Herdeiros de Sócrates. Uma leitura socrática de Nietzsche: a crítica à metafísica e à ciência.

 

Valéria Mac Knight

 

A modernidade implica na consciência de que não existe uma neutralidade possível no olhar em relação ao passado. Todo olhar é interessado e informado pelo presente. O homem moderno experiencia, assim, o luto por saber jamais ser possível ver o por do sol como os gregos viam.[1]

A memória não reconstitui a experiência, porém ela possibilita uma experiência em si. A reconstituição do tempo é um exercício anacrônico que rompe com uma idéia de historicismo linear. Nesse resgate, atribui-se ao passado uma rede de significações e um sabor que não havia no acontecimento original. Apesar de toda a complexidade, tal exercício do pensamento torna-se valioso e válido na medida em que a construção de uma rede de sentidos exercita novos enfoques que, por sua vez, modificam o olhar lançado.

Ao debruçar seu olhar sobre Sócrates, Nietzsche o faz a partir do peso de todos os séculos que os separam. Percebe na influência deste o grande engano cometido ao inserir a arte na ordem do metafísico;  rompendo com a dinâmica apolínea e dionisíaca, o socratismo estético rompe os vínculos da arte com a vida, e os laços de encantamento entre elas fenecem, pois a arte passa a trazer em si a própria reflexão, perdendo  a experiência de comunhão com o  uno original.  

A fundação de um homem teórico cuja meta é compreender o mundo, a vida e a si mesmo, e a instauração da ciência dotada de uma  crença petulante, de uma inabalável fé de que o pensar por meio da causalidade é dotado do poder de, não apenas conhecer, mas também de corrigir, supondo uma noção de verdade universal, encontra uma alternativa diversa em Nietzsche quando este privilegia a metafísica do artista e afirma ser a arte, e não a ciência, quem tem mais valor, por esta viabilizar a vida.

Somos herdeiros de Sócrates, de uma lógica metafísica segundo a qual os valores racionais devem prevalecer, nos tornando homens teóricos. Tal contexto de pensamento, onde o conhecimento teórico estético é mais valorado do que o instinto estético, do que a criação em si, faz com que Nietzsche rompa com o pensamento filosófico estatuído e realize uma releitura dos gregos.

Ao confessar a si mesmo que nada sabia, Sócrates buscou em Atenas várias pessoas eminentes e reconheceu, com espanto, que a falta de saber imperava; deparou-se com a presunção do saber apenas por instinto. Por essa atitude, o socratismo passou a condenar a arte vigente. O daimon de Sócrates condenou a arte trágica por esta não dizer a verdade.

A ausência de certezas, a falta de robustez das respostas o impulsionaram em direção a uma busca sem fim na qual durante todo o tempo só fazia comprovar que – ao mesmo tempo que se percebia mais sábio que os demais – era apenas por reconhecer em si sua ignorância. Sócrates buscava que os poetas explicassem a poesia que faziam, buscando conhecê-la. Ao julgar a poesia por um critério que havia sido fadado pelo oráculo de Delfos, ou seja, o saber, o conhecer, Sócrates estatuiu uma peregrinação que seria o legado de toda a civilização ocidental.

E a cada encontro com uma pessoa que julgava possuir algum saber; a profecia do oráculo se cumpria: Sócrates se percebia mais sábio exatamente porque não julgava saber o que ignorava, na medida em que reconhecia que seu saber não existia. Estaria Sócrates vivendo a serviço de um deus?

Por certo, arranjou inúmeros inimigos ao confrontá-los com seus interrogatórios. A atuação de Sócrates incomodou a sociedade de sua época ao colocar homens eminentes e “sábios” frente a frente com seus não-saberes. Entretanto, sua busca se resumiu em buscar saberes. Por séculos e através dos séculos, em um movimento paradoxalmente universalizante, busca-se saber, o saber. O otimismo teórico que percebe no erro um mal em si mesmo, acrescido de um mecanismo de busca de conhecimentos, formulações de conceitos, juízos e deduções, passou a ser valorado como atividade superior a outras aptidões. O elemento otimista existente na essência da dialética vive seu júbilo pelo saber. A maldição de Sócrates, foi proferida pelo oráculo: buscar o saber.

 Somos herdeiros de Sócrates quando o vínculo que estabelecemos com a realidade é realizado via a ordem do cognoscível, quando engendramos uma época metafísica onde só se constroem percepções de mundo pelo conhecimento. A metafísica é a crença de existir alento, uma verdade, uma explicação, porque nossa pequenez não comporta o nada saber. Queremos saber, precisamos achar que sabemos. Nossa razão depende de assunções lógicas, construtos, chão. A isso Nietzsche percebe como vontade de verdade e não como a verdade propriamente dita.

Nietzsche realiza uma reflexão acerca da visão antropocêntrica de mundo tecida pelo homem, desde a presunção nascida com a invenção do conhecimento que atua como um eixo a partir do qual todo o universo parece existir.

Essa existência antropomórfica é o berço da ciência que constrói uma delicada teia por meio da elaboração de conceitos em um esforço de controle e posse da totalidade de um mundo empírico moldado a partir de um prisma  humano. De modo que a razão se torna condição para que o homem não se perca de si próprio. O homem racional perquire um enorme esforço para arrumar e manter a rigidez desses conceitos como se defendesse a própria existência, temendo perder-se de si mesmo.

Pela racionalidade, pelo instinto da ciência Sócrates não apenas viveu mas também, morreu. Ao morrer no entanto, o mistagogo da ciência deixou um legado à civilização ocidental: uma herança ideária: a busca pelo saber e o assassinato da arte trágica dionisíaca. Em sua exortação da força universal do saber, Sócrates aniquila o mito, tornando a poesia apátrida ao expulsá-la de seu solo mítico ideal.

Ao criar o homem teórico que se pensa, a arte também perde sua inocência e passa a trazer um questionamento em si, acerca de sua própria existência. Onde, anteriormente, um estar no mundo poético se bastava e se produzia enquanto real, havia Homero. Porém, uma vez perdido esse encanto, o espanto se esvai para dar lugar à explicação teórica, científica ou religiosa.

No mundo teórico, o conhecimento científico vale mais do que a manifestação artística.

O socratismo estético instaura um juízo de valor que subordina o belo à razão, ao entendimento, destituindo a experiência estética de prazer, privilegiando o entendimento à apreciação. O racionalismo socrático contra o “instinto”, nega a possibilidade de outras formas de expressão que não sejam conscientes. Essa ilusão metafísica que acredita ser o conhecimento a única maneira de penetrar na essência, na natureza, nas coisas, revela o espírito científico socrático, presunçoso e prepotente.

A esse socratismo estético, associa-se o princípio que assassinou a velha estética trágica: o rompimento com o apolíneo e o dionisíaco, a tensão geradora da arte trágica; pensamento que teve início em Sócrates e que representou um corte no mundo originário ao se instaurar.

O apolíneo não existe sem o dionisíaco por isso ocorreu a extinção das duas forças que se inter-relacionam em um fenômeno de simultaneidade, e a arte se esvaziou de vida. Assim como os helenos haviam sido resgatados pela vida através da arte, também  o homem da modernidade, ainda condenado por Sileno, e pela ilusão do saber metafísico, científico e religioso, espera por essa possibilidade de reencantamento.

Na visão de Nietzsche, o pessimismo dos gregos não era um signo de declínio ou ruína. Para essa gente que mais seduziu para o viver[2], a tragédia morreu pelo socratismo da moral: a dialética. Dialética como instrumento de busca da verdade através do lógos, do conhecimento, da análise, do racional. É  esse socratismo sim, que é visto como um signo de declínio, de crepúsculo.

A crítica nietzschiana da ciência se dá pelo fato desta se preocupar com a busca da verdade. A metafísica nasceu pela vontade de verdade. E a verdade é vista como uma construção moral a serviço de um poder. A denúncia dos fundamentos morais da ciência, por sua vez, não pode também recair em um arcaísmo científico, metafísico, lançando mão dos mesmos mecanismos de crítica os quais estão sendo reavaliados, de modo que um estudo desta ordem incorreria apenas em uma substituição do objeto. O que Nietzsche propõe é um afastamento do enfoque proporcionado pelo modelo científico vigente para refletir sobre a ciência. Ele oferece uma contra-estrutura de representação de mundo, esvaziando a filosofia da análise e da lógica e propondo uma forma estética de apresentação do pensamento. Ao esvaziar a arena em que os filósofos habitaram por tanto tempo, Nietzsche resgata a arte trágica como ambiência de vida e propõe a discussão da ciência por meio de uma força alheia a ela: a arte.

Ao problematizar a ciência, em uma época em que esta ascendia a um status divino, Nietzsche transgride os limites de seu tempo e não apenas entende a ciência como questionável mas propõe o terreno da arte para tal análise ‘pois o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência’. Pela primeira vez um olhar moderno ousou aproximar essas duas ordens: ‘ver a ciência com a óptica do artista, mas a arte, com a da vida...’ (NIETZSCHE, 1996, p. 15).

A filosofia trágica proposta pelo filósofo-poeta alemão surge para ajudar a relativizar o conhecimento além de refundar um espaço para a ilusão, para a ficção, para a arte. Nietzsche não propõe o aniquilamento da ciência mas afirma ser a filosofia e a arte quem deve estabelecer o seu valor, por estarem além da moral que a constitui. A força está em dominar essa compulsão pelo conhecimento em nome de uma afirmação da vida.

Nietzsche pensa a ciência a partir da arte na medida em que ao fazê-lo impõe a esta o valor da ilusão como um valor tão importante quanto a verdade. Reconhece que a vida tem necessidade de ilusão e que os conhecimentos, sejam verdadeiros ou falsos, se estabeleceram pela força de prova. Em suas inversões, o filósofo opõe o trágico ao lógico e enfoca o conhecimento com critérios estéticos.

O próprio pensamento de Nietzsche é externado por meio desse valor estético. O enfeitiçamento de seus aforismos nos espanta e incita pelo pensamento decalcado na força estética, em um amálgama de luz e forma, seu filosofar cintila em vez de explicar, causando impacto e encanto.

A  pretensão científica de valorização da “verdade” institui a perseguição ao erro. Entretanto, os horizontes do pensamento de Nietzsche estão além do bem e do mal, libertos de conceitos de moral, e da noção persecutória de “erro”.

A dialética socrática do saber nos tornou a todos Sísifo pois, em um perseguir sem fim, descobrimos cada vez que e quanto mais avançamos, que nada sabemos. A avidez do insaciável conhecimento otimista de Sócrates porém, pode  transmutar-se em fome da arte e operar o resgate do prazer de existir. A vida esvaziada de mitos ou suprida apenas com o mito cristão em que a ela se apresenta como algo que não é digno de ser vivido, torna-se vida esvaziada de encanto. Tal é a herança de Sócrates: a formação de um olhar de mundo calcado na necessidade do saber. O substrato de nossa contraditória cultura é o otimismo da lógica que, por sua vez se ampara em verdades eternas, no poder da decifração dos enigmas. Porém, as conseqüências dessa serenojovialidade teórica começam a aparecer e hoje já é possível delinear um mal que nos acomete: o desencantamento da vida.

Nietzsche propõe um modelo de filósofo ligado aos pré-socráticos, nos quais existe uma unidade entre pensamento e vida. A ruptura feita por Nietzsche foi contra a filosofia metafísica, que pregava um pensamento puramente racional. Segundo ele, querer reduzir a filosofia a uma teoria do conhecimento chega a ser cômico. O filósofo alemão nos apresenta uma outra ordem do pensar, pois a apreciação do valor do conhecimento deve ser situada entre uma pluralidade de valores, sem gozar de privilégio especial, e descortina o exercício da afirmação da vida, em vez do julgamento desta.

Na luta contra a metafísica, o cristianismo e a ciência, Nietzsche propõe uma contra-noção: a “metafísica do artista”. Esta concepção tem a arte como a atividade propriamente metafísica do homem, pois trata da essência do ser. O ser, e não o saber. Ao analisar as relações entre arte e ciência, Nietzsche denuncia Sócrates e Eurípedes pelo assassinato da arte trágica, arte esta representante do encontro com as questões fundamentais da existência e uma alternativa contra a metafísica criadora da racionalidade. Ao opor o instinto estético ao saber metafísico, o filósofo-poeta gera uma idéia central em seu fazer filosófico: a valorização da arte, e não da ciência, pelo fato da primeira ser a força capaz de proporcionar a experiência dionisíaca e apolínea: “a arte tem mais valor do que a ciência”.

Sabendo-se póstumo em relação ao seu tempo, vê a verdade como uma convenção imposta para tornar a vida possível, que substitui a arte como uma ficção necessária de cunho moralizante e que nos desvia da vida pelo aniquilamento das ilusões. Nietzsche acredita ser o instinto de crença e não o de conhecimento um valor fundamental para o homem. A revalorização da arte é o meio de retorno à vida ou um encontro com esta, uma forma de proporcionar, uma vez mais,  nosso resgate pela vida de modo que esta volte a nos atravessar. Para este amigo da vida é a arte – e não a moral – a atividade propriamente metafísica do homem.

É a voz do poeta que oferece a ponte de reencantamento da realidade. Apresentando fluxo e processo estampado no sublime em vez da cegueira das respostas.

A maldição da dolorosa existência humana, a maldição de Sileno, é a que evitamos encarar. É ela que leva civilizações a criarem complexas ficções que se querem crer realidade. A maldição dos gregos é também a nossa: é saber que o bem supremo é querer não ter nascido, é nada ser, não ser. Se a arte grega teve origem nesse drama e criou a cosmogonia, Sócrates criou a metafísica e a explicação infinita e vazia pautada em uma verdade que só existe a partir da moral. As correntes da lógica asfixiaram e assassinaram a arte trágica, condenando o homem ao erro e à culpa. O instinto de ciência percorreu um caminho inverso ao da cosmogonia poética, pois esta, ao divinizar a vida, a tornou bela e digna de ser vivida.

É a oposição do instinto de ciência ao instinto estético que Nietzsche nos apresenta. A arte apolínea é a arte da aparência e esta é uma questão central no pensamento de Nietzsche porque o belo oferece uma sensação de satisfação, que intensifica as forças da vida e aumenta o prazer de existir.  Se na “hipótese metafísica” o que importa é ser verdadeiro, na “metafísica da arte” o “uno originário” carece da aparência pura para libertar-se da dor de existir.

Foi assim que os gregos conseguiram o resgate à vida após a revelação de Sileno, o deus silvestre. A concepção apolínea possibilitou a intensificação da vida. Por outro lado, há a experiência dionisíaca que propõe uma ruptura da individuação e uma total miscigenação com a natureza e com os outros, uma despersonalização, um enfeitiçamento que proporciona a experiência da unidade original.

Uma metafísica da arte justifica a existência e o mundo como fenômenos estéticos. A arte como superação da realidade. Ao quebrar conceitos cristalizados, a vida torna-se viável. Há espaço para o desconhecido e a surpresa, o espanto, o encantamento oferecem seu frisson, e o exercício de novas possibilidades nos resgata à vida.

A leitura socrática de Nietzsche é a crítica da presunção da ciência. É a afirmação da arte como superior à metafísica, ao cristianismo e à ciência pelo fato da primeira reafirmar a vida enquanto as outras perseguem uma ilusão de verdade com um arrogância cega. A leitura socrática de Nietzsche é a crítica ao “espírito metafísico”, ao “homem teórico” nascido com a metafísica, é a negação da possibilidade de uma verdade integral e a denúncia de uma ruptura do homem com sua possibilidade de vida: a arte trágica, proposta como alternativa de solução para resgatar, uma vez mais o homem à vida.

Ao recortar a realidade, a fala do cotidiano e inseri-la em um vazio de página, que marca esta fala enquanto poética, o poeta contemporâneo traz a poesia na moldura do olhar que lança às coisas. A fragmentação do homem moderno representada poeticamente faz com que esse homem, depois da experiência de ver seu mundo assim emoldurado, veja sua realidade com olhos de poeta. Assim, a poesia pode mudar o mundo, porque ela muda a forma como se vê o mundo. A realidade é realidade mas, não é mais a mesma.

            O vínculo entre literatura e vida é o caminho para vivificar o homem moderno. Por esse caminho chega-se à vida que não é mais vivenciada em nosso cotidiano. Vida enquanto possibilitadora do exercício labiríntico e criador do pensamento. Criando no nosso, outros corpos, a literatura torna possível vivenciar a vida e, tornando vida vivível, a literatura torna vida real[3] . (PUCHEU) 

 

  

Referências bibliográficas:

 

BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São Paulo, Annablume: FAPESP, 2002. 

FINK, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Lisboa, Editorial Presença. 

NIETZSCHE, Friedrich. Acerca de Verdade e da Mentira no sentido extramoral. Tradução de Helga Hoock Quadrado. Portugal, Printer Portuguesa – Relógio D’Água Editores, Junho de 1997. 

___________________ O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo.  São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 

___________________  A Filosofia na idade trágica dos gregos.  Elfos Ed: Lisboa Edições 70, 1995. 

___________________   O Anticristo. São Paulo, Martin Claret, 2004. 

PUCHEU, Alberto. Literatura, para que serve? in A Construção poética do real - organizado por Manuel Antônio de castro. Rio de Janeiro; 7 Letras, 2004.


 

[1] NIETZSCHE

[2] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da Tragédia.1996. Pág. 14.

[3] PUCHEU, Alberto. Literatura, para que serve?

 

 

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