O Fin-de-siècle: um mundo que mudava

JOEL THEODORO DA FONSECA JÚNIOR
Aluno do Curso de Mestrado em Ciência da Literatura
(Programa de Semiologia) 

Comunicação feita durante o 2º. SIMPÓSIO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA. 

Faculdade de Letras da UFRJ
27 e 28 de junho de 2004
 

1. Introdução

Nesta comunicação pretendo apresentar alguns elementos que venham servir de ponto de apoio em reflexões a respeito do eu na modernidade e pós-modernidade, sendo que a tônica de informações e buscas será no período que vai de meados do século XIX a início do século XX, exatamente o período em que a crise do liberalismo se agravou e gerou profundas transformações na humanidade, em todas as sociedades após esse tempo.

Interessam-me em particular as informações de Carl Schorske em seu Viena fin-de-siècle (SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo, Companhia da Letras/ Ed. Unicamp, 1988.), a partir das quais posso tecer uma rede de reflexões que ajudam a pensar o mundo no qual vivemos entendendo melhor suas relações e suas realidades. Como texto de apoio para alguns pensamentos, tenho por muito próprio o texto de Richard Sennett, O declínio do homem público (SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Trad.: Lygia Araújo Watanabe. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.), com sua escrita agradável e que joga o leitor a uma concordância fácil com suas idéias, posto que são muito próximas do que cada um de nós eventualmente possa ter vivido em áreas da vida.

O objetivo que espero alcançar é a reflexão sobre a condição humana a partir de eventos políticos, culturais, filosóficos e intelectuais vistos e registrados em tempos de grandes mudanças e efervescências sociais e antropológicas das mais abrangentes que a humanidade já assistiu. Até hoje sofremos os efeitos desse tempo e, creio, continuamos a assistir a traumáticas transformações que, quem sabe, somente serão catalogadas em gerações futuras, que certamente falarão de nós e de nosso tempo.

2. Definições e conceituações preliminares

2.1. Algumas considerações

Naqueles tempos, muitos movimentos nacionalistas começavam a se expandir por toda a Europa, modificando conceitos e reformando idéias, bem como redefinindo paradigmas e fronteiras. O liberalismo, por exemplo, estava em crise conceitual e prática, com nuances que não deixavam sombra de dúvida de que as mudanças eram por demais ríspidas, com parcas possibilidades de alguém contemporâneo a elas poder perceber na totalidade o que estava ocorrendo ao seu redor.

As diversas expressões de arte entravam, por um lado, em tempos de produção fértil, como nunca antes imaginada, e, por outro, em crise intensa de sua produção. A ciência em geral sofria alterações também tremendamente significativas, com rompimento de conceitos e princípios até pouco tempo antes aceitos como axiomáticos. As idéias estavam fragmentadas e as velhas categorias de classificação de pensamento pareciam não mais se adequar de maneira a satisfazer aos anseios populares e acadêmicos naquela virada de século.

Segundo Schorske, em meio ao que parecia uma tremenda desordem havia uma certa ordem que servia de elemento de unificação, e isso se dava a partir de dois pontos básicos: política e cultura. O eu, em meio a tudo isso, em meio ao caos organizado de idéias que ainda buscavam caminho seguro a trilhar, era o ponto alto do desequilíbrio e da fragmentação que vem até os nossos dias bater à porta do interior do ser humano pós fin-de-siècle. Ele trata de um universo social delimitado, que é a cidade de Viena antes e durante a virada do século XIX para o XX. Seu enfoque é muito feliz, pois a Viena daqueles dias reúne em si todos os elementos que tiveram semelhantes em toda a Europa, sendo que, em muitos episódios, de maneira concentrada e mais intensa.

2.2. O ambiente fin-de-siècle

Fin-de-siècle é termo aplicado não apenas a Viena, mas a todo um tempo, ou processo, durante o qual o mundo, principalmente o europeu Ocidental, teve uma verdadeira metamorfose social, política e cultural, com raios atingindo todas as esferas da vida humana a partir de então.

Uma enorme massa de pensadores, artistas, psicólogos e historiadores estava empenhada em responder as perguntas eternas ao ser humano, mas que agora se tornavam cruciais. O momento levava à discussão do problema da natureza do indivíduo numa sociedade em crise de desintegração. Foi essa leva de questionamentos que elevou Viena a um lugar de destaque no cenário em que se buscava uma nova concepção para o ser humano. Até havia pouco tempo, o homem tinha por boas e satisfatórias as respostas metafísicas de cunho religioso às suas incógnitas, mesmo as mais profundas. Quando não encontrava respostas plausíveis, o divino atendia perfeitamente o seu silêncio e a paz aparentemente continuava a reinar nos seres humanos.

A partir do desmonte da idéia mais universal de que o divino respondia a todas as questões humanas, as idéias mais antropocêntricas tomam mais vigor e passam a governar a razão de modo objetivo e direto. Nesse ambiente, toma força a idéia do homem psicológico (onipresente), sendo que Schorske defende que ele surge a partir da crise política e cultural de Viena.

O declínio, ou o incremento, da crise do liberalismo gerou um severo clima de ansiedade, inconstância, percepção nua da brutalidade da sociedade. O desaparecimento da boa esperança, talvez um tanto ingênua, no homem, parece ter se dado, ou, pelo menos, se evidenciado, exatamente por esses dias. Os traços humanistas e cada vez menos metafísicos passaram a ser centrais nos temas e discussões entre a intelectualidade. Com isso, o passo alcançado foi o do homem que pensa e tem em si a resposta para suas mazelas, para seus vazios e para seus questionamentos permanentes. O olhar do homem passou a ser posto dentro de si ao invés de numa esperança externa, como acontecia tempos antes, no auge da religiosidade ocidental européia.

A alta burguesia de então tinha bases simples e modelares: no aspecto da moralidade ela era convicta, virtuosa e repressora; no campo político ela era voltada para a lei e para seu império, que estava invariavelmente acima do indivíduo e da ordem social; no aspecto intelectual ela defendia a supremacia da mente sobre o corpo, com progresso social advindo de trabalho duro, ciência e educação.

Em meio a tão rica gama de mudanças, o burguês interiorizava a cultura estética que ele absorvia, e assim cultivava o seu eu, sua unicidade pessoal, o que lhe gerou inevitável preocupação com a vida psíquica individual. A fertilidade de reflexões e postulados científicos e acadêmicos advindos desse período só nos fazem comprovar tal realidade.

No entanto, por razões óbvias, uma problemática constante para os pensadores e para os formadores de opinião no fin-de-siècle era a visão clara da dissolução do postulado liberal em meio à política moderna da Europa e da Áustria de seu tempo.

3. O eu no período fin-de-siècle

O período fin-de-siècle trouxe modificações não apenas à sociedade, mas podemos entender que elas, de fato, partiram da reordenação pessoal para a coletiva e social. A necessidade de afirmação de uma nova personalidade e de um novo caráter estava em curso, deixando-nos rastro de explicação para elementos que a própria psicanálise, ciência também sedimentada no fin-de-siècle, poderia nos ajudar a compreender.

Até bem perto de meados do século XIX, o homem parecia querer transparecer o que ele era em determinadas cenas, mas começava a tecer aspectos de comportamento múltiplo em outras. Na esfera pública, as pessoas tendiam cada vez mais a se mostrarem diferentes do que eram em sua vida privada. Na verdade, o que estava surgindo de maneira sistemática era a caracterização de atores da vida pública, que tinham por necessário desempenhar papéis específicos para o exterior de suas vidas.

De maneira ainda insipiente surgia o homem público que vem até nossos dias, com forte visibilidade e boa definição de papéis em público, mas que tenta se esconder dos olhares coletivos em sua vida privada. Assim, dependendo do seu momento, o homem público desempenhava papel passivo, de observador, ao fitar os demais e ativo, de ator, ao desempenhar o seu próprio jogo de cena.

Trazendo para a prática da vida cotidiana, temos que o que vemos de uma personalidade pública no exercício de seu papel é apenas a exteriorização de seu jogo, ou seja, não sondamos verdadeiramente a pessoa e seu caráter. Isso se fez notório, talvez com raras exceções, e perdura até nossos dias, nos quais vemos os jogos que se desenrolam à nossa vista, com discursos de simulação e atuação objetiva, principalmente por parte da classe política, hoje a maior expressão dessa trupe.

Eram tempos em que a personalidade migrava do seu status íntimo para o público e, por isso, carecia de defesas. Tempos de mudanças bruscas e aparentemente permanentes nos sentimentos das pessoas, nos códigos de conduta coletiva, nas personalidades variadas, nos discursos múltiplos, nas expressões individuais, quando expostas, do falar e do silenciar: tudo poderia ser um jogo, com papéis definidos e por vezes conhecidos de todos. Mas era necessário abrir a cena.

De certa forma, o homem moderno, e com isso quero dizer o homem que se moldou no fin-de-siècle passa a ser alguém que vive pelo menos dois “eus”. Ele vive seu eu dividido em um eu real e um eu circunstancial. O eu real é ativo e tem por base as motivações e impulsos individuais, enquanto o eu passivo é aquele que aparece para a sociedade que cerca o indivíduo. Sennett (403) chama esses dois “eus” de eu (o ativo) e a mim (o passivo).

Paradoxalmente, o eu real não se mostra em público, ou seja, ele só é mesmo ativo em sua privacidade e intimidade, enquanto o eu passivo só se mostra em público, defendendo o indivíduo de seus temores, mazelas e dos ataques eventualmente contra ele desferidos pelos diversos atores e circunstâncias da sociedade que o cerca e envolve.

A adequação a esses valores pode representar sobrevida do eu que aparece, sendo ele apenas plástico, enquanto o verdadeiro eu, ativo, se dá apenas em oculto, o que também o faz sobreviver. Cada um à sua forma, os dois modelos do eu contemporâneo parecem continuar sua corrida por adaptação. Muito do que foi exposto e foi defendido por Sennett foi buscado nos princípios psicanalíticos do narcisismo. (Capítulo 14, O ator privado de sua arte. [SENNETT, 243-314; 381-409]).

4. Conclusão

Após este breve trabalho a respeito do eu e suas caracterizações básicas a partir do fin-de-siècle, percebo com mais clareza a importância real do papel que temos a desenvolver em meio à sociedade na qual estamos inseridos. Quem sou eu? De onde eu vim? Para onde eu vou? O que tenho a fazer? Questões assim acompanham o homem desde tempos imemoriais. Respostas, bem, essas são inúmeras e inexistentes ao mesmo tempo. Mas o homem não desiste de as buscar permanentemente.

Ainda não alcançamos a maioridade em alguns pontos de nossa humanidade, mas certamente já crescemos muito. Hoje vivemos a realidade de uma sociedade pós-moderna, que se globaliza – mundializa, para alguns – a passos rápidos. Boa parte de nossa estrutura social e interior tem seu ponto de partida nos tempos do fin-de-siècle. Ali as coisas se mostraram mais claras, pois o homem conseguiu tomar para si a responsabilidade de muito do que antes era tido por divino ou transcendente.

Que as amostras desse passado recente do fin-de-siècle nos sirvam de exemplo e modelo e que, a partir de nós, enquanto indivíduos que somos, possamos tomar como nossa a parte que nos toca encenar nesse grande teatro que é a vida. Creio que o fin-de-siècle ainda não terminou. Não em sua essência mais profunda, motivadora. Sua evolução continua e suas perspectivas ainda batem à nossa porta. Cabe agora a cada um descobrir e assumir seu papel, sabendo que toda a sociedade é um modelo vivo do qual fazemos parte.

 

 

Referências bibliográficas

SCHORSKE, Carl E.. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo, Companhia da Letras/ Ed. Unicamp, 1988.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Trad.: Lygia Araújo Watanabe. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

   

Leituras adicionais

BELISÁRIO, Roberto. Viena fin-de-siècle: política e cultura. Carl E. Schorske. Cia das Letras/Ed. Unicamp, 1988. Resenha. s.l.; s.d. Disponível em: <www.comciencia.br/resenhas/viena.htm >.

DIAS, Edson dos Santos. Resgatando o movimento modernista urbano: a expressão de uma conjuntura histórica que marcou as cidades do Século XX. In: Revista GeoNotas, Universidade Estadual de Maringá, Número 4, Vol. 4. Maringá, 2000. Disponível em: <www.dge.uem.br//geonotas/vol4-4/dias.shtml>.

EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Trad.: Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro, Jorge Zahar  Ed., 1998.

MUNK, Leonardo. Paris, Viena: dois espectros de uma sociedade em crise. Rio de Janeiro, UFRJ, s.d. Disponível em: <www.ciencialit.letras.ufrj.br/ensaios/munk.doc>.

 

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