mário peixoto, um autor sem lugar

Luiz Henrique da Costa

Mário Peixoto é autor de um filme que nunca estreou comercialmente; de uma poesia cuja circulação ele mesmo cuidou de sabotar; de um romance que tem duas versões absolutamente distintas quanto ao estilo e ao fôlego, separadas por cinco décadas; de quatro ensaios sobre cinema, sendo um deles em nome de Sergei M. Eisenstein, como se o cineasta russo apreciasse a obra cinematográfica do brasileiro; de diversos contos e roteiros para cinema. Mas, antes de mais nada, é preciso que se diga: trata-se de um autor e realizador de cinema que, a despeito de tantas loas, nunca chegou a encontrar seu lugar. A inclinação à poligrafia já aponta para essa evidência. Mas não só: o esmiuçar de sua obra revela a inconformidade dos arranjos inéditos que criou para o cinema, a poesia e a prosa que produziu.

Mário Peixoto não é uma escola, não participou de nenhuma, nem, por onde quer que se olhe, chegou a deixar descendentes. Tendo isso em consideração, também é preciso dizer que Mário Peixoto é um autor sem qualquer importância – e qualquer hipótese em contrário precisaria partir da evidência de que sua obra teria sido vista, lida, ouvida, buscada como referência. Não foi. Raros os momentos em que pôde ser contemplado com apreciações críticas, e ainda mais raros aqueles em que tais apreciações ocorreram concomitantemente às ocasiões em que, tanto mais ou menos, sua obra pôde ser oferecida ao consumo público.

Ao longo de seis décadas, Mário enfrentou longos períodos de inatividade compulsória, em que os mercados editorial e cinematográfico esquivaram-se à viabilização dos projetos que concluía. Sem que lhes fossem facultados os desfechos, os pontos finais que somente os processos de edição, de produção, de realização podem conceder, tais projetos acumulavam-se, embaralhavam-se, engendrando releituras, reescrituras, recomeços, reinvenções.

Com tudo o que possa haver de charmoso em entronizá-lo na companhia de Artaud, Céline ou outros malditos, tomá-lo, algo piedosamente, por “louco genial”, e mesmo por isso incapaz de desenvolver formas eficazes de se relacionar com os esquemas de produção vigentes, responde a apenas parte do vazio deixado pelo que não conseguiu realizar. Mário Peixoto não foi um estudioso de cinema ou de literatura – era mesmo avesso a teorias. No entanto, o Mário Peixoto que conhecemos e a obra que deixou são uma espécie de teoria de Mário Peixoto.

Sua trajetória tem início com a realização de Limite, entre 1929 (quando lhe teria ocorrido a idéia de realizá-lo) e 1931 (data da primeira exibição); mas abrange igualmente a publicação do volume de poesia Mundéu, também em 1931; de diversos contos e de pelo menos uma peça de teatro, entre novembro de 1931 e janeiro de 1932; da primeira versão do romance O inútil de cada um, em 1933 ou 1934[1]; de vários escritos sobre cinema, entre abril de 1937 e agosto de 1965; dos roteiros cinematográficos A alma, segundo Salustre (originário dos anos 1950, inédito até 1983) e Outono / O Jardim Petrificado (datado de 1964, inédito até 2001), em parceria com Saulo Pereira de Mello. Em 1967, lança-se ao ambicioso projeto de reescritura de O inútil de cada um, que passaria a se estender por seis volumes – dos quais, contudo, somente o primeiro chegou a ser publicado, mesmo assim já em 1984, 17 anos depois de ter dado início à empreitada.

 “Limites” de Mário Peixoto

Variações a respeito da inconsistência da realidade são recorrentes em Mário Peixoto. Pode-se constatar que é ele o autor de muitas das tessituras de enganos no centro das quais é percebido. E a verdade improvável, a suposição implausível tomam vulto na mesma medida em que o autor desimporta-se dos limites que a realidade teria a oferecer ao livre curso de sua imaginação.

Mentia sobre sua idade, sobre o lugar onde nasceu. Belga, afirmava ter nascido na Tijuca. Dependendo da ocasião, das fontes (uma ou mais delas sendo ele mesmo), teria 15, 16 ou 18 anos quando iniciou o processo de realização de Limite. Na verdade tinha 22. Em 1965, Cacá Diegues, editor da revista Arquitetura, publicou um ensaio sobre Limite: “Um filme da América do Sul” [2], supostamente assinado por Eisenstein. Mário, reticente, ora referia a tal ensaio como uma tradução, feita por ele mesmo, a partir de uma versão francesa do original publicado em The Tatler Magazine, ora afirmava que Edgar Brazil o teria traduzido a partir de originais em alemão. Hoje já se sabe quão improvável seria Eisenstein ter tido sequer alguma oportunidade de assistir ao filme: na verdade, o próprio Mário cuidara de escrever o ensaio, atribuindo-o ao cineasta russo e fazendo saber que teria sido publicado na revista inglesa.

Ainda durante a montagem de Limite, Mário Peixoto foi procurado pela atriz Carmem Santos, que lhe propôs um novo projeto, Onde a terra acaba. O entusiasmo com esse novo filme levou-o a “desligar-se” de Limite antes mesmo de sua estréia – o que certamente contribuiu para que Limite nunca chegasse a ser exibido em circuito comercial. Carmem Santos assumiu o papel principal da nova produção: um projeto ambicioso, caro e, não se estranhe, alheio aos rumos que o mercado cinematográfico tomava naquele momento – era um filme silencioso que se começava a produzir, num momento em que, em todo o mundo, filmes silenciosos já eram coisa sepultada.

O acesso às locações de Onde a terra acaba não se dava sem esforço: eram quatro horas de trem até Mangaratiba; dali, mais duas horas de lancha até uma região sujeita a constantes temporais. Naturalmente, a dificuldade de acesso e o mau tempo pesaram sobre os custos e o ritmo do trabalho. Tanto mais com o luxo, demasiado mesmo para os padrões atuais, impensável naquele início da década de 1930, de montar e transportar para lá um laboratório equipado com cubas de revelação, copiador, secadores, etc. Além disso, foi preciso importar enormes acumuladores de energia da Europa, de modo a suprir a falta de rede elétrica na ilha. A água era trazida de nascentes na montanha, canalizada com pedaços de bambu. Mas essa instalação, freqüentemente danificada por animais, era objeto de reparos sucessivos, intermináveis. O pai de Carmem Santos, no Rio de Janeiro, construiu uma casa para os atores, uma para a filha, uma cozinha, o laboratório, uma casa de hóspedes e ainda uma outra, cenográfica, cujo teto movia-se de forma a possibilitar o aproveitamento da luz do sol durante as filmagens. Uma vez construídas, essas unidades foram desmontadas e transportadas até a Marambaia, onde foram remontadas. Foi um investimento sem precedentes na história do cinema brasileiro. E não apenas financeiro, mas principalmente de energia afetiva, de tempo e disposição para superar os muitos problemas que surgiam.

Não bastassem tantos desafios, Carmem Santos ausentava-se constantemente do set; ao voltar, invariavelmente cansada e abatida, ficava vários dias de cama, sem trabalhar. A publicidade em torno do filme arrastava hordas de visitantes, amigos, parentes, jornalistas, agentes e curiosos de toda sorte, ávidos por notícias do grande acontecimento que se anunciava para o cinema brasileiro. É fácil perceber que aquelas não eram as condições ideais para filmagens que buscavam o isolamento selvagem como matéria-prima. Coisa mais outra, o fato é que, possivelmente em outubro de 1931, depois de uma ausência prolongada de Carmem Santos, Mário, parte das filmagens já realizada,[3] rompeu com a atriz e decidiu simplesmente abandonar o projeto, sem maiores explicações, e sem fazer caso de todo o investimento que fizera.

Em 1936, Mário foi convidado para um novo projeto – Maré baixa (também conhecido como Mormaço). Dessa vez, o autor do convite foi Pedro Lima, crítico de cinema dos Diários Associados desde que, brigado com Adhemar Gonzaga, deixara de lado a realização de filmes. Mário aceitou o convite, mas, por um deslize seu, também aquele projeto redundaria em frustração.

Mário cuidaria de escrever, dirigir e montar o filme; Pedro se encarregaria da produção e da parte financeira. Juntos, percorreram o sul fluminense, fotografando locações e atores. Mas Pedro ausentou-se, em certa ocasião, e encontrou duas novidades perturbadoras ao retornar. A primeira delas foi que Mário, nenhum talento para lidar com dinheiro, transplantara dezenas de coqueiros para uma das praias escolhidas como locação. É bem possível imaginar quão encantadora tenha ficado a praia, mercê de um esteta como Mário Peixoto. Os custos da operação seriam um peso excessivo no orçamento, é verdade, mas mesmo isso se podia contornar. Grave, de fato, foi ter associado Adhemar Gonzaga ao projeto – justo aquele produtor com quem Pedro rompera anos antes. Mário sempre fora fascinado pela Cinédia de Adhemar Gonzaga, mas Pedro havia rompido com ele desde 1930, sabia que a convivência com o produtor seria impossível, e retirou-se do projeto – que, em pouco tempo, também naufragou.

Em 1950, Maré baixa, Sargaço e outros tantos projetos que fora interrompendo, fundidos, confundidos, receberam a forma definitiva de A alma, segundo Salustre.[4] A partir de então, passou a recusar qualquer projeto cinematográfico que não fosse aquele. Entre 1950 e 1954, um grupo de alunos da Faculdade Nacional de Filosofia tentou levantar recursos com os quais possibilitar a realização de um novo projeto seu. Parecia-lhes absurda a inatividade de Mário Peixoto. Mas foi em vão também aquela iniciativa.

Com o Cinema Novo, novas esperanças surgiram de que Mário Peixoto pudesse realizar seu segundo filme. Mas já não havia quem se dispusesse a financiá-lo. Em 1971, chegaram a circular boatos sobre o início da produção de A alma, segundo Salustre, tendo à frente do elenco ninguém menos que Brigitte Bardot. Entre 1982 e 1983, Carlos Augusto Calil empenhou-se em produzir o filme, mas ora esbarrava nas limitações próprias do cinema brasileiro, ora nas exigências de Mário Peixoto, ora nas desconfianças que se generalizavam sobre a sensatez do cineasta, ora nas dificuldades próprias do projeto – que, não obstantes tantos entraves, por si já era constituído de alguns planos cuja beleza talvez resida justamente na impossibilidade de filmá-los.

A experiência de “Limite”

Limite data do momento de transição do cinema silencioso para o sonoro; quando começou a ser produzido, em 1930, o cinema falado era já uma tendência majoritária em todo o mundo. Por si só, a consciência ou mesmo a intuição de momento tão singular bastaria como justificativa para título tão emblemático. Mas a matéria fílmica de Limite, ademais, é ela mesma uma zona de fronteira. Sem recorrer à fatuidade de tantos dos gestos característicos da avant-garde, passa ao largo da gramática griffithiana, que viria a se firmar como padrão para o cinema clássico narrativo; sem ceder à tentação do romance, da novela, do conto filmado, é narrativa densa, inteiramente consumada; sendo silencioso, é beneficiário das transformações trazidas ao domínio da produção cinematográfica pela incorporação do som.

Sobretudo por participar de um acervo cinematográfico caracterizado pela exacerbação das expressões e recursos fisionômicos e gestuais, salta aos olhos, no filme de Mário Peixoto, a contenção, a economia de meios com que as personagens são construídas. E se essa é uma conclusão a que chegamos já por confrontá-lo com representantes da produção cinematográfica nossa contemporânea, tanto mais se o apomos aos ícones da porção não-falada da história do cinema. No entanto, estranho paradoxo, isso se deve ao fato de Limite, representante ilustre dos silenciosos, não ser propriamente um contemporâneo dessas produções; sua inclusão ali ocorre por um efeito extemporâneo, anacrônico mesmo: lançado em 1931, Limite testemunha e incorpora à matriz estética do silêncio algumas das alterações nos modos de interpretar proporcionados pelo advento do cinema sonoro desde 1927.

Em Limite, a câmera desenha movimentos transgressores, posta-se em ângulos inusitados, descobre formas e tons ocultos acima, abaixo, transversos à linha reta por onde toda e qualquer história se desenvolve. Ali, onde um qualquer fundo cênico e toda ação rege uma reação em resposta – e esta uma terceira, uma quarta, e outra, até que todas possam se encontrar ou anular –; ali, naquele lugar de sempre, naquele locus onde todas as narrativas se equivalem, a câmera descobre a geometria insuspeita dos telhados, e os bredos pelo caminho, e os sapos, e o vento, e o mar, o mar, o mar; descobre-os e assume-os como personagens, porquanto também a eles pertence a história daquela paisagem arruinada pela falência de um sistema econômico de que outrora fora a capital.

Todavia, apesar da história comum, partilhada entre as personagens, a natureza e as heranças culturais que organizam aquela paisagem, Mário Peixoto busca uma plasticidade móvel mais do que uma narrativa – isso quem deve buscar é o espectador – que a encontra a despeito de a tarefa, dita assim, soar cerebrina ao extremo.

É como observa Vinicius de Moraes:

Limite é um anfiguri que toca os limites da intuição perfeita. Há constantemente a incursão do cinema na sucessão. O ritmo ora é largo, em grandes panejamentos, ora vertiginoso, sem a menor dispersão, com um mínimo de veículo na imagem. A imagem é a grande força presente, em ritmo interior e de sucessão, criando problemas permanentes na imaginação do espectador. Nunca se viu um filme tão carregado (e eu emprego o termo como ele é usado em eletricidade) de meaning, de expressão, de coisas para dizer, sem dizer nada, sem chegar nunca a revelar, deixando sempre tudo no limite da inteligência com a sensibilidade, da loucura com a lógica, da poesia com a coisa em si.[5]

A Estranheza de Mário Peixoto

Em 1938, Mário Peixoto ganhou de presente do pai o Sítio do Morcego, que descobrira por indicação do arquiteto Alcides da Rocha Miranda. Localizada nas imediações da Ilha Grande, no sul do estado do Rio de Janeiro, a propriedade pertencera ao pirata João Lorenzo, que viveu no século XVII. Mário encontrou-a em ruínas, e reconstruí-la passaria a ser a grande obsessão de sua vida. Chegaria a declarar que a considerava como obra sua, definitiva e superior, em importância e beleza, a filmes, poemas, romances e tudo o mais que fizera. Ali, à custa da fortuna que herdara, o autor reuniu um vasto museu, com mais de três mil peças, na maior parte recolhidas em expedições empreendidas pela região.

A história de sua família já seria suficiente para que estabelecesse vínculos tão sólidos com a região: descendia do Comendador Joaquim José de Souza Breves, o maior produtor de café do Império, o mais importante traficante de escravos de sua época, senhor de todo o território compreendido entre a Restinga da Marambaia e as fronteiras do estado de São Paulo. Mangaratiba era a capital marítima do império de seu avô, onde vinham dar os caminhos que ligavam o litoral ao interior do estado, e por onde escoava a produção de suas fazendas na Serra da Bocaina e no Vale do Paraíba. Mas, mais que âncora para a memória de episódios familiares, as ruínas do Sítio do Morcego ofereceriam a ambiência exata para algumas das passagens mais significativas de O inútil de cada um.

Trabalhava na primeira versão desse romance provavelmente desde 1929 ou 1930. Em 1934 ou 1935, a depender da fonte, o livro seria reimpresso por Schmidt Editora. Desconhecem-se as circunstâncias que tão cedo teriam levado a uma nova impressão. Em mais de uma ocasião o autor menciona o episódio em que seu pai, desgostoso, constrangido pelo que o tom confessional do romance insinuaria a respeito de fatos sobre os quais preferiria guardar silêncio, teria ordenado a um jardineiro que ateasse fogo a toda uma edição. Mas, como tudo em Mário Peixoto, não é impossível que tal episódio, ou pelo menos parte dele, seja algo que apenas transborda de sua ficção como se verdade fosse.

Não há notícias do que teria sucedido à edição que se supõe ter escapado ao fogo; nem se sabe afirmar, com relação à outra, se algum exemplar teria sido salvo. Mas é fato que somente por volta de 1967[6] o autor voltaria a dispor de um exemplar de sua obra. Esse exemplar, integrado ao acervo do Arquivo Mário Peixoto, pode-se ver que foi anotado, emendado, rabiscado por Mário Peixoto (e, aqui e ali, também por Octavio de Faria), com vistas à elaboração da segunda versão; é dele que surge a idéia inusitada de reescritura, de reinvenção do romance, e é nele que se enxertam as mudanças que viriam a constituí-la.

Desconcertantemente, a narrativa desse romance percorre os desvãos da memória de dois narradores distintos. No entanto, Mário Peixoto não se dá ao trabalho de identificar esses narradores a cada vez que se alternam; sequer os anuncia. À medida que avançamos na leitura, como se pudéssemos dispor da imagem cinematográfica qual um anteparo que permitisse reconhecer esse ou aquele narrador, vamos recuperando os fragmentos, reordenando as memórias que, embaralhadas, impossíveis, conduzem a uma mesma ruína: O inútil de cada um.

Sua prosa recusa o registro objetivo, capaz de definir os lugares, seres e coisas postos em ação pela narrativa; são evidentes os esforços para escapar ao pacto pseudo-dialógico que tradicionalmente reúne leitores e narradores. No limite, recusa contar, pelo menos a partir da afetação de naturalidade de certa prosa novecentista, predominante no século XX. É outra a sua afetação, é outro o pacto que estabelece com o leitor. A linguagem, eivada de arabescos sintáticos, de excessos de toda sorte, resvala na inutilidade, na incomunicação; deslocando-se para atalhos íntimos, psicológicos, desdenha a possibilidade de operar nexos, e, para suprir a lacuna deixada por esse deslocamento, invoca e justapõe recursos outros, cuja escritura, tornada literária por força mesmo do suporte em que se inscreve, é contudo determinada por uma concepção narrativa que somente a proximidade, a intimidade com câmeras cinematográficas permite supor – e não quaisquer câmeras, vale dizer, mas tão-somente aquelas com que, a exemplo de Limite, o cinema se permite pensar o engenho poético como eixo em torno do qual se aglutina a sucessão de imagens a que dá origem.

Mário Peixoto não se bastava com os limites oferecidos pelas especificidades das linguagens com que trabalhou. É autor de um filme que engendra imagens como se poesia pudesse ser; e de uma prosa que se empenha em deixar de sê-lo. A alma, segundo Salustre, o roteiro que sistematizou em 1950, graças à impureza de sua condição de meio-termo indefinido entre cinema e literatura, aponta para essa peculiaridade. Apreciando-o, Arnaldo Jabor percebe esse objeto estranho que é a imagem-palavra de Mário Peixoto, e toma-o não por sua incompletude, por uma irresoluta condição de vir-a-ser, mas por construção pronta, inteiramente consumada – um filme em estado de roteiro, que se realiza no ato mesmo de se dar a lê-lo:

Mário Peixoto vê o mundo antes da palavra [...]. O olho não nomeia; só a palavra [...] delimita o mundo em partes escuras e iluminadas. Mário Peixoto não fala; ele olha [...] querendo entrar na vida. Querendo entrar, querendo entrar, sempre querendo entrar; mas, entrar na vida exige as palavras e com elas a moral, a idéia, o sim, o não, o bom, o mau, e Mário [...] não suporta esta nitidez que nos assola e protege, esta clareza que nós buscamos como proteção contra a loucura [...]. Mário é um poeta que não se contenta com a metáfora, quer mais, mais, mais longe, quer filmar a essência, filmar o ar, e consegue; por isto, o filme fica em estado de roteiro, que é quando a câmera não surgiu ainda com seus ruídos e limites e o roteiro é a metáfora da metáfora, o plano de trabalho, a antecena, a esperança da imagem, a luz sem forma. A forma limita. Forma é sonho grego.[7]

A partir de certo momento, quando se punha a falar de Limite, Mário Peixoto passou a referir a uma seqüência perturbadora: um relógio mergulhando mar adentro, a câmera acompanhando-o até o fundo das águas e flagrando-o ali, remoto como se no primeiro instante da eternidade, sendo encoberto pela areia. Hoje, uma cena como essa pode ser produzida apenas com um computador, sem que se precise sair de casa. Mas Mário imaginava-a em um filme de 1930, e até sua morte, em 1992, insistiu em recuperá-la como uma espécie de senha, a partir da qual assimilava, ou deveria assimilar, para nós, para ele mesmo, a substância do tempo. Entretanto, essa seqüência que lhe era tão cara nunca chegou a ser produzida. Mário Peixoto nunca dispôs de recursos técnicos para tanto, nem há indícios de que tenha realmente cogitado realizá-la. Mas desimportava-se disso; “lembrava” e falava desse relógio como se ele de fato constasse de seu filme. E justamente essa seqüência, extraída de uma memória impossível, foi que passou a organizar, para ele, aquilo que Limite significava.

Mário não padecia dessa espécie de “sonho grego” que nos acomete desde a ilusão de simetria das formas: a mentira, a verdade, o som, o silêncio, o real, o imaginado, o antes, o depois, longe de se negarem, aliavam-se na suposição de um refúgio em que, para dizer o mínimo, deixa de fazer sentido a distinção entre a natureza cinematográfica ou literária das imagens – sempre o rumorejo surdo de um mesmo mar batendo, incessante, sobre pedras que não estão mais lá.

É desse lugar que Mário Peixoto nos olha. Paciente, quer nos mostrar que a ferrugem naquele relógio que um dia se terá esquecido em meio ao ruído das águas é ainda o próprio relógio. Ou nada.

São Sebastião do Rio de Janeiro, em junho de 2005.


Fontes de Consulta

Bibliográficas

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Solberg, Ruy. O Homem e o Morcego. Produção cinematográfica de 1980. Acervo do Arquivo Mário Peixoto, Rio de Janeiro.



[1]     A primeira edição dessa versão do romance teria ocorrido em 1933, segundo o registro de Saulo Pereira de Mello no texto utilizado como roteiro da exposição Mário Peixoto – Limite, abrigada pela Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, entre 3 de julho e 1º de setembro de 1996 (“Breve esboço de uma cinebiografia de Mário Peixoto”. In: Mário Peixoto – Limite. Rio de Janeiro: MinC : Fundação Casa de Rui Barbosa, 1996, p. 35), e segundo o registro de Emil de Castro em Jogos de Armar: a vida do solitário Mário Peixoto (Rio de Janeiro: Lacerda, 2000, p. 225). Ou em 1934, segundo outro registro de Saulo Pereira de Mello, no texto “Depois de Limite” (Limite. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 102). Em “A Obra-Mestra de Mário Peixoto”, texto tomado como apresentação do primeiro volume da segunda versão (O inútil de cada um. Rio de Janeiro: Record, 1984), Octavio de Faria é vago ao mencionar 1934 ou 1935 como data da segunda edição, por Schmidt Ed. A edição de 1996, pela Sette Letras, traz a informação de que aquela seria a segunda edição do romance de um só volume publicado em 1933. Por fim, em 1998, o Laboratório de Investigação Audiovisual da Universidade Federal Fluminense sistematizou e editou o cd-rom Estudos sobre “Limite” de Mário Peixoto, do qual constam 1934 como data da primeira edição e 1935 como data da reimpressão, por Schmidt Ed.

[2]     Cf. Mello, Saulo Pereira de. Mário Peixoto: escritos sobre cinema. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, pp. 23-39.

[3]                Cinqüenta anos depois, em 1981, quando a Globo Vídeo lançasse Limite em vhs, selecionaria para estampar a capa da fita uma fotografia extraída do material filmado por Mário Peixoto para Onde a terra acaba; inexplicavelmente, a distribuidora julgou-a mais apropriada para o lançamento do que qualquer outra que se pudesse destacar do próprio filme em questão.

[4]                Peixoto, Mário. A alma, segundo Salustre. Rio de Janeiro: Embrafilme/DAC, 1983.

[5]                Moraes, Vinicius de. “Exibição de Limite”. In: O cinema de meus olhos. São Paulo: Schwarcz, 1991, pp. 71-72.

[6]     Cf. Mello, Ayla Pereira de & Mello, Saulo Pereira de. In: O inútil de cada um. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p. 7.

[7]     Jabor, Arnaldo. “Nossa fome eterna”. In: A alma, segundo Salustre. Op. cit., 1983, pp. 1-2.

 

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