AS VEREDAS DO SIGNO DA MÃO NA POÉTICA DRUMMONIANA

 

Giovane da Silva Santos

(Mestrando em Ciências da Literatura, Teoria Literária, UFRJ)

Professor Orientador: Aberto Pucheu

 

A aporia angustiante diante do incomensurável desconcerto do mundo e da assustadora humanidade marcou constantemente o olhar e a tessitura poética do gauche drummoniano em todas suas fases líricas. Entretanto a necessidade de compreender o enigma da pedra no meio do caminho e confraternizar com a irmã humanidade possibilitou a tentativa de superação dos impasses existenciais desse eu-todo-retorcido através das veredas do signo universal da mão na poética drummoniana.

 O símbolo da mão representa metonimicamente o poeta mineiro em suas relações dialéticas com o mundo torto e percorre inúmeras veredas em direção ao outrem, os caminhos do (ir) mão, como tentativa de superar no plano estético da poesia as aporias de uma humanidade que ostenta mãos desenlaçadas e de redimir as culpas de abarcar o sentimento do mundo.

Antonio Houaiss já antevira no fazer poético drummoniano “um estar-no mundo que se faz rejeitar-o-mundo para, implicitamente, propor um-novo-mundo”.E a tomada de consciência deste estar-no-mundo emerge na confluência constante que este signo universal de aproximação exerce na poesia do mineiro Itabirano, ao simbolizar metonimicamente, uma extensão do ser-poético, imbuída de autonomia na busca do encontro com o outrem e que suplica numa humildade franciscana “Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”

Universalmente a imagem da mão simboliza “as idéias de atividade, ao mesmo tempo em que os de poder e dominação, a síntese exclusivamente humana do masculino e do feminino, o conhecimento, a vida, pois tem como função a linguagem”. Na poética do gauche itabirano esse signo não percorre as veredas da dominação, mas sim o encontro angustiado com o outrem, paralisado pelas aporias do assustador espetáculo do mundo.

Na sua primeira fase lírica, as imagens dessas mãos encontram-se desenlaçadas, limitando-se a registrar as cenas do cotidiano. Esse signo, quase inexistente verbalmente nas primeiras poesias, apresenta-se em suspensão, estabelecendo relações superficiais e mecânicas, como no poema Sociedade, radiografia da hipocrisia humana, onde marca os convencionalismos da vida burguesa, um encontro vazio que transpassa o outrem e não o vê.

Quando foi a hora de sair

O amigo disse para o homem;

Breve irei a tua casa.

E apertou a mão dos dois.

No caminho o homem resmunga

 _ Ora essa era o que faltava.

E a mulher ajunta: - Que idiota

 

Contudo existe nessa fase inicial da lírica drummoniana, germes latentes do futuro movimento do signo da mão rumo as veredas e seus irmãos no poema Aurora, onde surge a possibilidade do gauche reparar os erros do mundo caduco na dança fraternal “entre o bonde e a árvore”:

Entre o bonde e a árvore

dançai, meus irmãos!

Embora sem música

Dançai meus irmãos!

Os filhos estão nascendo

Com tamanha espontaneidade

Como é maravilhoso o amor

Dançai, meus irmãos!

 

Na dança solidária em que os diferentes homens dialogam esteticamente no reino mítico da poesia, ensaia-se um primeiro movimento (não-consciente) de uma vereda rumo ao outrem, a possibilidade de restabelecer a harmonia nas aporias ofertadas milernamente pelas ambições e vaidades do gênero humano.

Na fase mais madura de sua produção poética, a consciência individual do desconcerto do mundo desperta no eu-todo-enrodilhado o desejo de enlaçar as mãos, comungar com a humanidade sofrida e percorrer as veredas dos (ir) mãos. O sentimento de impotência, que impedia o gauche de agir numa sufocante aporia, ganha as dimensões do medo, desvelando ao poeta um mundo repleto de crises (o macro-cosmo) e o seu mundo intimo repletos de seres não concretizados (o micro-cosmo).

 O signo da mão passa a percorrer veredas que sustentam categorias temáticas na poemática Drummoniana, ora como promessa de harmonização do desconcerto do mundo no plano estético da criação, ora como a consciência culpada do gauche, na imagem do aniquilamento da ignóbil mão suja para o nascimento da mão-consciencia, ora subordinada as relações reificadas e mecânicas nas urbes modernas.

Na segunda fase de sua produção lírica, eclode um eu-lirico fragilizado, impotente, mas que promete o divórcio do evasionismo individualista da fase anterior para tornar a dolorosa percepção da realidade social, as crises do mundo em guerra, sua matéria poética. “O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.

Neste cenário de conflitos externos e internos, o gauche trilhará as veredas desse signo universal de aproximação, irá propor as mãos dadas com a humanidade para redimir-se da culpa de abraçar os sentimentos do mundo, manifestando o que Antonio Candido percebeu como “uma espécie de ação pelo testemunho, ou testemunho como forma de ação através da poesia”.

No poema Sentimento do Mundo, o símbolo da mão “aparece como algo que se completa, se estende para o semelhante e deseja redimi-lo”. Esta mão-consciente, representação metonímico do ser-poético, assume aspectos de uma humildade franciscana e o sentimento de impotência.

Tenho apenas duas mãos

E o sentimento do mundo

(...) Sinto-me disperso

anterior a fronteiras

humildemente vos peço

que me perdoeis.

 

Mediante a postura humilde deste eu franciscano, o signo da mão busca as veredas do outrem como forma de compreender a vida e propõe reconciliar-se com a humanidade no plano estético da criação poética nos versos engajados, mas de uma extraordinária sobriedade do poema Mãos dadas.

O presente é tão grade

Não nos afastemos muito,

Vamos de mãos dadas

 

Segundo Antonio Candido “o sentimento de insuficiência do eu entregue a si mesmo, leva-o a querer completar-se pela adesão ao próximo, substituindo os problemas pessoais pelos problemas do mundo”. Logo o desejo de comungar-se nas veredas de seus irmãos consiste na redenção de próprio poeta, que traz o outrem no próprio ser “carregado de tradições mortas”.

Essa proposta da fabricação prodigiosa do mundo-novo através do símbolo das mãos às vezes transforma-se num encontro fugaz, mero esbarros tangenciais como na prosa poética O operário do Mar.

Teria vergonha de chamá-lo, meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão,

Que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que

me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo; uma fascinação

quase me obriga a pular a janela, a cair na frente dele, sustar-lhe a marcha...

 

O gauche mineiro consciente do sofrimento coletivo do mundo esbarra tangencialmente em seus irmãos, mas é dominado por um sentimento de extrema impotência, um misto de fascinação e receio de contemplá-lo, de enfrentar seus fantasmas virtuais, de enlaçar as mãos.

A segunda vereda que o poeta Itabirano realiza rumo ao outro, através do signo universal da mão, percorre a dimensão da autoflagelação desse membro, da mutilação da “mão suja há anos” para um renascer regenerado. A culpa de abarcar os sentimentos do mundo envolve esse símbolo, agora fragmentado e de um sujo vil, no halo do fantástico, da imagem surrealista e do grotesco.O principio de corrosão e automutilação (negação máxima da individualidade do eu-torto) tecem a estratégia de linguagem utilizada para construção estética da mão suja, por meio de imagens surreais e mescla de estilos entre o grotesco e o sublime.

Minha mão está suja

Preciso cortá-la

Não adianta lavar

A água esta podre

O sabão esta ruim

A mão esta suja

Suja há muito anos

 

Os caracteres do grotesco semantizam a noção da impureza sem remédio desse símbolo divino de confraternização, por meio dos vocábulos podrr, suja, escuro, nojo, incurável, ferida, doença. O sentimento de culpa que paralisa o eu-todo-enrodilhado, o conduz a desesperada tentativa estética de decepar a ignóbil mão suja, metonímia da impotência do ser-poético, que como a fênix renascida de suas próprias cinzas, deseja ressurgir para comungar com a distante humanidade.

 

Com o tempo, a esperança

E seus maniqueísmos

Outra mão vira

Pura – transparente

Colar a meu braço

 

Todos elementos são contaminados mediante ao contato com esta mão impura, até que a imagem surrealista desse membro, autônomo ao corpo, decepado na mesa, permite a expectativa de uma possível vereda rumo ao outrem, o encontro consigo mesmo no florescer da mão-consciente e regenerada.

A mão escondida

No corpo espalhava

Seu escuro rastro

 E vi que era igual

Usá-la ou guardá-la

O nojo era um só

 

Antonio Candido considera que “a mão incurável polui o ser, impede o contato com o semelhante e cria a ânsia da purificação”, pois seu sujo vil contrasta-se com “a limpeza natural às coisas”, a normalidade que deveria prevalecer nas relações, em que o signo da mão deveria ser constituído da matéria transparente do “cristal ou diamante”.

Cristal ou diamante

 Por maior contraste

 Quisera torna-la

 Ou menos por fim

 Uma simples mão branca

 Mão limpa de homem

 

No entanto, esta imagística luminosa “cristal, diamante, branca” que deveria ser a matéria constituinte deste signo fraternal num mundo ordenado de relações solidárias, só será possível mediante o flagelo do eu-torto e no ciclo do renascimento, que a ação da morte simbólica propiciará.

Este mesmo processo de automutilação surge com uma tonalidade sangrenta e vulto catártico, no poema Movimento de Espada, que se abate sobre o braço sujo, extensão do signo da mão, o maculando com o rubro sangue do perdão, da justiça e da redenção da consciência culposa do gauche mineiro, que agradece a espada vingadora do irmão a benção de um possível reencontro, da travessia da vereda rumo ao outrem.

 

Estamos quites, irmão vingador

Desceu a espada

E cortou o braço

Cá está ele, molhado em rubro

Dói o membro, mas obre o ombro

Tua justiça resplandece

 

Contudo o gauche Itabirano percebe que nos caminhos do (ir)mão, nas suas complexas veredas, o signo da confraternização universal passa a subordinar-se a relações superficiais, mecânicas, automatizadas, reificadas nas contingências sociais das exigências da vida moderna.

No poema Nosso Tempo do tomo lírico de A Rosa do Povo, o deslocamento de qualificativos humanos desse signo universal de aproximação, o converte num ente robotizado, gerando as imagens do braço mecânico e da mão de papel.

Come braço mecânico, alimenta-te mão de papel

É tempo de comida, mais tarde será o de amor.

 

No cronos da comida, o eu-todo-retorcido assume a consciência de que as mãos humanas se tornaram escravas de hábitos medíocres e regulares, que as afastam cada vez mais do outrem e aprofunda a solidão coletiva. Ironicamente o alimento orgânico (a comida) substitui o alimento intelectual e espiritual da comunhão entre os seres e os homens tornam-se escravos da classe cultural de seu tempo.

O tempo do amor encontra-se em suspensão mediante o desfile reificador da hora do rush, onde José Guilherme Merquior observa sagazmente “que os átomos da vaga humana ocupam o mesmo nível que os objetos: o homem, a mulher, as crianças valem o mesmo que o chapéu, o cigarro, as roupas”.

A existência alienada dos escravos modernos reifica o signo da mão que em suas veredas rumo ao outro se perde na robotização desumana do lócus do escritório (a mão de papel) e torna-se escrava das relações mecânicas das urbes modernas. Eclode novamente a aporia plena do gauche para compreender o mundo falido e comungar com a assustadora humanidade no plano estético da poesia. A pedra no meio do caminho volta a reaparecer vigorosa, enigmática. A solidão do homo urbanus torna-se a certeza melancólica do eu-torto, uma vez que o signo da confraternização universal gera agora o afastamento abissal dos seres do gênero humano. As mãos reificadas denotam as pequenas misérias da multidão solitária. As mãos voltam a serem desenlaçadas e o gauche compreende que ainda não é tempo da travessia de suas veredas rumo a humanidade.

Nasce a consciência amadurecida do eu-todo-enrodilhado de que a solidão irmana os homens e impede toda e qualquer possibilidade da comunhão solidária com o próximo, das angustiantes travessias das veredas do (ir)mão. As inquietudes do poeta de Itabira assumem a consciência resignada de que a solidão surge como o único oferecimento generoso que pode estender aos seus, única dimensão a irmanar a humanidade, uma vez que tem a percepção plena de que se vivem em “tempo de mãos descompassadas”.

Essa vereda do signo universal da mão pela esfera da solidão humana predomina de forma inquietante nos últimos textos do tomo lírico de A Rosa do Povo. No poema América, a imagem da mão assume a consciência plena de suas aporias para compreender o mundo e estender-se ao outrem, pois “A mão escreve tanto e não sabe contar”. Esse símbolo da escrita que tencionou a promessa de confraternização com o mundo na transfiguração dos objetos desordenados no plano estético, na criação de um-novo-mundo, adquire a consciência melancólica do descompasso das mãos em meio às contingências sociais das crises da Segunda Grande Guerra no poema Mais Viveremos.

Já não há mãos dadas no mundo

Elas agora viajarão sozinhas

Sem o fogo dos velhos contatos

Que ardia por dentro e dava coragem (...)  

O fogo dos velhos contatos, os esbarros no plano estético da criação entre as mãos que se aventuravam nas veredas de um encontro eternamente adiado, já não é mais possível e o abraço poético que lhe possibilitaria percorrer os caminhos do (ir)mão, os homens de todas as raças, desfaz-se na consciência resignada e aporética da solidão universal.Nas veredas diversas que o signo da mão percorre na poematica Drummoniana, das mãos desenlaçadas de sua primeira fase lírica, das mãos dadas na promessa de encontro no plano estético da criação, o gauche de Itabira assume a consciência da solidão universal como ultima tentativa de compreender o mundo e a sim mesmo, aceitar suas aporias, seus constantes impasses.

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Reunião. Rio de Janeiro. 5 edição Ed. Jose Olympio.1973

CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários escritos. Sp. Duas Cidades, 1970. p-93-122

HOUAISS, Antonio. Drummond mais seis poetas e um problema. Imago editora LTDA. Rio de Janeiro. 1976

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos, crenças e costumes. Rio de Janeiro. Ed. Jose Olympio. 1982.

 

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