UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO /UFRJ

Faculdade de Letras

 

Luciana Oliveira de Barros – Mestrado/ Literatura Comparada

II Simpósio de Ciência da Literatura

 

O CONCEITO DE ÉTICA NA OBRA EVGENY ONEGIN

 

Evgeny Onegin é, sem dúvida, o poema mais apaixonado do escritor russo Alexsandr Pushkin. Escrito em sete anos, a obra é focada no binômio amoroso entre Onegin, personagem título e Tatyana, uma jovem com alma conflitante. Cabe-me neste ensaio analisar o conceito de ética incutido na relação dos dois e como ele se revela não só no poema quanto na realidade do próprio autor.

A leitura mais radical do poema confia a mais improvável das tendências. Para compreender o uso da auto-crítica para Pushkin, devemos fazer uma leitura especial para decifrar caráteres. Somente a descrição de uma sociedade em seu sentido mais plural é capaz de descrever a diversidade de sentidos do romantismo pushkiniano.

A sociedade, no poema, é um mundo carregado de desejos, esnobismos e insultos. Para uma história de amor, Evgeny Onegin persiste com uma consistência surpreendendo elementos como a traição e a rivalidade.

Os personagens principais Onegin, Lensky, Tatyana e o narrador formam uma revolução no poema que não só descreve estados da alma como os vive. Dentre os personagens masculinos, diferentemente dos femininos, há um esquema evolutivo em que cada personagem representa um estágio do psicológico romântico. Já os personagens femininos, principalmente Tatyana, possuem movimentos através desses estágios e alcançam eventualmente os limites emocionais e éticos do romantismo.

A sociedade acredita que Onegin é um original, um modelo a ser seguido e conseqüentemente não se relaciona com a sociedade romântica. O lugar de Onegin nesta sociedade é como um espelho que reflete o verdadeiro caráter das pessoas. Ele não reforça e nem induz as pessoas que estão à sua volta, porém ressalta o seu jeito refinado e irônico de viver. Onegin deve o seu estilo à cidade de São Petersburgo, onde fora criado. O seu gosto audaz, por hora, foi deixado à parte por Pushkin que inflama o desejo de esconder do leitor a falta de originalidade de seu herói. Preocupa o autor, que o espelho de sua alma exponha somente seu jantoismo, mas de maneira nenhuma o autor permite que sua crítica seja extinta do texto. Já o narrador arrelía o leitor insinuando que este esteja numa paralela de Onegin. No poema, Onegin deve sua suposta originalidade a um modelo pré-estabelecido que, de certa forma, é uma ostentação, uma acusação, mas a sua violência encontra-se inerte, porém incita o desejo de ser um objeto de acusação para algum crime. O autor entende que o leitor romântico almejaria lugares como o de Onegin, aceitando as barbáries e a inveja como símbolos de sucesso.

Evgeny Onegin, o homem, é inteligente e capaz. Encontra sucesso fácil em um mundo da diversão aristocrática. É o autêntico homem supéfluo, bon vivant que herda uma casa no campo e para lá se dirige a fim de conhecer o que lhe era de direito. Convive o tempo todo com o tédio que se transformou na condição dominante da sua vida e assim lhe conduz a atitudes nada convencionais como o galanteio à Olga, irmã de Tatyana, que resulta em conseqüências fatais. O caráter duvidoso e necessário de Onegin para a pequena cidade campestre cria uma atmosfera de glamour e trevas que cativa, instiga e castiga.

Tido como forasteiro intrigante, Onegin espalha estranheza e curiosidade de uma pequena cidade onde existia o fascínio pela vida dos nobres. Munido de uma cativante aparência ele se aproxima das pessoas que lhe oferecem amizade, não muitas vezes descompromissadas.

Na obra, as filhas da Madame Larin, logo fazem amizade com Onegin e não poderiam ser mais contrastadas. Olga é fútil e deslumbrada. Tatyana é uma das maiores criações de um poeta que conhecia profundamente o universo feminino dado que ele a concebe com uma extraordinária delicadeza. É quieta, sensível e possui um tímido contato humano. Gasta horas sozinha, lendo romances ingleses, e sem surpresas, tem as suas emoções agitadas por um homem que correspondia exatamente à sua imaginação. Quando o sonho se torna, em parte, realidade ela age com todo seu coração e por ironia suprema do poema é justamente Onegin que não vê tais anseios até que seja demasiado tarde.

Tatyana possui uma personalidade forte que propõe rupturas ao modelo romântico do caráter humano. No entanto, ela retém a nostalgia suficiente do sofrer sem sucumbir à inocência perdida para transformar-se numa personalidade simpática e afável cuja recusa de Onegin não conseguiu causar um desejo de vingança. Podemos até afirmar que a atitude inesperada de Tatyana golpeou seu próprio criador. Talvez Pushkin tivesse dificuldade em responder à pergunta: Você conhece a Tatyana que rejeitou Onegin? Tal surpresa é passível das pessoas reais e não das personagens românticas de Pushkin que não são colocadas com sofredores natos e destinados. A própria descrição inicial de Tatyana não dá margem a essas dúvidas. Como Olga, ela é mais um tipo de mulher encontrada em todos os romances, mas com um diferencial, ela é uma “heroína enigmática”como colocado por Vladimir Nabokov em seus ensaios em que dizia que Pushkin teve que se dividir em dois para poder dar vida a Olga e sua irmã.

Tatyana esbanja sua beleza obscura. Olga, frágil, revela o seu brilho poético. Visto que Olga é futilmente linda, os atrativos de Tatyana confiam uma disposição audaz e ferida. Ao se ver platonicamente apaixonada, Tatyana teve um olhar desafiador sob sua própria inércia. A primeira vista, vivia ao longe detrás da janela de sua antesala. Romântica e vítima de sua própria condição ela conduz seu ar misterioso e amável a uma tentativa de mudança. Eis, então, uma mulher infeliz instruída pelas novelas que lia e que lhe diziam que a tristeza era um atrativo, mas que preferiu olhar ao redor de si mesmo, percebendo os seus próprios sentimentos e os dos demais. Quando Onegin visita a casa das irmãs Larin, Tatyana está distante e só se torna evidente e presente quando se sente poderosa e apaixonada por Onegin. Nessa cena, o narrador certamente opta por uma pausa que servirá para a heroína ordenar seus sentimentos. Seu coração estava tomado pela dor de um amor não correspondido e sua alma a espera de alguém. Tatyana tinha um ideal de amor, uma aspiração e quando esse se apresentou ela o agarra ansiosa imersa na emoção e na angústia de amar. O sofrimento foi a sua imagem por muito tempo e para aliviá-lo, Tatyana escreve uma carta, declarando o seu amor a Onegin. É o seu ápice da arte romântica que espera que Onegin venha fazer parte dela. Durante essa fatídica visita, Tatyana e Olga se envolvem com Onegin. Lensky também começa a perceber que algo paira no ar o que o faz sentir que talvez a presença de Onegin seja perniciosa.

O objetivo de Pushkin não é descrever a evolução psicológica do tipo romântico, mas é imergir o texto dentro de uma sociedade em que ele deve interagir. E dessa interação saltam suas caracterizações e todo o que nós podemos saber sobre sua capacidade de desenvolver a auto-crítica de seus personagens e da sociedade em que eles habitam. Fica evidente que não há nenhuma evolução no discurso, mas apenas um jogo das posições identitárias em que os personagens transitam a fim de competir uns com os outros. Observamos, então, que o tema do poema é o “eu” em primeira pessoa que está sempre em contradição como em qualquer novela romântica, embora devamos atentar para o fato de que Pushkin cria seus personagens em primeira pessoa, mas eles são sempre plurais e obedecem aos exercícios representativos determinados pelo autor.

Quanto a Tatyana, curiosamente é o narrador quem responde às indagações dela. Às vezes as ataca com recusas e às vezes as venera como um objeto religioso. A introdução do narrador nas palavras de Tatyana expõe os desejos dela como clichês românticos. No entanto, os anseios dela são, ao mesmo tempo, justos, falsos e não superficiais. Lendo a carta, o narrador apresenta a confusão entre a dor e a satisfação pessoal de Tatyana e a presença do narrador mistura o fascínio e a repulsa. Ambos os sentimentos são travados pelas contradições do “eu” romântico como descritos nas linhas de sua confissão.

A carta é uma declaração do “eu”. A existência dela serve para anunciar que Tatyana existe como pessoa e insiste no significado de sua alma. Como num texto romântico, a carta revela suas feridas. Tatyana está sozinha. Cada gesto, cada palavra invadem sua solitude. É um sinal, um poder do destino enviado de Deus ou talvez de Onegin- anjo ou demônio. Sua confissão anuncia a ambigüidade da alma, porém aceita prontamente a punição destino. Certamente, dadas às atitudes cometidas, não é excessivo pensar que a carta procura um infortúnio maior para Tatyana, já infeliz desde que a abertura sentimental admitida tenda mais ao fracasso do que ao sucesso. Seus sentimentos oscilam entre a esperança e a desesperança, porém ambos deixam para Onegin fazer o papel de salvador ou torturador.

Onegin, naturalmente, não escolhe o amor de Tatyana. Ironicamente, a rejeita mas não a condena, porém consegue lhe usurpar a condição de vítima uma vez que diz apenas que não conseguiria compartilhar a sua vida com ninguém. Para ele, a felicidade deve vir de fora, de sua natureza nobre. Ao lado de Tatyana, tudo se oporia à sua felicidade futura: os costumes, a sociedade e a instituição da União. Onegin não falha ao invocar que as forças sociais sucumbem ao seu suposto amor por Tatyana. Segundo sua própria justificativa, ele é, assim, uma vítima de seu mundo brutal que lhe reserva um cruel destino. Para Tatyana, seus desejos são uma questão de sorte. Seu destino está no amor que é o que move tudo o que é romântico, e ela não quer ser uma exceção na novela.

De frente para a rejeição de Onegin, o amor real não se realiza, porém, a heroína romântica encontra um outro domínio para que seus desejos possam ser realizados. Eles então, viverão no mundo dos sonhos. O sonho de Tatyana é conseqüentemente um exemplo do romântico introduzido no Romantismo. Dentro do poema de Pushkin nós encontramos um romance gótico do tipo mais familiar. Há uma aparência similar à de Ossian, em Werther e permite que Pushkin crie um modo um modo de romantismo sombrio sem perder o seu aspecto refinado. Não se discute aqui se o sonho é uma criação. Ocorre que ele se integra deliciosamente à novela como uma realização contemporizada de um querer ardente.

Um ponto que permanece é a leitura de Tatyana sobre Onegin que representa um momento de epifania no qual ela vê a natureza de seus próprios desejos. O interessante é a retomada de consciência dela que de maneira clara absorve os anseios inferidos em seu mais profundo íntimo. Isso é muito romântico mas não se aplicava em uma época em que o Romantismo ainda era fortemente estruturado em moldes individualistas. Ainda não podemos esquecer de observar que a epifania de Tatyana sobre Onegin é feita a partir do discurso indireto. Quem precisamente é a fonte desse conhecimento? Por um lado, Tatyana experimenta a fala do ponto de vista crítico do narrador que fazem dos comentários dela sobre Onegin cáusticos e dissimulados. Por outro lado, como sabemos, ela continuou amando Onegin e não considerou a oportunidade de vingança. Seria isso um nível de entendimento só dela? Reconhecendo o instinto revolucionário de Pushikin, devemos considerar que Tatyana foi capaz de manter a sua personalidade no decorrer do poema, posando até de personagem principal da obra.

Ao passo que podemos sentir Tatyana como a personagem principal do poema, não podemos afirmar que ela e Onegin estejam envolvidos em qualquer tipo de competição como estavam o protagonista e o narrador. Tatyana talvez compita na cabeça de Pushkin ou na do leitor pelo personagem central do poema, mas ela não detém o poder para isso por ser mulher. A competição é um fenômeno estranho. Nós competimos para ganhar ou perder e dentro da novela romântica, muitos adversários fracassam sem prevalecer um vencedor. Tanto o narrador quanto Onegin sofrem até compreenderem seu distanciamento do mundo comum. Eles tentam encobrir o fracasso para comprovar sua inigualável posição. Já a mulher desse período fica perdida em alguns aspectos porque elas, como Tatyana, não podem escolher seus destinos ao passo que os homens podem.

Por curiosidade, Tatyana pôde confessar seu amor e sofrer por ele. Ela pôde recusar um casamento e conseguir uma posição de status, porém, nenhuma dessas escolhas são consideradas “românticas”. De fato, a única escolha aberta para uma mulher era de ser objeto de desejo de um homem e não ser um rival ou um igual a ele como foi Tatyana. Nesse contexto, observamos que Tatyana não se comporta como a maioria das mulheres românticas que são proibidas de expressar seus sentimentos livremente. A rejeição de Tatyana a Onegin e a aceitação de seu outro marido é um gesto de ruptura de limites das personagens femininas que começam a transgredir fronteiras. Se Tatyana optasse por Onegin ela seria a heroína romântica politicamente correta, mas a medida em que ela domina conscientemente as suas decisões, fica explícita a crítica de Pushkin aos valores femininos de sua época romântica.

Essa é a principal diferença entre o desgosto de Tatyana com a sociedade romântica a qual Onegin também pertence. Antes ela almejava deixar a vida no campo, no último baile do poema ela resgata a sua vida bucólica e constata que tornou-se a bela mais jovem do salão. Ela então rejeita sua condição de dama da sociedade e, como dona de seu destino, opta pela fidelidade a seu marido em detrimento do amor tardiamente declarado por Onegin. A reação de Tatyana tem duplo impacto. Ela ama Onegin mesmo sabendo quem ele é. Ela o ama com as forças e o rompante de uma adolescente, porém, ela cresceu.  Ao receber a carta de Onegin, indagando-a a seguir as características românticas destinadas a ela, Tatyana não aceita e o rejeita, não por ele mas pelo Romantismo e todas algemas que isso representava para ela.

Tatyana não negligenciou a expressão de sua escolha na linguagem romântica do destino. Afinal ela é romântica. Sua sorte tem uma delimitação social previamente anunciada por Onegin, mas ela surpreende e rende Onegin no seu próprio destino. Ela aceita o casamento como um limite mas não como uma cena que a vitimiza. Neste momento ela sai da atmosfera romântica porque confessa seu amor sufocado, mas permanece unida a um outro homem sem sofrer uma contradição. Temos, então, a definição da virtude em Tatyana. Pushkin deu a ela um caráter único que demonstra que ela soube ler uma novela romântica. Ela entendeu toda a sua genealogia e conseguiu estabelecer uma posição viável e diferente como mulher a frente de seu tempo.

Evgeny Onegin talvez seja uma obra genial, mas de um gênio entristecido que compôs uma mistura de nostalgia e ironia, de idolatria romântica e sátira, de desejo e anseiar por desejo.

Como a arte imita a vida, a história continua e Pushkin, é claro, morreu num duelo pelas mãos do Barão Dantés. Suspeito de admirar a amada de Pushkin, o Barão foi forçado a aceitar o combate. Na manhã seguinte o duelo ocorreu. O tiro de Dantés acerta ushkin primeiro. Caído e seriamente ferido, Pushkin morre em tormento dois dias depois.  Talvez, Evgeny Onegin tenha sido a própria vida de Pushkin e tenha antecipado a sua causa mortis. Vertiginosamente Pushkin previu que o tiro de Dantés e a personagem de Tatyana são a mesma coisa. Ambos colocaram um fim numa história de amor e rendição.

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