Laura Ribeiro da Silveira

  1. APRESENTAÇÃO

  No último Simpósio do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura apresentamos nossa incipiente pesquisa de tese em linhas gerais. O texto daquela exposição foi recentemente publicado pela revista eletrônica do Programa (Garrafa) e se encontra disponível na página da mesma (www.ciencialit.letras.ufrj.br/index_revistae-escrita.htm).

Ali esboçamos as relações que pretendemos estabelecer entre memória, história, testemunho e ficção na obra De coniuratione Catilinae (Sobre a conjuração de Catilina) do literato e historiador romano do século I a.C. Caius Salustius Crispus, a partir do instrumental teórico fornecido pela Ciência da Literatura e, em última instância, pela Semiologia.

Nossa proposta agora é apresentar uma primeira verticalização da pesquisa em torno daquilo que consideramos o seu fio condutor: a memória.

 

2. O MANTO DE MNEMOSINE: CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEMÓRIA

  O velar e desvelar da memória se nos afigura como a mais atual manifestação da deusa grega Mnemosine, a quem o étimo nos faz recorrer sempre que nos voltamos para o estudo da memória e de seus mecanismos.

Envolta em seu gigantesco manto, Mnemosine tem poder de seleção: é na retirada para dentro de si e no interino exílio do mundo, que a deusa procede a escolhas, operando as engrenagens convergentes do esquecimento e da lembrança na construção de uma memória, cuja natureza pressupõe o constante jogo entre mostrar e ocultar, para que ela se realize plenamente.

A deusa nos remete, ainda, ao despojamento original da memória, desprovida de quaisquer instrumentos – estes adereçam as musas, suas filhas, que, para inspirar os poetas ou protegerem as artes, aliam seus poderes divinos à força simbólica de elementos como o livro, a trombeta ou a clepsidra, por exemplo, com os quais Clio, musa da história, faz-se identificar e dos quais trataremos oportunamente.

O suporte de que se utiliza Mnemosine é anterior à escrita ou mesmo a uma linguagem codificada: a deusa é a própria personificação da memória, individual ou coletiva, passada, presente ou futura, pois o manto possibilita o abarcar generoso que precede a escolha. A deusa que tudo vê e tudo sabe – os dois verbos apresentam em grego um radical comum id – tudo percebe antes de se voltar para o trabalho da memória, que é também um de esquecimento.

Seguimos aqui os passos de Henri Bergson, no que diz respeito à contigüidade percepção-memória. Para o autor de Matéria e memória, não somos capazes de precisar onde termina uma e começa outra: 

Não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples ‘signos’ destinados a nos trazerem à memória antigas imagens.[1]  

O perceber constitui-se numa primeira seleção – talvez inconsciente ainda – da memória, afinal percebemos tão-somente aquilo que nos afeta ou interessa mais diretamente. Aqui pretendemos que o constante dobrar-se e desdobrar-se do manto da deusa, abundante em pregas tão efêmeras quanto recorrentes, desloque as fronteiras da lembrança no movimento macio do tecido flutuante e transforme em fluxo contínuo as operações da memória, no voltar-se para o mundo ou para si.

O privilégio de Mnemosine junto aos gregos devia-se sobretudo ao saber (oida) ilimitado da deusa, o qual teria sido transmitido às suas filhas – as musas –, juntamente com a capacidade de mentir, ou seja, de ocultar, conforme aprendemos a partir da leitura destes dois versos de Hesíodo, na Teogonia: sabemos muitas mentiras dizer semelhantes aos fatos\ e sabemos, se queremos, dar a conhecer a verdade[2]. A escolha das musas entre o verídico e o verossímil era determinada, então, pela sua própria vontade, à qual se submetiam os poetas. Os tênues limites entre a ficção e o real estariam, assim, fora do alcance do aedo, sempre sujeito aos caprichos das deusas inspiradoras das artes, do criar.

O trabalho da memória se daria, pois, na confluência imprecisa entre o vivido e o imaginado, no preenchimento de lacunas que constituem a própria matéria da memória: o vazio. A construção se realiza, então, como discurso e é somente como “discurso que se pode inventar, no lugar do morto, uma outra coisa, uma outra cena, uma outra estória”[3],  segundo Lúcia Castello Branco, para quem, ainda, a memória implica sempre a decomposição, a rasura da imagem[4].

O étimo nos ensina, ainda, a fazer da lembrança o depositário par excellence da verdade, posto que entre os gregos a alethéia (verdade) é literalmente o não-esquecimento, a negação das águas de Lethes, sempre evitadas até o momento da morte e descida aos infernos. Buscar a verdade é recorrer à memória, mantendo-se no mundo dos vivos, apesar das dobras do manto.

Essa verdade pessoal, sujeita aos caprichos das musas, encontramo-la na escrita salustiana da história, quando o autor se propõe narrar os acontecimentos da conjuração de Catilina da maneira mais fiel possível. Os vestígios gravados nos sentidos do jovem político eram, vinte anos depois, vasculhados pelo historiador maduro afastado da vida pública, voltado tão-somente para a construção de uma obra, cuja verdade se nos afigura fruto do encontro entre o testemunho, a memória e o imaginário.

A preocupação com a brevidade da vida, a incerteza do futuro e a confiança na memória como o fio que, sempre prolongado, confere esse caráter unitário ao tempo, e sobre o qual procuramos nos equilibrar, então, do passado ao futuro, aparecem no início da obra, na defesa que Salústio faz do espírito humano ao comparar o homem com os outros animais e com os deuses, conforme transcrevemos a seguir: 

I- Omnis homines qui sese student praestare ceteris animalibus summa ope niti decet ne uitam silentio transeant ueluti pecora, quae natura prona atque uentri oboedientia finxit. Sed nostra omnis uis in animo et corpore sita est; animi imperio, corporis seruitio magis utimur; alterum nobis cum dis, alterum cum beluis commune est. Quo mihi rectius uidetur ingeni quam uirium opibus gloriam quaerere et, quoniam uita ipsa qua fruimur breuis est, memoriam nostri quam maxume longam efficere. Nam diuitiarum et formae gloria fluxa atque fragilis est, uirtus clara aeternaque habetur.[5] 

Todos os homens que desejam para si ser superiores aos outros animais devem se esforçar ao máximo para que não passem a vida em silêncio como os animais que a natureza criou inclinados para frente e obedientes ao ventre. Mas toda nossa força está posta no espírito e no corpo; servimo-nos do espírito mais para o comando, do corpo para a servidão; um nos é comum com os deuses, o outro com as bestas. Por isso parece-me mais certo buscara glória por obras do espírito do que das forças e, porque a vida mesma que fruímos é breve, prolongar ao máximo nossa memória. De fato a glória das riquezas e da beleza é efêmera e frágil, a virtude mantém-se ilustre e eterna. 

Percebemos uma identificação do homem com os deuses por meio do espírito, que levaria aquele à imortalidade da alma pela memória preservada. Salústio quer a eternidade da uirtus e se volta para Mnemosine como meio de alcançá-la. O autor se sabe semelhante aos animais, mas a comunhão com os deuses lhe apraz, a busca de permanência o impele a curvar-se ante a verdade que ele mesmo constrói.

Sabendo-se testemunha da conjuração de Catilina, Salústio opera a imbricação entre ver e saber, não apenas pelo uso reiterado dos verbos uidere e scire, mas também, pelo emprego constante de formas como uidetur ou uidebatur cuja desinência apassivadora –tur implica, semanticamente, um afastamento do sujeito, da testemunha, que abdica da responsabilidade de agir para deixar-se afetar pelas imagens. Ele não é mais a testemunha atuante que viu e ouviu, mas o historiador que preenche suas lacunas a partir do verossímil, daquilo que parece (de parere = aparecer), justificando, assim, o enfraquecimento semântico que acomete o verbo ver latino empregado passivamente, pois a ausência de um sujeito agente acarreta profunda mudança no sentido do verbo: ver torna-se parecer, com toda a carga de subjetividade que este comporta.

Tomemos os seguintes trechos : 

XIII- Nam quid ea memorem quae nisi eis qui uidere nemini credibilia sunt (...)[6]

Na verdade, para que eu lembre coisas que não são críveis exceto para aqueles que as viram (...) 

XIV- Scio fuisse nonnullos qui ita existumarent iuuentutem, quae domum Catilinae frequentabant, parum honeste pudicitiam habuisse; sed ex aliis rebus magis quam quod cuiquam id compertum foret haec fama ualebat.[7]

Sei terem sido muitos os que assim acreditavam a juventude que freqüentava a casa de Catilina ter tido pouco pudor com decência; mas este boato prevalecia mais a partir de outras coisas do que porque isto tivesse sido revelado a alguém.

IV- (...) statui res gestas populi Romani carptim, ut quaeque memoria digna uidebantur, perscribere; eo magis quod mihi a spe, metu, partibus rei publicae animus liber erat.[8]

(...) decidi, colhendo aqui e ali, transcrever os feitos ilustre do povo romano, como aqueles que pareciam dignos de memória; vou mais porque para mim o espírito estava livre da esperança, do medo, dos partidos da república. 

XV- (...) Quae quidem res mihi in primis uidetur causa fuisse facinus maturandi.[9]

Na verdade esta me parece ter sido a principal causa de amadurecimento do crime. 

XXXVI- Ea tempestate mihi imperium populi Romani multo maxume miserabile uisum est.[10]

O império romano parece-me o mais deplorável nessa época. 

Nos dois primeiros excertos, Salústio evidencia o ver e o saber, respectivamente. Em um reforça o papel da testemunha e sua importância para a lembrança, aproximando, ainda, visão e crença, ao reconhecer a confiança de que goza o sentido; no outro, destaca seu conhecimento dos fatos e sua disposição para questioná-los ante a ausência de provas e a intensidade dos rumores.

Nos últimos, ainda que representem momentos da obra bastante afastados entre si, Salústio desloca-se da posição privilegiada de testemunha para aquela de quem se deixou afetar pelas imagens, vestígios e ruídos do período que ele se propõe retratar com fidelidade. No fluxo da narrativa desvelam-se-nos a opinião do historiador e o resultado de suas escolhas, pelo emprego das formas passivas uidebantur, uidetur e uisum est.  Acreditamos ser este um traço importante da incipiente monografia historiográfica romana: acolher sob o mesmo manto mnemosínico a objetividade do cientista e a subjetividade do literato, cuja confluência generosa resultaria no texto híbrido de que nos ocupamos, no qual convivem harmoniosamente fatos e impressões, ancorados no espírito investigativo do historiador.

Como a narrativa, também a memória é construção. Voltar-se para Mnemosine é buscar ainda o poder das musas inspiradoras das artes, que ensinam o real e o verossímil, é lembrar-se pela memória do outro ou entregar-se à recordação imaginativa, trazendo de volta ao espírito ou, literalmente, fazendo passar novamente pelo coração, vestígios de imagens concebidas a partir dos escombros da memória, onde a ficção e o real desafiam os limites da consciência para se tornarem matéria-prima na construção desse monumento chamado memória.

Os trechos citados revelam-nos também a intenção de objetividade do autor, frustrada aqui e ali pela constante ameaça à sua imparcialidade, seja pelo aflorar consciente ou não de suas próprias opiniões sobre os eventos relatados, seja pela presença de vozes alheias, embora filtradas pelo seu discurso. A precisão na escolha vocabular, a indicação das fontes, o colocar-se no texto sempre que necessário denunciam um historiador ciente do poder do discurso e do valor documental da obra literária.

Dizer a memória é dedicar-se ao tempo. É no curvar-se sobre o passado para entender o presente com vistas ao futuro que se nos oferecem as possibilidades da memória, instância presentificadora do tempo que se quer unitário. Salústio opera as imbricações do depois, o agora e o antes, preenchendo com razão e silêncio as lacunas encontradas na duração em retrospectiva[11]. A continuidade se dá, pois, como construção: a partir dos fatos que sucederam a conjuração de Catilina, Salústio se propôs compreendê-la e situá-la política, social e historicamente na crise da República romana.

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O afastamento espácio-temporal alcançado sob a proteção do manto permite-nos uma entrega às dobras do tecido como possibilidade de evitarmos as fronteiras, os limites, as tensões. Separados de Salústio por um arco temporal de vinte séculos, voltamo-nos para o seu texto como se visitássemos um sítio arqueológico: interessa-nos contemplar as ruínas e vasculhar os escombros, não à procura da verdade dos fatos – verdade não há –, mas em busca de vestígios, de signos sobre os quais construiremos nosso próprio discurso.

 

4. BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. Trad. Marcelo Coelho. São Paulo: Ática.1988.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes. 1990.

BRANCO, Lúcia Castello. A traição de Penélope. São Paulo: Anablume. 1994.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem memória e história. Rio de Janeiro: Imago. 1997.

HESÍODO. Teogonia. A origem dos deuses. Estudo e tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1992.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira Borges. 5ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp. 2003.

SALLUSTE. De coniuratione Catilinae( La conjuration de Catilina). Texte établit e traduit par Alfred Ernout. Paris: les belles lettres, 1999.

 



[1] BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990.p.22.

[2] HESÍODO. Teogonia. A  origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1992.p.106. Tradução nossa.

[3] BRANCO, Lúcia Castello. A traição de Penélope. Rio de Janeiro: anablume. p.20.

[4] Idem.ibidem.p.26.

[5] SALLUSTE. De coniuratione Catilinae( La conjuration de Catilina). Texte établit par Alfred Ernout. Paris: les belles lettres, 1999.p.2. Embora a edição seja bilingüe (Latim/Francês), todas as traduções para o português são nossas e têm por base o texto latino original.

[6] Idem.ibidem.p.22.

[7] Idem.ibidem.p.24.

[8] Idem.ibidem.p.8.

[9] Idem.ibidem.p.26.

[10] Idem.ibidem.p.62.

[11] Acerca das lacunas na duração ver Gaston BACHELARD, em A dialética da duração, onde o autor defende a existência de lacunas no tempo e nos apresenta a continuidade como uma construção, nunca um dado.

 

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