. A existência humana e a natureza falam empírica e veementemente a linguagem da unidade e complementaridade de contrários, expressa na ordem trágico-dionisíaca do mundo: luz e treva; amor e ódio; alegria e tristeza; bem e mal; vida e morte. Nem se saberia o que cada um desses elementos significa se o seu contrário não o dimensionasse. Como testemunha-nos Heráclito:

 

   O mesmo é vivo e morto, vivendo-morrendo a vigília e o sono, tanto novo como velho: pois estes se alterando são aqueles e aqueles se modificando são estes.18

 

            E aqui reside a razão pela qual a adikía edipiana, por ferir uma ordem cósmica, não é um problema somente seu: o cosmos acha-se conflagrado. Na verdade, Édipo não é o único a sofrer na peça. Toda uma cidade tem a sua Sorte em xeque. A pestecomo fenômeno de ligação das esferas celestial e terrena – devasta Tebas e seus habitantes, e o corpo social se putrefaz pela áte do monarca.

            A reestruturação da díke como fenômeno cósmico acha-se encenada, no conjunto das duas obras enfocadas, na contraposição entre as divindades solar (Apolo) e das trevas (Fúrias). Em Édipo Rei, Apolo preside a tragédia, a exigir do protagonista a reparação da díke; em Édipo em Colono, o cego ancião será recebido no bosque consagrado às Eumênides19, que acolherão o sofredor no seio da natureza. Édipo, que no auge de sua glória se fazia com orgulho somente guiar pela luz, como o próprio Apolo, e que após cegar-se cumpre seu périplo de expiação, purga-se da adikía reintegrando-se ao lógos cósmico.

            Luz e treva irmanar-se-ão na trajetória edipiana entrelaçando a esfera transcendente (divina) e terrena (humana): este é o teor simbólico contido no fato de que Édipo, uma vez acolhido no bosque consagrado às Eumênides, na localidade de Colono, próxima à Atenas, sirva de oferenda e proteção a esta cidade contra os ataques estrangeiros.

            Édipo em Colono tem sido amiúde considerada pela crítica uma peça de menor contrição cênica do que Édipo Rei, pois seu desfecho não é o da dor lancinante, mas o da reconciliação do protagonista com a ordem trágico-dionisíaca da realidade. Todavia, somente uma leitura compartimentalizada e redutora não levará em conta que ambas são complementares, e, como tais, na tentativa de compreensão da construção de real que projetam, devem ser interpretadas simultaneamente. Édipo em Colono foi encenada pela primeira vez em Atenas, em 401 a.C., postumamente, vinte e quatro anos após Édipo Rei, e constitui a última tragédia de Sófocles, escrita quando contava com mais de noventa anos. Razão pela qual nesta derradeira peça pode-se enxergar a expressão poética do fechamento de seu ciclo existencial, poeticamente forjando sua extrema hora metamórfica.

            Mais de dois mil anos nos separam do autor e da pequena mas grandiosa parte de sua obra que chegou até nossos dias. Por tal motivo, numa época como a nossa, onde a confiança extremada na razão analítica como fonte de todo conhecimentoverdadeiro” seduz o homem contemporâneo em seu afã de controle e manipulação das coisas – talvez a reflexão sobre a tragédia grega soe aos incautos como mera curiosidade arqueológica, quando não, aos “novos bárbaros”, como descabido anacronismo.

            Todavia, a considerar-se que as tentativas de compreensão não podem submeter-se a critérios exclusivamente cronológico-lineares, devendo fazer-se conduzir, em essência, por uma orientação axiológica, teremos na expressão teatral surgida no séc. V a.C., na Hélade, não somente um perene painel da existência humana e das relações do homem com o mundo, mas em especial um manancial inesgotável de elementos críticos sobre a própria contemporaneidade.

            O espaço de reflexão em que o presente se move constitui o desdobramento das questões que nos foram remotamente legadas. O mito trágico teatralizado se inscreve historicamente no embate entre uma mundivisão trágico-poética, de um lado, e um ímpeto de racionalização crescente na construção do real, de outro, representado pela filosofia socrático-platônica, ambas visões disputando a primazia no seio da cultura grega. A História da Filosofia nos conta de quem foi a vitória.     

            Por isso, em um mundo como o nosso, plenamente mergulhado na construção técnico-científica do real, não raro usurpadora da legitimidade de outras formas de conhecimento que não sejam a da ciência, e que confere à razão analítica ares de divinização ou o trono de que outrora Édipo se punha orgulhosamente a tudo decifrar –, estejamos atentos à reversão hierárquica brutal que, segundo Dastur, repousa no fundo da tragediografia:

 

A tragédia expõe o retorno categórico, quer dizer, a conversão do excesso especulativo (o homem quer ser deus) no excesso de submissão à finitude (o homem abandonado pelo deus). O que está em questão na tragédia é a impossibilidade do equilíbrio entre o humano e o divino. Quanto mais o divino se aproxima do homem, mais ele se afasta como divino; eis a armadilha da familiaridade e o perigo da captação especulativa. Quanto mais o divino se afasta do homem, mais ele se torna autenticamente divino, abandonando ainda mais o homem.20

 

Antônio Máximo Ferraz

Mestre em Teoria Literária pela Universidade de Brasília

Doutorando em Teoria Literária na Universidade Federal do Rio de Janeiro


 

[1] Este é o poema “Hyperions Schiksalslied”, que acima traduzimos: “Ihr wandelt droben im Licht / Auf weichem Boden, selige Genien! / Glänzende Götterlüfte / Rühren euch leicht, / Wie die Finger der Künstlerin / Heilig Saiten. / Schicksallos, wie der schlafende / Säugling, atmen die Himmlischen; / Keusch bewahrt / In bescheidener Knospe, / Blühet ewig / Ihnen der Geist, / Und die seligen Augen / Blicken in stiller / Ewiger Klarheit. / Doch uns ist gegeben, / Auf keiner Stätte zu ruhn, / Es schwinden, es fallen / Die leidenden Menschen / Blindlings von einer / Stunde zur andern, / Wie Wasser von Klippe / Zu Klippe geworfen, / Jahr lang ins Ungewisse hinab”.

[2] HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Tradução de Helena Cortés e Arturo Leyte. Madrid: Alianza Editorial, 2000 [on line]. [ http://personales.ciudad.com.ar/M_Heidegger/carta_humanismo.htm.].

[3] UNAMUNO, Miguel de. Del sentimiento trágico de la vida. Barcelona: Planeta - De Agostini, 1993, p. 7.

[4] Idem, p. 9.

[5] GADAMER, op. cit., p. 526.

[6] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 89.

[7] PÍNDARO (Pi.N., frag. 6.1-7). Fragmento da Sexta Neméia, intitulada ΑΛΚΙΜΙΔΑΙ ΑΙΓΙΝΗΤΗΙ ΠΑΙΔΙ ΠΑΛΑΙΣΤΗΙ (“Para Alcimida menino egineta pugilista”). A ode foi composta por ocasião da vitória do garoto Alcimida nos Jogos Nemeus, modalidade de pugilismo para meninos. Alcimida, nascido em Egina, uma das ilhas mais próximas de Atenas, junto com Salamina –, pertencia à importante família dos Bassidas, considerada uma das mais antigas. Referências ao nome de seu treinador, o famoso Milésias, leva os estudiosos a considerarem a ode escrita por volta de 460 a.C. A ode inteira ressalta as vitórias e as derrotas da família. Daí, em sua primeira estrofe, Píndaro fazer alusão à diferença entre os mortais e os imortais, embora ambos tenham uma origem comum. Este é o texto original do fragmento citado:

ν νδρν,
ν θεν γνος· κ μις δ πνομεν
ματρ
ς μφτεροι· διερ-
γει δ
πσα κεκριμνα
δ
ναμις, ς τ μν οδν, δ
χ
λκεος σφαλς αἰὲν δος
μ
νει ορανς.

8 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Tradução de J. Guinsbourg. São Paulo: Cia. da Letras, 1992, p. 64.

9 moira :“quinhão”, “fração”. Designa não somente parte de alguma coisa, como a de um teritório ou de um corpo de tropas, como também a parte que cabe a cada um na distribuição da Sorte, a parte justa consoante o merecimento, ou seja, aquilo que se recebe de acordo com os atos praticados, o que difere da noção de “destino”, vazada de determinismo. A palavra é oriunda de Moira, deusa da desgraça e da morte. No texto, esta e as demais palavras gregas serão transliteradas para caracteres latinos.

10 SÓFOCLES. A trilogia tebana. Tradução de Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 97.

11 hýbris: “desmedida”, “orgulho”, “impetuosidade”, “fogosidade”; pode significar também ultraje e até mesmo a violação de mulher ou criança.

12 DASTUR, Françoise. “Hölderlin, Tragédia e Modernidade”. In Hölderlin, Reflexões. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 196.

13 áte: “culpa”, “castigo”, “falta”, mas tambémcrime”, “mentira”, “ruína”, “desgraça”. Provém o termo da deusa do mal e da vingança, Áte.

14 Nome composto pelos termos oidao (inchaço) e pous (pés).

15 “Conhece-te a ti mesmo”, lema e meta última da filosofia socrática.

16 Comentando a personagem de Édipo, sustenta Schelling: “Muitas vezes se perguntou como a razão grega podia suportar as contradições de sua tragédia. Um mortal, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, lutando contra a fatalidade e no entanto terrivelmente castigado pelo crime que foi obra do destino! O fundamento dessa contradição, aquilo que a tornava suportável, encontrava-se em um nível mais profundo do que onde a procuraram, encontrava-se no conflito da liberdade humana com o poder do mundo objetivo, em que o mortal, sendo aquele poder um poder superior um fatum –, tinha necessariamente que sucumbir, e, no entanto, por não ter sucumbido sem luta, precisava ser punido por sua própria derrota. O fato de o criminoso ser punido, apesar de ter tão-somente sucumbido ao poder superior do destino, era um reconhecimento da liberdade humana, uma honra concedida à liberdade. A tragédia grega honrava a liberdade humana ao fazer seu herói lutar contra o poder superior do destino: para não ultrapassar os limites da arte, tinha de fazê-lo sucumbir, mas, para também reparar essa humilhação da liberdade humana imposta pela arte, tinha de fazê-lo expiar mesmo que através do crime perpetrado pelo destino... Foi grande pensamento suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, a fim de, pela perda da própria liberdade, provar justamente essa liberdade e perecer com uma declaração de vontade livre”. (F.W.J. Schelling, Briefe über Dogmatismus und Kritizismus [Cartas sobre dogmatismo e criticismo], apud SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 29.

17 KITTO, H. D. F. A Tragédia Grega. Col. Stadium. Tradução de José Manuel Coutinho e Castro. Coimbra: Armênio Amado - Editor, 1972, p. 255-256.

18 Heráclito de Éfeso. (DIELS, Herman. Fragmento nº 88) in Os pensadores originários. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1991.p. 83.

19 As Fúrias ou Erínies (Tisífone, Megera e Alecto), cujo nome se evitava pronunciar, eram por antífrase também chamadas de Eumênides (benévolas).

20 DASTUR, Françoise. Op. cit., p. 195.


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