Da experiência incomunicável
do herói trágico
Cristiane Sampaio de Azevedo
I
Falaremos aqui do incomunicável, “do que não se diz”,
mas se mostra, se desvela. Falaremos da experiência incomunicável do herói trágico.
Mas, como poderemos fazer isso, falar do incomunicável? Deixando o incomunicável
ser incomunicável. Em Antígona, de Sófocles,
o incomunicável se mostra a partir do sentimento de pudor, que traduzimos por
dever, experimentado pela personagem Antígona diante da escuta das leis não
escritas, que a convocam a enterrar o corpo de seu irmão Polinices,
descumprindo, com isso, as ordens do rei e seu tio Creonte. À escuta dessas
leis dá-se o desvelamento do real, ou a verdade(alétheia). Trata-se, então, de compreender o sentido do dever e da
verdade em Antígona.
Na 3ª parte da trilogia de Sófocles(Édipo
Rei, Édipo em Colono e Antígona)
percebe-se a personagem Antígona movendo suas ações em função de um dever
que coloca acima de qualquer lei humana, de qualquer poder. No entanto, seu ato,
sem desmerecer a sua singularidade, não é inaugural. Encontra-se na atitude de
Édipo, seu pai, um caminho semelhante ao seu. Não se quer dizer com isso que a
personagem Antígona repita algo já visto anteriormente, mas, sem dúvida,
pode-se dizer que seu ato remete a um passado, a uma origem, a algo que a
compromete.
Antígona é herdeira do trágico destino dos labdácias. Ela traz
consigo o “peso” de ser filha de Édipo(o dos pés inchados). Mas, junto a
esse “peso” a personagem carrega um sentimento que também faz parte do destino de seu pai: o
sentimento do dever (aidós). Esse,
pode-se dizer, está entranhado em suas origens, pois Antígona, como se sabe,
é filha de pais nobres, Édipo e Jocasta, e como tal tem por princípio
sustentar a herança de seus pais. Assim, o dever estaria também associado à
nobreza. No entanto, o mesmo não se dá com Ismene, irmã de Antígona e filha
dos mesmos pais. Ismene teme o poder de Creonte e se instala na “não ação”,
ainda que admita ter participação nos atos de sua irmã. Sendo assim, o dever
não é algo simplesmente resguardado pela nobreza. O sentimento do dever provém,
principalmente, da própria condição do herói trágico. Este leva o dever às
últimas conseqüências. Assim o faz Édipo quando fura seus olhos e renuncia
ao poder depois de descobrir ter desposado a própria mãe, assim o faz Antígona
quando abre mão ao casamento para prestar as honras devidas ao seu irmão
morto. Mas o que significa exatamente esse dever?
Em Antígona, o dever levado às
últimas conseqüências pela personagem é, segundo
Creonte, sinônimo de temeridade, insensatez e assim por diante. Ao desobedecer
as ordens de Creonte e infringir as leis, a personagem Antígona desestrutura
uma ordem estabelecida. Ela, Antígona, filha de Édipo e que na morte deste
passa a obedecer as ordens de seu tio, provoca, com sua desobediência, um certo
estranhamento: o que “era” passa a “não ser”. O lugar do “não ser”
é à margem. Antígona, por isso, é repudiada, é abandonada, condenada, pois
rompe com seu papel social, nadifica sua existência, torna-se nada. Tudo isso
em função do dever.
Por outro lado, o dever, que aos olhos de Creonte e de seus seguidores é
desmedida, que é o lugar do não ser, passa a ser a referência de Antígona.
Esta passa a ser a partir do dever. O dever, nesse caso, é, ao contrário da
desmedida, medida. Não fosse a força do dever, Antígona não teria a
singularidade que possui. Ela não seria quem é. O dever rompe a superfície da
existência da personagem e traz à tona o seu ser. Sem a força do dever, Antígona
seria apenas uma personagem como Ismene, resignada diante do trágico destino de
sua família, após a morte de seus pais.
O dever, além disso, faz com que o herói trágico não seja motivo de
piedade por seu destino, mas, ao contrário, o dignifica, o enobrece. Sabe-se
que Antígona, por exemplo, é privada do casamento, arrastada para uma fria
caverna e destinada a nela passar os seus dias até a morte. O trágico e terrível
destino de Antígona seria motivo também de piedade se não fosse o dever a
envolvê-la de um valor inestimável, ímpar, pois é a sua escolha que a leva a
tal destino e não o mero acaso.
Também não proporciona o dever o riso, não torna cômico o herói trágico,
mas, muito longe disso, o dever dá gravidade aos personagens trágicos. Não se
ri diante do herói trágico quando percebe-se que o dever que ele toma para si
o pode levar aos mais terríveis destinos. Isso por um único motivo: o herói
trágico não nos aparece como alguém que possa escolher e que ao fazê-lo,
simplesmente, fizesse uma má escolha, uma escolha infeliz. O dever aparece como
imposição, caminho dignificado por alguém grande o bastante para trilhá-lo.
O dever, assim, antes escolhe do que é escolhido. Ele ganha, por isso, dimensão
de sagrado.
Só a partir do dever, então, o herói trágico se diferencia do
senso-comum, movido, em geral, pela particularidade, e alcança uma dimensão
que transcende toda e qualquer ação movida por
um interesse
pessoal. Transcender significa estar “além do bem e do mal”, ser lançado
numa “terceira margem”.
Assim, Antígona não se opõe às ordens de Creonte somente para impor
uma vontade própria ou para praticar o mal frente ao bem, à ordem representada
pelo governo de Creonte. Ela toma as atitudes que toma em função de algo que
está além das dicotomias de bem e de mal, de
ordem e de desordem. Talvez por isso, quando se pensa no herói trágico,
ainda que este apareça de modo dignificado por suas escolhas, dificilmente
consegue-se vê-lo como a encarnação seja do
bem seja do mal. O herói trágico, mesmo para o olhar mais distraído,
sempre parece outra coisa. O herói
trágico não é o bem nem é o mal; é algo que a ambos transcende; é, como até
agora foi definido, aquele que leva
o dever às últimas conseqüências. Mas o que mais se pode dizer do herói trágico que possa fazer entender a sua estreita relação
com o dever?
Muitas são as definições do trágico ao longo da história, desde
Aristóteles, na Poética, passando
por autores como Kierkgaard, Nietzsche e muitos outros.
Todos eles tentaram definir o trágico
a seu modo. No entanto, o trágico, segundo Gerd Bornheim, parece que sempre
escapa a definições. Isso porque, segundo o filósofo[1],
o trágico é uma experiência de vida e, portanto, difícil
é falar da singularidade dessas mesmas vidas que são presenteadas pela
situação trágica. A experiência
do herói trágico seria, nesse sentido, incomunicável. Assim, também, o mesmo
parece valer para o dever assumido
pelo herói trágico. Em Antígona, por exemplo, por mais que tentemos
definir a sua situação de heroína trágica e a relação de dever que
ela apresenta frente à existência, temos sempre a impressão de que falta algo
que não foi dito ou que não se disse de modo
apropriado, ou então temos a sensação de estarmos entrando num território
de pouco acesso a respostas e a
soluções.
Em Antígona, percebe-se, por
exemplo, o que é o trágico a partir da experiência da
personagem, assim como em Édipo
Rei e Édipo em Colono. Pode-se dizer, também, que só é
possível compreender o dever em Antígona a partir da experiência da
personagem. Sabe-se a definição
para o dever (aidós), mas
dificilmente é possível compreendê-lo de fato fora do âmbito
do vivido, do experimentado pela personagem. Assim mesmo, Ismene, irmã
de Antígona, não pode compreender
o que move a irmã a agir como age. Ismene, ainda que filha dos mesmos pais e
irmã dos mesmos irmãos e ainda que entenda o dever de agir honrando a
origem que possui, ou seja, ser filha de pais nobres, não está à altura de
compreender os atos de Antígona, pois não é tocada como esta por esse
sentimento.
O herói trágico ganha assim a amplitude da solidão. Ninguém senão
ele pode tomar para si o seu destino. Ninguém senão Antígona pode compreender
o sentido do dever.
Antígona é a personagem em aporia, “sem saída”, em completa solidão.
Assim o coro reconhece: “Muitas são as coisas estranhas, nada, porém, / há de mais estranho do
que o homem. (...) Pondo-se a
caminho em
toda parte, desprovido de
experiência / e em aporia, chega ele ao nada”[2].
A voz do coro são as vozes que reverberam, que repercutem, mas são também
visionárias. Antígona pôde tomar para si o dever porque chegou a esse nada de
que fala o coro. Esse nada é a origem de tudo, é a origem do dever, do ser.
Tudo passa a ser a partir desse nada.
O nada é a possibilidade do vir a ser. A estória de Antígona seria
digna de piedade se não fosse esse nada, pois do contrário ter-se-ia o
desespero frente ao destino trágico. Entretanto, ao contrário disso, a
personagem assente na nadificação. Antígona despoja-se de tudo o que é para
que o dever seja cumprido.
Tudo isso não quer em absoluto dizer que não se possa buscar falar a
respeito do trágico, que falar sobre esse assunto é em vão, já que o trágico
é uma experiência única e pessoal, incapaz de sofrer, por isso, qualquer
generalização. Não, insistimos, trata-se apenas de compreender como a dimensão
do herói trágico é uma dimensão radical. Tão radical que, em sua essência,
só diz respeito a ele mesmo. Trata-se, no entanto, de entender o que significa
esse “dizer respeito somente a ele mesmo”.
II
Sempre que
falamos em Antígona, caímos na clássica
definição de Hegel para esta tragédia de Sófocles: a oposição entre o
chamado direito natural e o direito positivo, e que os gregos chamavam,
respectivamente, de thémis e díke.
A thémis, o direito natural, era o chamado direito familiar, enquanto
a díke, o direito positivo, era o
direito interfamiliar, o direito institucional. Daí o termo designativo para o
juiz: o díkas- pólos(literalmente, o
juiz da cidade). A personagem Antígona ao desobedecer as ordens do rei e seu
tio Creonte, ou seja, ao enterrar o corpo de seu irmão Polinices infringe a lei
estabelecida pelo direito positivo, pela díke.
E, por isso, como sabemos, é julgada e condenada. Antígona, por ordens de
Creonte, é confinada em uma caverna até a morte e assim também privada do
casamento. Antígona, movida por um sentimento de pudor que lhe inspira dever,
escolhe a morte. Ao fazer essa escolha, ela escolhe a vida. Sua decisão não é
apenas um capricho. Antígona assente em algo que é anterior a qualquer vontade
própria, a qualquer condição, a qualquer papel. O dever de Antígona- aidós-
é a condição de sua nobreza. É um dever que nada tem a ver com poder. O
dever está vinculado à virtude, à areté,
também tributo próprio da nobreza.
Antígona à
escuta das leis não escritas, das leis divinas, da thémis, das leis que vigem desde tempos mais remotos, pôde ser
tocada pelo dever. A vergonha, o pudor diante da barbárie, da carnificina,
exercida pelo poder de Creonte, o poder institucionalizado, a díke,
que movido pela desmedida, pela força da hybris
escolhe o sacrilégio ao invés do dever, toma conta de Antígona. Junto com
esse pudor, que se expressa por um sentimento de dever, dá-se, também , um
certo estranhamento do real: o que
é a vida, o que é a morte, o que é a verdade, o que é a ordem, o que é a
desordem? Desse modo, ouvimos Antígona dizer as seguintes palavras,
referindo-se a Creonte: Eu já sabia que
teria de morrer/(e como não?) antes até de o proclamares,/mas se me leva a
morte prematuramente, /digo que só há vantagem nisso./Assim, cercada de infortúnios
como vivo,/ a morte não seria então uma vantagem? A ação de Antígona é
toda escuta. À escuta das leis não
escritas, Antígona move sua ação por todos e por ninguém, por Polinices e
por ela mesma. Sua ação é em si mesma, é “de graça”, gratuita, é doação,
sacrifício, é sem nome, é o incomunicável.
A manifestação
da verdade, o desvelamento do real que se dá na ação de Antígona, não é,
assim, oposição a uma não verdade, à não verdade de Creonte simplesmente. A
verdade aqui não é o verdadeiro em oposição ao falso, à mentira. A verdade
é a manifestação do ser. Antígona é tocada pela verdade. O desvelar do real
em sua ação se dá a partir do velamento do mesmo real. Assim, se diz que sua
experiência de heroína trágica é incomunicável, pois “não se diz”, mas
se mostra, se revela, ao mesmo tempo que se vela.
Assim, a
vergonha, o pudor, o dever não é algo que possa ser instituído, como a díke, é algo que não pode se exigir, que não pode se
impor custe o que custar, à força. O
dever é algo que conclama mais do que reclama. Antígona, de início, pede
ajuda para sua irmã Ismene, convoca-lhe a ajudá-la a realizar as homenagens
devidas a seu irmão morto. No entanto, logo percebe a
impossibilidade de se exigir algo. O
dever de Antígona aparece diante de leis que desde tempos originários, como já
se disse, existem. Sobre essas leis, a thémis, e a desobediência de Antígona em relação às leis ditadas por Creonte, a díke, ouvimos ela dizer:
Mas Zeus não foi o arauto delas para mim,
nem essas leis são as ditadas entre os homens
pela Justiça, companheira de morada
dos deuses infernais; e não me pareceu
que tuas determinações tivessem força
para impor aos mortais até a obrigação
de transgredir normas divinas, não escritas,
inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem,
é desde os tempos mais remotos que elas vigem,
sem que ninguém possa dizer quando surgiram.
E não seria por temer homem algum,
nem o mais arrogante, que me arriscaria
a ser punida pelos deuses por violá-las(...)
p.214
Na introdução a
Ser e Tempo, de Heidegger, Emmanuel
Carneiro Leão diz em certo momento:
“Não apenas é impossível dizer o ser. Também não carece fazê-lo, não é
preciso. E por quê?_ porque em tudo e sobre tudo o que se venha a falar, é
preservando essa impossibilidade que se pode dizer qualquer coisa[3].
Assim, Antígona em nenhum instante busca estabelecer o que é a verdade. Em
um de seus diálogos com Ismene, sua irmã, ela chega a dizer que para uns
parecerá sábia a decisão de
Ismene, ou seja, de respeitar as ordens de Creonte, e para outros a dela, de
sepultar o corpo de seu irmão morto. Antígona resguarda algo que é intraduzível
e que ela em nenhum momento deseja comunicar, porque, também, não pode fazê-lo.
O silêncio de
Antígona, a beleza de sua ação, de seus gestos, traduzem por si mesmos o
intraduzível, comunicam o incomunicável, ou seja, o que vem a ser pudor,
vergonha, dever. Todo o drama é que já não há mais escuta, nem visão para
isso. O que há é hybris, desmedida.
O caminho de Antígona
é o caminho da verdade, mas também o da liberdade. Antígona pôde estar à
escuta das leis não escritas, das leis divinas, da thémis, porque já tinha conquistado a liberdade. Por isso, também,
não teme a morte, mas antes a escolhe. E porque se é livre a tal ponto de
escolher a morte, Antígona pôde estar à escuta da verdade, do que não é
simplesmente, mas mostra-se, deixa-se aparecer
em seu retraimento, em seu ocultar-se.
Assim, na tarefa
de deixar o incomunicável ser incomunicável, lembramos do fragmento 93 de Heráclito[4]
que diz, ou melhor, assinala as
seguintes palavras.
O Autor, de quem é o oráculo de Delfos, não diz
nem subtrai nada, assinala o retraimento.
BIBLIOGRAFIA
BENVENISTE,
Emile. Le Vocabulaire des Instituitions
indo-européennes(2. Pouvoir, droit, religion), Paris, Les éditions de
Minuit, 1969.
BORHEIM, Gerd. O
sentido e a máscara. São Paulo, Perspectiva,1969.
HEIDEGGER,
Martin. Introdução á Metafísica.. Rio de Janeiro,1987.
_______. “A essência
da verdade”. In: Os Pensadores,1973.
JAEGER, Werner. Paidéia.
São Paulo, Martins Fontes, 1979.
OS PENSADORES
ORIGINÁRIOS. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão. Vozes, 1991
STAIGER, Emil. Conceitos
Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 1972.
SÓFOCLES. A
trilogia tebana(tradução do grego e apresentação Mário da Gama Kury),
Rio de Janeiro.