Por
Marcos
Francisco Pedrosa Sá Freire de Souza
Neste ensaio, nos propomos a discutir os limites entre o discurso factual
e o discurso ficcional a partir da obra Os
sertões de Euclides da Cunha e dos textos de Nelson Rodrigues. Se o debate
sobre a demarcação entre o factual e o ficcional já se mostra problemático e
encerra mesmo uma discussão que dura quase um século para os que têm se
dedicado à exegese do mais falado texto euclidiano, ela se torna ainda mais
complexa ao se considerar os escritos de Nelson Rodrigues.
Marcos Francisco Pedrosa Sá Freire de Souza é doutorando em Ciência da
Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro tendo como orientador o
Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho. Desenvolve, com apoio do CNPq, projeto
em literatura comparada sobre a obra do escritor Nelson Rodrigues.
Se existe um autor cuja obra tem
causado grandes embaraços quanto à discussão sobre os limites entre o
discurso factual (histórico, verídico) e o discurso ficcional, esse autor é
Euclides da Cunha. Depois que
“dormiu desconhecido para no dia seguinte acordar famoso”, Euclides da
Cunha, que nunca poupou esforços para alcançar projeção no cenário
intelectual brasileiro (da luta por sua candidatura para ingresso na Academia
Brasileira de Letras ao esforço por seu concurso à vaga da Cátedra de Lógica
do Colégio Pedro II), ficaria surpreso em ver a celeuma e a repercussão que
sua trajetória intelectual causou e ainda causa em todos os horizontes letrados
no Brasil e no Exterior.
Estudiosos embarcam em ônibus e
carros e rumam para São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo,
pesquisadores de renome vencem os céus, em aviões de carreira, em direção a
Austin, no Texas, todos com o objetivo de discutir a obra do escritor natural de
Cantagalo, Rio de Janeiro. Houve até o caso trágico de um pesquisador apontado
pela crítica como dos mais talentosos em assuntos euclidianos, Roberto Ventura,
que, pode-se dizer, morreu de sua paixão por Euclides da Cunha, quando seu veículo
colidiu no retorno de uma dos encontros dedicados ao autor, em São José do Rio
Pardo.
Com relação a Euclides da Cunha e a discussão que nos interessa
explorar (os limites entre, de um lado, o discurso factual-histórico, e de
outro, o discurso ficcional) identifica-se de início o grupo que aposta direta
ou indiretamente no caráter ficcional de sua obra máxima, Os
sertões. Ele congregou no passado nomes de peso no meio acadêmico como o
de Afrânio Coutinho e, mais recentemente, teve uma adesão ainda que não de
todo explicita de estudiosos como o historiador Nicolau Sevcenko.
Com bases em estudos que eram
desenvolvidos na década de 1950 por pessoas como Eugênio Gomes e que traziam
à cena documentos que comprometiam a precisão factual do texto euclidiano,
Afrânio Coutinho não tinha receio em afirmar que eles colocavam por
terra a face histórica do trabalho do escritor cantagalense.
E confirmam outrossim, a tese aqui aventada pelo autor desta nota, de que
a organização de Euclides era menos de um historiador e homem de ciência do
que um ficcionista; e de que Os sertões
eram antes uma obra de ficção do que um ensaio histórico-sociológico. À luz
de tais estudos parece indiscutível que Os
sertões são um poema épico em prosa, a ser classificado na linha da Ilíada e da Canção de
rolando. (Coutinho, 1995: 65)
Embora não confronte diretamente
o assunto, Sevcenko (1999) apresenta seu estudo sobre a obra de Euclides da
Cunha e Lima Barreto como voltada para a investigação da atuação desses
autores no campo literário. Na introdução do livro chega mesmo a recorrer a
uma conhecida distinção feita por Aristóteles para diferençar o trabalho do
historiador e o do poeta, para depois concluir: “Ocupa-se portanto o
historiador da realidade, enquanto que o escritor é atraído pela
possibilidade. Eis aí, pois, uma diferença crucial, a ser devidamente
considerada pelo historiador que se serve do material literário” (Sevcenko,
1999: 21). Ou seja, Sevcenko já assume de saída os textos de Euclides e de
Lima Barreto como literários em oposição ao texto do historiador.
Mais adiante em seu trabalho ele
cairia em contradição aparente ao afirmar em relação à escrita de Euclides:
“A transparência de seus textos com relação à realidade dos fatos que
animam a ação social do período é quase que total. Esse realismo
premeditadamente intoxicado de historicidade e presente é uma das características
mais típicas de sua literatura e o afasta em proporção visível de seus
confrades de pena, europeus e nacionais” (Sevcenko, 1999: 131). Não estamos
aqui querendo apontar falhas na tese excepcional que Nicolau Sevcenko defendeu
na USP. Pelo contrário, aceitamos com extrema naturalidade essa ambigüidade de
seu trabalho. Mesmo porque poderíamos ter em Euclides da Cunha um autor que
trabalha como um historiador-literato como nos indica a apreciação de Luiz
Costa Lima, que comentamos a seguir.
Entre o grupo que não aceita o
caráter ficcional do texto euclidiano aparece Luiz Costa Lima. O autor
veementemente não comunga da crença de Afrânio Coutinho. Um repórter do
Jornal Folha de São Paulo, flagrou
Costa Lima em uma inusitada troca de idéias sobre o tema com a estudiosa Sara
Castro-Klarén, do departamento de estudos latino-americanos da Universidade
Johns Hopkins nos Estados Unidos, em um simpósio internacional que comemorava o
centenário do lançamento da obra euclidiana de 1902. Em sua reportagem, conta
o repórter Adriano Schwartz:
Depois de se cumprimentaram, ela disse que havia relido recentemente
“Os Sertões” e ficara novamente espantada com a qualidade narrativa do
engenheiro e que julgava muito curioso o fato de se considerar um historiador. O
brasileiro retrucou: “Mas ele é um historiador”. “É claro que não é”,
disse ela; “é claro que é”, disse ele; “não, não é” …
(Schwartz, 2003)
Leopoldo M. Bernucci, diretor do
departamento de Português e Espanhol da Universidade de Austin e especialista
na obra de Euclides da Cunha, acompanha o ponto de vista de Costa Lima (longa e
minuciosamente orquestrado pelo ensaísta maranhense em capítulo de seu livro O
controle do imaginário, de 1989), embora com restrições à maneira como
enceta sua argumentação. Para Bernucci (1995), ao se servir de entrevistas,
cartas e pronunciamentos críticos de Euclides da Cunha e não da própria
narrativa de Os sertões, para justificar seu posicionamento sobre o tema, Costa
Lima acaba tornando fraca sua argumentação.
Para justificar sua perspectiva,
Bernucci se vale, de qualquer jeito, da observação categórica de Luiz Costa
Lima que afirma sem rodeios: “Discurso da realidade, Os sertões é dominantemente uma obra de sociologia” (Costa Lima,
1984: 239). Costa Lima afirma, entretanto, que isso não significa que “o
especialista em literatura não tenha o que fazer com Os sertões. Todo o contrário: além de permitir o exercício de se
pensar como a sua mimesis dominada
pode inverter sua posição – exercício recentemente cumprido por Vargas
Llosa, em La Guerra del fin del mundo
(1981) –, possibilita ser visto como a conseqüência mais radical de uma direção
que vimos começar a se mover nas primeiras décadas do século XIX. Apenas esta
fecundidade parece comprometida se insistimos em chamá-lo obra literária ou até
ficcional sem nos propormos a indagar o que de fato dizemos quando assim
dizemos” (Costa Lima, 1989: 239).
Para explorar Os
sertões como obra científica e literária, Costa Lima trabalharia, anos
depois, em Terra ignota: a construção de Os sertões (1997), uma refinada
elaboração conceitual que o levaria a passear por uma cena esboçada com
“operadores científicos” e uma subcena congregando imagens que funcionam
como uma “máquina da mimesis”.
Euclides deixaria a literatura figurar em Os
sertões, mas como “ornato”, e um “ornato que não se infiltrasse no
quadro principal” (Costa Lima, 1997: 138). Caberia, assim, a uma parte central
de Os sertões ser trabalhada por uma
descrição científica, enquanto os dados periféricos, ilustrativos, se
inclinariam especialmente a um rendimento propriamente de ordem literária.
De acordo com o autor de A
imitação dos sentidos (Bernucci, 1995), o que em geral se reconhece
naqueles que encaram Os sertões como exercício de ficção é a confusão entre os
conceitos de literariedade e de ficcionalidade, que são tópicos díspares e não
necessariamente intercambiáveis. De início Bernucci (2001) nos aponta a separação
entre ficção e História. Lembra que os estudos das poéticas antigas
aprimoraram os conceitos que separam verossimilhança e verdade, associando o
primeiro à ficção (à tragédia, à comédia, à lírica e à épica), por
sua preocupação com a aparência de verdade, e o segundo à História, por seu
interesse pela veracidade factual. Algumas marcas textuais assinalariam um apego
à ficção, enquanto outras marcariam laços mais estreitos com a História. E
finaliza: “Com as várias leituras, acumuladas no decorrer do tempo, cria-se
um consenso sobre como se realizam as obras ficcionais e as historiográficas”
(Bernucci, 2001: 43).
Esse consenso resulta, sob a
perspectiva enviesada por Michel Foucault (2003), de um embate nada cordial. O
conhecimento no campo científico, entendido como a busca da verdade, é
conseqüência de uma guerra no entender do filósofo francês. Foucault
fala da produção da verdade no campo do conhecimento e do saber, mas poderíamos
estendê-la à produção da verdade factual.
Se
quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é, apreendê-lo em
sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos mas
dos políticos, devemos compreender quais são as relações de luta e poder –
na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam,
procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações
de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento. (Foucault, 2003:
23)
Algumas páginas depois, o filósofo
francês conclui no final da primeira de uma série de conferências que
proferiu no Rio de Janeiro no ano de 1973:
Só
pode haver certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de verdade,
certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em
que se formam o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade.
(Idem, Ibidem: 27)
Sem discordar, portanto, de
Bernucci, devemos assinalar de forma explícita a maneira como se formam os
“consensos” de que o pesquisador fala. E o interesse tanto de sua parte como
da de Luiz Costa Lima em apresentar uma resposta definitiva para o assunto é
parte constitutiva desse quadro. Identificamos, assim, um embate permanente de
poder entre ficção e verdade, discurso literário e discurso científico-histórico
e as noções que os movem. Um confronto que uma avaliação isenta apontaria
como um jogo permanente entre esses dois pólos.
Se a delimitação do espaço
entre o ficcional e o real é
problemática na discussão de uma obra como Os
sertões de Euclides da Cunha, ela se torna ainda mais complexa ao nos
confrontarmos com os escritos de um outro autor: Nelson Rodrigues. O caso de
Nelson Rodrigues é um pouco diferente, pois trata-se de um escritor que
deliberadamente testa as crenças nos limites entre essas duas construções
narrativas sobre o cotidiano. Rodrigues se esforça ao máximo por colocar
qualquer construção discursiva que invista pelo terreno da veracidade em xeque
e sob suspeita.
Dentro da perspectiva do autor,
que inaugurou o teatro moderno brasileiro, a vida só merecia ser vivenciada de
uma perspectiva poética. Por isso, era, para ele, necessário ficcionalizar o
cotidiano. Rodrigues trabalhava sua escrita de jornalista (repórter, crítico,
cronista) no sentido oposto ao de sua prática de escritor de obras ficcionais
(dramaturgo, folhetinista, contista). Nestas, ele aproximava sempre a dimensão
poética (inerente ao jogo da fantasia ficcional) do real, inserindo dados da
realidade em suas peças, folhetins, contos. Nas reportagens, críticas e nas crônicas,
este último o filão em que se tornaria um especialista e onde realizaria
grande parte de seus textos, faria o contrário: os fatos de nossa realidade
comezinha exigiam o toque do escritor-estilista para adquirirem um sentido
transcendente
Mais do que o interesse em
delimitar rigorosamente esses campos da vivência, Rodrigues se mostra fascinado
pelas possibilidades de questionamento que eles abrem para uma reflexão sobre a
nossa condição histórico-humana. É claro que para tanto, o autor teve de
inaugurar, servindo-se de sua prodigiosa verve, um campo específico para sua
atuação dentro dessa imprensa. Isso aconteceu desde seus primeiros textos e
durante toda a sua trajetória dentro do jornalismo brasileiro. Rodrigues foi
abrindo espaço e não se intimidando em escrever o que queria e como queria.
Suas brigas, seus ditos espirituosos, suas numerosas pilherias, que questionam
os que se apegam ao factual e às verdades definitivas, são sinais desse
enfretamento.
Bibliografia:
1.
BERNUCCI, Leopoldo M. A imitação dos sentidos. São Paulo: Edusp, 1995.
2.
___________. “Prefácio”. In: CUNHA, Euclides. Os
sertões – campanha de Canudos. São Paulo: Atêlie Editorial, 2001. p.
13-49.
3.
COUTINHO, Afrânio. “Os sertões, obra de ficção”. In: CUNHA,
Euclides. Obra completa. Reimpressão atualizada da 1ª. edição. Vol.2. Rio
de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995. p. 61-76.
4.
COSTA LIMA, Luiz. “Nos Sertões da oculta mimesis”. In: COSTA LIMA,
Luiz. O controle do imaginário – razão e imaginação nos tempos modernos.
Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1989.
5.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as
formas jurídica. 3ª. edição e 1ª. reimpressão. Rio de Janeiro: Nau
Editora, 2003.
6.
SEVCENKO, Nicolau. A literatura
como missão – tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
1ª. reimpressão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999.
7.
SCHWARTZ, Adriano. “Euclides
entre a ficção e a história”. In: Folha
de São Paulo. Caderno Mais!. 26 de outubro de 2003. p-14-5.