O lugar das relações interpessoais na contemporaneidade: breve análise de líricas de Zeca Baleiro e Lenine
Ana Paula Nascimento de Souza[1]
“Tire o seu piercing do caminho
Que eu quero passar, com a minha dor”
A epígrafe que abre este texto a um só tempo resume e encaminha a discussão que se segue: propósito deste trabalho. Falar das relações interpessoais na contemporaneidade é lançar um olhar sobre um quadro perturbador porque novo e, portanto, ainda em construção. É, sobretudo, lançar um olhar para um momento histórico marcado pela superação de limites através do conhecimento e, contraditoriamente, pelo conseqüente retrocesso no que diz respeito às relações humanas.
O contexto é mesmo paradoxal: em meio à sociedade globalizada, os homens estão cada vez mais abandonados em sua condição humana, cada vez mais sós. Em meio à “sociedade do conhecimento”, conhece-se o mundo desconhecendo a si. Dentro desse contexto sobra, portanto, uma pergunta: qual o lugar que se reserva para as relações entre os seres?
A resposta para esta questão está longe de ser encaminhada, mas a arte – como grande canalizadora dos embates históricos – apresenta discussões interessantes também a esse respeito. Assim, as canções “Piercing”, do compositor maranhense Zeca Baleiro, e “A medida da paixão”, do compositor pernambucano Lenine, apontam para possibilidades de olhar, compreender, ou até mesmo, responder tal questão.
O rap “piercing” que se inicia com o refrão já citado anteriormente enfatiza uma das grandes temáticas da contemporaneidade: o individualismo exagerado. O refrão é uma ordem: “tire o seu piercing do caminho”; nela o “piercing” metaforiza o umbigo e é um obstáculo para o “eu-lírico” que justifica, em seguida, a ordem dada: “que eu quero passar com a minha dor”. Está sendo então apresentado um pequeno retrato das relações interpessoais contemporâneas. A comunicação entre os indivíduos é precária, uma vez que não há uma preocupação em olhar para fora, para o outro.
No decorrer do texto, ao longo de quatro estrofes, esse retrato é ampliado, traçando-se um panorama através do qual pode-se compreender melhor o que é apresentado de forma tão sintética no refrão. As características da sociedade na qual vivemos são apontadas uma a uma, num tom de denúncia, num ritmo acelerado, de modo que se compreende bem porque tudo passa pelo “piercing-umbigo” e, conseqüentemente, a comunicação não se dá.
A estrofe inicial do texto aponta para o sentimento de abandono do homem contemporâneo:
pra elevar minhas idéias não preciso de incenso
eu existo porque penso tenso por isso insisto
são sete as chagas de cristo
são muitos os meus pecados
satanás condecorado na tv tem um programa
nunca mais a velha chama
nunca mais o céu do lado
disneylândia eldorado
vamos nós dançar na lama
bye bye adeus gene kelly
como santo me revele como sinto como passo
carne viva atrás da pele aqui vive-se à mingua
não tenho papas na língua
não trago padres na alma
minha pátria é minha íngua
me conheço como a palma da platéia calorosa
Herdeiro do homem moderno que suportava sua condição humana de restrições e privações apoiando-se (primeiro) na religião e (depois) na ciência, o indivíduo da contemporaneidade vive num contexto em que a religião já não é mais uma verdade nem um conforto absolutos, e a ciência não corresponde mais às suas expectativas. Assim, desprovido de seus grandes pilares de sustentação resta a este homem tentar transformar a realidade na qual vive através do conhecimento, da hipermodernização.
Todos os feitos, portanto, não preenchem o vazio deixado pelos discursos que antes garantiam ao homem a sensação de bem-estar. Devido a isso, sobra um espaço que será preenchido pelo discurso da mídia, pelo consumismo exacerbado e pela necessidade desenfreada de notoriedade, exclusividade, destaque.
Daí reforça-se o instinto de competitividade. Dá-se um adeus à beleza e à simplicidade (referência à dança na lama substituindo a dança na chuva) e ao instinto coletivo de nação (minha pátria é minha íngua). Sobra apenas a corrida pelo conhecimento específico e reduzido a “know-how”, não restando espaço para o conhecimento do outro e de si, como é mostrado no texto:
eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar
mas a minha mente boquiaberta
precisa mesmo deserta
aprender aprender a soletrar
No mesmo ritmo, a segunda estrofe aponta especificamente para as relações amorosas, mostrando como elas também são mais um produto a ser consumido:
não me diga que me ama
não me queira não me afague
sentimento pegue e pague emoção compre em tablete
mastigue como chiclete jogue fora na sarjeta
compre um lote do futuro cheque para trinta dias
nosso plano de seguro cobre a sua carência
eu perdi o paraíso mas ganhei inteligência
demência felicidade propriedade privada
não se prive não se prove
dont't tell me peace and love
tome logo um engov pra curar sua ressaca
da modernidade essa armadilha
matilha de cães raivosos e assustados
o presente não devolve o troco do passado
sofrimento não é amargura
tristeza não é pecado
- lugar de ser feliz não é supermercado
Tudo fica reduzido ao ato de consumir. Não há, portanto, lugar para sentimentalismo ou questionamentos. O ritmo de vida é acelerado e não há espaço para sair desse automatismo, dessa robotização. Todas as “mazelas contemporâneas” tentam ser suportadas com algum produto que irá aliviar a dor. O supermercado, então, não é o paraíso, nem lugar para ser feliz; lá se compra e tenta-se preencher o vazio contemporâneo a “ressaca da modernidade”, esta definida pelo eu-lírico como uma armadilha, uma vez que o ônus é muito maior que todas as conquistas obtidas. A sensação de desconforto, portanto, não se desfaz e a necessidade de consumir aumenta como num ciclo vicioso que leva a um estado de perda da consciência (à demência) e à barbárie (matilha de cães raivosos e assustados).
A terceira estrofe também destaca a relação “homem-consumo” e retoma a questão do desejo de plenitude, a busca constante por um estado de completude que se sabe que não será obtido. Daí a retomada do discurso cristão que aponta inferno e céu como expectativas humanas. Note-se que na descrição do inferno, o verbo está no presente, já na descrição do céu o verbo está no futuro:
o inferno é escuro não tem água encanada
não tem porta não tem muro
não tem porteiro na entrada
e o céu será divino confortável condomínio
com anjos cantando hosanas nas alturas
onde tudo é nobre e tudo tem nome
onde os cães só latem
pra enxotar a fome
todo mundo quer quer
quer subir na vida (...)
A retomada desse discurso de promessa de “uma vida melhor” não nos permite afirmar um tom esperançoso em relação ao futuro. Ao contrário, é possível perceber que até as expectativas de melhoria são mais um produto a ser consumido. A esperança é mais um produto na prateleira do supermercado, e sair do inferno para o céu é “viver num confortável condomínio” e “subir na vida”. “Coisificaram-se”, portanto, não só as relações entre os homens, mas também a expectativa de vida, de convívio social.
A última estrofe encerra o texto trazendo novamente a questão da falta de comunicação, de diálogo e a contradição que é uma sociedade em que a comunicação em grande escala é uma realidade, mas a comunicação nas micro-esferas sociais, ou seja, a verdadeira comunicação entre os indivíduos é nula.
todo mundo sabe tudo todo mundo fala
mas a língua do mudo ninguém quer estudá-la
(...)
e não se fala mais nisso mas nisso não se fala
Assim, de acordo com o texto de Baleiro, não há contexto histórico que permita uma abertura para olhar o outro e comunicar-se. E se não há comunicação, não há relação possível. Desse modo, conclui-se que o lugar para as relações interpessoais na contemporaneidade não existe mais. Pessimista ou não, o retrato apontado pelo texto é, sobretudo, realista e permite uma reflexão sobre o conturbado contexto no qual vivemos.
Também beirando um tom de pessimismo, a melancólica letra de “A medida da paixão” de Lenine e Dudu Falcão retoma uma a discussão apresentada na letra de Baleiro e confirma o desaparecimento do espaço para um relacionamento humano. Apesar de centralizada nas relações amorosas, a canção também nos permite refletir sobre esse desaparecimento:
É como se a gente não soubesse
Pra que lado foi a vida
Por que tanta solidão
E não é a dor que me entristece
É não ter uma saída
Nem medida na paixão
Foi, o amor se foi perdido
Foi tão distraído
Que nem me avisou
Foi, o amor se foi calado
Tão desesperado
Que me machucou
O tom não é de denúncia e o ritmo não é acelerado como no rap, mas a crítica, o questionamento e o sentimento de vazio e abandono são os mesmos. Destaca-se nesse texto a falta total de perspectivas como o grande mal da contemporaneidade (e não é a dor que me entristece/ é não ter uma saída...).
São ressaltados a sensação de desconforto e os muitos questionamentos feitos pelo eu-lírico, que retomam a confusão que é a vida contemporânea. Há uma falta de compreensão do mundo, de si, há um vazio a ser preenchido e, sobretudo o medo.
É como se a gente pressentisse
Tudo que o amor não disse
Diz agora essa aflição
E ficou o cheiro pelo ar
Ficou medo de ficar
Vazio demais meu coração
Conclui-se, portanto, que em ambos os textos, não é apresentada uma perspectiva de mudança. O olhar da arte para a discussão levantada, seja questionando, seja descrevendo, é realista. E a realidade do indivíduo da contemporaneidade é uma vida sem esperança de melhoria no que diz respeito à relação entre os seres. Assim, não cabe aqui julgar se os textos apresentam uma visão pessimista ou distorcida da realidade, mas tão somente, apreender esse panorama para repensar o mundo em que se vive hoje. Cabe a nós, leitores desse texto e ouvintes desse discurso, questionar também a dura realidade e reivindicar um espaço para as relações interpessoais na contemporaneidade, já que se trata de um contexto histórico em construção e que somos nós os atores desse contexto.
Bibliografia
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2. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Vol. II. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra. 1999.
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4. CUNHA, Helena Parente. “Flashes da música popular brasileira na transição dos milênios”. In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 150: 93/ 108, jul. – set., 2002.
5. FUKS, Saul. “A sociedade do conhecimento”.In: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 152: 75/ 101, jan. -mar., 2003.
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9. JAMESON, Frederic. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros ensaios. Trad. Ana Lúcia Gazzola. 3a ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
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11. LIPOVETSKY, Gilles & CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. Trad. Mario Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2004.
12. RAMONET, Ignacio. Geopolítica do caos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
[1] Aluna do curso de Mestrado em Ciência da Literatura, programa de Literatura Comparada.