A Música que Ocupa o Silêncio  

Mariana Correia Mourente Miguel

Mestrado (Letras Vernáculas), UFRJ 

Palavras-chave: A Hora da Estrela, Clarice Lispector, música, silêncio 

Música e literatura: um breve histórico de uma longa ligação  

“As palavras são sons transfundidos de sombras (…), música (…)”

(Lispector: 1998, p. 16)

A música e a literatura são duas artes que desde o princípio estiveram intimamente entrelaçadas.  Ainda hoje, é comum em aulas de literatura que o professor dê atenção especial ao ritmo do texto, aquela sucessão de sílabas átonas e tônicas que cria uma quase melodia usando o som das palavras.  Também não é deixada de fora a capacidade da língua de reproduzir sons que não pertencem a ela, surgindo então as chamadas onomatopéias, que ainda mais contribuem para um efeito musical em que ouve o texto.  Chega-se mesmo a falar na existência de uma certa musicalidade do texto literário que o distingue do não-literário, e não são poucos os professores que defendem que a literatura só pode ser devidamente apreciada em uma leitura em voz alta, respeitando-se a cadência das palavras. 

Atualmente, quando o hábito de memorizar e declamar poesia cedeu amplamente espaço à leitura solitária e silenciosa, quando a leitura de poesia foi se tornando cada vez menos freqüente, em contraste com a popularidade cada vez maior da prosa, o elemento musical da literatura aparentemente ficou relegado a um segundo plano, mas só aparentemente.  É verdade que o elemento sonoro da literatura teve sua importância diminuída pelas mudanças na forma de transmissão dos textos ao longo dos tempos, que privilegiaram a forma escrita sobre a falada.  No entanto, embora um certo distanciamento entre literatura e música possa ser sentido, não se pode dizer que tenha havido uma verdadeira separação entre estas duas artes. 

Atualmente, vários pesquisadores se dedicam a apontar as interfaces entre música e literatura, explorando um campo multidisciplinar por alguns denominado melopoética.  Grande parte destas pesquisas ocupa-se com a relação entre música e poesia, já que historicamente esta é a forma literária na qual as características musicais são mais facilmente identificáveis.  Contudo, também na prosa há manifestações significativas desse encontro de artes. 

Uma das formas pela qual a música se introduz na prosa literária é a chamada “música verbal” (cf. Oliveira: 2003).  Este recurso consiste em mencionar uma determinada música dentro do texto e a experiência de ouvi-la é então trazida ao leitor através da descrição verbal das sensações que ela provoca nas personagens.  Este recurso à música, no entanto, é bastante superficial.  Pode-se mesmo dizer que, nestes casos, o efeito é causado menos pela música propriamente dita do que pela descrição literária da experiência da audição. 

Há vários exemplos de autores que trazem a música para dentro de sua prosa de uma forma mais substancial, como é o caso de autores que compõem suas obras de forma a seguir uma estrutura operística, por exemplo.  Em A hora da estrela, de Clarice Lispector, temos um outro exemplo de como a música pode ser inserida na prosa literária: através da inserção de sons produzidos por instrumentos musicais para a marcação de pontos chave da narrativa. 

Macabéa

No romance A Hora da Estrela, brilha indiscutivelmente a personagem principal, Macabéa.  Nordestina, pobre, semi-analfabeta, subempregada, ameaçada de demissão, feia, sem parentes vivos, desnutrida…  Sua lista de carências aumenta a cada passo da narrativa, que enfatiza sempre o fato de esta moça não ter – uma carência tão visceral que atinge até mesmo a linguagem, privando o verbo de seu complemento.  Sua história estarrece e cativa, ao mostrar uma mulher privada de quase tudo, mas que não tem consciência de sua situação no mundo. 

De todas as deficiências que se revelam ao longo do texto, a que mais se destaca é a incapacidade de se comunicar.  Macabéa não compreende os outros, nem se faz compreender por eles.  Não entende o que seu namorado Olímpico tenta lhe dizer em suas tentativas de conversas.  Também não compreende aquilo que ouve na Rádio Relógio, embora seja parte de sua rotina pegar emprestado o rádio de pilha de uma de suas colegas de quarto para ouvir os seus ensinamentos.  Da mesma forma que não entende os outros, Macabéa não consegue se fazer entender por eles, e monta conversas incoerentes com Olímpico ao alinhavar fragmentos de informação que não sabe utilizar. 

No entanto, a despeito de todas as dificuldades que surgem em suas tentativas de comunicação, Macabéa não chega a ser uma personagem absolutamente incapaz de se comunicar, já que isso implicaria na impossibilidade de ter sua história narrada da forma como ela é feita.  Para que sua história possa ser contada apesar das falhas de comunicação, o narrador recorre à inserção da música nos momentos principais, fazendo com que ela se transforme em um elemento importante para a leitura do romance. 
 

A Presença da Música em A Hora da Estrela  

Já na dedicatória, A hora da estrela conta com diversas referências à música.  Schumann, Beethoven, Bach, Chopin: são alguns dos compositores a quem o autor dedica “esta coisa aí” (Lispector: 1998, p. 11).  No entanto, é no corpo da narrativa que se verifica uma presença mais significativa da música no texto.  Logo nos primeiros parágrafos, o narrador angustiado afirma: “eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor” (Lispector: 1998, p. 11).  Vê-se então que a matéria mesma da narrativa, a dor de Macabéa “numa cidade toda feita contra ela” (Lispector: 1998, p.15) e também a dor do narrador que para escrever precisa pôr-se “no nível da nordestina” (Lispector: 1998, p. 19), é igualada à música, música esta composta por palavras, “música transfigurada de órgão” (Lispector: 1998, p. 16), trespassada pelo “baixo grosso da dor” (Lispector: 1998, p. 16).  Porém essa música nem sempre é harmoniosa, “a esta história falta melodia cantabile.  O seu ritmo é às vezes descompassado” (Lispector: 1998, p. 16). 

Além da metáfora da música para se referir à dor que leva à elaboração do texto, o leitor também encontra em A hora da estrela menções a instrumentos musicais que sublinham passagens importantes.  Um dos instrumentos recorrentes na narrativa é o tambor, cujo “rufar enfático” (Lispector: 1998, p. 22) aparece quando o narrador se debate com as dificuldades para iniciar a narrativa.  E, como o próprio narrador salienta: “No instante mesmo em que eu começar a história – de súbito cessará o tambor” (Lispector: 1998, 22).  No momento em que Macabéa se olha ao espelho e Rodrigo vê a si mesmo refletido, novamente surge o rufar de tambores, enfatizando a recorrência desta dificuldade do narrador em deixar de escrever sobre si mesmo e passar a “contar sobre essa moça entre milhares delas” (Lispector: 1998, p. 13). 

Outro instrumento que se repete na narrativa é o violino.  Sua primeira aparição ocorre logo antes do que Rodrigo chama de um começo pelo meio (“– que ela era incompetente”, Lispector: 1998, p. 24).  E o narrador afirma que toda a história de Macabéa será acompanhada por um “violino plangente” (Lispector: 1998, p. 24), assim como ao começar o texto menciona “a dor de dentes que perpassa esta história [e dá] uma fisgada funda em plena boca nossa” (Lispector: 1998, p. 11).  O violino, portanto, é desde cedo associado à dor e ao sofrimento dentro de A hora da estrela. 

O violino reaparece no ponto culminante do texto, que é a lenta agonia de Macabéa após o atropelamento.  Neste momento em que a narrativa se encaminha para o seu fim, Rodrigo relata que “apareceu portanto um homem magro de paletó puído tocando violino na esquina” (Lispector: 1998, p. 82).  E então o próprio narrador afirma: “Só agora entendo e só agora brotou-se-me o sentido secreto: o violino é um aviso.  Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino do homem e pedirei música, música, música” (Lispector: 1998, p. 82).  Esta última referência ao violino sela a relação criada entre este instrumento musical e um aspecto importante da narrativa, a morte de Macabéa, morte desde o começo anunciada, idéia presente já no próprio título do texto, A hora da estrela. 

Outra referência recorrente é ao canto.  Também ele aparece ligado à idéia de morte, como se vê nesta passagem: “(…) na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes” (Lispector: 1998, p. 29).  Nesta passagem, o canto da morte ecoa o canto alto agudo que é a dor. 

O canto surge novamente na narrativa quando Rodrigo se refere à infância de Macabéa, época em que vivia em Alagoas com a tia beata.  Nessa passagem marcante, Macabéa ouve “uma canção desafinada de meninas brincando de roda de mãos dadas” (Lispector: 1998, p. 32), mas ouve de longe, porque sua tia nunca permite que ela participe.  Mesmo em seus sonhos, Macabéa não canta as cantigas de roda como as outras crianças: quando quer se imaginar levando uma vida feliz, apenas finge correr “pelos corredores de boneca na mão atrás de uma bola e rindo muito” (Lispector: 1998, p. 33), mas sem cantar.  Macabéa, que “era calada (por não ter o que dizer) (…) gostava de ruídos” (Lispector: 1998, p. 33).  Já morando no Rio de Janeiro, gostava que os carros passassem buzinando alto pela rua em que morava.  Ao pegar emprestado o rádio de sua colega de quarto, Macabéa “ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava ‘hora certa e cultura’, e nenhuma música” (Lispector: 1998, p. 37). 

Essa rotina, no entanto, é quebrada quando, por acaso, ela ouve pelo rádio uma música que a faz chorar.   “A voz era tão macia que até doía ouvir” (Lispector: 1998, p. 51).  Pela primeira vez, Macabéa é envolvida pela música e tenta cantar, mas “a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era” (Lispector: 1998, p. 51).  Nas palavras de Olímpico, o seu namorado, Macabéa “até parece uma muda cantando.  Voz de cana rachada” (Lispector: 1998, p. 51).  Esta é a única vez em que Macabéa se aproxima da música durante todo o livro. 

Em contraste com a protagonista, Olímpico é várias vezes descrito como tendo uma “voz cantante de nordestino” (Lispector: 1998, p. 43), voz essa que, apesar da origem em comum com ele, Macabéa não tem, o que se soma a todas as suas outras carências.  O “tom cantado” de Olímpico, como ficamos sabendo mais tarde, é uma das características que o ajuda a conseguir o cargo de deputado que tanto deseja.  Enquanto isso, Macabéa, sem voz e sem música, vive sem ambições.  

A ambição de Olímpico o leva a deixar Macabéa por Glória, sabendo que “Glória tinha mãe, pai e comida quente em hora certa.  Isso tornava-a material de primeira qualidade” (Lispector: 1998, p. 59-60).  O rompimento do princípio de namoro acaba por levar Macabéa a procurar a cartomante indicada por sua colega de trabalho.   Neste ponto da narrativa, o narrador diz da protagonista, que está pela primeira vez esperançosa, ouvindo referências a seu futuro, que “agora ouvia a madama como se ouvisse uma trombeta vinda dos céus” (Lispector: 1998, p. 77).  Enquadrando-se nas diversas referências a Jesus feitas pela cartomante, a trombeta marca o momento crucial da narrativa: o momento em que Macabéa finalmente é confrontada com a falta que caracterizou sua vida em todos os momentos e, apesar disso, passa a ter esperança. 

Além dos já anteriormente citados – o canto alto agudo, o rufar enfático do tambor, o violino, a música ouvida pelo rádio e a voz cantada do nordestino cheio de ambição e a voz desafinada da nordestina que pensava “já que sou, o jeito é ser” (Lispector: 1998, p. 33) – há outros elementos cuja presença é reduzida, sendo mencionados no texto poucas vezes.  Dois desses elementos a que se pode chamar de secundários aparecem ainda no princípio da narrativa, enquanto o narrador ainda se debate com as dificuldades que envolvem o começo do relato sobre Macabéa. 

O primeiro é “o trombone mais grosso e baixo, grave e terra, tão a troco de nada” (Lispector: 1998, p. 20), que nos remete simultaneamente à metáfora já mencionada do baixo grosso da dor, e também à idéia da falta de propósito para a vida de Macabéa, que, nas palavras do narrador, “como uma cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma.  Pois reduzira-se a si” (Lispector: 1998, p. 18). 

O segundo instrumento musical citado nesta passagem é a flauta doce.  Na passagem em que é mencionada, a flauta doce confunde-se com o desenlace desejado para o processo de elaboração do texto: “a ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto.  Sim, e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó” (Lispector: 1998, p. 20). 

Outro elemento mencionado poucas vezes ao longo do texto é o piano.  A menção a ele ocorre em um dos raros momentos em que se vislumbra uma possibilidade de conexão entre Macabéa e o mundo exterior,  quando, ao descrever o lugar onde a protagonista divide um quarto com outras quatro trabalhadoras, o narrador se refere a sua “saudade do futuro” (Lispector: 1998, p. 30).  Neste mesmo instante, surgem na narrativa “acordes de piano alegre – será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso?” (Lispector: 1998, p. 30).  Este futuro esplendoroso não se realiza, Macabéa morre atropelada, tendo perdido seu único namorado, devendo o dinheiro da consulta à cartomante ao patrão que já prometeu despedi-la.  Da mesma forma, os acordes de piano que o narrador se pergunta se realmente ouviu não chegam a tomar uma forma mais consistente, e permanecem apenas isso: acordes fracos, soltos, ouvidos ao longe. 

Outro elemento que pontua a tragédia de Macabéa são os sinos.  No começo do livro, enquanto o narrador procura enfrentar o desafio de narrar a história de Macabéa, ele afirma que estará “lidando com fatos como se fossem as irremediáveis pedras de que [falou].  Embora queira que para [se] animar sinos badalem quanto [adivinha] a realidade” (Lispector: 1998, p. 17).  Esta referência aos sinos ganha mais significado quando, ao relatar a morte da protagonista, Rodrigo diz: “Pronto, passou.  Morta, os sinos badalavam mas sem que seus bronzes lhes dessem som.  Agora entendo essa história.  Ela é a iminência que há nos sinos que quase-quase badalam.” (Lispector: 1998, p. 86). 

Conclusão
Para concluir esse levantamento das referências à música dentro de A hora da estrela, de Clarice Lispector, devemos fazer um contraponto com o silêncio da narrativa.  Como fica evidente a todo momento, Macabéa se encontra isolada deste universo de referências musicais que pontua o texto a todo momento.  Quem seleciona os elementos a serem inseridos na narrativa é Rodrigo, o narrador.  Também é ele quem faz a articulação entre os diversos momentos da narrativa que se aproximam tematicamente, usando a música para ressaltar a retomada de temas.  Enquanto isso, Macabéa fica apartada deste processo.  Macabéa pouco conhece de música, acostumada que está a ouvir apenas as gotas de cultura em doses homeopáticas ministradas pela Rádio Relógio.  Sua forma de participar deste conjunto nem sempre harmonioso é interpondo silêncios e causando pausas, eventualmente tentando, sem sucesso, participar do que se desenrola a seu redor. 

“Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro.  É o sussurro o que me impressiona” (Lispector: 1998, p. 24).  Macabéa é este sussurro: “ela falava, sim, mas era extremamente muda” (Lispector, 1998, p. 29).  Sua comunicação, que não é possível pelos diálogos, é realizada através do silenciamento das perguntas fundamentais com que se depara: quem ela é e por que é.  “Sua vida era uma longa meditação sobre o nada” (Lispector: 1998, p. 38).  “No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada” (Lispector: 1998, p. 87). 

 

Bibliografia

LISPECTOR, Clarice.  A Hora da Estrela.  Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 

OLIVEIRA, Solange Ribeiro de et al.  Literatura e música.  São Paulo: Editora Senac São Paulo / Instituto Itaú Cultural, 2003. 

voltar