A mãe espacial ou memória revisitada

 

As linhas que se seguem neste capítulo tentam decifrar as memórias afetivas do eu-lírico nas composições musicais de Caetano Veloso em busca de um conhecimento maior de sua existência durante sua trajetória da infância e adolescência na cidade baiana de Nossa Senhora da Purificação. As canções aqui analisadas podem ser consideradas como um mosaico memorialístico do poeta baiano, que nos encanta pela nostalgia do eu-lírico através dos trilhos delicados de sua memória-afeto. No universo de N. S. da Purificação, cidade que define seu modo de ser, o eu-lírico nos mostra suas memórias repletas de conceitos, moralidade, ideologia, valores e afetos de uma cidade do interior da Bahia.

Antes, porém, de adentrarmos nas composições de Caetano Veloso, devemos discutir o que seria a memória enquanto experienciação de um passado. A etimologia da palavra memória expressa tanto o fato da recordação, lembranças, reminiscências, como o ato de narrar, referir, relatar. A memória é a memória e seu avesso. Ela não é apenas a lembrança, uma faculdade psíquica, ela é a um só tempo, a lembrança e seu relato.

Mnemosyne, para os gregos a deusa da memória, protetora das artes e da história, concedia aos poetas o poder de voltar ao passado e lembrá-lo para a coletividade. Musa da poesia épica, a deusa da reminiscência conferia imortalidade aos mortais. O humano que tivesse registrado em suas obras a fisionomia, os gestos, os atos, os feitos e as palavras nunca seria esquecido, porque se tornando memorável não morreria jamais (Chauí, 1994: 126). 

A memória é a primeira e mais fundamental experiência do tempo. Representa a capacidade humana de reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total (Chauí, 1994: 125), através do resgate no tempo presente de referências situadas no tempo passado.

Trabalhar com nossa memória é problematizar fatos e experiências individuais e coletivas que nos produziram enquanto seres sociais e culturais. É também a possibilidade de refletir sobre a produção da vida e da memória das pessoas com as quais nos relacionamos, especialmente com aquelas que nos comprometemos através da formação, ou seja, as gerações que nos cabe educar. Caetano Veloso expressa isso de maneira bastante poética na composição Tudo de Novo.

Minha mãe me deu ao mundo

De maneira singular

Me dizendo a sentença

Pra eu sempre pedir licença

Mas nunca deixar de entrar

 

Meu pai me mandou pra vida

Num momento de amor

E o bem daquele segundo

Grande como a dor do mundo

Me acompanha onde eu vou

 

As composições do eu-lírico aqui desvelada orientam-se preponderantemente para o passado, e mais especificamente para o tempo original. A mítica Mnemósine aparece mesmo no início dos tempos, filha de uma primeira geração divina, presente naquele tempo originário que o canto de Hesíodo nos apresenta possuído pela inspiração das Musas. Não é, pois, um passado qualquer que se apresenta no canto do poeta: é a própria possibilidade de ser do mundo, o próprio momento gerador cujas conseqüências se vêem no mundo presente, este mundo visível em que vivemos.

A literatura é a filha direta da memória. È na literatura em que a reflexão sobre a memória e sua ação se apresenta consubstanciada em sua forma mais pura. A memória, como experiência humana, é a matéria prima da existência. Nas letras musicais aqui analisadas, podemos perseguir a costura do próprio ser do eu-lírico preso às amarras de suas memórias, que mesmo apagada pela linha do tempo, será ela própria que o ajudará a superar e reconstruir mundos passados, já diluídos na fumaça que o tempo transforma as memórias em imagens poéticas (sonoras). No dizer de Yudith Rosenbaum a evocação lírica terá papel preponderante nessa poesia que acena ao passado, figura a ausência no presente e almeja futuro de plenitude. Vividamente presente, o sujeito lírico eleva sua matéria a assunto poético e faz da poesia uma inusitada terapêutica (1993: 32).

De acordo com o significado da palavra Mãe no Grande dicionário Larousse Cultural da língua portuguesa, podemos verificar uma dimensão espacial no trato semântico desta palavra. Assim nos diz: Mãe (do latim. Mater.) o que dá existência, fornece substância. Fig. País, lugar onde uma coisa começou. Fonte, causa, origem. (1999: 584). Isso em vista, podemos inferir que a cidade natal do poeta o marca tanto que ao revisitá-la em suas canções, o poeta tente preencher lacunas deixadas ao partir para a cidade grande e ganhar o mundo com sua música. No que tange o universo espacial às recordações do universo infantil, Bachelard nos assinala uma linha bastante tênue entre esses dois:

É no plano de devaneio e não no plano dos fatos que a infância permanece viva em nós e poeticamente útil. Por essa infância permanente, mantemos a poesia do passado. Habitar oniricamente a casa natal é mais que habitá-la pela lembrança, é viver na casa desaparecida como nós sonhamos (1993: 59).

 

É importante destacar que o próprio nome da cidade natal do poeta é marca definitiva no que tange nosso universo temático: a mãe. Nossa Senhora da Purificação nos remete aos vários desdobramentos a que a figura de Maria, mãe de Jesus, foi submetida dentro do universo cristão.

Octavio Paz, poeta mexicano, diz que estamos condenados a buscar en nuestra tierra, la otra tierra; en la otra, a la nuestra[1]. Entre os artistas esta condenação se resolve como liberdade criadora. É a partir de uma arcaica proximidade com a cidade natal que podemos compreender porque o sujeito poético guarda em algumas canções memorialísticas o seu anseio ao Paraíso perdido. Cantar sua terra natal, a nosso ver, é alçar vôo para o seu tempo de menino, revelação da saudade do lugar de origem, a força mítica da terra natal e do paraíso primordial. Ao revelar o canto da cidade natal, o eu-lírico deixa transparecer também a saudade de um tempo, um tempo cíclico, não-linear, projeção do mito do eterno retorno.

Além dos fósseis imaginários escavados no jardim edênico de nosso psiquismo, é possível encontrar também outras imagens arquetípicas no sonho com a terra natal. Na casa natal sonhada pelo poeta nas suas canções está a pátria primeira, a casa materna. Na interpretação de Gaston Bachelard, a casa natal é antecedida pela casa onírica, que dá testemunho de uma proteção mais remota, mais profunda que o primeiro calor, a primeira luz, o refúgio, o abrigo. A terra natal, extensão de nossa primeira casa, construída diretamente sobre a terra seria, então, oniricamente o desejo maior de retorno a esse paraíso perdido.

A casa, aqui apreendida como mesmo valor de terra natal, funciona, dentro das produções da imaginação do eu-lírico, como um abrigo, como um princípio de integração dos pensamentos, das lembranças e dos sonhos, em suma, como um valor de integração psíquica. A terra natal está inscrita na alma do poeta, não como traço mnêmico, mas como imagem de intimidade, como imagem que busca um centro, que instaura um centro, que cria um universo como diz Mircea Eliade em Imagens e símbolos (1991).

A terra natal é um valor vivo para as sensações trazidas pelo eu-lírico em suas canções, pois, mais do que ser uma imagem homóloga ao universo, revelando seu potencial cósmico, cremos que o próprio universo vem habitar a casa primeira, jardim das delicias do poeta. Gaston Bachelard afirma ser impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa (Bachelard, 1993: 89). Desta forma, a terra natal vai nos provocando sonhos e nos trazendo lembranças, não somente do tempo de menino, mais lembranças que avancem para um tempo arquetípico de nossas mais longínquas lembranças do inconsciente. Moradias de um tempo de beatitude eterna com o cosmos, plenitude com nossa mãe onírica.

A terra natal da infância do sujeito lírico é amplificada, não condizendo com a realidade, pois estamos no terreno da casa onírica. Esta se mantém ligada ao paraíso de nossa infância, dado que é a sua base, e procuramo-la em busca de proteção. Este abrigo evidente protege-nos do frio, calor, chuva, tempestade, da noite. Mas, estando no campo das emoções, ultrapassamos o simples recordar, e passamos a devanear, habitamos nossa casa oniricamente:

Assim, uma casa onírica é uma imagem que, na lembrança e nos sonhos, se torna uma força de proteção. Não é um simples cenário onde a memória reencontra suas imagens. Ainda gostamos de viver na casa que já não existe, porque nela revivemos, muitas vezes sem nos dar conta, uma dinâmica de reconforto. Ela nos protegeu, logo, ela nos reconforta ainda. O ato de habitar reveste-se de valores inconscientes, valores inconscientes que o inconsciente não esquece (Bachelard, 1993: 92).

 Podemos vislumbrar o reconhecimento da terra natal do eu-lírico com a casa onírico estudada por Bachelard. O sujeito lírico, reconstruindo a plenitude de seu Ser, reencontra o espaço da vida diária num paraíso perdido de seu inconsciente, desdobramento da terra natal para o poeta, donde se conclui que o espaço imaginário e o espaço da realidade estão estreitamente interligados. Segundo Bachelard, a casa onírica pode aparecer representada como gruta, labirinto, choupana, cabana, casa burguesa, e tantos outros motivos, pois existe uma raiz única na origem de todas essas imagens (1993: 78). Sua tese é a de um isomorfismo imaginário, que possibilitaria a construção de um devaneio ao redor de uma imagem que impulsiona a pessoa para uma tomada de consciência, para a construção de um mundo.

Esta saudade da terra natal pode ser interpretada ainda como expressão de sentimentos míticos que o homem, até mesmo o mais urbano e moderno, carrega em relação à própria natureza, com a qual tinha uma ligação mais harmoniosa e intensa no tempo das sociedades primitivas. Outra questão central é a possibilidade de rastrear como o imaginário mítico faz para sobreviver num mundo cada vez mais racionalista e em metrópoles onde o tempo e as pessoas passam cada dia mais depressa. Para o ser humano pós-moderno impregnado e afastado da essência do mito, ao cantar a terra natal, o poeta tenta aprender a recordação mais primitiva de nosso inconsciente, trazemos de volta sensações experimentadas no passado, lembranças de infância. Restauramos sensações e experiências conhecidas apenas no universo arquetípico, num passado remoto, com relação à vivência concreta na terra natal. Vamos ainda mais longe. Esta relação comunicativa estimula os sonhos adormecidos que, na imaginação poética, através das composições, criam de forma mítica a casa natal sonhada, a ser reconstruída pelo viés poético de suas canções.

No sonho acordado, e aí podemos inserir as composições de Caetano Veloso, também feito da substância do desejo, experimentamos menos a expressão dolorosa da vida reprimida e mais o prazer do gozo satisfeito, da vontade saciada. Ele é da ordem do prazer, da resposta, da falta atendida. Muitas vezes o sonho acordado com a terra natal parece servir à satisfação de sonhar, recordar, e assim substituir o esforço do projeto, da própria realização do sonho. Outras vezes, porém, esse sonho é propulsor da vontade de transformação da vida. Cantar a casa primeira está longe de ser vã contemplação de um passado terminado, pois se manifesta como imaginação criadora, transformação eufêmica do mundo. Isso porque transfigurar a lembrança do paraíso de origem ou de um passado perdido em musica é transfigurar o mito em energia utópica.

Todas estas canções obedecem ao problema da proximidade e da distância, tanto física e espacial, quanto cronológica e psicológica, culminando num retorno à origem. Não se volta ao ponto de partida propriamente, sobretudo porque nos tornamos diferentes: a pessoa que regressa não é a mesma que parte. A nostalgia do Paraíso que, de algum modo, orienta todos os homens, é sempre referida como um retorno, uma reviravolta da multiplicidade para a unidade, do mundo para o reino mítico perdido. Essas composições são ricas em alegorias e metáforas que evidenciam este périplo em espiral que todos nós, mal ou bem e inevitavelmente, fazemos da vida.

Estas composições que serão apresentadas ao longo do capítulo também sugerem uma reviravolta sobre si mesmo e um olhar para dentro, depois de uma busca no espaço exterior, o do mundo, faz mister habitar o espaço-tempo primordial de nossa mais tenra terra natal inscrita em nosso psiquismo. Hoje, a nossa forma de encarar o tempo é linear. O tempo que avança do passado para o futuro, irreversivelmente e irrepetivelmente. Porém, o tempo e a história não foram sempre entendidos de forma linear. O mito do eterno retorno dominou a visão da história praticamente desde as sociedades arcaicas até ao judeu-cristianismo. Para o mundo arcaico desde que as visões do “começo” e do “fim” dos tempos eram homólogas – a escatologia, pelo menos em certos aspectos, unia-se com a cosmogonia – o eschaton da religião das danças dos espíritos reatualizava o illud tempus mítico do Paraíso, de plenitude primordial (2004: 69). Nesta concepção, o tempo não é linear, mas circular. O que fazemos é sempre repetição do que já no passado aconteceu. Pois como bem disse Mircea Eliade nesses sistema arcaicos, é a abolição do tempo concreto, e daí sua intenção anti-histórica (2004: 77).

A história não é somente o “cenário” de passagem para um retorno ao instante primordial nem tão pouco passo intermédio - como que um teste - para entrada num qualquer paraíso. O círculo, com que se manifesta o sentido infinito do universo, deve ter em seu interminável caminho uma forma de retorno. Voltar ao universo infantil faz do poeta esse ser que sempre busca o eterno começo, pois é na infância que encerra em nós momentos de encontro com o mundo onírico, completude do Ser. Voltar `a nossa infância perdida nos escaninhos de nosso inconsciente é buscar o ponto em que nós nos encontrávamos pleno de do Todo e unidos ao Cosmos. 

Nas canções que irão ser trabalhadas neste capítulo, podemos classificá-las como poemas de reminiscência à origem primeva, tempo de contemplação do Uno, amor que busca e quer completude. Santo Amaro da Purificação se configura assim, como espaço, por excelência, do imago da mãe. O poeta ao revisitar sua terra natal aponta para a busca do desejo de Totalidade. Assim seguindo as trilhas de Helena Parente Cunha, cantar a cidade natal pode estar associada à busca de um tempo mítico de origem e de viço inaugural (1997b: 78).

Onde eu nasci passa um rio

Que passa no igual sem fim

Igual sem fim minha terra

Passava dentro de mim

 

Passava como se o tempo

Nada pudesse mudar

Passava como se o rio

Não desaguasse no mar

 

O rio deságua no mar

Já tanta coisa aprendi

Mas o que é mais meu cantar

É isso que canto aqui

Hoje eu sei que o mundo é grande

E o mar de ondas se faz

Mas nasceu junto com o rio

O canto que eu canto mais

 

O rio só chega no mar

Depois de andar pelo chão

O rio da minha terra

Deságua em meu coração

 

Tudo começa em Santo Amaro da Purificação, cidadezinha do Recôncavo Baiano, cercada de canaviais, por onde passam as águas do rio Subaé e Sergi-mirim. Nesse espaço mágico de lembranças que o poeta reconstrói em suas canções, nasce Caetano Emanuel Viana Telles Veloso, no dia 07 de agosto de 1942.

Nos rios que cercam a cidade baiana, reside o pensamento do poeta, debruçado nas memórias de infância, adolescência. Aprendizado para vida adulta, rompimento que se faz necessário para o crescimento do eu-lírico muito ligado ao espaço de suas experiências primeiras: Hoje eu sei que o mundo é grande/ o mar de ondas se faz/ Mas nasceu junto com o rio/ O canto que eu canto mais.[2]

Nessas canções que rememoram sua cidade natal constatamos várias vezes a palavra rio[3], que podem ser simbolizados como desdobramento das águas, analogia poética ao ácido amniótico, que protege o ser humano no ventre materno. Nesse pensar dos rios da sua cidade natal reside o mergulho de volta ao centro de tudo, lembrança do útero de sua mãe, aconchego maior, em que tudo era melhor e seguro: O rio da minha terra/ Deságua em meu coração.

Caetano Veloso explora de forma bela a imagética do rio de sua terra natal. Várias são as passagens em que o autor baiano recorda as águas dos rios de sua Bahia. O poeta constrói uma ligação forte com o rio Subaé entre outros: confidente, amigo, símbolo de regeneração e purificação. As canções que elevam a beleza e majestade da simbologia do rio exaltam a veneração e o temor, pois o rio simboliza sempre a existência humana e o curso da vida, com a sucessão de desejos, sentimentos e intenções, e a variedade de seus desvios (CHEVALIER, 1995).

Canções como Adeus Santo Amaro, Trilhos Urbanos, Acrilírico, Onde eu nasci passa um rio, No dia em que eu vim embora, Um dia, Reino Antigo entre outras atestam o canto de regresso à terra natal, espaço de aconchego, de pura intimidade e de descobertas que assinala e marca o poeta. Essas canções celebram a mãe enquanto espaço, podemos nelas associar o universo de puro afã, desejo de retorno a um tempo em que o eu-lírico prezava por uma unidade e completude. Vislumbramos momentos de felicidade infantil, originado numa recordação saudosa de um espaço ao qual podemos atribuir à designação de Mãe Espacial: Onde eu nasci passa um rio/ Que passa no igual sem fim/ Igual sem fim minha terra/ Passava dentro de mim.

A idéia do eterno retorno é uma idéia misteriosa, e uma idéia com a qual diversas vezes outros filósofos ficaram perplexos. No dizer do mito tudo se repete da mesma forma como um dia o experimentamos, e que a própria repetição repete-se infinitamente. A idéia do eterno retorno implica uma perspectiva a partir da qual as coisas mostram-se diferentemente de como as conhecemos: mostram-se privadas da circunstância atenuante de sua natureza transitória.

O mito nos esclarece no ocaso da dissolução, tudo é iluminado pela aura da nostalgia. Aqui podemos vislumbrar uma analogia bastante esclarecedora: as memórias de um período já perdido de nossa vida, um período que jamais retornaria sem apreensão do mito do eterno retorno, a infância. Por isso, Santo Amaro da Purificação é lembrança adormecida nas composições de Caetano Veloso, memória apagada e relembrada em suas canções em sensíveis registros. É em Santo Amaro da Purificação que tudo começa, paraíso perdido nos rastros da memória do eu-lírico.

É pertinente realçar a carga conotativa que o adjetivo espacial comporta, remetendo para algo longínquo, não facilmente acessível, idéia que as próprias canções confirmam, mas simultaneamente para um encantamento e valor que transcende o poeta de emoção e saudade: Adeus meu tempo de chorar/ e não saber por que chorar/ adeus, minha cidade/ adeus, felicidade/ adeus tristeza de ter paz/ adeus e canto agira/ o que eu cantava sem chorar.[4]

Gaston Bachelard (1988), discorre sobre o devaneio, que seria aquele atributo psíquico que possibilita ao sujeito a evasão temporal e espacial do universo pragmático e, conseqüentemente cerceador, que a realidade na qual está inserido impõe como mecanismo de equilíbrio social. Bachelard ensina-nos que o devaneio funcionaria como uma válvula de escape contra os excessos dos mecanismos repressivos do princípio da realidade, conceito originalmente sistematizado por Freud. Assim, nos momentos de maior tensão, ocasionados pelas exigências do mundo adulto, que é integrado às regras do bom comportamento social, o devaneio criaria uma espécie de solidão criativa.

A memória saudosa e nostálgica de Santo Amaro da Purificação, que acompanhou eu poético ao longo de toda a sua vida e que pode ser testemunhada em muitas de suas letras musicais, fez com que exprimisse o desejo de totalidade onde nasceu. Santo Amaro da Purificação deixou estigmas muito profundos no poeta baiano, tão profundos que parecem fazer parte do seu próprio cantar. Lembrança de regresso ao universo uterino, ao espaço de tempos primevos, saudade da mãe, porto seguro, abrigo acolhedor, sinônimo de paraíso perdido.

 

Meu doce reino antigo

Onde araçás de mel

Me enchiam de prazer

Do alto de galhos verdes

Perto de folhas tenras

Olhava o tempo e o mundo

Sentindo a vida passar suave

Tocando de leve como brisa

Minha pele

Meu doce reino encantado

Onde os sonhos, canções, gargalhadas

Brincavam dentro de mim

Me lembro sempre assim

Tuas sombras serenas

Em tardes quentes e lentas

Com leve cheiro de jasmim

Meu doce reino dourado

Te guardo só pra mim

Teus tesouros segredados

Teus mistérios encantados

Doce reino já passado

Onde certamente fui rainha

E naturalmente fui rei... [5]

 

Aqui vemos, com maior perfeição, o que nos propusemos a discutir a cerca da mãe espacial, articulação feita pelo poeta ao tematizar em suas canções sua terra natal como simbologia de um amor materno. Logo de começo, a expressão reino antigo nos remete a algo perdido na psique do eu-lírico, imagem de espaço mágico e ao mesmo tempo fantasmagórico. Lembrança nostálgica de afã e prazer, gozo reminiscente: Doce reino já passado/ Onde certamente fui rainha/ E naturalmente fui rei.

A palavra Araçás, como o próprio compositor nos faz ver em canção de mesmo nome[6], designa o sonho, segredo, palavra que apavora o eu-lírico, brinquedo, coisa lúdica. A uma total identificação na relação afetiva com as memórias de sua terra natal, puro desejo de retorno ao reino onde imperava a completude. Desejo de quem sabe estar em puro encontro com o objeto amado, adorado. É preciso salientar que não é qualquer espaço de recordação. É sim espaço de relevância, pois sendo um reino mágico, guarda figuras que reluz nas lembranças nostálgicas do eu-lírico: Meu doce reino dourado/ Te guardo só pra mim/ Teus tesouros segredados/ Teus mistérios encantados. Na canção Rainha e Rei unidos na personificação dos opostos que se atraem, dualidade considerada necessária para o equilíbrio encantado projetado pelo eu-lírico. Do sujeito poético emergem forças ancestrais, simbolizados no principio masculino (Rei) e princípio feminino (Rainha) com vista à criação do equilíbrio do Reino Antigo vislumbrada pelo sujeito poético na composição.

O poeta nos canta um espaço afetivo, sinônimo de amor de mãe, já vivenciado e agora desejoso de retorno. Por ser tempo de recordação, já adormecido nos vultos do eu-lírico, ao poeta só cabe cantá-lo, numa atitude de retorno daquilo que foi perdido e se deseja ser achado: Meu doce reino encantado/ Onde os sonhos, canções, gargalhadas/ Brincavam dentro de mim/ Me lembro sempre assim.

Foi nesta pequena cidade do interior da Bahia que seu caráter se formou, foi neste espaço que aprendeu os valores morais da vida, numa fase do percurso humano, a infância, que é marcante e condicionadora de comportamentos futuros. É por isso que o eu-lírico confere a Santo Amaro da Purificação o valor metafórico de marco de orientação, a bússola que indica o canto de retorno ao objeto perdido, Reino Antigo, a perfeita tradução do Éden, o mundo mágico de Pasárgada.

Importa reforçar o valor semântico de vocábulos como Reino Encantado, Reino Dourado a qualificar tempo de ingenuidade e ludicidade, traduzindo toda a emoção mágica, a sen­sação de agradável fruição do viver. Soma-se a isso o valor afetivo dos espaços para os quais os vocábulos Reino, sonhos, tardes quentes e lentas remetem.

A propósito ainda de sua cidade natal, vale a pena chamar a atenção para a importância que este espaço poético assume no conjunto da obra de Caetano Veloso, que chega mesmo a falar de amor de mãe. Noutros momentos, a sua região surge como um paraíso distante, tempo de outrora: o melhor o tempo esconde/ longe muito longe/ mas bem dentro aqui/ cana doce, Santo Amaro/ gosto muito raro/ trago em mim por ti/ e uma estrela sempre a luzir.[7] Em Trilhos urbanos o poeta magistralmente brinca com o passado de cores e fotos, escondidos no escaninho de sua alma e de sua lembrança, resgatando um universo cheio de nostalgia.

A sua região natal ficou, como vimos, gravada no espírito do escritor e sempre lhe inspirou um carinho especial, conforme se pode constatar também nesta citação extraída de Trilhos Urbanos, canção em que o poeta vivencia através de seu caleidoscópio memorialístico espaços, lugares e tempos, pessoas, sentimentos/ percepções, objetos, sons, silêncios, aromas e sabores de seu tempo de menino em sua cidade natal: no cais de Araújo Pinho/ Tamarinderinho/ nunca me esqueci/ onde o imperador fez xixi/ rua da matriz ao conde/ no trole ou no bonde/ tudo é bom de ver/ São Popó do Maculelê/ mas aquela curva aberta/ aquela coisa certa/ não dá pra entender/ o Apolo e rio Subaé.

O eu-lírico ao cantar sua terra natal persegue o desejo de um tempo de completude, sua terra natal é espaço, por excelência, de marco para sua formação de poeta. Relembrando sua terra natal, o poeta redescobre sensações nunca perdidas fazendo da arte de cantar exercício de sua procura: Bonde da Trilhos Urbanos/ vão passando os anos/ e eu não te perdi/ meu trabalho é te traduzir.  

O apego de Caetano Veloso à terra, não só a Santo Amaro da Purificação como da Bahia, impediu‑o de abandonar o país e viver no estrangeiro, mesmo quando exilado em Londres.[8] Seu canto é sempre de regresso ao espaço dos começos, como deixou registrado numa canção intitulada Um dia.

 

Eu não estou indo embora

 Estou só preparando a hora de voltar

 No rastro do meu caminho

 No brilho longo dos trilhos

Vou voltando pra você

Na resistência do vento

No tempo que vou e espero

No braço, no pensamento

Vou voltando pra você

No raso da Catarina

Nas águas de Amaralina

Na calma da calmaria

Longe do mar da Bahia

Limite da minha vida

Vou voltando pra você.

 

Registros como águas de Amaralina, mar da Bahia nos apontam mais uma vez para o universo simbólico das águas e sua relevância para o eu-lírico. O poeta aponta o mar da Bahia, memória marcante em seu pensamento. Podemos inferir que mesmo distante, num tempo e espaços longínquos, o eu-lírico traça um pensamento através da poesia para buscar revivenciar marcas indeléveis de sua existência, catalisador e formador de seu ser. Origem, fonte, marco de sua relação com a mãe espacial.

Versos como estes Eu não estou indo embora/ Estou só preparando a hora de voltar traduzem com maestria o anseio do sujeito lírico de se submeter às lembranças nostálgicas de sua infância por ver nelas a tradução de um voltar atrás até a recuperação do tempo original, forte, seguro e sagrado. A terra natal transforma-se na imagem de útero materno espaço que encerra o eu-lírico com Um primordial. Longe do mar da Bahia/ Limite da minha vida/ Vou voltando pra você. O eu lírico se abre para o mito, pois vê na sua doce infância algo que lhe é próprio, como se terra natal lembrasse em cheiro, cor, luz e o fizesse recuperar o Paraíso Primordial para sempre perdido.

Santo Amaro da Purificação, berço de carinho, aconchego de mãe, do qual se afastou por necessidade, mas ao qual se manteve sempre ligado afetivamente, representa, em simultâneo, um paraíso perdido e reencontrado pelo poeta baiano em suas canções; perdido porque deixado na infância, e achado porque, de acordo com a sua vontade, a ela regressa e nela repousará para sempre. Sobre o tempo de infância nos diz Yudith Rosenbaum:

O mundo infantil é, claramente, o espaço da ingenuidade, da espontaneidade, da simplicidade e, sobretudo, da plenitude -, a infância é trazida para o âmbito da poesia imbuída de uma aura mágica, sagrada. A poesia reconstrói epifanicamente a infância enquanto fenômeno iluminado. A vida adulta, então, torna-se um constante aceno ao passado, a esse passado que hoje está desaparecido na realidade, vívido no imaginário e reatualizado enquanto ausência que se materializa na poesia. (1993: 42).

 É muito difícil, para o sujeito lírico, enfrentar a perda irreversível da mãe espacial esse Paraíso Perdido, onde tudo era completo e seguro e encarar o frio e a dor da cidade grande: No dia em que eu vim-me embora/minha chora em ai./ minha mãe até a porta/(...) e quando eu me via sozinho/ vi que não entendia nada/ nem de pro que ia indo/ nem dos sonhos que eu sonhava.[9]

Cantar a terra natal é de certa maneira cantar a mãe, num movimento cíclico, de retorno àquilo que ser perdeu na poeira das estradas, recuperado nas canções que o poeta compõe. Nessa poética aqui desvendada, o poeta baiano Caetano Veloso parece querer nunca se assumir na figura do pai, se assemelha mais à da mãe; não apenas cria, mas procria. Este aspecto é extremamente original, talvez relacionado involuntariamente com o horror do poeta a toda a prepotência, em geral expressa pela autoridade paterna, quer dizer, tem o emblema mais óbvio naquilo a que usualmente se chama a pátria. Na obra de Caetano Veloso o espaço onde se encerra o sujeito lírico é aquele onde não há pátrias nem países, há somente mátrias e maíses: e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria.[10]

Cantar a terra natal é vislumbrar, como o próprio nome diz, o nascimento. É buscar voltar ao momento de totalidade com sua gente, seus costumes seus aromas. Dor de deixar a mãe espacial, necessário se faz crescer, pois a vida segue seu curso e para o Eu poético é preciso buscar sua individuação. Essas canções, de grande teor nostálgico pela sua terra, podem ser estendida no contexto de seu povo e, principalmente, de seus familiares: irmãos, pai e, claro, a mãe.

Como será pois se ardiam fogueiras
Com olhos de areia quem viu
Praias, paixões fevereiras
Não dizem o que junhos de fumaça e frio
Onde e quando é genipapo absoluto
Meu pai, seu tanino, seu mel
Prensa, esperança, sofrer prazeria
Promessa, poesia, Mabel

 

Cantar é mais do que lembrar
É mais do que ter tido aquilo então
Mais do que viver do que sonhar
É ter o coração daquilo

Tudo são trechos que escuto: vêm dela
Pois minha mãe é minha voz
Como será que isso era este som
Que hoje sim, gera sóis, dói em dós
"Aquele que considera" a saudade
Uma mera contraluz que vem
Do que deixou pra trás
Não, esse só desfaz o signo
E a “rosa também
[11]

A passagem do tempo imprime na alma do poeta um mundo de imagens que falam de várias histórias. É na forma de imagens que o poeta ganha uma existência concreta na memória de seus habitantes e visitantes, e documenta as mensagens do tempo. Sem as imagens que habitam sua própria memória, o eu-lírico estaria perdido num fragmento do tempo, sem as recordações o presente não teria continuidade. É nas suas lembranças e recordações que ela tece a sua história, e busca na infância a eterna beatitude, registrado no paraíso perdido do inconsciente humano. É graças à magia de uma memória que as imagens do seu passado não se precipitam num abismo escuro onde o tempo se esconde.

A canção nos aponta passagens poéticas vivenciadas pelo eu-lírico. Fazem parte de um tempo mágico figuras de grande apreço para o eu poético: pai, mãe e irmã.[12] Desse busca de completude, pelo caminho da memória, o eu-lírico atravessa o tempo cronológico e repousa no tempo do afeto guardado no escaninho de sua alma. Na reconstrução de um tempo primevo (Onde e quando é genipapo absoluto), o eu poético traça uma viagem ao passado contracenando com seus familiares. Ao encontrá-los, vai montando uma espécie de quebra-cabeça entre o vivido e o imaginado, completando e expandindo fragmentos de suas lembranças. Para o compositor a tarefa de sua arte é manifestar não os acontecimentos reais, tampouco desenhar sonhos nostálgicos. É sim, buscar o verdadeiro sentimento do vivido, o puro desejo do Uno: Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver do que sonhar/ É ter o coração daquilo.

Como era de se esperar a mãe, dentre os familiares, recebe grande destaque na linda canção. A ela foi designado ser porta-voz das reminiscências do eu-lírico. Pelas suas histórias é que se estabelecem os materiais de vida cantados pelo poeta. Fonte de origem, essência de tudo, a mãe é elevado ao posto de figura que fala pelo poeta. Sua voz se confunde com a do eu-lírico, pois nela reside a essência do ser do poeta: Tudo são trechos que escuto/ vêm dela/ Pois minha mãe é minha voz. É preciso frisar que, ao cantar, o eu-lírico não alcança a lembrança pura dos fatos ocorridos em tempos primevos, pois essa é virtual, mas o mostrará o afeto que dará o colorido às recordações.

 

Referências Bibliográficas

  

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

___________________. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velho. São Paulo: EDUSP, 1994.

CHAUÍ, Marilena. Os trabalhos da memória. In: BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velho. São Paulo: EDUSP, 1994.

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Grande dicionário Larousse Cultural da língua portuguesa. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.


 

[1] Octavio Paz, em texto de abertura do catálogo do Museo de Bellas Artes de Santiago do Chile, 2000.

[2] Música Onde eu nasci passa um rio de Caetano Veloso.

[3] Santo Amaro da Purificação, situada no Recôncavo Baiano, é uma cidade que corre às margens dos rios Subaé e Sergi-mirim. 

[4] Música Adeus meu Santo Amaro de Caetano Veloso.

[5] Música Reino Antigo de Rosinha de Valença e Maria Bethânia interpretada por Caetano Veloso em show com sua irmã em 1978.

[6] Música na íntegra: Araçá azul é sonho-brinquedo/não é segredo/Araçá fica sendo/o nome mais belo do medo/com fé em Deus/eu não vou morrer cedo/Araçá azul é brinquedo.

[7] Música Trilhos Urbanos de Caetano Veloso.

[8] Em 27 de dezembro de 1968 Caetano Veloso foi preso exilado pelo regime militar que vigorava no Brasil desde 1964. O compositor baiano teve que se exilar em Londres.

[9] Música No dia em que eu vim-me embora de Caetano Veloso.

[10] Música Língua de Caetano Veloso.

[11] Música Jenipapo Absoluto de Caetano Veloso.

[12] Mabel é irmã de Caetano Veloso.

 

 

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