Manuel Bandeira – Crônicas de Carnaval

“Passado. Passado pra mim só o das coisas ocorridas em ambientes que nunca mais tornei a rever. Se os revejo, tudo reverte da franja para o foco da consciência (...)” – Manuel Bandeira em “Variações sobre o passado”.

Partindo das peculiaridades da vida pessoal para as variedades e sabores da vida pública cotidiana, o poeta Manuel Bandeira escrevia suas crônicas. Assim como dedos de prosa entre amigos.

Ao longo da sua trajetória literária, aproximou-se de várias correntes de época, dos parnasianos, dos simbolistas, mas não aderiu, efetivamente, a nenhuma. Foi chamado pelo amigo Mário de Andrade, com quem manteve trocas constantes de correspondências entre 1922 e 1944, de São João Batista do Modernismo. Isso porque ele antecipou em sua obra alguns preceitos do movimento que surgia. Mas Bandeira sempre deixou claro que não queria limitar a sua liberdade criativa.

A mim sempre me agradou, ao lado da poesia de vocabulário gongorinamente[1] seleto, a que se encontra não raro na linguagem coloquial e até na do baixo calão. (...) o elemento do humilde cotidiano que começou desde então a se fazer sentir em minha poesia não resultava de nenhuma intenção modernista. Resultou, muito simplesmente, do ambiente do morro do Curvelo. [2]

Portanto, muitas de suas características modernistas nascem do espírito alegre e boêmio de seus amigos mais íntimos e do próprio clima da cidade do Rio de Janeiro - cidade que ele descreve, sente, vive e que é tema de muitas de suas crônicas. Crônicas que revelam um observador atento do mundo que o rodeia.

Mesmo que não intencionalmente, ou não assumidamente, foi com o Modernismo que Bandeira flertou em sua obra.

Em suas prosas, mais especificamente em suas crônicas, Manuel Bandeira é coloquial, apresenta com freqüência elementos de origem popular, é confessional e lírico no que há de interação completa nisso. Vida e poesia numa síntese feliz entre subjetividade e objetividade. O texto de Bandeira é escrito na interseção desses aspectos que, a partir de 22, no Brasil, passaram a caracterizar o movimento modernista, do qual faziam parte, muitos dos seus amigos de bate-papo da boemia carioca. Vale citar: Ronald de Carvalho, Oswald de Andrade, Dante Milano, Sérgio Milliet, Di Cavalcanti, Ribeiro Couto, entre outros.

O poeta Manuel Bandeira é um pernambucano “cidadão carioca” por tempo de casa. Morou mais tempo de sua vida no Rio de Janeiro (desde os dez anos de idade – 1896 – quando seu pai veio, como engenheiro, trabalhar no Rio de Janeiro) do que em sua cidade natal e, em suas crônicas, foi contador das histórias do Rio de sua juventude. Não importa o tema, toda vez que o cenário é a cidade do Rio de Janeiro, o poeta parece impermeável às mudanças. Bandeira insiste em desfrutar a delícia de se sentir provinciano. E o carnaval que aparece em suas crônicas é o “Carnaval de Outrora”, os “Ecos do Carnaval”. Títulos de duas delas. E a musa é a Rua do Ouvidor.

(...) Era naquele Rio da rua do Ouvidor, onde outrora pulsava com mais força a vida desta heróica cidade (...) Ora, não se passava pela rua do Ouvidor. Ali se parava, se namorava, se conspirava. Ali se situavam as redações dos grandes jornais, as lojas mais elegantes, os cafés e confeitarias mais freqüentados. Ali é que se chegavam ao clímax os acontecimentos mais notáveis da consagração pública.(...) nos três dias de carnaval, então a rua do Ouvidor ficava de não se poder meter um alfinete: a afluência de povo transbordava de ali para as travessas e a festa culminava com a passagem dos préstitos rua abaixo (...) O carnaval das ruas está morrendo: Já cabe todo na Avenida e nem sequer a toma inteira. Dela para o mar é o deserto e o silêncio (...) [3]

Saudade. Nostalgia. Vontade de preservação, quando os préstitos deixaram de passar na Ouvidor e passaram à Rio Branco. É o afeto a chave da questão em Manuel Bandeira. É o afeto que identifica, na literatura de Bandeira, o particular e o público.  O que ele escreve é da ordem do íntimo, do familiar. E é assim que ganha um tom descontraído e coloquial. Mesmo quando alcança esse status, graças a um movimento de acolhimento do que não é exclusivo ou individual, como, por exemplo, a paisagem e as festas da cidade em que mora.

Quanto ao morro do Curvelo, o meu apartamento, o andar mais alto de um velho casarão quase em ruínas, era, pelo lado dos fundos, posto de observação da pobreza mais dura e mais valente, e pelo lado da frente, ao nível da rua, zona de convívio com a garotada sem lei nem rei que infestava minhas janelas, quebrando-lhe às vezes as vidraças, mas restituindo-se de certo modo o meu clima de meninice na rua da União em Pernambuco (...) [4]

Percebe-se na imagem aí estabelecida pelo poeta, que a realidade urbana carioca invade a sua intimidade. É como se cada tom de realidade entrasse por uma janela – um pela frente outro pelos fundos - se misturasse no meio da sua casa, com as suas coisas e com ele próprio e saíssem em novas nuances para interagir com a cidade.

Bandeira introduziu, assim, em seus variados escritos, matéria de natureza autobiográfica. Como se sentisse necessidade de explicar uma pela outra – vida e poesia. Gotas de biografema.

Roland Barthes no livro Roland Barthes por Roland Barthes diz que da biografia de uma pessoa é possível destacar pormenores, lembranças, gostos, inflexões. Coisas “insignificantes” a que chamou de biografemas. Coisas que escapam à perspectiva informativa, situando-se na dimensão do afetivo e do imaginário. 

Em Manuel Bandeira, as coisas não escapam completamente da perspectiva informativa, mas tampouco abrem mão do afetivo e do imaginário. Ele traz o cotidiano e a sua história de vida para essa dimensão. É nesse âmbito que ele escreve.  Em Itinerário de Passárgada ele confessa: “Na minha experiência pessoal fui verificando que meu esforço consciente só resultava em insatisfação, ao passo que o que me saía do subconsciente numa espécie de transe e alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado das angústias (...)”

Em Carnavais de Outrora - crônica publicada na Revista Acadêmica, em 1938 - o poeta , então amigo de Mário de Andrade, olha para o passado com um tom de lamento.

(...) Em 1896 vim para o Rio e conheci o carnaval carioca, tão diferente do de hoje. Impossível dizer dele o que mestre Machado de Assis disse do Natal. O centro da cidade não era então a avenida Rio Branco; era uma das ruas mais estreitas e mais curtas da cidade, e também a mais elegante – a Rua do Ouvidor. Imagine-se toda a população da cidade querendo brincar na Rua do Ouvidor! O momento capital do desfile das grandes sociedades era na Rua do Ouvidor. As mais belas senhoras da cidade estavam nas sacadas.

Depois adoeci [aos 18 anos se descobriu tuberculoso] e durante anos, muitos anos, não vi senão os carnavais das cidadezinhas do interior. No Rio abriu-se a Avenida. A Rua do Ouvidor foi perdendo o seu prestígio. (...) Depois... Depois o carnaval carioca passou a ter fama internacional. Criou-se um Departamento de Turismo, que começou a fazer propaganda do nosso carnaval. Instituíram-se prêmios. Não sei por que, se por isso ou por aquilo, ou por coisa nenhuma, a festa entrou a murchar, e o certo é que o carnaval verdadeiro, o carnaval de rua só serve hoje para fazer cinema ou tentar uma Rita Hayworth a dar as caras por estas bandas. O carnaval visto por Mário de Andrade em 1923[5] não existe mais (...)

Diz-se que há o prosador lírico. Então Bandeira é isso. Prosador lírico. Poeta que se diz “menor” por delicada humildade salpica musicalmente, como quem tange corda por corda, uma lira afinadíssima, sentimentos íntimos, sonhos e saudades em tudo o que do espaço carioca lhe passou diante dos olhos, pela imaginação, pela vida. Encantar e redescobrir o encantamento foram formas que o poeta encontrou para tentar preservar uma cidade em transformação acelerada. O Rio do início do século, das décadas de 20 e 30, era uma cidade em constante “industrialização”. As crônicas do poeta são como fotografias sentimentais de um Rio de Janeiro de início do século. Bandeira expõe sua nostalgia e tenta reconstruir detalhadamente as sensações.

“Sou um velho sem passado”, disse ele em uma de suas crônicas[6]. “Quero dizer que o passado continua a existir para mim como um presente, digamos uma enorme paisagem sem linhas de fuga, uma paisagem sem perspectiva, onde todos os incidentes, os de ontem, os do ano passado, os de há cinqüenta anos se apresentam no mesmo plano, como nos desenhos das crianças”. Bandeira conta o Rio de Janeiro de sua recordação. Ao recordar o Rio, ele repassa pelo coração – é o que da palavra recordação se diz etimologicamente: “repassar pelo coração” - todas as sensações que, além de tudo, abrandam seu sofrimento de menino que se descobre tísico aos dezoito anos, que mais tarde perde pai, mãe e irmã em curto período de tempo. Que se descobre só.  

Em alguns poemas publicados em seu livro Carnaval (1919), ele deixa clara essa melancolia frente aos tempos dos préstitos pagãos.  Em Epílogo um carnaval – para ele - sem alegrias:

Eu quis um dia, como Schumann[7], compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que só o motivo
Fosse o meu próprio ser interior...

Quando acabei - a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta, morta-cor
Da senilidade e da amargura...
- O meu Carnaval sem nenhuma alegria!

 

E em Bacanal a tentativa de se impregnar dessa relação dionisíaca com a vida, dessa cambalhota, dessa máscara dos avessos que é “oficialmente permitida” nos tempos de carnaval. E o grito de vontade de liberdade desse que participa em poemas das relações com Dionísio:

 "Quero beber! Cantar asneiras
No estado brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé[8] Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!"

 

E, mais tarde, já em 1959, escreveu ao Jornal do Brasil que o carnaval Está morrendo mesmo. Com argumentos que continuam incrivelmente atuais:

 

“(...) Carnaval no Rio houve, mas foi no tempo que ainda existia a Rua do Ouvidor (...) A abertura da Avenida Rio Branco foi o primeiro golpe sério no carnaval. A festa diluiu-se, perdeu o calor que lhe vinha do aperto. Mas durante alguns anos houve o corso que era realmente lindo com o seu espetáculo de serpentinas multicores. Os automóveis fechados vieram a acabar com ele. Junte-se a isso a comercialização das músicas, a intromissão do elemento oficial premiando uma coisa cujo maior sabor estava em sua gratuidade... Vale a pena lamentar? Acho que não. (...) A vida é renovação. (...) Quem não estiver contente com o presente, viva, como eu, das saudades do passado.”  

 

 

  

Referência Bibliográfica:

BANDEIRA, Manuel – Crônicas da Província do Brasil.Civilização Brasileira, 1937.

BANDEIRA, Manuel – Flauta de Papel. Rio de Janeiro, Alvorada Edições de Arte, 1957.

BANDEIRA, Manuel – Poesia e Prosa. – Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958.

BANDEIRA, Manuel – Libertinagem; Estrela da Manhã – Edição Crítica. Coordenação: Giulia Lanciani – Coleção Archivos – Scipione Cultural. 1998.

BARTHES, Roland – Roland Barthes por Roland Barthes - São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

CÂNDIDO, Antonio – A vida ao rés-do-chão. (Ensaio)

COELHO, Eduardo – seleção e prefácio – Coleção Melhores Crônicas Manuel Bandeira – São Paulo: Editora Global, 2003.

GARDEL, André – O encontro entre Bandeira e Sinhô – Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1996.

RESENDE, Beatriz – Rio de Janeiro, cidade da crônica. (Ensaio)

STAIGER, Emil – Conceitos Fundamentais de Poética – Rio de Janeiro – Edições Tempo Brasileiro. 1975.

SZKLO, Gilda Salem – Drummond e Bandeira, os cronistas poetas. (Ensaio)

 


[1] Gongorismo – Escola espanhola de poesia inspirada no modelo de Luiz Góngora y Argote (1561-1627). É caracterizada por um excesso de metáforas, antíteses, inversões, trocadilhos e alusões clássicas.

[2] In: Poesia e Prosa – Idem, ibidem.

[3] “Ecos de Carnaval” – 1956.

[4] Manuel Bandeira (1977), In GARDEL, André – O encontro entre Bandeira e Sinhô – Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1996.

[5] ...sangue ardendo povo chiba frêmito e clangor

Risadas e danças

Batuques maxixes

Jeitos de micos piricicas

Ditos pesados graça popular

Coros luzes serpentinas

Coriscos coros caras colos braços serpentinas serpentinas

Sambas bumbos guisos serpentinas serpentinas...

 

[6] Variações sobre o passado. In: Flauta de papel, 1957.

[7] Robert Schumann nasceu na Saxônia e viveu durante o período de 1810 a 1856. Em 1834 compôs Carnaval, op. 9, que tem como subtítulo “Pequenas Cenas sobre quatro notas” (lá, mi bemol, dó e si natural), como que a ressaltar que ter sido a obra toda criada sobre estas quatro notas. A composição é um intrigante conjunto de peças para piano, retratando um baile de carnaval, por onde passam Arlequim, Pierrot, Colombina, Paganini, Ernestine Von Frieken, Eusebius, pseudônimo que corresponde à natureza intimista de Schumann, Florestan, a sua parte mais extrovertida e alegre, Chiarina, nome sob o qual se oculta o de Clara, sua futura esposa, na época ainda Clara Wieck, Chopin, por quem Schumann devotava profunda admiração, entre outros. Cada um deles é retratado em uma das 29 peças que compõe o Carnaval – daí no segundo verso, Bandeira referir-se a “um carnaval todo subjetivo”, semelhante ao do músico – o que nos lembra as afinidades eletivas, em que Mário acreditava e assumia em cartas. (In: blocosonline.com.br por Leila Miccolis)

 

[8] Evoé – Grito festivo com que, na Antiguidade, se evocava Baco durante as orgias.

 

 

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