O
Fin-de-siècle: um mundo que mudava
JOEL
THEODORO DA FONSECA JÚNIOR
Aluno
do Curso de Mestrado em Ciência da Literatura
Comunicação
feita durante o 2º. SIMPÓSIO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA.
Faculdade
de Letras da UFRJ
Nesta comunicação pretendo apresentar alguns elementos
que venham servir de ponto de apoio em reflexões a respeito do eu na
modernidade e pós-modernidade, sendo que a tônica de informações e buscas
será no período que vai de meados do século XIX a início do século XX,
exatamente o período em que a crise do liberalismo se agravou e gerou profundas
transformações na humanidade, em todas as sociedades após esse tempo.
Interessam-me em particular as informações de Carl
Schorske em seu Viena fin-de-siècle (SCHORSKE, Carl E.
Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo, Companhia
da Letras/ Ed. Unicamp, 1988.), a partir
das quais posso tecer uma rede de reflexões que ajudam a pensar o mundo no qual
vivemos entendendo melhor suas relações e suas realidades. Como texto de apoio
para alguns pensamentos, tenho por muito próprio o texto de Richard Sennett, O
declínio do homem público (SENNETT, Richard.
O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Trad.: Lygia
Araújo Watanabe. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.), com sua escrita
agradável e que joga o leitor a uma concordância fácil com suas idéias,
posto que são muito próximas do que cada um de nós eventualmente possa ter
vivido em áreas da vida.
O objetivo que espero alcançar é a reflexão sobre a
condição humana a partir de eventos políticos, culturais, filosóficos e
intelectuais vistos e registrados em tempos de grandes mudanças e efervescências
sociais e antropológicas das mais abrangentes que a humanidade já assistiu. Até
hoje sofremos os efeitos desse tempo e, creio, continuamos a assistir a traumáticas
transformações que, quem sabe, somente serão catalogadas em gerações
futuras, que certamente falarão de nós e de nosso tempo.
Naqueles tempos, muitos movimentos nacionalistas começavam
a se expandir por toda a Europa, modificando conceitos e reformando idéias, bem
como redefinindo paradigmas e fronteiras. O liberalismo, por exemplo, estava em
crise conceitual e prática, com nuances que não deixavam sombra de dúvida de
que as mudanças eram por demais ríspidas, com parcas possibilidades de alguém
contemporâneo a elas poder perceber na totalidade o que estava ocorrendo ao seu
redor.
As diversas expressões de arte entravam, por um lado, em
tempos de produção fértil, como nunca antes imaginada, e, por outro, em crise
intensa de sua produção. A ciência em geral sofria alterações também
tremendamente significativas, com rompimento de conceitos e princípios até
pouco tempo antes aceitos como axiomáticos. As idéias estavam fragmentadas e
as velhas categorias de classificação de pensamento pareciam não mais se
adequar de maneira a satisfazer aos anseios populares e acadêmicos naquela
virada de século.
Segundo Schorske, em meio ao que parecia uma tremenda
desordem havia uma certa ordem que servia de elemento de unificação, e isso se
dava a partir de dois pontos básicos: política e cultura. O eu, em meio
a tudo isso, em meio ao caos organizado de idéias que ainda buscavam caminho
seguro a trilhar, era o ponto alto do desequilíbrio e da fragmentação que vem
até os nossos dias bater à porta do interior do ser humano pós fin-de-siècle.
Ele trata de um universo social delimitado, que é a cidade de Viena antes e
durante a virada do século XIX para o XX. Seu enfoque é muito feliz, pois a
Viena daqueles dias reúne em si todos os elementos que tiveram semelhantes em
toda a Europa, sendo que, em muitos episódios, de maneira concentrada e mais
intensa.
Fin-de-siècle é termo aplicado não apenas a Viena,
mas a todo um tempo, ou processo, durante o qual o mundo, principalmente o
europeu Ocidental, teve uma verdadeira metamorfose social, política e cultural,
com raios atingindo todas as esferas da vida humana a partir de então.
Uma enorme massa de pensadores, artistas, psicólogos e
historiadores estava empenhada em responder as perguntas eternas ao ser humano,
mas que agora se tornavam cruciais. O momento levava à discussão do problema
da natureza do indivíduo numa sociedade em crise de desintegração. Foi essa
leva de questionamentos que elevou Viena a um lugar de destaque no cenário em
que se buscava uma nova concepção para o ser humano. Até havia pouco tempo, o
homem tinha por boas e satisfatórias as respostas metafísicas de cunho
religioso às suas incógnitas, mesmo as mais profundas. Quando não encontrava
respostas plausíveis, o divino atendia perfeitamente o seu silêncio e a paz
aparentemente continuava a reinar nos seres humanos.
A partir do desmonte da idéia mais universal de que o
divino respondia a todas as questões humanas, as idéias mais antropocêntricas
tomam mais vigor e passam a governar a razão de modo objetivo e direto. Nesse
ambiente, toma força a idéia do homem psicológico (onipresente), sendo que
Schorske defende que ele surge a partir da crise política e cultural de Viena.
O declínio, ou o incremento, da crise do liberalismo gerou
um severo clima de ansiedade, inconstância, percepção nua da brutalidade da
sociedade. O desaparecimento da boa esperança, talvez um tanto ingênua, no
homem, parece ter se dado, ou, pelo menos, se evidenciado, exatamente por esses
dias. Os traços humanistas e cada vez menos metafísicos passaram a ser
centrais nos temas e discussões entre a intelectualidade. Com isso, o passo
alcançado foi o do homem que pensa e tem em si a resposta para suas mazelas,
para seus vazios e para seus questionamentos permanentes. O olhar do homem
passou a ser posto dentro de si ao invés de numa esperança externa, como
acontecia tempos antes, no auge da religiosidade ocidental européia.
A alta burguesia de então tinha bases simples e
modelares: no aspecto da moralidade ela era convicta, virtuosa e repressora; no
campo político ela era voltada para a lei e para seu império, que estava
invariavelmente acima do indivíduo e da ordem social; no aspecto intelectual
ela defendia a supremacia da mente sobre o corpo, com progresso social advindo
de trabalho duro, ciência e educação.
Em meio a tão rica gama de mudanças, o burguês
interiorizava a cultura estética que ele absorvia, e assim cultivava o seu eu,
sua unicidade pessoal, o que lhe gerou inevitável preocupação com a vida psíquica
individual. A fertilidade de reflexões e postulados científicos e acadêmicos
advindos desse período só nos fazem comprovar tal realidade.
No entanto, por razões óbvias, uma problemática
constante para os pensadores e para os formadores de opinião no fin-de-siècle
era a visão clara da dissolução do postulado liberal em meio à política
moderna da Europa e da Áustria de seu tempo.
O período fin-de-siècle trouxe modificações não
apenas à sociedade, mas podemos entender que elas, de fato, partiram da
reordenação pessoal para a coletiva e social. A necessidade de afirmação de
uma nova personalidade e de um novo caráter estava em curso, deixando-nos
rastro de explicação para elementos que a própria psicanálise, ciência também
sedimentada no fin-de-siècle, poderia nos ajudar a compreender.
Até bem perto de meados do século XIX, o homem parecia
querer transparecer o que ele era em determinadas cenas, mas começava a tecer
aspectos de comportamento múltiplo em outras. Na esfera pública, as pessoas
tendiam cada vez mais a se mostrarem diferentes do que eram em sua vida privada.
Na verdade, o que estava surgindo de maneira sistemática era a caracterização
de atores da vida pública, que tinham por necessário desempenhar papéis específicos
para o exterior de suas vidas.
De maneira ainda insipiente surgia o homem público que vem
até nossos dias, com forte visibilidade e boa definição de papéis em público,
mas que tenta se esconder dos olhares coletivos em sua vida privada. Assim,
dependendo do seu momento, o homem público desempenhava papel passivo, de
observador, ao fitar os demais e ativo, de ator, ao desempenhar o seu próprio
jogo de cena.
Trazendo para a prática da vida cotidiana, temos que o que
vemos de uma personalidade pública no exercício de seu papel é apenas a
exteriorização de seu jogo, ou seja, não sondamos verdadeiramente a pessoa e
seu caráter. Isso se fez notório, talvez com raras exceções, e perdura até
nossos dias, nos quais vemos os jogos que se desenrolam à nossa vista, com
discursos de simulação e atuação objetiva, principalmente por parte da
classe política, hoje a maior expressão dessa trupe.
Eram tempos em que a personalidade migrava do seu status íntimo
para o público e, por isso, carecia de defesas. Tempos de mudanças bruscas e
aparentemente permanentes nos sentimentos das pessoas, nos códigos de conduta
coletiva, nas personalidades variadas, nos discursos múltiplos, nas expressões
individuais, quando expostas, do falar e do silenciar: tudo poderia ser um jogo,
com papéis definidos e por vezes conhecidos de todos. Mas era necessário abrir
a cena.
De certa forma, o homem moderno, e com isso quero dizer o
homem que se moldou no fin-de-siècle passa a ser alguém que vive pelo
menos dois “eus”. Ele vive seu eu dividido em um eu
real e um eu circunstancial. O eu real é ativo e tem por base as
motivações e impulsos individuais, enquanto o eu passivo é aquele que
aparece para a sociedade que cerca o indivíduo. Sennett (403) chama esses dois
“eus” de eu (o ativo) e a mim (o passivo).
Paradoxalmente, o eu real não se mostra em público,
ou seja, ele só é mesmo ativo em sua privacidade e intimidade, enquanto o eu
passivo só se mostra em público, defendendo o indivíduo de seus temores,
mazelas e dos ataques eventualmente contra ele desferidos pelos diversos atores
e circunstâncias da sociedade que o cerca e envolve.
A adequação a esses valores pode representar sobrevida do
eu que aparece, sendo ele apenas plástico, enquanto o verdadeiro eu, ativo, se
dá apenas em oculto, o que também o faz sobreviver. Cada um à sua forma, os
dois modelos do eu contemporâneo parecem continuar sua corrida por adaptação.
Muito do que foi exposto e foi defendido por Sennett foi buscado nos princípios
psicanalíticos do narcisismo. (Capítulo 14, O ator privado de sua arte.
[SENNETT, 243-314; 381-409]).
Após este breve trabalho a respeito do eu e suas
caracterizações básicas a partir do fin-de-siècle, percebo com mais
clareza a importância real do papel que temos a desenvolver em meio à
sociedade na qual estamos inseridos. Quem sou eu? De onde eu vim? Para onde eu
vou? O que tenho a fazer? Questões assim acompanham o homem desde tempos
imemoriais. Respostas, bem, essas são inúmeras e inexistentes ao mesmo tempo.
Mas o homem não desiste de as buscar permanentemente.
Ainda não alcançamos a maioridade em alguns pontos de
nossa humanidade, mas certamente já crescemos muito. Hoje vivemos a realidade
de uma sociedade pós-moderna, que se globaliza – mundializa, para alguns –
a passos rápidos. Boa parte de nossa estrutura social e interior tem seu ponto
de partida nos tempos do fin-de-siècle. Ali as coisas se mostraram mais
claras, pois o homem conseguiu tomar para si a responsabilidade de muito do que
antes era tido por divino ou transcendente.
Que as amostras desse passado recente do fin-de-siècle
nos sirvam de exemplo e modelo e que, a partir de nós, enquanto indivíduos que
somos, possamos tomar como nossa a parte que nos toca encenar nesse grande
teatro que é a vida. Creio que o fin-de-siècle ainda não terminou. Não
em sua essência mais profunda, motivadora. Sua evolução continua e suas
perspectivas ainda batem à nossa porta. Cabe agora a cada um descobrir e
assumir seu papel, sabendo que toda a sociedade é um modelo vivo do qual
fazemos parte.
Referências
bibliográficas
SCHORSKE,
Carl E..
Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo, Companhia
da Letras/ Ed. Unicamp, 1988.
SENNETT,
Richard. O declínio do homem público:
as tiranias da intimidade. Trad.: Lygia Araújo Watanabe. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998.
BELISÁRIO, Roberto. Viena
fin-de-siècle: política e cultura. Carl E. Schorske. Cia das Letras/Ed. Unicamp,
1988.
Resenha. s.l.; s.d. Disponível em: <www.comciencia.br/resenhas/viena.htm
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DIAS,
Edson dos Santos. Resgatando
o movimento modernista urbano: a expressão de uma conjuntura histórica que
marcou as cidades do Século XX.
In: Revista GeoNotas, Universidade Estadual de Maringá, Número 4, Vol. 4.
Maringá, 2000. Disponível em: <www.dge.uem.br//geonotas/vol4-4/dias.shtml>.
EAGLETON, Terry. As ilusões do
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Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
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MUNK,
Leonardo. Paris, Viena: dois
espectros de uma sociedade em crise.
Rio de Janeiro, UFRJ, s.d.
Disponível em: <www.ciencialit.letras.ufrj.br/ensaios/munk.doc>.