O pêndulo de Rosalina: Repressão e Liberdade em Ópera dos Mortos
Carla Aparecida Alves Bento, Mestranda em Literatura Brasileira (UFRJ)
Reprimir e Libertar são forças duais de mesma intensidade que permeiam a vida do ser humano. O objetivo desse trabalho é mostrar como a personagem Rosalina, de Ópera dos Mortos, sofre a influência da repressão familiar (por parte de seu falecido pai, daí a referência aos mortos) e como essa influência desemboca numa libertação ao conhecer José Feliciano, chamado também de Juca Passarinho (por ser caçador desses animais, embora não tenha munição como o narrador mesmo diz). A repressão sexual (que é o que se irá tratar aqui) pode ser considerada como um “conjunto de interdições, permissões e normas que visam a controlar o exercício da sexualidade”, diz Marilena Chauí em Repressão Sexual: essa nossa (des)conhecida; como Rosalina é reprimida pela memória do pai e liberta por correr em suas veias o sangue do avô, origina-se daí sua comparação com o pêndulo de um relógio que vai de um lado para outro.
Far-se-á primeiro uma avaliação da figura do narrador, visto como o fio condutor da história, para em seguida, tratar-se das duas pontas do pêndulo – o pai e o avô de Rosalina, juntamente com uma visão sobre as questões do erótico e da repressão sexual. O problema central da obra: como a dualidade de Rosalina acaba por levá-la à loucura e como esta saída é escolhida como único caminho para resolver os problemas de sua vida, segundo os olhos e voz única desse narrador.
“E o senhor querendo saber...”: a narrativa
Autran Dourado estréia no mundo literário com a publicação de A Teia (1974). Ao lançar Ópera dos Mortos, em 1967, já havia escrito Tempo de Amar (1952), A barca dos homens (1961) e Uma vida em segredo (1964). Nesse período, o escritor já está em meio a nomes consagrados da Literatura Brasileira, como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. É a escola do olhar, como diz Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira. (BOSI, 1994); segundo ele, os autores desse período dão atenção ao interior dos personagens e constróem suas narrativas dando ao leitor a “visão” do pensamento dos personagens, o que convencionou-se chamar de romance psicológico.
Embora a obra de Autran Dourado seja pouco citada (o que se encontra em livros são apenas menções às datas de publicação de suas obras), Ópera dos Mortos não se diminui ante a fama dos demais escritores de sua época. Alfredo Bosi diz que
O que há é uma redução de vários universos pessoais à corrente da consciência... Embora a matéria pré-literária de Autran Dourado seja a memória e o sentimento, a sua prosa afasta-se
dos módulos intimistas que marcavam o romance psicológico tradicional. Mas deste não se distancia quanto aos componentes léxicos e sintáticos. (p. 422)
Ópera dos Mortos é um drama, musicado por um corpo de baile com voz única: a de um narrador onisciente e distante que fala a uma outra pessoa o que se passou com os moradores do sobrado daquela cidadezinha do interior: Lucas Procópio (o avô), João Capistrano (o pai) e Rosalina, a filha, são personagens centrais dessa ópera, que tem como corpo de baile Juca Passarinho (o amante), Quiquina (a empregada) e seu Emanuel (o velho amigo que trabalhara para seu pai), tão importante quanto os demais.
A obra é dividida em nove capítulos cujos títulos servem de temática ao desenvolvimento dos mesmo; cada capítulo induz o leitor a uma leitura visual pelo interior e exterior dos personagens e à medida que a narrativa se desenrola, o leitor vai recebendo explicações sobre os acontecimentos anteriores e entendendo que, na verdade, são os mortos que comandam essas vidas. Há duas grandes imagens no romance: o sobrado e o relógio. Construído pelo avô Lucas, o sobrado é terminado pelo filho João; o relógio, do tipo armário, tem um pêndulo que vai de um lado a outro, representando assim Lucas e João na vida de Rosalina. Rosalina é dupla: sobrado e relógio, bem como o sangue do pai e do avô que corre em suas veias. Juca Passarinho a escuta dizer: “Eu pensava que era igual a ele (o pai), não sou igual a ele não, sou igual a ele, o outro (o avô)”(p. 148). Rosalina é como as rosas de seda e papel crepom que faz para vender e o abismo de sua vida são as voçorocas que engolem a cidade, devorando-a com suas “gengivas vermelhas”.
O que se vê, porém, em Rosalina é o grande problema que essa personalidade dupla lhe confere: ao mesmo tempo que quer ser livre em sua sexualidade com Juca (herança do comportamento libidinoso do avô), sente-se reprimida pela força de uma educação repressora dada pelo pai, João (que não quis seguir os passos do pai). Esse conflito acabará por provocar a completa loucura de Rosalina, que não sabe lidar com seus instintos e com o tempo de sua história. É em volta desses fios que Autran Dourado coloca seu tear e deixa a cargo do narrador a função de uni-los em seu tempo livre, pois é nesse tempo que se libera Eros e por isso a sociedade trabalha, como diz Herbert Marcuse em Eros e Civilização.(MARCUSE, 1988) É preciso o trabalho para frear o instinto; é preciso a morte para que ele não se insurja.
A figura do narrador é uma peça fundamental em Ópera dos Mortos. Os costumes da gente da cidade pequena e a história de uma família vão servir de pano de fundo para ma narrativa que, por vezes, assume características reais, como que para provar sua verossimilhança.
O termo univocidade talvez não seja o mais apropriado para este tipo de narrador, mas é o que faz referência à esta voz que controla a narrativa: a de alguém da cidade que toma para si as vozes do povo local ao usar o termo “a gente”. Esse “a gente’ é a voz de um ser único, mas de sentimentos múltiplos, que acabará por induzir o leitor à história de suas memórias. É fato que os monólogos interiores de Rosalina, Juca Passarinho e Quiquina tomam força sozinhos, mas o narrador amarra o corpo do romance ao iniciá-lo com suas lembranças: “E agora chega, não? Estou vendo que o senhor quer é gente. Paciência, só um pouco mais, um gostinho só (...) Não fazem mais disto hoje em dia.”(p. 15) E como num teatro anuncia-se, na última linha do primeiro capítulo a personagem principal: “(E então, silêncio. Rosalina vai chegar à janela)”. O leitor tem a sensação de um deslocamento espaço-temporal ao ouvir a descrição memorialística do sobrado, pois deseja voltar-se para ver se realmente Rosalina está à janela
Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar seus mínimos gestos, como ela acompanhava os passeantes, não com aqueles olhos embaciados, aquela neutralidade morna. Mas veja antes a casa, deixa Rosalina pra depois, tem tempo. (p. 12)
Como afirma Walter Benjamin, não se percebe “que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é denominada pelo interesse em conservar o que foi narrado.”(BENJAMIN, 1987:210), e é isso que o narrador faz, prendendo o leitor-ouvinte à teia dos acontecimentos. É a partir deste momento que o narrador começa as construções de suas metáforas. O narrador, na verdade, vai bem mais além do que apenas apresentar e encerrar a história dos personagens (a presença da opinião pessoal e não só das memórias e fatual nos primeiro e último capítulos); ele serve de guia e detentor da travessia de vida dos personagens. É ele quem invoca as passagens do tempo: “Recue no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando; chegue até o tempo do Coronel Honório”; “De repente a gente voltava ao sobrado”(p.10), como que para indicar ao leitor que, mesmo que os relógios da casa pare, o tempo não pára. Após dar direito aos personagens para que se movam e contem sua história, o narrador chega ao final da história voltando-se para o sobrado coo se não quisesse ter ou não tivesse influência nos problemas de Rosalina. Enunciado e enunciação caminham juntos e o passado torna-se presente.
Rosalina: uma engrenagem movida pela repressão
O Erotismo é violência, diz George Bataille. O que o escritor entende como violência é tudo aquilo que foge ao controle do indivíduo e o leva a uma transgressão. Violência também é concebida como aquilo que impede o indivíduo de realizar todas as suas vontades, devido à ordem domesticada em que vive. Em Ópera do Mortos, o erotismo faz-se presente na vida de Rosalina, mas é sempre traspassado pela profunda repressão que a personagem vive. O que há entre Rosalina e Juca Passarinho é o movimento do ser dentro de si, uma engrenagem em movimento. Ao sair de sua posição de “senhora” para a de “amante”, Rosalina transgride o interdito de não se envolver com o que vem de fora do sobrado. Essa transgressão vai lhe gerar uma angústia
Assim ficou muito tempo, até que pudesse se mover e abrir os olhos. De onde vinha, onde estava, mesmo quem era? Eu, Rosalina, conseguiu pensar com dificuldade. Eu, viva. À dor de viver, preferia estar morta, não ter acordado nunca. Eu, por quê? Por que, como se procurasse uma conexão com o mundo e a existência. Eu, como uma liturgia, um batismo: para começar a viver, para se livrar do vazio, da angústia, do nojo no corpo. (p. 154)
E dúvida. No entanto, a transgressão sustenta o interdito, para dar prazer à experiência interior. Sendo assim, ao se permitir estar com Juca Passarinho, Rosalina confirma a ordem dos acontecimentos. Juca é o elo, a ponte entre ela e a cidade e amá-lo à noite (depois de se embebedar com vinho Madeira, seu favorito) faz com que ela volte a ser a reclusa durante o dia; nesta, o espírito do pai; naquela, o do avô.
Rosalina faz flores de seda e papel crepom durante o dia e Quiquina as vende na rua. Ela é o outro elo entre o sobrado e a vida que está lá fora, é a marca da continuidade da vida perante o descontínuo do ser: ela é parteira. Leva as flores para vender – em especial as rosas, as favoritas de Rosalina - , pois combinam com seu nome. Enquanto faz flores, a jovem esquece o mundo. Para Bataille, “o mundo do trabalho e da razão é a base da vida humana, mas o trabalho não nos absorve inteiramente e, se a razão comanda, nossa obediência nunca é sem limites”(BATAILLE,1987:37). Como o trabalho não absorve a mente de Rosalina após sua entrega a Juca, há a liberação do corpo para a presença de Eros; entretanto, esse erotismo é ambíguo, pois pode ser repressão e permissão ao mesmo tempo, conforme diz Octávio Paz.
Para haver transgressão ´e preciso haver o proibido. O vinho às escondidas, as rosas de pano mais bonitas que ela guarda para si e o desejo por Juca Passarinho são os “proibidos” de Rosalina. Marilena Chauí, em Repressão Sexual: essa nossa (des)conhecida, diz que a repressão é eficaz quando oculta mais e disfarça o caráter sexual do que está sendo reprimido. É o que acontece com a personagem: a repressão que a memória do pai falecido provoca nela (em nome da honra – são a gente Honório Cota – ela deve ser melhor que os demais habitantes da cidade) funciona mais quando ela tenta esquecer e disfarçar que esteve com Juca, depois que ele a “conheceu”, no sentido bíblico da palavra. Juca pensa: “ela se guarda pra de noite, pensava quando a via neutra e fria, entretida com as flores de pano.”(p. 197)
A luta do ser contra as forças repressivas é um a luta contra a razão segundo Herbert Marcuse. Para ele, o tempo livre libera Eros, por isso a sociedade trabalha. Rosalina, porém, abandona aos poucos o fazer suas flores e liberta Eros em sua vida. O trabalho, que purifica a vida suja, segundo Marilena Chauí, não é capaz de controlar o desejo, a sexualidade de Rosalina. Ao mesmo tempo, as ações cedem lugar ao interior, ao plano do pensamento – quando é impelida pelo instinto repressor, Rosalina chama seu envolvimento com Juca Passarinho de “águas lodosas e enganosas que estão escondidas”. Liberdade e repressão, Eros e Thanatos duelam nas entranhas de Rosalina; como as voçorocas simbolizam seu interior, o final desse duelo surpreenderá a cidade.
Os habitantes do sobrado, espaço central da narrativa em Ópera dos Mortos, são chamados de A Gente Honório Cota. Honório vem de honor – honra, e a honra é defendida pelos dois de maneira diferente. Apresentados logo após a descrição minuciosa do casarão, Lucas e João serão vistos como a causa da vida conflituosa de Rosalina.
Lucas Procópio Honório Cota é o avô de Rosalina, que lhe deixará como herança seu comportamento sexual livre. É interessante ver que o legado fica para a neta e não para o filho e o narrador nos confirma porquê: “Não, João Capistrano não era do mesmo feitio do pai”; ele só se parece com o pai
Quando falava dos grandes planos que tinha para sua vida... e se exaltava a seu modo, os olhos lumeando muito, as mãos magras ligeiramente trêmulas é que Quincas Ciríaco cuidava vislumbrar nele a sombra do pai. mas era um Lucas Procópio em repouso, medido, compassado, não aquele turbilhão de homem. (p.20)
Lucas é Procópio, que em grego significa “o que progride, o que sonha”. Ele progride ao construir a casa mais bela do lugar e fará ali o seu chão. Lucas é com o filho João uma antítese. Quincas Ciríaco, o empregado do armazém, tem medo de ser filho de Lucas, o “coisa-ruim” (uma vez que ele possuía todas as mulheres da cidade que desejava) e diz: “Só mesmo sabendo é que a gente vê que aqueles sobrados são duas casas”. Em verdade, é João Capistrano quem constrói a parte de cia do sobrado, unindo-se ao pai, dando-lhe continuidade.
O filho chama-se João Capistrano Honório Cota. Capistrano, originado de capistro, significa cabestro, mordaça e esse nome só serve para confirmar a vida controladora que legará à filha Rosalina. A vida seguiria normal, não fosse a crescente raiva de João pelos habitantes da cidade por conta de um briga política, que o levará a desprezá-los e mostrar-se superior a eles. É essa superioridade que levará a filha à clausura no sobrado e a impedirá de se relacionar com Juca Passarinho, uma vez que ele também é um habitante de fora do sobrado.
Entretanto, como diz Rollo May, “algo em nós responde à outra pessoa, atraindo-nos naquela direção.”(MAY, 1978:81). Para o autor, Eros é um desejo e esse desejo é atraído pelo forasteiro, a pessoa de classe proibida e é essa a relação de Rosalina com Juca. Embora o narrador o defina como um “caçador sem munição” (Juca se diz um grande caçador, mas ele possui um problema em um dos olhos que o impede de enxergar o alvo, mas não de enxergar Rosalina), é Eros que surge para salvar o sexo e a libido da extinção, salvando a sexualidade de Juca e Rosalina; as características repressoras do pai lutarão contra as forças libertinas do avô. A repressão, aqui como sinônimo de Thanatos, o instinto da morte, acabará levando a personagem a um outro caminho, nessa constante batalha com Eros e da qual nenhum dos dois sairá vencedor
A libertação do corpo e a prisão da alma – surge outra Rosalina
O romance é repleto de imagens duais que às vezes culminam numa terceira. Rosalina tem em sua vida um grande problema: sóbria, sente-se o pai, João; embriagada, sente-se o avô, Lucas
Quem sabe Lucas Procópio não morreu de todo, vivia ainda dentro dela? Ela semente de Lucas Procópio. No canto mais escuro da alma onde brotava toda a sua força sombria. Uma força que precisava ser libertada, queria ar livre. [...] Sei, não sou Lucas Procópio, de jeito nenhum. Era mais o pai, o homem reto, cidadão. Não lhe imitava os gestos, a postura diante da vida? Sou igual a papai, sou ele não. (p.128)
Rosalina, porém, sabe que “Sou de alma o coronel João Capistrano Honório Cota” (idem), enquanto que no corpo habita o espírito de Lucas Procópio. A personagem é composta de dualidades: se é Lucas ou João, Eros ou Repressão. Ela é sobrado (duas partes – a de baixo, que o avô construiu; a de cima, cuja obra o pai completou dizendo “Não derrubo obra de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele.”(p.12) e que o narrador apresenta ao leitor-ouvinte como uma obra do estilo Barroco – o período da s antíteses, do duplo, do céu e da terra, de cima e de baixo, de Lucas e João); é relógio, no pêndulo que vai para lá e para cá, levando-a de menina a mulher; é o relógio da independência – que o avô usava – e é relógio de ouro – que o pai usava. Rosalina é uma mulher séria e reservada, ao mesmo tempo que se entrega para Juca, o forasteiro, “como se o espírito se encontrasse com o corpo e se fundisse na mesma substância.”(p.149).
Aos poucos, porém, vai surgindo uma outra Rosalina, uma terceira na construção imagética da personagem. Depois de sua entrega, ela sente nojo de Juca, apesar da vontade de tocá-lo novamente. É a repressão lutando com a libertação do desejo do corpo, movendo essa engrenagem chamada Rosalina. Rollo May diz que não é “por simples acidente da natureza que no ato sexual ministramos o sacramento da intimidade e do recuo, da união e da distância”(ibidem, p. 126) e é exatamente isso o que acontece à personagem. Esse jogo de vai e vem provocará a aparição de uma outra mulher
Não duas mas três pessoas distintas numa só pessoa, ou melhor – duas Rosalinas que embora se parecessem eram diferentes, a gente via, reparando bem, a primeira, a antiga, crispada e dura, a segunda redonda e pacificada, tranqüila no remanso dos gestos, e uma Rosalina solitária, sem encontro possível a não ser através do choque, da posse através do corpo, não pelos olhos e pela mente, desesperada e noturna, que em nada se parecia com as outras duas a não ser pelo fato de morarem no mesmo corpo. (p. 204)
É Juca quem faz a descoberta das três mulheres em uma, que se “arredondava a olhos vistos”. Sim, Rosalina está grávida, o caçador sem munição acertou o alvo. Ele começava a sentir a segunda (a solitária) “tão mansa, maternal” e muda seu comportamento. O sexo traz a morte entre eles, pois “a morte é inseparável do prazer e Thanatos é a sombra de Eros”, diz Octávio Paz. Juca vai se afastando de Rosalina à medida que sente nela a mudança, que sente que ela agora se comporta “feito uma fêmea de bicho não recebe macho depois de prenhe”, como diz Quiquina. Esse afastamento se concretiza quando Juca encontra as portas da casa fechada – antes ficavam apenas encostadas, para que ele pudesse entrar à noite sem ser visto por Quiquina – e a luz do quarto (que fica na parte superior do sobrado) está apagada: a fase João Capistrano voltou ao seu lugar.
George Bataille diz que entre um ser e outro há um abismo e uma descontinuidade. Para que essa descontinuidade torne-se contínua, a atividade sexual precisa ser efetivada; o erotismo, então é confirmado como violência, rompendo com os interditos (regras, normas, etc.). Se o erotismo é uma atividade humana, logo, é uma infração à regra dos interditos.
Juca Passarinho é chamado pelo narrador de ‘caçador sem munição” porque ele nem sempre tinha realmente munição para caçar codornas, meio de alimentação comum ao local. Sua espingarda, símbolo de representação fálica, não lhe permite boa pontaria (devido ao problema já citado anteriormente); apesar de atirar a esmo, acaba por acertar um outro alvo, que é Rosalina. É o respeito e a submissão que ele devota a ela que vai permiti-lo o direito de conhecê-la. Francesco Alberoni diz que “para a mulher, a ternura e a doçura combinam com o erotismo, inserem-se nele harmoniosamente”(p. 23) e a personagem, então, permite a inserção de Juca em sua vida.
Grávida, Rosalina se fasta de Juca e permite que somente Quiquina a veja em seu “estado interessante”. No momento de seu parto, a gestante abandona seu lado Lucas para ser João – Quiquina pensa: “Não grita para não dar parte de fraca, coitadinha.”. Ela não assume sua fraqueza nem nos momentos mais cruéis da dor do parto. Os pensamentos de Quiquina são a realidade de Rosalina, embora a empregada tivesse vontade de deixar o bebê morrer, para que a patroa volte a ser o que era antes – um membro da gente Honório Cota.
Bataille diz também que um nascimento, às vezes, declara a morte de outro ser e a descontinuidade da vida; diz também que o parto é um dilaceramento, um interdito ligado à sexualidade. O parto de Rosalina deveria negar a descontinuidade da vida, uma vez que ela aconteceria num outro ser, mas o bebê está morto – embora não se saiba se a criança nasceu morta, pois o narrador “fecha os olhos” e as janelas para o que acontece após o parto – e a semente que estava no corpo desce à terra, ao lugar das voçorocas que “engolem” a cidade com suas goelas vermelhas, sedentas de sangue, confirmando que, se a vida é imortal, a continuidade do ser não o é. Caberá a Juca Passarinho enterrar o fruto da “imundície” praticada por ambos nas noites no sobrado
Apanhou o embrulho e ficou olhando apalermado olhando Quiquina sem saber o que fazer com aquele peso úmido e sujo. Indagava com os olhos o que devia fazer, embora soubesse, porque não conseguia articular uma só palavra, como se ele é que fosse mudo. Quiquina fez assim com as mãos, comas unhas, igual um cachorro cavando ligeiro um buraco na terra. Depois voltou os olhos para debaixo do banco onde ele estivera sentado, e ele viu a pá; sabia agora o que ela queria dizer. (p. 232)
Juca não suporta mais a cadeia sentimental em que vive e decide ir-se embora do sobrado e da cidade. Ao fim da narrativa, o narrador traz o leitor de volta ao cenário inicial: “De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessávamos finalmente a ponte, o sobrado abria a porta para nós.”(p. 235). O cenário da ópera abre-se ao público, para que este possa ouvir os acordes finais. Rosalina entoa uma cantiga em meio às noites de solidão, sem Juca e sem o filho. É vista saindo do cemitério, à noite, vestida como uma noiva. É preciso chamar seu Emanuel (que significa o que está conosco (Deus)), o amigo que administra seus bens, para transformar em atitude a cantilena de Rosalina, cuja letra ninguém é capaz de entender. Diz o narrador que “nestas horas a gente imagina, inventa muito.”.
É vestida de branco e com uma rosa branca no cabelo que Rosalina desce as escadas para sair do sobrado. Sua superioridade está em outra esfera, dando “um sorriso meio abobalhado, para ninguém”. Emanuel cumprimenta-a, como um vassalo a uma rainha, como se ela ainda pertencesse à gente Honório Cota, mas sua engrenagem está parada: ela está em longes terras, “os olhos vidrados com que não viam”, nem Lucas nem João, apenas ela Rosalina, senhora do tempo que passou e que não mais voltará. Os mortos comandam enfim, o mundo dos vivos e a vida de Rosalina, que se esvai na loucura dos dias e na clausura de seu sobrado, seu mundo, seu universo, seu cosmos.
Referências Bibliográficas:
ALBERONI, Francesco. O Erotismo. São Paulo: Círculo do Livro, 1989.
BATAILLE, George. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.
BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: _________. Obras Escolhidas. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1987.
DOURADO, Autran. Ópera dos Mortos. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Guanabara Koogan, 8 ed.
MAY, Rollo. Eros e Repressão: amor e vontade. Petrópolis: Vozes, 1978.