JOÃO FULANO, OU QUANTIDADES:

O CANCIONISTA DO SERTÃO. 

Por André Vinícius Pessôa, mestrando em Ciência da Literatura (Área Poética), pela UFRJ.

 

                   Guimarães Rosa, na múltipla narrativa do conto “Cara-de-Bronze” - do livro “No Urubuqùaquá, No Pinhém”, pertencente ao “Corpo de Baile” - recorre à figura contextual do cantador. João Fulano, cancionista do sertão, é quem a encarna. Sentado na varanda da Casa do Cara-de-Bronze está este personagem, dedilhando sua viola e desafiando suas coplas em versos, “é para si que ele toca um alegrável” (Rosa: 1965, p. 98).

                   O cantador despertarde-Bronzeor João Fulano perguntas entre os vaqueiros. Não está livre de uma ação constante que se dá no texto do conto: o ato de perguntar. O vaqueiro Moimechêgo, contumaz perguntador, se encarrega de questioná-lo: “Quem é esse, que canta? Ele é daqui? E não trabalha? É da família do dono?” (Rosa: 1965, p. 77). O vaqueiro Cicica lhe responde: “Esse um? É cantador, sòmentes. Violeiro, que se chama João Fulano, conominado ‘Quantidades’...Veio daí de riba, por contrato” (Rosa: 1965, p. 77). Cicica completa a resposta dizendo algo mais sobre o que considera ser a “mariice de tarefas” (Rosa: 1965, p. 77): “O homem é pago pra não conhecer sossego nenhum de idéia: pra estar sempre cantando modas novas, que carece de tirar de-juízo. É o que o Velho quer” (Rosa: 1965, p. 77). Os vaqueiros Mainarte e Jose Uéua, também inclinados a cantar e recitar seus próprios versos, ao ouvir o cantador na varanda, comentam o que ouvem. Diz Mainarte: “Ele põe fé em vau de tristeza... Está cantando com seus pássaros...” (Rosa: 1965, p. 79). “Boas mágoas” (Rosa: 1965, p. 79), completa Uéua.

                   O nome João Fulano mostra que o cantador do Cara-de-Bronze pode ser qualquer um, isto é, um fulano qualquer. Um que está por aí. Fulano é palavra que vem do árabe fulán, comumente atribuída a um “indivíduo indeterminado” (Houaiss: 2001), ou seja, “àquele cujo nome não se conhece ou a quem, intencionalmente, não se deseja nomear” (Houaiss: 2001). Sugere também nomear um “sujeito qualquer, sem importância” (Houaiss: 2001). João Fulano pode ser João Guimarães Rosa livre de si, em um pseudônimo, sendo apenas João. Seu apelido, Quantidades, remete ambiguamente a algo que a princípio pode ou não ser medido, isto é, submetido ou não a uma ordenação. Mais do que isto, a algo que diz sobre muitos. Diz fundamentalmente sobre números. O ato de numerar, ou de contar. Sugere a divisão proporcionada e medida, presente na música e na poesia, nos estatutos que regem a contagem dos compassos e dos versos. Sugere também uma certa generosidade. Uma pluralidade.

                   O cantador, da varanda, em sua “rêde de embira de Carinhanha – desenhada com surubins e outros peixes do São Francisco, e caboclos d’água, e enfeitada absurdamente” (Rosa: 1965, p. 93), atravessa toda a narrativa do conto, pontuando-a com seus versos. O narrador descreve João Fulano em sua errância, “com cara de larápio, com viola de tabebúia, sentado em sua rêde, no varandão, vestido quase de andrajoso, mas com uma faixa de pano na cintura – feito cigano do Cincurá” (Rosa: 1965, p. 98). A bebida lhe anima. “Pode ser que esconda um frasco, nas abas da rêde, tome um gole” (Rosa: 1965, p. 98), em sua “bebedice de cancionista” (Rosa: 1965, p. 98). O pensador Gaston Bachelard, em “A Psicanálise do Fogo”, dedica um capítulo aos efeitos do álcool, ligando-os aos devaneios da imaginação. Numa passagem, Bachelard afirma que o álcool, síntese da união da água com o fogo, é uma substância capaz de excitar possibilidades espirituais. Diz o pensador que “sem dúvida nenhuma, o álcool é um fator de linguagem. Enriquece o vocabulário e libera a sintaxe” (Bachelard: 1994, p.129). Pode-se então objetar que João Fulano tomando goles de aguardente para cantar seus versos talvez esteja querendo mais do que o simples “molhar a garganta”, técnica rudimentar comumente usada por cantores, no intuito de aquecer a voz. .

                   João Fulano, ao cantar e tocar sua viola, está ali prestando um serviço. O Cara-de-Bronze “exige que, como está sendo, nos prazos, o cantador tem que produzir, alto assim uma trova. Lá do quarto, êle ouve, se praz” (Rosa: 1965, p. 78).

                 O fato de o Cara-de-Bronze pagar por seus préstimos aponta para duas prováveis hipóteses. O cantador pode estar ali só para divertir os vaqueiros, ao entretê-los numa espécie de panis et circencis sertanejo. “De acordo que diverte. É bom, é. Mestre Violeiro” (Rosa: 1965, p. 78), comenta o vaqueiro Cicica. “Diverte com sentimentos velhos, todos juntos. Vai rastreando...” (Rosa: 1965, p. 80), completa Mainarte. Por outro lado, num sentido mais radical, sua presença na varanda da Casa pode seus serviços aponta para doisignificar um investimento do Cara-de-Bronze na preservação da memória do Urubùquaquá através do canto. Deste modo, João Fulano está exercendo uma função semelhante a do aedo, que é a de ser o historiador dos acontecimentos passados nas suas terras.

                   Jaa Torrano afirma que na Grécia anterior à constituição da pólis, “o aedo (i.e.o poeta-cantor) representa o máximo poder de tecnologia da comunicação” (In: Hesíodo: 2003, p.16). Na música dos antigos gregos, altamente ritualística, os aedos são artistas ambulantes que, acompanhando-se na lira, louvam a memória dos deuses e dos heróis. Após séculos de preponderância cristã na música ocidental européia, com o ocaso deste tipo de músico e do sentido original da música grega, surgiu marginalmente o bardo, que segundo Mario de Andrade era o “tocador-cantor-profissional do século XI” (Andrade: 1987, p. 60). O bardo, considerado um músico profano pela igreja católica, ao seu modo, retomou a tradição grega dos aedos. Mário de Andrade se refere ao bardo quando lembra que “havia desde muito na Europa Continental uma espécie de cantadores estradeiros, classe rebaixada, vivendo de ciganagem, praticando por toda a parte feitiçaria, crimes e doce música” (Andrade: 1987, p. 60).

                   Luis da Câmara Cascudo, no Dicionário do Folclore Brasileiro, diz que o cantador é quem relata “a história dos homens famosos da região, os acontecimentos maiores” (Cascudo: 1972, p. 237). Nas palavras retiradas de uma outra obra sua, “Vaqueiros  e Cantadores”, citadas no dicionário, o etnólogo afirma que o cantador “ostenta, num diapasão de consciente prestígio, os valores da inteligência inculta e brava, mas senhora de si, reverenciada e dominadora” (In: Cascudo: 1972, p. 237). Câmara Cascudo diz que “é raro o cantador que tem boa voz” (In: Cascudo: 1972, p. 237). “É uma voz dura, hirta, sem maleabilidade, as veias intumescidas pelo esforço, a face congesta, os olhos fixos para não perder o compasso, não o compasso musical, que para eles é quase sem valor, mas a cadência do verso, o ritmo, que é tudo. Nenhuma preocupação de desenho melódico, de música bonita. Monotonia. Pobreza. Ingenuidade. Primitivismo. Uniformidade... Não se guarda a música de colcheias, martelos e ligeiras. A única obrigação é respeitar o ritmo do verso”  (In: Cascudo: 1972, p. 237), afirma o etnólogo.

                   Sobre a viola, homônima do instrumento de arco que surgiu na Europa renascentista, também conhecida como viola caipira, no Brasil, e viola de arame, em Portugal, Câmara Cascudo escreveu que o instrumento de “cordas dedilhadas, cinco ou seis, duplas, metálicas” (Cascudo: 1972, p. 909), foi “o primeiro instrumento de cordas que o português divulgou no Brasil” (Cascudo: 1972, p. 909). Diz Cascudo que o Século XVI, de grande movimentação econômica e social entre a metrópole ibérica e a colônia brasileira, “foi a época do esplendor da viola em Portugal, indispensável nas romarias, arraiais e bailaricos” (In: Cascudo: 1972, p. 909).

                        Guimarães Rosa, através de João Fulano, desloca a narrativa do “Cara-de-Bronze” para uma dimensão mitopoética, ao valorizar os elementos simbólicos contidos em seus versos. Benedito Nunes, em seu ensaio “A Viagem do Grivo”, ressalta a atitude objetivista do narrador e sua dificuldade em alinhavar o enredo. Para o crítico, o tempo desta ênfase descritiva é quebrado pela alternância das múltiplas facetas narrativas. “As partes líricas são as trovas do violeiro, menestrel particular do Cara-de-Bronze, pago para cantar e tocar, no alpendre da Casa, louvando o buriti, o Boi e a Môça. Como um acompanhamento musical, as trovas interferem nos outros momentos, épicos e dramáticos, fazendo com que o tempo passado dos primeiros se aproxime do tempo presente dos segundos. Esta aproximação reforça o clima poético da narrativa, criando condições para que se produza o ‘sem-tempo’ do mito” (Nunes: 1969, p. 187), afirma Nunes.

                   Além da figura de João Fulano, no campo da música popular ou folclórica há no conto também referências, situadas na epígrafe do “Cara-de-Bronze” e em notas de pé-de-página, às “Cantigas de Serão de João Barandão”. Trata-se de um cancioneiro imaginário, inventado por Rosa. João Barandão também vem a figurar em dois pequenos contos do escritor, pertencentes ao livro “Tutaméia”. Os contos se chamam “Melim Meloso” e “Barra da Vaca”. No primeiro, as peripécias do protagonista Melim Meloso são rememoradas pelas cantigas de João Barandão. Este atua no conto pontuando liricamente a narrativa, da mesma forma que João Fulano faz no “Cara-de-Bronze”. Já em “Barra da Vaca”, os versos de João Barandão fecham o enredo.

                   Na quebra imposta pela transformação da narrativa do “Cara-de-Bronze” em roteiro cinematográfico, a ação é trazida para o presente. Imagem e som, separadamente, compõem a cena. A câmera se movimenta e enquadra acontecimentos corriqueiros. O cantador assume a trilha sonora do filme. A música de fundo é o seu som de viola. João Fulano toca uma mazurca, isto é, uma composição instrumental em compasso ternário, inspirada na dança polonesa de mesmo nome. Também atua cantarolando versos que se harmonizam com o andamento do que é narrado. O vaqueiro Mainarte intervém e pede para ele “cantar cantigas de olêolá, uma cantiga de se fechar os olhos...” (Rosa: 1965, p. 92). Moimeichêgo completa o pedido: “Uma canção dada às águas...” (Rosa: 1965, p. 93). Ele, prontamente, “tempera a viola” (Rosa: 1965, p. 93) e canta a estória do Vaqueiro e a Moça. Seus versos, em primeiro plano, sugerem closes no rosto e nas mãos do artista.

                   Os motes de João Fulano, que povoam a narrativa do conto, se referem a três temas principais: O Buriti, o Vaqueiro e a Môça e o Boi. Tomando a moça como a noiva buscada no enredo pelo Grivo, Benedito Nunes assim se refere a estes temas: “Equivalentes simbólicos do Verbo, em sua função vital criadora, pertencem à família dos grandes mitos ocidentais” (Nunes: 1969, p. 190). O Buriti, nos versos, é a mãe para o cantador. A imagem imponente da palmeira, símbolo da telúrica fertilidade das veredas, é ligada a uma materna serenidade. Diz Maria Lucia Guimarães de Faria que “louvando infatigavelmente o Buriti, que constitui um dos elementos mais expressivos dentro da simbologia rosiana, é o cantador quem, em suas pequenas trovas despretensiosas, revela a identidade mítica da árvore, associando-a à figura da Grande Mãe” (Faria: 2004, p. 273).

                   Os brejos que rodeiam o Buriti, pisados com os pés descalços, são espelhos d’água que refletem o céu. Há enorme prazer em vê-los e senti-los. Nessa umidade verdejante, os gados são tristes, mas alegre é a pastação. Alegre é a abundância do verde dos Gerais. Triste o vaqueiro que o habita. Zé Dias, seu nome e seu penar. O vento fala ao Buriti, que ele permaneça cordato, em sua convicta e enraizada firmeza. O chão da terra que lhe sustenta quer que ele cresça ainda mais. O céu é o seu dono, assim como é o amor que governa a força do seu canto. Em sua linguagem silenciosa, o Buriti é o encontro da poesia com o olhar. União erótica de céu e terra que inspira o verso. Sua visão enche os tons da voz do cantador. Presença iluminada que também se avista na rota do viajor em seu regresso.

                   A parte que se refere ao Vaqueiro e à Moça, incluída no roteiro cinematográfico, é a pequena estória de uma despedida. Tomada a unidade temática de seus versos como um poema, é o único de João Fulano que irá configurar de um só fôlego na narrativa do conto. Tudo se passa num simples imaginar. Enquanto a boiada transita pelos floridos campos, a moça pede ao vaqueiro para contar seus bois e lhe dá um adeus singelo. O vaqueiro fecha o coração e segue em juízo o rumo de seu destino. O cantador, em seguida, destina seus versos a um casório. Sina de homem e mulher, família unida por amor e contrato. Evoca mais uma vez a imagem do Buriti. Canta seus cocos, que podem ser vendidos e dar ao homem o seu sustento. Buriti que aconselha e acolhe. Onde uma arara faz ninho e procria seus filhotes.

                   O Boi, para Maria Lucia, no “Cara-de-Bronze”, é o “animal-chave da estória” (Faria: 2004, p. 273). Os bois “chitado cubano” (Rosa: 1965, p.107), “boizim pinheiro branco” (Rosa: 1965, p.107), “boi-baio fumaceiro” (Rosa: 1965, p.108), “cinzento raposo” (Rosa: 1965, p.114) e “araçá corujo” (Rosa: 1965, p.115), são evocados pelo cantador. Bois que vão beber água em lugares afastados, debaixo de uma intensa chuva, sob o risco dos trovões. Maria Lucia lembra que o Boi “é um animal celeste fértil e viril, associado ao trovão, à tempestade e ao fogo” (Faria: 2004, p. 273). Os bois fogosos andam soltos, nas chapadas e veredas. A ausência de um faz o cantador lembrar de seu valor de troca. Um outro suscita o desejo do dono, que é do boi  ter “uma dona de mãos finas” (Rosa: 1965, p.108). Ainda há mais um outro, que se perde em sua peregrinação. Fugido, é justamente o boi que “caminha ouvindo seu coração...” (Rosa: 1965, p.115). O Boi tem uma simbologia muito antiga. “Na mitologia grega, o boi é a principal epifania de Dioniso, o deus ambíguo, cuja dualidade manifesta-se na complementaridade do êxtase e do terror, da infinita vitalidade e da selvagem destruição” (Faria; 2004, p.274), diz Maria Lucia. 

                   Quando João Fulano “emenda um canto de rompante” (Rosa: 1965, p. 121), canta o boi arredio. “Boi batedor” (Rosa: 1965, p. 121), “boi enfezado” (Rosa: 1965, p. 121), “que chifra de lado” (Rosa: 1965, p. 121) e “vira danado” (Rosa: 1965, p. 121). Este boi, das apartações, se fez muito presente no cancioneiro popular do interior do Brasil. “Cantadores encarregavam de celebrizar suas manhas, velocidade e poderio” (Cascudo: 1972, p. 166), afirma Câmara Cascudo. Sua rebeldia resulta em mirabolantes fugas que ganham ampla notoriedade através do historiar musical dos cantadores do sertão. Diz o etnólogo: “Pelas regiões da pecuária vive uma literatura oral louvando o boi, suas façanhas, agilidade, força, decisão” (Cascudo: 1972, p. 166). Os bois, ao se desprenderem dos pastos, são intensamente perseguidos por corajosos e arrojados vaqueiros. Muitas vezes se escondem com destreza e conseguem ludibriar seus perseguidores. Os que são enfim capturados, por sua vez, rendem exortações épicas. “Novas cantigas narravam sua captura, a derradeira batalha e o sacrifício. Nalguns versos, o boi era transfigurado, tornava-se gigantesco e o cantador, humoristicamente, fazia a divisão dos melhores e piores pedaços com as pessoas conhecidas na redondeza” (Cascudo: 1972, p. 166). O boi, na tradição oral brasileira, é dono de uma gesta gloriosa. O cantador João Fulano, através de seus versos, co-participa desta herança memorável.

                   Nos versos em que João Fulano canta o Boi, algumas interjeições como “Eê-ô-eh-ô-êêê...ê – E-cou –  ... – eê-uôôô...” (Rosa: 1965, p. 94), “E-ô-eeêêê...” (Rosa: 1965, p. 94) e “Oôôôi...” (Rosa: 1965, p. 94) remetem à sonoridade própria do aboio. Há no conto também trechos em que os vaqueiros do Urubùquaquá o praticam, entoando “ – Êh boi! Ê boi!” (Rosa: 1965, p.75) na apartação dos bois. “No sertão do Brasil, o aboio é sempre solo, canto individual, entoado livremente” (Cascudo: 1972, p. 21), afirma Câmara Cascudo. Considerado um canto de trabalho, herança das tradições portuguesas, o aboio “não é divertimento. É coisa séria, velhíssima, respeitada” (Cascudo: 1972, p. 21).

                   Câmara Cascudo diz que o estudioso português Gonçalo Sampaio, ao pesquisar os aboios da região do Minho, reconheceu que estes eram oriundos de uma longínqua tradição, que recaía na antiga Grécia. Sampaio observou que as arcaicas frases melódicas que eram produzidas nesses cantos apresentavam características escalares idênticas as que foram encontradas nas flautas de Pã, e que a simplicidade de suas modulações harmônicas, por sua vez, remontava estruturalmente a música dos antigos gregos. Câmara Cascudo assinala também que os vocalises dos aboios, em sua indeterminação rítmica e fluente improvisação melódica, trazem consigo influências mouriscas e do Canto Gregoriano. Na composição dos aboios, a liberdade melódica do canto segue o movimento de seus percalços e dos percursos do boi. O etnólogo diz que tentar colocá-los sob a égide de uma notação musical, dividindo-os e estruturando-os em compassos medidos, fatalmente os desfigurariam. “Certas canções ficam verdadeiramente contrafeitas na camisa-de-força do compasso” (Cascudo: 1972, p. 23), conclui.

                   A definição de que o aboio seria “um canto sem palavras, marcado exclusivamente em vogais” (Cascudo: 1972, p. 21) se refere a um aboiar mais tradicional. Câmara Cascudo afirmou que no Brasil passou a existir também o aboiar em versos, isto é, “poemas de assunto pastoril” (Cascudo: 1972, p. 23) provenientes das regiões do Minho e da Ilha da Madeira. “O aboio cantado ou aboio em versos já constitui forma literária” (Cascudo: 1972, p. 23), afirma o etnólogo.               

                   A apropriação de Guimarães Rosa de um importante elemento poético da tradição oral do interior do Brasil condiz com que o escritor explicitou, no diálogo com o crítico alemão Gunter Lorenz: “Sou precisamente um escritor que cultiva a idéia antiga, porem sempre moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer” (In: Lorenz: 1983, p. 88).

                   A ação poética na obra de Rosa é em grande parte fundada como oralidade. Rosa permanece atado ao relato e à preservação intencional do verbo ancestral. Sua escrita aproveita dinâmicas diversas, cria neologismos, transita entre onomatopéias e, sobretudo, se vale da musicalidade existente no ritmo paciente do homem geralista. Sua prosa poética tem fortes raízes na música trabalhada pelos poetas e cantadores do sertão. O mundo de Rosa se faz mundo através de sua musicalidade. Desta forma, ao criar seu universo, Guimarães Rosa presta homenagem à fecundidade do mundo auditivo.

 

                     BIBLIOGRAFIA

 

  1. Andrade, Mário de: Pequena História da Música. Belo Horizonte, MG: Editora Itatiaia Ltda, 1987. 226 ps.
  2. Bachelard, Gaston: A Psicanálise do Fogo. São Paulo, SP: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1994. 169 ps.
  3. Cascudo, Luis da Câmara: Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: Ediouro S. A, 1972. 930 ps. 
  4. Faria, Maria Lucia Guimarães de: Cara-de-Bronze: A Visagem do Homem e a Miragem do Mundo. In: Castro, Manuel Antônio de (org.). A Construção Poética do Real. Rio de Janeiro, RJ: Sete Letras, 2004. 310 ps.
  5. Hesíodo: Teogonia, A Origem dos Deuses. Estudo e tradução: Jaa Torrano. São Paulo, SP: Editora Iluminuras Ltda., 2003. 166 ps.
  6. Houaiss, Instituto Antônio: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1,0. Editora Objetiva Ltda, 2001.
  7. Lorenz, Gunter: Diálogo com Guimarães Rosa In: Coleção Fortuna Crítica. Direção de Afrânio Coutinho. Seleção de Textos: Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro,RJ: Editora Civilização Brasileira S.A. Pró-Memória – Instituto Nacional do Livro, 1983.
  8. Nunes, Benedito: O Dorso do Tigre. São Paulo, SP: Editora Perspectiva, 1969. 278 ps.
  9. Rosa, João Guimarães: No Urubuqùaquá, no Pinhém (Corpo de Baile). Rio de Janeiro, RJ: Livraria José Olympio Editora, 1965. 246 ps.
   

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