O Apolíneo e o Dionisíaco na Dança Contemporânea

Quando as forças da natureza se encontram em Isadora Duncan

 

Anna Paula Lemos – Mestranda em Literatura Comparada – UFRJ.

 

1. Introdução:

“... na dança a força máxima é apenas potencial,

traindo-se, porém, na flexibilidade

e na exuberância do movimento”.

 

F. Nietzsche – O Nascimento da Tragédia – p.63

 

O Nascimento da Tragédia de Friedrich Nietzsche ajudou a desencadear uma discussão histórica e fértil para a dança contemporânea. A bailarina americana Isadora Duncan – que tinha em Nietzsche sua leitura de cabeceira – encontrou, no final do séc. XIX e início do séc. XX, em “Assim falou Zaratustra” e em “O Nascimento da Tragédia” pontos inspiradores para o desenvolvimento da dança contemporânea à qual é uma das precursoras. Vamos nos ater, no entanto, a este último – O Nascimento da Tragédia.

Diz Nietzsche: “... algo jamais experimentado empenha-se a se exteriorizar... um novo mundo de símbolos se faz necessário, todo o simbolismo corporal, não apenas o simbolismo dos lábios, dos semblantes, das palavras, mas o conjunto inteiro, todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos. Então crescem as outras forças simbólicas, as da música, em súbita impetuosidade, na rítmica, na dinâmica e na harmonia. Para captar esse desencadeamento simultâneo de todas as forças simbólicas, o homem já deve ter arribado ao nível do desprendimento de si próprio que deseja exprimir-se simbolicamente naquelas forças...” (p.35).

Entre os artistas da dança, mesmo quando existe a opção pelo apolíneo – que arrisco citar a dança clássica – ou a opção pelo dionisíaco, tentativa contínua da dança contemporânea a partir de Isadora Duncan, existe, nesta expressão artística, a consciência da complementaridade dos dois instintos.  

“... ao grego apolíneo ... toda a sua existência, com toda beleza e comedimento, repousava sobre um encoberto substrato de sofrimento e conhecimento, que lhe era de novo revelado através daquele elemento dionisíaco. E vede! Apolo não podia viver sem Dionísio!” (O Nascimento da Tragédia - p.41)

 

Ou seja, nem de um lado as puras formas, nem de outro as puras forças.

 

A dança contemporânea, objeto deste ensaio, revela-se, no entanto, prioritariamente dionisíaca no sentido da abstração, de esvaziar o movimento de significado expressivo, construindo um plano de imanência em que a dança é o próprio movimento do sentido.

 

"Se eu pudesse dizer a você o que desejo transmitir, não haveria necessidade de dançar." – Isadora Duncan.

 

Então, as questões que eu proponho ainda que rapidamente aqui é: como é que o bailarino contemporâneo dança no “interior do seu corpo”, tornando-o – o corpo - um “meio” de onde se ausentou toda a estranheza? E a música? Qual o papel da música no ballet clássico e no contemporâneo? E ainda: Isadora Duncan e o “plexo solar”.

 

2. O Clássico e o Contemporâneo:

Foi da dança-de-salão criada pelas cortes renascentistas italianas e francesas que se desenvolveu o ballet clássico. Era através da dança-de-salão que a nobreza se exibia socialmente, conservando todo o seu aparato hierárquico. O pensamento racionalista renascentista traduziu-se na estruturação  de regras fixas de passos subordinados à música e ao desenho geométrico do espaço, que resultaram no aparecimento do ballet.

A dança clássica é, portanto, calcada nas formas geométricas – segundo Isadora Duncan – masculinas, dançada nas pontas dos pés e direcionada absolutamente pelo compasso musical. Por essa ótica, podemos identificar na dança clássica características das forças apolíneas, que segundo Nietzsche, são o “ingênuo na arte”, a necessidade da valorização do estético, do sonho, da aparência.

“... poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplêndida imagem divina do principium individuationis [contraponto do uno primordial], a partir de cujos gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da ´aparência`, juntamente com a sua beleza [estética]”. (O Nascimento da Tragédia – p.30).

O ballet é, portanto, uma dança racionalista, mecânica e, isso explica a insatisfação dos simbolistas com o que se via como dança. O símbolo considerado como elemento fundamental da fala humana e, originalmente, associado aos instintos religiosos primitivos assume sua função máxima no final do século. O objetivo era de vincular as partes ao Todo-Universal que devolveria a elas seu verdadeiro sentido. Como o ballet clássico não possuísse esse caráter simbólico transcendente porque é a personificação do poder terreno, do estado moderno, o que se considerou solução para o problema veio na criação da dança moderna. Uma nova concepção corporal nasceu fora  dos meios acadêmicos na França através da pesquisa de Del Sart (1811/1971). O estudo partiu da observação dos gestos cotidianos, cuja teoria espalhou-se pela Europa e Estados Unidos atingindo profissionais de diversas áreas como oradores, atores e cantores que buscavam uma maior participação do corpo no processo expressivo. Segundo ele, os princípios de concentração e relaxamento, assim como os movimentos de contração e expansão, são diretamente vinculados ao trabalho respiratório. E, independentemente da técnica utilizada, observa que a respiração influencia sempre na movimentação. Para Delsarte, todo homem passa a ser artista do movimento a partir do momento em que ele existe. Com essas modificações na concepção de movimento, a dança passa a ser universal, criada pelo e para o indivíduo, a partir de seus princípios mais verdadeiros.
 

2. Isadora Duncan, uma das precursoras:

 

Ângela Isadora Duncan nascida em 1877, em San Francisco, Califórnia, começou a dançar ballet ainda criança, e aos 15 anos, já ensinava danças de salão.  Chegou a escrever mais tarde: "eu sou inimiga do Ballet, o qual considero arte falsa e absurda, que de fato está fora de todo o âmbito da arte". Isto por não ser de maneira alguma natural, exigindo um "esqueleto deformado" e "movimentos estéreis, cujo propósito é causar a ilusão de que a lei da gravidade não existe para eles". Neste ponto, Isadora radicaliza. Uma radicalização neste momento “necessária” para o rompante da inovação.

Foram três as fontes de busca de Isadora pela origem da dança: a Natureza, a Grécia Antiga e dentro de si mesma. Acabou encontrando o plexo solar, fonte e origem de todo o movimento, algo muito diferente do que ensinavam as academias de Ballet.

Em Londres, em 1900 ela encontrou um grupo de artistas e críticos - onde faziam parte o pintor Charles Halle e o crítico musical John Fuller-Maitland - que a iniciou na arte grega, no Renascimento italiano, e nas grandes sinfonias. Durante este período, ele a convenceu a usar a música de Chopin e Beethoven como inspiração.  

Sua obsessão pela Grécia e fascínio pela renascença eram muito coerentes. Um dos traços principais do renascimento era o retorno dos clássicos e da era dourada - a antiguidade; Platão, por exemplo, foi redescoberto neste período.  

Isadora representou uma verdadeira revolução também dos costumes: as mulheres da época eram literalmente amarradas em diversas camadas de roupas. Ela libertou-se radicalmente das sapatilhas, dançando descalça. Isadora era, para sua sociedade, a própria imagem da liberdade. Apesar de ironicamente suas danças exalarem um puritanismo pagão. Mesmo com origens renascentistas e gregas que remetiam aos cultos dionisíacos e transes extáticos.

Foi na Alemanha que Isadora conheceu a filosofia de Nietzsche, e incorporou esta filosofia à sua dança. Em 1903, em Berlim, ela fez um discurso sobre "A Dança do Futuro", onde  argumentou que esta deveria ser parecida com a dança da Grécia Antiga: livre e natural. É neste período que ela começa sua busca pela "Natural dance" procurando, principalmente, os movimentos naturais do corpo humano.

Em 1904, formou em Berlim seu famoso grupo, Isadorables.

Isadora inaugurou escolas na Alemanha, França e Rússia. Foi a primeira dançarina americana a utilizar os conceitos de "respiração natural", que ela identificava com as ondas do mar. E baseada neste movimento natural do corpo humano, comparou-a com outras artes, inclusive a filosofia. 

 

 

3. O Gesto, a dança, a “natural dance”:

“Há quase trinta anos, o antropólogo Gordon Hewes (1973) argumentou que o corpo não é mudo e que a linguagem está baseada na estrutura cognitiva inata ao gesto. O movimento é a nossa língua natal e nosso pensamento primordial (...) Os bebês, por exemplo, prestam atenção ao movimento e antecipam o que acontecerá, como no jogo de esconde-esconde. (...) Com gestos, crianças cegas transmitem a adultos que podem enxergar informações concretas que não estavam contidas em nenhum ponto de seu discurso. Além disso, nos casos em que a fala e o gesto transmitem informações diferentes, os pesquisadores perceberam que o gesto tem o papel mais importante na mensagem recebida pelos ouvintes. Gestos que transmitem uma mensagem diferente diminuem a capacidade do ouvinte de entender a mensagem falada.”[1]

Segundo Maurice Merleau-Ponty em Fenomenologia da percepção, esses são momentos em que “o corpo proporciona a comunicação com as coisas”. Mas quando é e por que é que gestos comuns se transformam em gestos dançados?

            Baseada no conceito de uno-primordial[2] de Nietzsche, Isadora Duncan acredita que o bailarino deve dançar “naturalmente”, com movimentos livres que encontrem na música uma moldura para o que vem de “dentro para fora”. O corpo e o espírito é que interagem e moldam a música e não há uma coreografia ritmada e pré-estabelecida. Diz Isadora Duncan que essa é a busca da força dionisíaca na dança através da expansão do plexo solar. Com a expansão e contração do tronco, o corpo se expressa como um todo.  

Em O olho e o espírito, Maurice Merleau-Ponty fala do pintor e sua arte, mas os fundamentos de sua teoria podem muito bem ser aplicados à dança de Isadora Duncan – “... o universo da experiência perceptiva é um campo aberto e o corpo um espelho no qual flutuam continuamente os aspectos das coisas... essa transformação das coisas em espetáculos e dos espetáculos em coisas; essa flutuabilidade e reflexibilidade do sensível formam uma operação inerente ao corpo”. Ainda em o olho e o espírito: “... creio que o pintor deve ser traspassado pelo universo, e não querer traspassá-lo... Aguardo ser interiormente submergido, sepultado. Pinto, talvez, para ressurgir”. No que se refere ao bailarino, é esta a proposta de Isadora.

Disse ela em sua autobiografia: “Digo por sorte, pensando em mim, porque certamente eu devo a essa vida sem limites, livre, da minha infância a inspiração da dança que criei, que nada mais foi senão a expressão da liberdade. Nunca me sujeitei aos contínuos ´nãos` que parecem fazer da vida das crianças, um tormento”.

“E lá eu dançava” escreveu ela. “Mesmo naquela época eu senti que os sapatos e as roupas só me atrapalhavam. Os sapatos pesados eram como correntes, as roupas eram minha prisão. Assim, eu tirava tudo. E sem nenhum olhar me observando, totalmente sozinha, dançava nua na praia. E me parecia que o mar e todas as árvores estavam dançando comigo”.

Nietzsche, com a forte influência de Schopenhauer, diria que esta foi, para Isadora Duncan, a força dionisíaca em ação. Dionísio, o nome grego para o êxtase, deus do caos, da desmesura, da fúria sexual e do fluxo de vida; deus da fecundidade da terra e da noite criadora do som: deus da música, arte universal, mãe de todas as artes.

 

É o momento em que o artista se transforma na própria natureza. É o uno primordial de que ele tanto fala. O desprendimento do próprio corpo para o encontro com as forças dionisíacas da natureza que o transformam não em outra coisa se não nela própria. O artista como força da própria natureza. Rompem-se, nesse momento, todas as barreiras entre o artista e os homens, entre o artista e todas as formas que voltam a ser as unidades mais originárias e fundamentais.

 

“Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento...

... O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno-primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez.” (p. 31 – O Nascimento da Tragédia)

4.“Plexo Solar”- o momento do encontro:

A dança de Isadora - com elementos predominantemente impressionistas[3] - considera o tronco como fonte de expressão de emoções mais elevadas, coisa que teve sua origem no delsartismo[4], e que permitiu à mulher a expressividade corporal retirada no ballet clássico.  Além de  uma revolução estética, Isadora possuía a consciência da necessidade educacional do corpo através dessa estética corporal influenciada por Nietzsche. Para Nietzsche o corpo é um campo neutro entre o indivíduo, suas necessidades e o mundo exterior.

Em Minha Vida, sua autobiografia, Isadora Duncan relata que a dança para ela era uma expressão religiosa. Dizia aos seus discípulos que todo movimento possui uma força espiritual capaz de manter o público em suspenso.

Talvez um excesso de preocupação com a técnica acabe até inconscientemente levando o bailarino a esquecer a emoção, parecendo assim mecânico ou frio em cena.

Ao descobrir e desbloquear o chakra emocional, o plexo solar, técnica e emoção dançam juntas, pois esse centro de força e vibração nos eleva quando dançamos. Desta forma a experiência de quem assiste e de quem dança é única. É, portanto, o momento em que, finalmente, a técnica (apolínea) e a emoção (dionisíaca) se encontram.

“Dançar é viver. O que desejo é uma escola da vida”. – Isadora Duncan. 

 

 

9. Bibliografia:

 

Dias, Rosa Maria – Ensaio “A influência de Schopenhauer na filosofia de Nietzsche em O Nascimento da Tragédia” – Cadernos de Nietzsche 3 – Eduerj. 

Hanna, Judith Lynne – A linguagem da dança.
Merleau-Ponty, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo, Cosac & Naify, 2004.

Nietzsche, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg, Ed. Cia das Letras ,1992. 

Soares, Profª Marília Vieira – Ballet ou dança moderna? Uma questão de gênero.- Trabalho de dissertação de mestrado na ECA-USP – 1996. 

Valery, Paul. A Alma e a Dança, Rio de Janeiro: Imago, 1996. 


 

[1] A linguagem da Dança – Judith Lynne Hanna

[2] Uno Primordial - Despertadas as emoções dionisíacas, o homem, em êxtase, sente que todas as barreiras entre ele e os outros homens estão rompidas.  O Uno Primordial é onde só existe lugar para a intensidade. Nesse mundo das emoções inconscientes, que abole a subjetividade, o homem perde a consciência de si e se vê ao mesmo tempo no mundo da harmonia e da desarmonia, da consonância e da dissonância, do prazer e da dor, da construção e da destruição, da vida e da morte. – Rosa Maria Dias, professora do depto de filosofia da UERJ – Cadernos de Nietzsche 3.

[3] Impressionismo no sentido da inspiração da própria natureza. Da expressividade que leva às mais diversificadas interpretações. No Impressionismo os artistas se preocupam em comunicar pela arte a impressão subjetiva pura e simples recebida da natureza. A opinião individual que cada um faz de uma obra de arte, é feita pelo estado emotivo provocado por esta obra. Os artistas abandonam os ateliês e pintam ao ar livre, registrando as constantes modificações que a luz solar provoca na natureza. Tem como característica a cor leve e transparente. Os contornos são diluídos pelos efeitos luminosos.


 

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