BERNARDO CARVALHO: DA REALIDADE À FICÇÃO

Beny Ribeiro dos Santos

Doutorando em Poética – UFRJ

 Bernardo Carvalho se encontra entre os escritores que se opõem à concepção de arte como espelho da realidade. Sua obra pode ser considerada uma invectiva contra as teses que subordinam a ficção à reprodução de um mundo predeterminado. Os bêbados e os sonâmbulos conserva vários indícios da perspectiva do romancista em relação à hegemonia do pensamento platônico na atribuição de uma posição secundária à mimese. O romance descreve a experiência de um estudante de medicina que abandonou a especialização em psiquiatria logo que descobriu a presença de um tumor em seu cérebro. O progressivo crescimento do tumor pode causar a perda total da memória com a formação de uma nova identidade apropriativa cuja natureza é capaz de transformar por completo o comportamento do estudante num processo lento e imperceptível de metamorfose. Ao saber que o tumor não poderia ser operado, segundo o neurologista os estragos seriam ainda maiores no caso de uma cirurgia, o estudante decide procurar a testemunha do acidente de avião, como também tornar-se aspirante para estar mais perto de um amigo de infância. As medidas têm por finalidade a conservação da memória, cuja natureza corre o risco de entrar em colapso assim que o processo de formação de outra identidade tenha sido iniciado.

 A tendência genética de desenvolver tumores dessa natureza torna irrealizável o projeto de definição de uma identidade. Uma vez que o estudante convive com a ameaça constante de esquecer de si mesmo, todo acontecimento que se realiza no curso da narrativa é colocado entre parênteses por uma suspeita inviolável que paira sobre a efetividade da realidade de cada coisa ser realmente o que parece ser. Se a realidade pode sofrer alterações em sua forma conhecida, a possibilidade de ser confrontado com uma cena imaginária (irreal), quando se pensa estar diante de um dado objetivo (real), dilacera todo princípio de certeza. A mudança de identidade evidencia a precariedade de um eu sem substância e sem limites. A reformulação constante da identidade é um tópico da narrativa de Bernardo Carvalho. Em Os bêbados e os sonâmbulos, o tema está presente na interferência de conformações identitárias, como no caso do empresário americano da indústria do papel que assume a identidade de um psiquiatra, ou no esforço do arquiteto por incorporar a identidade de um executivo, anulando-se por completo ao assimilar valores estranhos à sua personalidade, ou ainda nos múltiplos disfarces do narrador que fundamentam identidades diversas, “uma carta à disposição do mundo” (1996, p. 30). O narrador materializa uma multiplicidade de papéis, como se o nome fosse insuficiente para a construção de uma singularidade definida.  

 Assim como a mudança de identidade reforça a falta essencial de propriedade, a confusão identitária define a participação da imaginação na constituição da realidade. A imaginação é a instância responsável pela (re)definição de parâmetros, não só participa da fundamentação dos seres, como movimenta a constituição das ficções. Num tempo em que a imaginação parece gozar de um prestígio cada vez menor, Bernardo Carvalho, contrariando a automatização do imaginário na indústria cultural, atribui à imaginação uma função deliberativa na formação de um regime de sentido em que cada palavra se desvia de si mesma, cada personagem se desdobra em outra personalidade, cada história se distancia de seu estado mais natural. Conceder espaço à imaginação é fundamental quando se pretende introduzir a consciência da ambigüidade na interpretação dos acontecimentos. 

 A imaginação opera por meio de associações variadas, configurando um universo paralelo, onde um sistema se fundamenta sobre uma lógica própria. Trata-se, portanto, do resultado de uma escolha entre variáveis diversas, uma seleção conduzida por um plano de sentido, que opta, conscientemente, pelo descompasso entre as partes de uma relação. O processo é desdobrável no tempo e no espaço. Personagens que aparecem numa parte reaparecem num espaço desconhecido. Situações existenciais são rechaçadas, reforçadas, deslocadas. A ficção adquire a forma de uma experiência indefinida e indeterminada. Há relações de parentesco entre personagens, contextos e histórias; contudo, nenhuma identificação é absoluta, nenhuma localização é inteiramente confiável, algum acontecimento contraditório sempre escapa da determinação. Ao mesmo tempo que o retorno de uma situação narrativa favorece a observação de novos traços referenciais, os personagens se dispersam ante a confrontação com informações divergentes e suspeitas que não favorecem a conexão absoluta entre os segmentos da narrativa. O desdobramento de identidades, com a sobreposição de realidades, somente aumenta o horizonte de ação do acaso. Embora o processo perca força à medida que a narrativa se reencontra com o enredo linear, transformando o inverossímil em verossímil, criando uma realidade aparentemente provida de um sentido uniforme (Costa Lima, 2002, p. 276), é inegável que a realidade adquire uma natureza dupla nos romances de Bernardo Carvalho. Enquanto uma identidade serve de fundamento a uma realidade existencial, outra singularidade se prepara para emergir em outro plano da existência. Caso o processo de reiteração e desdobramento de situações existenciais não se desgastasse com a repetição indiscriminada, poder-se-ia esperar que uma terceira realidade fosse confrontada às anteriores. Dessa forma, um personagem se transformaria em outro, de uma história nasceria outra, em cada narrativa ocorreria o encontro com um mundo mais vasto e mais amplo, infinitamente, como um labirinto interminável que crescesse em todas as direções, incessantemente.

 Bernardo Carvalho não sobrecarrega o dispositivo da verossimilhança em seus romances. Nem mesmo a verossimilhança interna tem seu espaço assegurado, visto que permanece confinada pela superposição de acontecimentos reversíveis. Os romances exploram narrativas inacabadas, como se nada pudesse ser concluído na natureza das coisas. De fato, o que prevalece na composição dos romances é o privilégio da confabulação de histórias por meio da configuração de uma substância imaginária tão plástica quanto Proteu. O narrador de “A brasileira”, quarto capítulo da 1ª parte de Os bêbados e os sonâmbulos, expõe o conceito de ficção que opera em sua narrativa. Para contar a história da “brasileira”, mulher do empresário americano da indústria do papel que adotou a identidade de um psiquiatra no sul do Chile, é preciso que o narrador imagine toda uma série de acontecimentos que ocorreram entre dois intervalos de tempo: a chegada da brasileira num dia de verão, na cidade de Los Angeles, e a chegada, cinco anos depois, do estudante com a carta do psiquiatra repatriado. Desde o início a ficção é um problema de imaginação. A realidade não é o domínio pleno das coisas acabadas e conhecidas, logo cabe à ficção expandir os limites de sua experiência. É precisamente o que faz o narrador, a “testemunha” de uma realidade que ainda não existe, que está na iminência de adquirir uma forma com a intervenção da imaginação. Entre as duas visões há um espaço vazio que é preenchido vorazmente, da mesma forma que o leitor busca atribuir um sentido à história. O narrador não camufla o caráter fictício de sua narrativa, a representação se torna tema da narração, ela se assume como artifício, assinalando de que lado pode ser encontrada na definição de uma perspectiva sobre a ficção. A repetição progressiva do verbo “imaginar” numa série de conexões que repercutem na formação de um sentido modela a substância imaginária que se prolonga sinuosamente da realidade conhecida à ficção imaginada. A narração de uma história é feita de um emaranhado de acontecimentos, o que se desconhece na realidade por escapar ao domínio da experiência é articulado imaginariamente. Definitivamente a ficção não é o reflexo crepuscular de um mundo acima de toda desconfiança, mas uma confabulação imaginária que amplia a percepção da realidade.

O espaço da ficção não se diferencia do estado da loucura que expõe o avesso da realidade. O psiquiatra louco que erra sem destino certo no sul do Chile, como a brasileira sonâmbula perdida nas rotas desconhecidas do continente americano, revelam que a loucura é um sinal de inadaptação ao curso “natural” das coisas, uma espécie de antítese da vida em seu estado “natural” que expõe a fragilidade das convenções estabelecidas. Quando o estado de loucura desfigura os limites da propriedade identitária, a realidade permanece à beira de um abismo, onde um vazio avança deixando um rastro de destruição. Talvez por ser naturalmente desajustada à ordem hegemônica, a loucura gere tanto temor entre os agentes de controle, que estão preparados para agir contra toda perturbação que represente uma ameaça à integridade do sistema. Em Bernardo Carvalho a loucura se estende da ameaça de alteração da identidade à alienação do sujeito de uma forma conhecida de existência. O confronto com a determinação da propriedade está presente desde o título do romance em observação, em que o controle da consciência deixa de ser o elemento determinante dos acontecimentos para dar lugar à confabulação imaginária de realidades desconhecidas. Tanto o estado de embriaguez, quanto o estado de inconsciência, criam uma atmosfera de indefinição que desperta a consciência da ambigüidade. A abertura do horizonte de formação da identidade, como se a realidade sempre estivesse à espera de um novo acontecimento, está representada no terremoto ocorrido no sul do Chile. O terremoto é a representação geográfica da loucura (1996, p. 56). Assim como o terremoto movimenta as placas tectônicas no interior da crosta terrestre, fazendo saltar à superfície formas estranhas que alteram a paisagem natural, a loucura abala os pilares formativos da identidade, confrontando os referenciais apropriativos da natureza com estados fora do circuito da experiência conhecida. Como um sinal do que pode existir sob a superfície das coisas, a loucura impõe à realidade um elemento descontínuo. Dessa forma, torna possível o confronto com o descontrole e o desconhecido, uma falta de sentido que surge do nada, sem razões aparentes, demonstrando uma postura cética em relação à propriedade identitária, como se alguma coisa sempre permanecesse fora do lugar.    

 O problema é sempre definir os contornos precisos do que preexiste na realidade e do que passa a existir em dado momento na ficção, aceitar a intervenção da imaginação nas definições da verdade, lembrar que o mundo não existiria se não se apresentasse dessa ou daquela maneira à perspectiva nem sempre clara e distinta da interpretação. A realidade se decompõe numa atmosfera de sonho, a qualquer momento a narrativa assume os contornos de outra realidade, o que falta dificilmente pode ser calculado de uma vez por todas. Quando a narrativa adquire a atmosfera de um sonho, o narrador ultrapassa os limites da consciência, como o sonhador que se encontra numa ausência de si mesmo, arremessado de encontro a uma realidade desconhecida. Enquanto o abalo sísmico ocorrido em Los Angeles é a representação geográfica da indefinição da realidade, o tumor que se desenvolve no cérebro do estudante é a figuração fisiológica da realidade em mutação. O ofuscamento da consciência nas atividades imaginativas define os pontos de contato com a substância imaginária, que aparece desse ou daquele modo em certo momento para desaparecer logo em seguida. Quando se fecham os olhos para ver o mundo, como no díptico “Banhistas ao sol”, a ficção é a forma da vontade de todas as idéias, uma invenção multifacetada da vontade de saber que interfere na constituição de cada narrativa, em cuja realidade se movimentam os personagens na busca de um sentido cada vez mais incerto. A obra literária é um artifício que deixa a estranha sensação de que tudo se passa no interior de uma realidade imaginária que muda de forma com uma freqüência impressionante. Para Bernardo Carvalho, o mais surpreendente em literatura se encontra em sua força de invenção que resiste às convenções que impedem a expansão da consciência (2005, p. 88). O fantasma do tumor deixa a narrativa em estado de suspeita constante, a qualquer momento uma mudança pode ocorrer na emergência de uma realidade; basta uma pequena alteração na lógica da narração, e a imaginação promove a formação de um novo disfarce. O processo lembra a história do homem que se imagina de carne e osso na realidade natural e que um dia descobre ser o fantasma do sonho de um desconhecido, como ocorre nas “Ruínas circulares”, de Jorge Luis Borges. O esforço por separar a realidade da ficção evidencia a tentativa de encobrir as contradições do projeto de definição da verdade.

 Ao entrar em contato com a ficção de Bernardo Carvalho, é difícil não acreditar que a realidade não passe de uma grande farsa e que o homem não seja um grande mentiroso. Não se trata somente da realidade ficcional, uma vez que a substância imaginária penetra em todas as coisas. Falta alguma coisa à constituição da verdade para que se apresente como uma realidade completa. Nietzsche encontra sua deficiência precisamente em sua falta de propriedade essencial. Mesmo quando se promete dizer toda a verdade, “nada mais que a verdade”, mesmo quando se nega o estatuto ficcional da realidade, traçando uma linha divisória entre as partes de um romance, como se fosse possível separar a ficção (1ª parte) da realidade (2ª parte), o problema da verdade permanece como uma questão que resiste à determinação, os acontecimentos não conferem nenhuma clareza aos objetos da realidade, a natureza humana permanece um mistério desconhecido, porque não pode ou não quer abandonar a ambigüidade da invenção. Embora o momento em que a verdade parece estar próxima de se revelar retorne aqui e ali, logo a expectativa é abortada por um golpe inesperado do acaso, confrontando os últimos fundamentos da verdade – uma testemunha, uma fonte literária, uma busca sem precedentes. A realidade paira sob a suspeita da representação, como se o mundo não passasse de uma impostura generalizada.

 Mas “Se o mundo for só uma farsa, de que vale existir?” (1996, p. 73). A descoberta de que tudo é uma aparência cria um ceticismo com relação à verdade, o que antecipa a necessidade de redefinição de valores na ordem do conhecimento. Parece que a única forma de se relacionar com a verdade é desconfiando de tudo o que se encontra à sua volta. Uma vez que não é possível tirar a prova de sua natureza essencial, não é nem mesmo possível confiar em alguém, resta a escrita como meio de investigação da verdade, uma forma de resistência à sua fuga para um espaço cada vez mais distante. Trata-se de uma alternativa que corre o risco de se desviar continuamente da meta buscada, sobretudo quando a escrita acolhe a tese de que o mundo é uma ficção sem limites, uma imaginação sem controle que compromete as relações na redefinição dos papéis sociais, projeto que justificava a liberação do imaginário do controle das convenções. Se a dúvida permanece até a morte, adiando até o fim do mundo o encontro com a verdade, resta à escrita procurar definir um sentido em caminhos desnorteantes, ambivalentes, uma vez que todo resquício de confiabilidade abandonou o homem em sua procura. Sem olhos para ver, o homem, desde Édipo, o único que não conhece a verdade que irrompe em sua experiência, tem dificuldade de identificar os objetos que se encontram em seu círculo de influência. A narração contemporânea mostra como a dúvida extrema põe à prova o encontro da verdade a partir do momento que a incerteza age como um princípio de desintegração da realidade.

 

Referências

 BORGES, Jorge Luis. Ficções. Trad. Carlos Nejar. Obras completas. São Paulo: Globo, 2000. v. 1.

CARVALHO, Bernardo. Os bêbados e os sonâmbulos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

______. O mundo fora dos eixos: crônicas, resenhas e ficções. São Paulo: Publifolha, 2005.

LIMA, Luiz Costa. Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

PLATÃO. A república. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

SOPHOCLE. Edipe Roi. Trad. Marie-Rose Rougier. França: Hachette, 1994.

 

 

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