VOZES ÉPICAS – HISTÓRIA E  MITO SEGUNDO AS MULHERES 

Christina Ramalho

  

A concepção de Vozes épicas: História e Mito segundo as mulheres, tese semiológica defendida em julho de 2004, deu-se em 1996, quando, motivada pelo início do mestrado na UFRJ, que daria continuidade ao envolvimento com a Semiotização épica do discurso, teoria de Anazildo Vasconcelos da Silva, de quem fui aluna na graduação em Letras na Universidade Veiga de Almeida, e pela elaboração do poema Musa Carmesim, escrito, com intenções épicas, naquele ano e publicado em 1998, dei-me conta de que a autoria épica parecia ser um reduto do universo masculino. Se tal visão surgia ali, sem me trazer, de certo modo, grandes inquietações, logo outro fator provocaria desconforto: o contato com a crítica feminista através da participação em cursos como os de Elódia Xavier e Simone Caputo Gomes.

Descoberto o universo da crítica feminista, outro passou a ser meu ponto de vista sobre a questão. Se tantas obras escritas por mulheres vinham sendo resgatadas do “limbo literário”, em função da desconstrução das injunções patriarcais que durante séculos permearam a historiografia literária,  por que não poderia ocorrer o mesmo com as epopéias? Para responder positivamente a essa questão, era preciso, contudo, encontrar os textos.

Confesso que eu mesma não acreditava que pudesse encontrar epopéias escritas por mulheres, com exceção de uma ou outra, uma vez que a história canônica da epopéia ocidental reúne, como se sabe, um conjunto de obras centradas em feitos heróicos de feição tradicionalmente bélica e masculina, em que as mulheres aparecem como personagens coadjuvantes cuja condição divina ou carnal invariavelmente está vinculada ao percurso de um herói homem ora ratificando esse heroísmo, ora o desafiando, ora mesmo o premiando.

Oito anos de pesquisa, todavia, puderam me mostrar caminhos para uma conclusão bastante interessante: elas escreveram e escrevem o épico. Quem são elas? Que significado e importância tudo isso teria? E as mulheres como personagens épicas? Haveria representações outras que não as tradicionais? De que sustentações teóricas tal pesquisa necessitaria?

Em vista desses múltiplos questionamentos, organizei a pesquisa em dez partes que, por sua vez, geraram os dez capítulos da tese.

No capítulo 1, por meio da referência à Semiotização retórica do discurso, busquei solidificar a base semiológica da investigação a ser feita, analisando as condições de produção de sentido e as injunções retóricas que incidem sobre essa produção. Nele dissertei sobre as formulações de Anazildo Vasconcelos da Silva que geraram conceitos como: Semiótica das Línguas Naturais, lógicas naturais, semiose literária e sobredeterminações retóricas. Considerações sobre a questão da “literariedade”, fenômeno que caracteriza o reconhecimento de uma condição de produção discursiva específica, tiveram, ainda nesse capítulo, o respaldo do pensamento teórico de Silvina Rodrigues Lopes e Terry Eagleton.

Sendo a epopéia uma manifestação discursiva que se caracteriza, entre outros, pela dupla instância de enunciação - lírica e narrativa - optei por, antes de tratar do épico em sua compleição híbrida, apresentar, no capítulo 2, a Semiotização lírica do discurso e a Semiotização ficcional do discurso[1] como suportes necessários para a compreensão do modo como o lírico e o narrativo se fundem no épico. Para ilustrar as especificidades dos dois gêneros, e suas relações estruturais com a sobredeterminação retórica, fiz uso de análises de textos ensaísticos, líricos e narrativos. Tais análises tiveram, no corpo do trabalho, a função de justificar procedimentos semiológicos específicos utilizados para a leitura das epopéias selecionadas.

No capítulo 3, defini a Semiotização Épica do Discurso como o instrumento competente para a delimitação do corpus investigado, ou seja, foi a partir das categorias teóricas definidas pela teoria que pude reconhecer a epicidade dos poemas selecionados. Diante disso, tornou-se imperativo retomar, a título de revisão crítica, tanto os principais aspectos referentes à teoria em questão como os pontos em que a teoria se destaca quando comparada a outras incursões acerca do gênero. Assim, à formulação teórica de Anazildo Vasconcelos da Silva, fiz acompanhar considerações de Aristóteles, Emil Staiger, C. M. Bowra, Leo Pollmann, Gilbert Highet e Lynn Keller, buscando destacar, em cada uma das visões por eles e por ela expressas, fatores relevantes para a apreensão do épico.

Compreendendo, a partir do recorte teórico, a matéria épica como produto da fusão de duas dimensões, uma real, outra mítica; sua realização literária – a epopéia – como resultado da interação entre os planos histórico e maravilhoso; e as figuras do herói e da heroína como aquelas que circulam livremente por essas duas dimensões e, conseqüentemente, por esses dois planos, pude ter os necessários parâmetros para identificar dentro do percurso épico ocidental, separadamente: a existência ou não de matérias épicas em que se constate a presença de uma “heroína épica”; a existência, ou não, de epopéias, ou seja, matérias épicas literariamente realizadas, nas quais igualmente se observe a presença de uma “heroína épica”; a existência ou não de epopéias escritas por mulheres através dos tempos e as possíveis relações inerentes à questão da autoria neste gênero literário especificamente; e, remontando à leitura crítica, que põe sob foco a mulher, a existência ou não de relações culturais de gênero implícitas na estrutura das epopéias, desde sua origem homérica, a partir do enfoque nas personagens propriamente ditas – heróis, heroínas, deuses, deusas, musas, personagens históricas, etc.

No capítulo 4, propus uma leitura do “híbrido”, fato estético contundente, ou impossível de ser ignorado, uma vez que a investigação, ao delimitar uma forma épica, sustenta-se na categoria “gênero literário”, cujas fronteiras, hoje, são, no mínimo, discutíveis.  Nesse sentido, foram feitas referências ao fenômeno da hibridez e propostas algumas reflexões acerca do reconhecimento da produção épica como produto de natureza genérica específica e independente, a saber, o gênero épico. Para refletir sobre o hibridismo, foram particularmente importantes os pensamentos de Donna Haraway, Homi K. Bhabha, Michal Glowinski e Stuart Hall.

O capítulo 5, devo confessar, foi o mais trabalhoso e o mais enriquecedor em termos de aquisição de conhecimento. Dissertar sobre Mito era imprescindível, uma vez que a dimensão mítica é face inequívoca da expressão épica. Todavia, a palavra mito possui conceitos tão variados, sustentados por áreas de conhecimento às vezes tão incongruentes, que a pesquisa, nesse trecho, precisou ser extremamente longa até que fosse possível reunir todas as formulações estudadas num enfoque particular afeito à natureza deste estudo. Após muitas leituras, cheguei à formulação de uma categoria própria: a circularidade cultural das imagens míticas, por meio da qual creio ter alcançado o necessário argumento para explicar em que ponto o acesso das mulheres à escritura épica pode contribuir para a desconstrução, a transgressão e a reformulação do registro histórico-literário da experiência humano-existencial. O contato com alguns pensamentos foi imprescindível nesse caminhar, porém, entre referências diversas, destaco as reflexões de Câmara Cascudo, Carl Jung, Eleazar Meletínski, Franco Crespi, Gary Greenberg, J. W. Rogerson, Joseph Campbell, K. K. Ruthven, Luigi Moraldi, Marcelino C. Peñuelas, Maria Helena de O. Tricca, Marilyn Yalom, Mircea Eliade e  Vitor Jabouille. Além desses e dessas, a pesquisa não teria qualquer possibilidade de ser realizada sem os diversos dicionários de mitologia. Quanto à organização do capítulo, uma vez que a referência a Mito prende-se ao texto épico, dividi, num segundo momento, as investigações em quatro abordagens ou quatro imagens míticas: imagens míticas clássicas, imagens mítico-religiosas bíblicas, imagens míticas históricas e imagens míticas étnico-regionais.

O capítulo 6 partiu da premissa de que o atual painel da historiografia ocidental reflete uma preocupação contundente em relação ao “privado”, ou seja, àquilo que ficou velado até nossos dias, em virtude das bases ideológicas, opressoras em diversos níveis, das investigações críticas. Dessa nova postura, originaram-se o aparecimento de várias “histórias da vida privada” e, no âmbito da produção literária, um privilégio inegável do gênero ensaístico, que, por sua vez, tornou também visível a necessidade de se recontar a própria história da literatura ocidental, visto que, no que se refere à autoria literária, houve uma concessão clara à expressão literária eurocêntrica do homem branco pertencente a uma classe social privilegiada, ou seja, as representações do histórico na Literatura ativeram-se a um só olhar, o do homem, ainda que, obviamente, a categoria “homem” restrinja as diferenças individuais igualmente existentes e importantes de serem ressaltadas. Falando, contudo, especificamente, sobre a exclusão das escritoras, sabe-se que, embora a maioria das mulheres não tivesse acesso representativo à escritura e reprodução ou reconhecimento crítico de obras literárias até o século XVIII, muitas produziram textos que sequer chegaram a serem considerados pelos formadores do cânone literário ocidental. Ora, se hoje vivemos um período marcado por experiências como a globalização, o multiculturalismo, os movimentos de contracultura e a vitrinização do privado[2], é instigante verificar como a participação das mulheres na produção de escrituras simbólicas - marcadamente a épica, que, tradicionalmente, é uma produção com fortes vínculos de identidade nacional - pode contribuir para o redimensionamento da História e das próprias identidades nacionais. Donna Haraway, Elizabeth Fox-Genevese, H. Aram Veeser, Homi K. Bhabha, Joseph Campbell, Julia Kristeva, Lucia Santaella, Michel Maffesoli, Milton Santos, Noam Avram Chomsky, Stuart Hall, Terry Eagleton, Umberto Eco e Zygmunt Bauman foram referências imprescindíveis para que eu pudesse compreender as relações entre o crescimento do interesse de escritoras por poemas longos e a mudança de enfoque teórico em questões como o existencialismo, a sexualidade, o erotismo, o fetichismo, o estatuto do desejo e de sua repressão, os estudos da psique, a identidade e o feminismo para outros, como nação, cultura, história, mito, cidadania, colonialismo, exclusão, gênero, diferença e multiculturalismo. A Nova História que se constrói, de certo, inclui vozes exiladas do claustro.

No capítulo 7, abordei dois dos aspectos mais relevantes para o estudo: o heroísmo épico e a condição de “sujeito histórico”. Contendo a epopéia uma narrativa de viagem e sendo o sujeito épico (herói ou heroína) o ser capaz de realizar um duplo trânsito, do plano histórico para o maravilhoso e vice-versa, é importante observar que será exatamente essa mobilidade do sujeito épico que lhe dará a atribuição de vivenciar uma experiência histórica abrangente. Até o século XX, o acesso das mulheres à mobilidade espacial foi restrito. A clausura do lar, o casamento e a família restringiram a sua participação - salvas, é claro, as exceções - no âmbito das decisões e das intervenções sociais. Assim, o universo a ser simbolizado nas produções literárias de escritoras que vivenciaram a experiência do “claustro” não poderia abarcar experiências que somente a mobilidade e o trânsito histórico-geográfico-cultural permitiriam. As mulheres eram, nessa concepção, não-sujeitos da História. O que significaria, então, ser sujeito da História? Para realizar essa investigação, tomei como base o cânone épico ocidental e fiz uso das categorias de Stuart Hall acerca do conceito e da inscrição cultural do que ele chama de sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. Estendendo a visão de Hall às formulações de Joseph Campbell, Homi K. Bhabha, Michel Maffesoli,  Zygmunt Bauman e Tomaz Tadeu da Silva, pude chegar à identificação de um sujeito cultural híbrido, passível de conter diversas identidades, entre elas, as vozes excluídas.

Como último enfoque teórico, marcar as diferenças no que toca à categoria “gênero” era o único meio de se desconstruir o caráter reducionista do patriarcalismo branco e eurocêntrico, abrindo e legitimando, à força da justiça, novos campos de atuação e reconhecimento para as mulheres. Assim sendo, no capítulo 8 abri espaço para as teorias feministas, as reflexões sobre categorias como gênero, diferença, corpo e crítica feminista e a necessária formulação de uma metodologia crítica feminista que me permite abarcar as epopéias escolhidas a partir da ótica do revisionismo histórico. Nesse âmbito, contribuíram para a definição da metodologia, os pensamentos de Alejandro C. Carson, Andrea Nye, Donna Haraway, Elizabeth Grosz , Homi K. Bhabha. Pierre Bordieu, Nelly Richard, Sócrates Nolasco, Rita Felski, Rose Marie Muraro e Vera Queiroz, ainda que diversas outras linhas de pensamento feminista tenham sido abordadas.

Finalizadas as orientações de ordem teórica, restava contemplar os poemas. Entretanto, como ignorar que, a par das injunções patriarcais, havia um cânone épico bastante tradicional e influente? Além disso, se eu buscava compreender os modos de representação das mulheres nas epopéias, como fazê-lo sem averiguar o que o cânone informava nesse sentido? Orientada por essa inquietação, elaborei, no capitulo 9, um estudo crítico de epopéias canônicas escritas por homens, a saber: Odisséia (de Homero), Eneida (de Virgílio), A divina comédia (de Dante Alighieri), Os Lusíadas (de Luís de Camões), Prosopopéia (de Bento Teixeira), O Uraguay (de Basílio da Gama), Caramuru (de Santa Rita Durão), Toda a América (de Ronald de Carvalho), Martim Cererê (de Cassiano Ricardo), Cobra Norato (de Raul Bopp), Invenção de Orfeu (de Jorge de Lima), Nordestinados (de Marcos Acciolly), Poema sujo (de Ferreira Gullar), A grande fala do índio guarani perdido na história e outras derrotas (de Affonso Romano de Sant’Anna), Táxi e Metrô (de Adriano Espínola). As análises desses poemas - que incluíram observação minuciosa da presença de mulheres nos textos - de certo, enriqueceram bastante as conclusões posteriores sobre as epopéias escritas por mulheres.

No capítulo 10, finalmente, apresentei as autoras e as epopéias que integraram o corpus literário específico da investigação. Teresa Margarida da Silva e Orta e Nísia Floresta ilustram bem as primeiras incursões das mulheres pelo gênero épico: a primeira propõe um Poema épico-trágico, no qual uma mulher injustiçada apela, da clausura, para a efetivação de novos rumos para sua vida, daí o título “a épica enclausurada”; a segunda, em A lágrima de uma caeté, faz uma leitura indigenista bastante diferenciada em relação ao cânone indianista romântico. Romanceiro da inconfidência, de Cecília Meireles, representa, além de um espaço aberto a múltiplas vozes, um degrau significativo conquistado pela mulher no percurso historiográfico da Literatura Brasileira. O mesmo ocorre com Gabriela Mistral e seu Poema de Chile em relação à Literatura Chilena. Stella Leonardos dá continuidade ao modelo “romanceiro”, abrindo espaço para uma heroína, Anita Garibaldi, em Romanceiro de Anita e Garibaldi; para outra, Delfina Benigna da Cunha, em Romanceiro de Delfina; e para o episódio histórico do Contestado, em Romanceiro do Contestado. Já Neide Archanjo opta explicitamente pelo gênero épico, filiando-se a Fernando Pessoa e a Jorge de Lima, em As marinhas, canto sugestivo de um mergulho auto e hétero centrado, por meio do qual se compõe uma épica complexa e transgressora. Raquel Naveira, em vários poemas longos, delineia uma abordagem simultaneamente literária e histórica de fatos marcantes da cultura nacional, entre eles, também o episódio do Contestado (Caraguatá). Leda Miranda Hühne foi uma das que mais  utilizou a estrutura de poemas longos para expressar a relação humano-existencial, muitas vezes, inclusive, de forma bastante engajada nas questões sociais e políticas. Exemplos disso são A cor da terra, As cantilenas do Rei-Rainha, Porta bandeira e O Jardim silencioso. Silva Jacintho, por sua vez, em Helênica, redimensiona o papel da mulher na Antigüidade, e em Brasiliana, remonta à construção da identidade nacional, transitando, pois, do universal para o nacional. Além dessas autoras, há Teresa Cristina Meireles de Oliveira, que, de certa forma, dialoga com Cecília Meireles, ao ampliar, em Cantares de Marília, a voz de Marília de Dirceu, primeiramente colocada em Romanceiro da Inconfidência. Todas essas autoras, cada qual com sua expressividade, levadas ou não por uma intencionalidade épica, contribuíram para traduzir Mito e História numa linguagem literária lírico-narrativa, longa em extensão, centrada nos planos maravilho e histórico e, por isso, passível de ser lida como épica.

Ao final de todo esse processo, estava pronta a tese, épica, decerto, em suas 825 páginas, mas, sobretudo, materialização de um grande envolvimento pessoal com o tema. A publicação do livro Elas escrevem o épico pela Editora Mulheres, a ser lançado em agosto deste ano, e a elaboração, em parceria com Anazildo Vasconcelos da Silva, dos três volumes da História da epopéia brasileira são o fruto e as ramificações desta que, espero, possa ser uma boa contribuição para os estudos literários.


 

[1] Também teorias de Anazildo Vasconcelos da Silva.

[2] Termo meu.

 

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