O narrador no romance Cidade de Deus, de Paulo Lins

Lívia Lemos Duarte

(mestranda em Ciência da Literatura, Semiologia, UFRJ)

 

O romance Cidade de Deus, de Paulo Lins mantém até a última linha uma tensão difícil de ser narrada. Desde seu início, mostra-se como uma narrativa de resistência frente à mudez imposta por um brutalismo tão característico da sociedade brasileira de hoje. A Cidade de Deus do romance remete-se a uma parte da cidade do Rio de Janeiro, que é parte do Brasil, que, por sua vez, faz parte do mundo contemporâneo formado e deformado pelos avanços do capitalismo.

            Nesse trabalho, destacamos o ponto de vista do narrador como um meio pelo qual se discute o crescimento da violência na sociedade brasileira e a necessidade de resistir a ela.  Em Cidade de Deus, a narração aparece colada à ação e, muitas vezes, o discurso narrativo se confunde com o dos personagens. Como o narrador não é um dos personagens do romance, poderíamos dizer que essa união entre os planos do narrador e do personagem, além de resultar num realismo absurdo e nada exótico, faz também com que percebamos uma relação estreita entre narrador e matéria social apresentada por ele.

            Logo, serviu como orientação para a construção desse trabalho a questão sobre como se caracteriza o narrador de Cidade de Deus? Em primeira análise, acredita-se que o narrador do romance revela fatos de uma realidade e assume o compromisso de atribuir significação a ela. Afinal, segundo seu próprio discurso, “o assunto aqui é crime, eu vim aqui por isso...” (p.20). Assim, em Cidade de Deus, percebe-se que a ficção não é negada (não se trata de um estudo antropológico), mas possui um forte valor de desvendamento para uma matéria social. Isso nos levou a ter como referência central para o trabalho o ensaio de Adorno Posição do narrador no romance contemporâneo, de onde nos apoiamos no conceito de narrador como uma figura mediadora por excelência que, por meio do encurtamento da distância estética, é capaz de retirar o leitor de um estado meramente contemplativo perante uma narrativa.

 

O encurtamento estético no discurso do narrador de Cidade de Deus  

            Em A posição do narrador no romance contemporâneo, Adorno destaca a reificação das relações entre os indivíduos como elemento que influencia fundamentalmente a questão o discurso narrativo contemporâneo. Nesse sentido, vale remontar à formação da cultura urbana e capitalista como grande responsável pela fragmentação do sujeito, que por meio da perda da experiência e da memória, transforma-se em um indivíduo isolado socialmente.    

            A questão do isolamento social por parte do indivíduo é discutida por Sennet, em O Declínio do Homem Público (1988), que analisa o fato de multidões de pessoas estão preocupadas apenas com as histórias de suas vidas e com suas emoções. Essa preocupação demonstra ser mais uma armadilha do que uma libertação ou uma solução, porque, quanto mais privatizada e quanto menos estimulada a psique, tanto mais será difícil expressar sentimentos. O eu de cada pessoa tornou-se o seu próprio fardo; conhecer-se a si mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo.

            Segundo Sennet (1988), a problemática trazida na configuração das sociedades atuais, relaciona-se com o impacto do capitalismo industrial na vida pública. Dessa forma, ele identifica como dois grandes efeitos do capitalismo sobre a vida pública a mistificação dos fenômenos públicos e a mudança na natureza da privacidade. No primeiro caso, os objetos postos à venda nas lojas de departamento eram revestidos de significação pessoal e mistificados, fazendo com que a utilidade deles fosse posta de lado, de modo a valorizar mais o que ele representava como coisa, como mercadoria reificada.

            Em relação à transformação na natureza privada, ela passa, com o desenvolvimento do capitalismo, a ser vista como um mundo onde reinava a interação, mas que deveria ser secreto. Ocultando seus sentimentos, as pessoas estariam seguras e, somente em espaços escondidos, estariam livres para interagir. Essa situação dá lugar ao surgimento do homem-espectador, que escolhe não participar da vida pública e é passivo a ela. O espectador, portanto, uma figura isolada, esperava realizar tarefas da personalidade que sentia que não poderia realizar se estivesse ativamente em intercâmbio com os outros. Em suas interações sociais, seus sentimentos tornavam-se confusos e instáveis. Ao ficar passivo e em silêncio, acreditava que estaria liberto dos laços sociais.

             As atitudes de contar histórias e de compartilhar experiências ficariam impedidas em função do silêncio trazido pelo extremo subjetivismo e pela instauração da barbárie nas relações interpessoais. Nesse sentido, não haveria mais espaço para o narrador épico que, distanciado do seu objeto, é capaz de dar testemunho de suas vivências. Além dessa falta de espaço, “basta perceber o quanto é impossível, para alguém que tenha participado da guerra, narrar essa experiência como antes uma pessoa costumava contar suas histórias” (Adorno, 2003:56).

            Segundo Adorno, “o que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada em si mesma, que só a postura do narrador permite (...) Pois contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice. ” (Adorno, 2003:56). Dessa maneira, seria recebida com impaciência e ceticismo a narrativa que se apresentasse como se o narrador fosse alguém que viesse de longe e que trouxesse suas experiências partilháveis, pois, na medida em que a interação social se fecha mais densamente, a alienação dos homens em relação a si mesmo se torna cada vez mais institucionalizada.

            Em face disso, o romance precisaria enfocar aquilo que o relato não poderia abordar. Afinal, diferentemente do narrador épico, “a origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los” (Benjamin, 1987:201). Por conter em si tal origem, o romance se qualifica como uma tentativa de captar e decifrar a vida exterior desconhecida em virtude do estranhamento causado pela reificação das relações entre os indivíduos.

            Nesse sentido, por meio de um encurtamento estético, o narrador do romance contemporâneo quebra a tranqüilidade do leitor e impossibilita qualquer posicionamento contemplativo, pois “a permanente ameaça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem mesmo a imitação estética dessa situação” (Adorno, 2003:61). Ao promover um choque no leitor, este é despertado para o que está sendo narrado e tem diante de si um discurso fictício que se pretende como uma forma de resistência à perda da memória e como uma chamada de atenção sobre a matéria social.

            O romance Cidade de Deus está bem qualificado para essa chamada. No coração do problema abordado pela narrativa, está a temática da exclusão social, que contribui para a expansão da criminalidade no Rio de Janeiro. A esta temática, junta-se a reificação das relações entre os indivíduos, o que promove alienação e colabora para a existência de interpretações escassas sobre o problema.

            Nas entrelinhas de Cidade de Deus, também está presente o imaginário escravista que intermedia as relações entre as camadas sociais no Brasil. Nesse sentido, no desenrolar da história brasileira, a figura do escravo sofreu metamorfoses, conservando seu caráter servil e desembocando, hoje, na figura do negro pobre e analfabeto habitante da neofavela[1]. Nos dias de hoje, a urbanização acelerada e alimentada pelo capitalismo predatório surge para reforçar os antigos laços escravistas e para aumentar ainda mais a exclusão social.

            O ponto de vista interno do narrador de Cidade de Deus contribui para que a problemática social presente no romance seja apresentada por meio do encurtamento estético discutido por Adorno. O narrador, portanto, não se mantém distante da matéria narrada e assimila as marcas de oralidade dos personagens através do discurso indireto livre, ou seja, o discurso do narrador recria o aspecto oral da fala marginalizada dos personagens e promove um constante jogo de se colocar fora e dentro dos personagens:

 

 O negócio era matar antes de morrer. Pegou seus dois revólveres, que estavam tomando calor no motor da geladeira para dar um banho de querosene. (...) “Bandido sem revólver é como puta sem cama”. Lembrou-se dessa lição cavernosa e simples que sua alma, ainda menina, aprendera com a sua mãe quando ela estava sem quarto na zona e o pai sem um revólver para assaltar. (p.133)

           

            Ainda que haja essa fusão entre discurso do narrador e dos personagens, as diferenças entre eles são claras. O narrador não é um apresentador que se põe à parte da violência presente no romance, mas nem por isso é simpático a ela. Isso pode ser evidenciado no seguinte trecho:

 

Poesia, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons de minhas palavras. É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. (...) Massacrada no estômago com arroz e feijão a quase-palavra é defecada ao invés de falada. Falha a fala. Fala a bala. (p.21)

           

            Essa forma de escrita evidencia um narrador que observa o universo da neofavela Cidade de Deus, examinando-o atentamente, mas sem transformá-lo em matéria pitoresca. Sobre isso, analisa Roberto Schwarz (2000): “colado à ação o ponto de vista narrativo lhe capta as alternativas próximas, a lógica e os impasses. O imediatismo do recorte reproduz a pressão do perigo e da necessidade a que os personagens estão submetidos. Daí uma espécie de realidade irrecorrível, uma objetividade absurda, decorrência do acossamento que deixa o juízo moral no chão.” (p.167). Mesmo situada num espaço limitado que é o da Cidade de Deus, a matéria tratada por este narrador recebe potência total. Tal atitude resulta na denúncia de algo que está fora do romance, pois por meio da intimidade com o horror implantado no espaço da criminalidade e da violência, o narrador não deixa espaço para que o leitor se perca em divagações contemplativas.

            Nesse espaço da criminalidade de da violência, o narrador de Cidade de Deus não parece tomar ser conivente com o universo dos bandidos (os bichos-soltos, como se denomina no romance) e tampouco com o universo dos policiais. Assim, não há a figura de um herói ou de uma vítima e de um agressor, isto é, tanto os bicho-soltos quanto os policiais são tratados com a mesma natureza cruel, sem que haja a figura de um salvador que mantenha a segurança da comunidade.

            Assiste-se na narrativa de Paulo Lins a um âmbito particular - composto pelo cotidiano dos bichos-soltos corrompidos pela violência - associado a outro plano mais geral, que desemboca no tráfico de tóxicos e de armas, que, por sua vez, é muito lucrativo e abrangente.     

            Para indicar uma realidade atual, o contexto do romance de Paulo Lins se relaciona com as áreas da cidade que consomem drogas, como também com aqueles que, bem situados na cidade, financiam o tráfico de drogas e de armas. Nesse sentido, a narrativa de Cidade de Deus apresenta uma realidade do Rio de Janeiro que é marginalizada e desconhecida até mesmo por muitos dos habitantes cariocas. Dessa maneira, o romance chama à atenção a existência de margens dentro de uma mesma cidade, margens estas que, embora se tolerem, colaboram ainda mais para a concretização do extremo afastamento entre a realidade da neofavela e a da zona sul carioca.

            Em face de um projeto romanesco desse tipo, Cidade de Deus é naturalmente um romance cujo universo narrativo não fica fora da cidade comum e de toda a sua problemática, dificultando qualquer distanciamento estético e exigindo uma leitura engajada. Dessa maneira, os assuntos levantados em Cidade de Deus fazem parte da realidade atual e, mal ou bem, os seus leitores do romance participam dela.

 

Referências bibliográficas  

ADORNO, T. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas de Literatura I. São Paulo: 34 Letras, 2003.

BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Cia.das Letras, 1997.

SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público - as tiranias da intimidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.

SCHWARZ, Roberto. Cidade de Deus. Seqüências Brasileiras. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2000.



[1] Em Cidade de Deus, a concepção de favela é tomada pela idéia de neofavela, “que foi reformada pela guerra entre os traficantes de droga e pela correspondente violência e corrupção da polícia” (Schwarz, 2000).

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