MÁSCARAS  E MASCARADOS,  A  ARS  EROTICA  VENEZIANA  

Maria Aparecida Meyer Nascimento

(Doutoranda em Teoria Literária-UFRJ)  

A manifestação carnavalesca é uma arte que usa como tema algo que também já tem seu enredo. A folia dessa festa possui por si só a sua estética, realizações plásticas através da criatividade, do ludismo, dos ritmos e alegorias.

Sexualidade, rituais, relação do indivíduo com o espaço, captações humana e abstrata, ao tomarem a fantasia carnavalesca, percebem e logram o seu real significado. O dionisíaco encontra significação no grito incontido do carnaval através das plumas, purpurinas, paetês, assim como através da solidão metafísica do ser humano.

O carnaval se propõe a abrigar indefinidamente o campo erótico e a produzir sínteses entre esses dois códigos que, combinados, traduzam um imaginário possível: nutrir um momento no que de sensual possua e, ao mesmo tempo, nutrir o erotismo daquilo que de imagem tenha. Esse encontro ou tempo de fuga entre gestos e imagens acomoda nos seus interstícios o onírico, o simulado e o devaneio.

O Carnaval metaforiza o jogo fantástico de cenas que rompem as fronteiras da intimidade corporal, conduzidas pelos braços da folia, com um desfecho imprevisível que se equilibra nas beiradas do delírio. Nesse profundo estado de êxtase subjaz a sensibilidade aventurosa de quem percebe um outro mundo e não se quer ausente. A liberdade absorve o sal e o sol da vida, extraídos das cenas do imprevisto e da inevitável modalidade do agir humano para, finalmente, desenvolver-se  num espaço de festa, na composição de uma orgia de cores e de uma sincronia de formas. 

O carnaval celebra o aniquilamento do velho mundo e o nascimento do novo, do novo ano, da nova primavera, do novo reino. O velho mundo aniquilado é apresentado juntamente com o novo, representado com ele, como a parte agonizante do mundo bicorporal único. É por essa razão que as imagens de carnaval oferecem tantas coisas ao avesso, rostos invertidos, proporções violadas de propósito. (BAKHTIN, 1999, p. 360).  

A festa da folia desregra e confirma a consagração do instituído. A alegria incondicional e seu poder erotizante invadem os lugares e, num breve espaço de tempo, os papéis rígidos cotidianos se esvaem sob a carnavalização da nova ordem instalada. È uma festa espontânea, todos são participantes da suada emoção do ritmo forte, eletrizante, incorporado à movimentos de entrega, de liberação de tensões reprimidas, de envolvência entre o real e o fantástico. É também o momento em que a inépcia passa o estandarte para a temática da interação, propiciando novos contatos, novas afeições.

Claude Gaignebet, que estuda o carnaval como o ciclo litúrgico central de uma religião, com suas festas, ritos e símbolos, afirma que, na Europa, o Carnaval iniciava-se realmente no Natal, desde o momento em que o mundo começava a sair de sua noite mais escura, a do solstício de inverno. O sinal do final do inverno e o início da primavera era determinado por uma observação, "quase meteorológica", feita por um animal hibernante.

Afirma-se que em 2 de fevereiro, o urso (ou qualquer outro animal hibernante, ou ainda o homem selvagem) sai de sua toca para examinar o tempo que faz. Se está claro, o urso volta para o seu abrigo: é sinal que o inverno vai durar ainda 40 dias, logo, se prolongará até em torno de 10 de março.

Se, ao contrário, está nublado, o urso sai com prazer de sua toca e dá o sinal do final do inverno. É então, com base em uma observação do tipo quase meteorológica, efetuada em datas fixas, que se determinava popularmente o final do inverno e o início da primavera. (GAIGNEBET, 1979, p. 18).  

Os festejos de carnaval ocupavam um lugar importante na vida do homem medieval e do homem renascentista. Além dos atos e procissões complexas que enchiam ruas e praças, celebravam-se também a "Festa dos Tolos", a "Festa do Asno", a "Festa dos Inocentes" e o "Riso Pascal". As festas apresentavam aspecto cômico-popular assentado na tradição e, muitas delas, eram formadas de paródia do culto religioso. O riso acompanhava as cerimônias e os ritos civis da vida cotidiana. Os espectadores não assistiam ao carnaval, todavia viviam-no, abolindo provisoriamente barreiras hierárquicas e tabus vigentes na vida ordinária. O carnaval era um espetáculo teatral, com uma forma concreta, ainda que temporária, da vida. Assumia aparência de uma verdade forjada no triunfo da realidade pré-fabricada.

Mikhail Bakhtin assinala o conceito da coexistência, na Idade Média, de dois mundos diferentes, contudo nem por isso, inconciliáveis. Havia uma dimensão "normal" pela qual o homem era submetido a determinadas regras e a uma determinada ordem de valores, enquanto que, em alguns momentos particulares, participava de celebrações do tipo carnavalesco, pois naufragava a realidade canônica e vivia em um "mundo às avessas". A cultura popular, com a consciência livre do domínio da concepção oficial, podia lançar um novo olhar sobre o mundo, mudando a ordem vigente. Logo, os festejos carnavalescos apresentavam não uma forma puramente artística de espetáculo, porém forneciam uma visão da realidade sob a veste especial do "jogo". Como festa popular, dava ao pensamento e à palavra liberdade, um realismo grotesco sob a forma festiva, universal e utópica. Para Bakhtin, durante o carnaval

[...] é a própria vida que representa e interpreta (sem cenário, sem palco, sem atores, sem os atributos específicos de todo espetáculo teatral) uma outra livre da sua realização, isto é, o seu próprio renascimento e renovação sobre melhores princípios. Aqui a forma efetiva da vida é ao mesmo tempo sua forma ideal ressuscitada.

[...] Em resumo, durante o carnaval  é a própria vida que representa, e por um certo tempo o jogo se transforma em vida real. Essa é a natureza específica do carnaval, seu modo particular de existência. (BAKHTIN, 1999, p. 7).  

Carnaval, dias de fantasia e brincadeira. Período em que ocorre o compartilhamento do espírito lúdico, quando o abre-alas é o culto da alegria e o porta-estandarte é o esquecimento momentâneo da realidade. A sensualidade mascara os eus fragilizados, que se transdimensionam nos bailes ou desfiles de rua. No carnaval, ruas e praças principais se convertem em palcos, a cidade metaforiza-se em teatro e a cena da libertação da catarse inebria as pessoas, promulgando um contato contagiado pelo riso, pela comunicação polifônica.

Sob a euforia do Carnaval, ecoam o estrandear de vozes e imagens do terceiro centro de excelência carnavalesca. Veneza, cidade espraiada, onde o carnaval é um dos mais antigos e famosos da Itália. Isso é devido, em parte, ao fascínio que exerce a capital do Vêneto, com suas estradas d'água e  suas pontes suspensas. O carnaval é uma festa vivida intensamente por todos os venezianos que, mascarados e fantasiados, participam dessa festa na Praça San Marco, bem como ao longo dos calli, num jogo de música e cores que preenche dias e noites.

No carnaval de Veneza, sobretudo no dos Settecento, século em que conseguiu o seu máximo esplendor, a máscara era sinal de liberdade e transgressão de regras impostas pela Repubblica Veneziana. Era símbolo de abandono ao jogo, às brincadeiras e à embriaguez da festa. Pelas suas formas selava a identidade pessoal, o sexo, a classe social de nobres e pobres envoltos em ilusão. Nesse período, a fantasia típica era a "bauta", composta por um capuz de seda preto, uma capa e um mantelo, um chapéu de três pontas e 

uma máscara branca que permitia o anonimato.

 
 

 

A imagem é perfeita parceira para o campo da imaginação, principalmente no sentido de querer mais dizer pelo que de percepção visual e de ajuste imaginário esta composição permite. Assim, no carnaval cabe celebrar o que se é, uma forma de ser que constrói a vida cotidiana, da existência carnavalizada, não como dor acumulada e expelida  nos dias de folia, mas a própria vida em sua celebração prazerosa e plena. Através do riso se afirma o triunfo do corpo sobre o espírito e os traços de um mundo invertido podem ser qualificados como a realidade parodizada, carnavalesca. 

[...]o carnaval não é de maneira alguma a forma puramente artística do espetáculo teatral e, de forma geral, não entra no domínio da arte. Ele se situa nas fronteiras entre a arte e a vida. Na realidade, é a própria vida apresentada com os elementos característicos da representação. (BAKHTIN, 1999, p. 6).  

Envolver-se por trajes carnavalescos torna-se substancial para garantir ao ser humano o direito de ingressar num mundo muito particular de desejos, prazeres e fantasias. Vestir-se de algo que não é serve para liberar um outro lado muitas vezes escondido, no sentido de resguardar a imagem do que poderia acontecer ou apenas para não se revelar. Se ocultar a verdade com artificialismos de materiais sintéticos pode ser a ponte para a margem dos desejos ocultos, retirá-los também pode significar um retorno penoso, o de se despir, que a fantasia esconde.

Isso quer dizer que pode existir um prazer independente dos sentidos: ao contrário, o máximo prazer é propriamente aquele conectado com o exercício da razão. E os prazeres do corpo? São falsos prazeres? Não-diz Aristóteles-, porque o corpo também tem uma atividade, em que a perfeição é exatamente o prazer. Todavia, nos prazeres do corpo precisa-se distinguir o que representa um momento puramente negativo (como exterminar uma dor ou satisfazer uma necessidade) daquilo que é, pelo contrário, o momento positivo, o exercício de uma atividade. (PERNIOLA, 1994, p. 178).  

A noção de que a máscara revela algo singular em relação àquele que a veste, perpassa o imaginário de muitas pessoas. A máscara descortina-se  enquanto uma segunda face. O eu interior de cada um, resguardado no fundo da alma, faz-se mistério para o Outro e para o mundo. Fabrica-se, desse modo, um ser ideal, mascarado, mas objeto de desejo que supostamente será bem acolhido por aqueles que dele se aproximarem.

 
 

A máscara, provável indicativo de uma forma de estar no mundo, é também espelho de hábitos, gostos e prazeres. Ao elastecer a visão sobre esse fenômeno, poder-se-á dizer que, ao vestir a máscara, permite-se ser quem se quer ser durante os quatro dias de folia.

Se a vida aprisiona, a máscara liberta. A auto-sugestão cria um mundo circundante. O mascarado brinca de tudo, de amor, de aventura, de destinos variados, à altura das cores de sua imaginação. Presta-se a todas as interpretações, mas dá a impressão de que está possuido por uma paixão de ser indecifrável. Através do simulacro vertiginoso, o mascarado, enigma vivo para outros, permanece no inominável, forja o seu sonho, por vezes labiríntico, minado no seu personagem interior.  

Somente os personagens imaginários, porque se elevam a nível de mitos, de arquétipos, nos permitem comunicar com as profundezas da alma humana, que não poderiam ser explicadas, pela imagem, pela aparência. A máscara, além de ser o que há de mais original no homem, é o que, paradoxalemente, consegue penetrar no fundo das coisas. (BOLLON, 1990, p. 221).  

As máscaras, artefato da sedução, usadas pelas pessoas como passaporte para mundos imaginários, recriam personagens nas suas deslocações incógnitas a moradas de paixões, irrompendo a identidade ocultada pelo rosto mascarado.

Essa cobertura que resguarda o rosto, voltada para o exterior, é uma maneira de se libertar com elegância e ironia de uma "profundidade", substituída pela perfeição do disfarce, como um parti pris do mundo ilusório.

 
 

 

Mérito das máscaras que circundam vielas e pontes, o Carnaval de Veneza reassume uma característica particular e fascinante, misturando os traços medievais, renascentistas e do "Settecento". Não é somente um espetáculo para turistas, mas é  a história de uma cidade que soube, no decorrer dos séculos, inovar as suas tradições. Carnaval, movimento paradoxal, lúdico, quando o simulacro é decretado lei e a liberdade é uma obrigação. Espetáculo da sedução, ritualizado e teatralizado. Sedução abstrata na dimensão imaginária e onírica. Momento em que mascarados revestem-se da ars erotica. E quando no metacortejo do sonho, o pierrô vive a busca incansável da sua colombina e espera uma outra canção.

Assim, na festa alegórica da existência, um grito efêmero ressoa sua ansiedade. Descendo a ladeira da folia, com ou sem máscara, a festa da vida não pode parar. O mascarado do cotidiano passa o ano todo, acumulando frustrações, desejos, sensualidade e sabendo, melhor do que ninguém, o porquê dos seus simulacros. Recolhendo os fragmentos de ilusões, esse pastiche da realidade, símbolo de transe e êxtase, resgata dos seus desdobramentos a capacidade  frenética de sacudir cidades, vidas e reelaborar sua própria história.

  

Referências bibliográficas:

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.

BOLLON, Patrice. A moral da máscara: merveilleux, zazous, dândis, punks, etc. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de janeiro: Rocco, 1993.

GAIGNEBET, Claude. Le carnaval: essais de mythologie populaire. Paris: Payot, 1979.

PERNIOLA, Mario. Il Sex appeal dell'inorganico. Torino: Einaudi, 1994.

TREVISAN, Andrea. Carnevale di Venezia. Itália : 1998-2000. 3 fotografias. Disponível em:  <http://www.geocities.com/Paris/Bistro/6560> Acesso em:  20 jun. 2005.

 

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