A essência da literatura e da música relacionada às questões filosóficas:

um inter-fazer resgatando o originário entre música, literatura e filosofia

 

Priscila Guedes Buares

(UFRJ)

 

Mais cândida que o leite,

mais trêmula que a água,

mais lúcida que o ouro,

mais do que a fonte, cítara;

mais álacre que a égua,

mais pétala que a rosa,

mais do que a seda, túnica;

mais tântala que o ouro,

mais do que a lira, música.

 

(Sapho de Lesbos)

 

            Sociedade, dias atuais, pós-modernidade, cultura do suporte: o que isso nos diria sobre literatura, música e filosofia? Conseguiriam eles fazer uma relação entre os três? Vivemos num mundo com e sem literatura, com e sem música, com e sem filosofia – literatura, música e filosofia vivem hoje uma grande dissociação. O que isso implicaria para a sociedade atual, para o século XXI, chamada por Miroslav Milovic (2004) de “comunidade da diferença”?

            Literatura e música hoje vivem um processo de comercialização, um produto de interesse. Literatos escrevem livros para benefício próprio, ditos “leitores” os lêem pelo que os irá servir no momento presente... A “música” é composta dependendo do momento, da moda, visando somente sucesso, ascensão e fama. Compositores, cantores e ouvintes não estão voltados para o seu trabalho, pensando no que a música pode ter a nos dizer. Onde há essência nisso tudo?

            Se quisermos uma relação com a essência da filosofia – φιλος, o que é próprio e do que é de tal forma próprio que não pode deixar de sê-lo –, e σοφια, não como qualquer modalidade de saber, mas o saber específico –, a essência de todo saber, de todo agir, necessitamos pensar a literatura e a música de maneira totalmente diferente. Com esse pensar, veremos que o verdadeiro poético, a poiesis dessas três essências está em nós, em nossa sociedade, uma relacionada a outra, sendo várias em uma só.

 

Pensando, escutando e auscutando as três essências

“Origem significa (...) aquilo a partir do

qual e através do qual uma coisa é o que é,

e como é. Ao que uma coisa é como é,

chamamos a sua essência”.

(Martin Heidegger, A origem da obra de arte)

            Pensar a música, pensar a literatura... O que seria isso? Viver, experenciar. Como bem diz Alberto Pucheu em seu texto Literatura, para que serve?, “O que desejamos. Literatura. Vida. Literaturavida”. (p. 227). Ainda iria um pouco mais longe, porém utilizando-me do mesmo artifício: Musicoviver. Ou melhor: Musicoliterar. E isso o sistema não permite, a sociedade não conhece ou faz-se desconhecer.

            Passado de uma geração a outra, de uma cultura para outra, o mundo evolui e, ao mesmo tempo, regride. O experenciar a vida, o pensar, tornam-se uma forma de identidade e não de diferença. Daí surgem os conceitos, as repetições, as definições, as categorizações, o enquadramento. O pensar, o viver da música, como intitula Antônio Jardim, em sua tese, Música: vigência do pensar poético, e como poderíamos intitular a literatura como “vigência do pensar musical”, não são gerados e a instituição do saber acontece por bases outras. Com isso, responderíamos a questão inicial: a sociedade, a pós-modernidade, o século XXI, não obteriam uma relação entre as três essências aqui expostas. Para confrontarmos a realidade temos, então, a questão; e é isso o que vamos fazer.

            A constituição do saber, se pensarmos somente através da escrita, estamos completamente enganados. Comunidades agráfas adquiriam o conhecimento através da música e da literatura. Vemos, assim, relacionada a essas duas essências a Memória. Essa memória nos faz ser e não-ser, à medida que sabemos e não sabemos. Observamos, com isso, que, citando Jaa Torrano, a “extrema importância que se confere ao poeta e à poesia repousa em parte no fato de o poeta ser, dentro das perspectivas de uma cultura oral, um cultor da Memória”. Isso gera em nós vida e não só “análises” e “descansos” – como observamos nos dias atuais o “pensar” da literatura e da música. Podemos confirmar essa geração de vida, esse experenciar, esse “escutar” o litero-musico-filosófico, a partir do que afirma Werner Aguiar, em seu artigo Música e hermenêutica no horizonte do mito (p.167):

“No canto da memória soa o poético. Há no poético um modo radical de entendimento que nos exige antes de tudo a atenção especial do escutar. Como tal, é apenas na circularidade de seu entorno, de memória e de escutar, que se aprende seu sentido. Na sonância e ressonância do poético a memória configura seu entorno consonante e dissonante ao entorno do próprio escutar. Nas tensões, re-tensões e dis-tensões do círculo da memória, a música musica a poética do sentido.”

            Compor uma música, escrever um poema não é privilégio de muitos; pensar é privilégio de todos. Porém , o que vemos é o inverso; muitos acham ter o privilégio de escrever e compor e poucos se acham no privilégio de pensar. A cultura do suporte demonstra isso, dando à música e à literatura um modo de sustento e não uma experiência de vida. A filosofia, nesse entremeio, inexiste, não faz parte do sistema, é claro. Pensar é ter a possibilidade do estabelecimento e vigor das questões. Questões geram o pensar, o questionar, o discutir e não é isso o que temos. Antônio Jardim, em sua tese, afirma:

“A questão é o ponto de partida e o ponto de chegada do pensar. O pensar só se instaura com o vigor da vigência da questão, sem esta não há pensar, não há saber, não há nada. Pensar, por sua vez, não é uma tarefa, pensar é a vigência da própria dimensão e possibilidade de ser.”

            E Jardim prossegue:

“O pensar não se deixa confundir com suas características e modalidades. Desse modo, pensar é, à diferença de racionalizar.”

            Caso isso houvesse, não precisaríamos estar aqui hoje discutindo essas questões, não ouviríamos o que somos obrigados a ouvir hoje – devido ao sistema imposto –, e confirmaríamos a “comunidade da diferença”.

            Essa diferença geraria, com isso, vida. Geraria também a verdadeira essência da poesia, da música e do filosofar, a verdadeira obra de arte em suas diversas personificações. Citando Heidegger (p.60)

“A arte (...) é Poesia. Não é apenas a criação da obra que é poética, mas também é poética a salvaguarda da obra, só que à sua maneira própria; com efeito, uma obra só é real como obra na medida em que nos livramos do nosso próprio sistema de hábitos e entramos no que é aberto pela obra, para assim trazermos a nossa essência a persistir na verdade do ente.”

            Percebemos, com isso, que música, literatura e filosofia, cada uma e as três caminham em prol do experenciar, do viver. Estas, caminhando, hoje, “isoladas”, possuem o seu inter-agir, transformando o que vemos e mudando, assim, a nossa maneira de pensar a vida, de pensar o mundo. Dando oportunidade ao “utopar”, posso dizer que podemos mudar esse ‘experenciar’ da pós-modernidade. Será um caminho longo, trabalhoso, mas “não há de haver colisão / de universos paralelos” (Jorge Dias). Termino citando o poema completo desse mesmo autor, abrindo os ouvidos para a escuta do pensar, do musicar e do poético, também colocando em questão a sociedade, muito bem relacionado pelo poeta.

 

Dois elos 

Jorge Dias

 

 Meu mundo bola de lã

tolo brinquedo de gato

meu mundo quase abstrato

Não tem lugar pro amanhã

 

Teu mundo oásis seguro

Lanças, moinhos, quixotes

Estrada à luz dos archotes

Teimando em ver bem no escuro.

 

Globos azuis de artesão

não há de haver colisão

De universos paralelos

 

Lá no horizonte mais curvo

Dois faróis varrem mar turvo

Um cordão de só dois elos.

 

Bibliografia: 

AGUIAR, Werner. “Música e hermenêutica no horizonte do mito”. In: CASTRO, Manuel

        Antônio de. (org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.

_______________. Música: poética do sentido. Uma onto-logo-fania do real. Tese de

        Doutorado em Ciência da Literatura – Poética. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de

        Letras, 2004.

BUARES, Priscila Guedes. “A verdadeira arte de pensar a literatura”. In: SOLETRAS:

         Revista do Departamento de Letras da Faculdade de Formação de Professores /

         UERJ: Ano 4, n° 07, jan.-jun. 2004.

CASTRO, Antônio José Jardim e. Música: vigência do pensar poético. Tese de Doutorado

        em Ciência da Literatura – Poética. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1997

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Rio de Janeiro: Edições 70, s/d.

MILOVIC, Miroslav. “A crise da filosofia”. In: Comunidade da diferença. Rio de Janeiro:

        Relume Dumará, 2004.

PUCHEU, Alberto. “Literatura, para que serve?”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. (org.).

        A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.

TORRANO, Jaa. Teogonia: A origem dos deuses. Apud CASTRO, Antônio José Jardim e.

        Música: vigência do pensar poético. Tese de Doutorado em Ciência da Literatura –  

        Poética. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1997.

_____________. O sentido de Zeus. Apud CASTRO, Antônio José Jardim e. Música:

        vigência do pensar poético. Tese de Doutorado em Ciência da Literatura – Poética.

        Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1997

 

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