Linguagem e Verdade em Autran Dourado

Laura Goulart Fonseca – Doutoranda em Ciência da Literatura –

Poética – Orientador: Manuel Antônio de Castro

Na alegoria da caverna, Platão estabelece a separação do mundo em duas esferas distintas, em constante oposição e incompatíveis entre si. O interior da caverna é a alegoria do mundo sensível – o mundo da aparência, onde a verdade sobre as coisas não se mostra devido à escuridão da caverna. O exterior da caverna é a alegoria do mundo inteligível – o mundo das idéias, onde, iluminadas pelo sol, as coisas se mostram como são exata e verdadeiramente. Ao sair da escuridão da caverna para a claridade do seu exterior, o homem é obrigado a adaptar o olhar à luz. Essa adaptação é, essencialmente, o que Platão chama de Paidéia: “uma tendência do homem para uma mudança completa de todo o seu ser”. “Quando na caverna, o homem liberto se desvia das sombras para considerar as coisas ele já dirige o seu olhar para aquilo que tem mais do ser que de simples sombras” (...) então “vê de um modo mais exato”[1] (p. 3). “Assim orientada, a percepção se conforma àquilo que deve ser visto. Está lá a “e-vidência” (Assehen) daquilo que é. Esta adaptação da percepção, do ίδειν, à ιδέα, traz uma όμοίώσις (homoiósis), um acordo do conhecimento com a própria coisa. De acordo com essa concepção, a verdade liga-se à exatidão, em grego, orthotes, e é oposto do inexato, do falso.

Posteriormente, a teoria aristotélico-escolástica definiu a verdade como a adequação da coisa com o conhecimento - veritas est adequatio rei et intellectus – definição esta que que se consagrou na cultura ocidental. Mas, conforme Martin Heidegger, adequação é apenas um dos apectos da verdade que, enquanto arte, extrapola tal definição, pois revela outro aspecto que merece aprofundamento.

Os pensadores originários entendiam a physis como o desabrochar, “o vigor dominante daquilo que brota e permanece”[2], ou seja, liga-se ao poder da criação, tanto no que diz respeito ao próprio ato de criar (o que brota), como ao que já está criado (o que permanece). José Carlos Michellazo observa que havia uma noção de movimento implícita à idéia de physis, justamente por ela ter sido entendida tanto por aquilo que brotava como por aquilo que permanecia, e isso não era só em relação às criações da natureza, mas também às dos homens, do pensamento e da linguagem. Dessa forma, os contrastes incompatibilizados por Platão nas esferas sensível e inteligível eram, segundo Michellazo, “manifestações de uma única realidade (UPDU, p. 29). Percebia-se a unidade existente nos contrastes. É nesse sentido que Heráclito diz, no fragmento 123: “physis kripthestai philei– a physis (o ser) bem quer ocultar-se. Aquilo que brota, que surge, tem tendência ao ocultamento. A verdade, para os pensadores originários, traz esse jogo de velamento e desvelamento, é alétheia. Aqui os contrastes como dia e noite, matéria e espírito, vida e morte, entre outros, são mais do que parte do mundo: surgem como condição para a permanência de quaisquer de seus pólos. A tensão não é incompatível, mas sim, harmônica.

Heidegger[3] nos dá a etimologia da palavra alétheia. Traduzindo-a por desencobrimento, mostra que em αληθεία o α ainda não tem o valor privativo, somente atribuído a ele pela gramática do pensamento grego tardio. Entende-se com isso que o α não tira do encobrimento o desencobrimento (o revelar-se), um e outro se pertencem. “Desencobrimento é o traço fundamental daquilo que já apareceu e deixou para trás o encobrimento” (p.229). A alétheia não pode desvelar-se completamente porque o velamento faz parte dela. Heidegger chama de “o mistério” essa dissimulação do ente como tal velado em sua totalidade.

O problema que se apresenta ao homem nesse movimento simultâneo de velamento e desvelamento é que ele se limita à realidade corrente, aquela que pode ser dominada por ele, assim esquece a dissimulação do que está velado (o mistério), esquece, portanto a essência. As falsas questões passam então a imperar, e o homem passa a completar seu mundo com projetos e cálculos e a retirar deles suas medidas. Enquanto o homem tomar a si mesmo como medida (como sujeito) para todos os entes, permanecerá enganado nas medidas. É a partir da tomada de medida que o homem habita e, conseqüentemente, é essencialmente[4]. O saber se torna inessencial quando é almejado somente por seus méritos, pois o homem só habita poeticamente a terra “quando constrói e continua a construir na compenetração de um sentido” (Phh, p. 169).

É preciso despojar-se , silenciar o saber já existente, as pré-concepções para habitar. O habitar traz em si a poiesis porque implica construir, fazer, edificar. A linguagem poética, como fazer-se das coisas, traz o homem para um habitar, um construir. A poesia faz parte da vida concreta, ao contrário do que pensa o senso comum, porque não é mera fruição, mas promotora do resgate do ser. É nesse sentido que a poesia se liga à verdade. O poeta vela o desvelado para que se aprenda a verdade de um outro modo, para que se obrigue a escutar.

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A arte é manifestação do real enquanto physis e ser, isto é, alétheia. A arte recolhe a physis enquanto linguagem (logos). Como a Poética focaliza o fazer poético, não pode conceber regras ou leis anteriores à obra autenticamente artística. O autor escuta o apelo do logos e cria a partir da poiesis, de forma tal que as regras ou leis que regem determinada obra surgem da e pela criação da obra. O artista não cria a regra, ele a recebe do logos. Concluída, a obra revela que somente aquela lei caberia a ela e que só aquela era sua lei. É neste círculo que a obra produz verdade.

Na linguagem poética, tal apelo se mostra nas imagens das quais surgem as questões tratadas em determinada obra. O saber nos é dado pela linguagem poética que, por ser originária, é a base de uma experiência do sagrado. Em épocas remotas, anteriores à escrita, acreditava-se que a palavra, uma vez pronunciada, tinha o poder de trazer consigo a coisa nomeada. É nesse sentido que Jaa Torrano[5] fala do poder simultaneamente ontopoético e ontofânico da palavra, pois: 

(...) [este poder] faz o mundo e o tempo recuarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez” (TH, pp.19-20).  

 Na Teogonia de Hesíodo: 

O mundo, os seres e os Deuses (...) e a vida aos homens surgem no canto das Musas do Olimpo, canto divino que coincide com o próprio canto do pastor Hesíodo, a mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os Deuses e a vida aos homens” (TH, p. 20).  

Atualmente o caráter sagrado da palavra permanece quando ela é símbolo, e não signo. O símbolo não representa, mas significa aquilo que é. Dessa forma, linguagem e ser não se separam, são imanentemente recíprocos, pois ser é aparição, manifestação, o que se dá através das Musas, filhas da Memória, detentoras da linguagem, ou seja, as Musas dão a linguagem ao homem, que dessa forma se manifesta como tal, o que implica dizer que o ser só é na linguagem.

Para Heidegger a linguagem é a casa do ser. O homem só se realiza enquanto tal pela linguagem, de modo que esta possui aquele. Mas o que ocorre no cotidiano é que o homem procura inverter essa relação e passa a usar a linguagem em vez de deixar-se manifestar por ela. Assim, o significado original de cada palavra é encoberto e toda sua poesia se perde. É a linguagem poética que liberta a palavra de seus automatismos e faz aparecer sua originalidade. Estabelece-se assim a relação entre mito e linguagem: o mito concebido como origem só pode ser narrado em uma linguagem também original, de forma que a narrativa mítica não é apenas representação do mito, mas se torna real, pois reúne sentidos - o mito funda mundo, assim como a obra de arte. O mito é a origem de todas as coisas e se renova como linguagem. Embora temas como mito e poesia pareçam não ter lugar no mundo da tecnologia e do capital, o homem, que tão poderoso se sente devido às maravilhas tecnológicas, não consegue mais se enxergar no espelho tal como a personagem de Guimarães Rosa. O excesso de técnica encobre a essência humana, e a poesia é o que pode revelá-la. Isso ocorre justamente porque essa linguagem não pode ser dominada pela técnica. O homem não pode dominar a poesia. Não se trata de dominantes e dominados nesse jogo, mas se o homem habita a linguagem – e para que esse habitar se realize plenamente só podemos pensar em linguagem poética – deve saber calar, saber escutar e, assim ser falado pela poesia. A chamada crise da atualidade é acompanhada por uma crise na linguagem e na própria comunicação. É paradoxal, mas sintomático, que a tecnologia tenha facilitado a comunicação, e as pessoas estejam-se sentindo cada vez mais sós. O homem abandonou sua essência – a linguagem – e não consegue entrar em contato nem com seus pares nem consigo mesmo.

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A narrativa de Autran Dourado se insere na vertente dramática do romance contemporâneo, ou seja, incorpora elementos da tragédia grega, sobretudo a ausência do narrador e a presença do coro. Há uma profunda reflexão acerca da verdade, do destino, do tempo, do ser, da linguagem, da memória e, quase como conseqüência, do ato de narrar.

 Tanto Os Sinos da Agonia como Ópera dos Mortos podem ser lidos, segundo o próprio autor, não apenas como romances, mas como tragédias. Mitos como Tirésias, o adivinho cego que já foi transformado em mulher e fala enigmaticamente; Fedra, que se apaixona pelo seu enteado, Hipólito, e não sendo correspondida por ele, se enforca e deixa uma carta que acusa o enteado de seduzi-la; o próprio Hipólito, filho bastardo de Teseu que se dedica unicamente à caça, cultua a deusa Ártemis e pratica a castidade e, finalmente, Antígona, filha de Édipo e Jocasta que, contrariando as ordens de Creonte, mas obedecendo as leis não escritas dos deuses, enterra o irmão e é condenada a ser sepultada viva, mas se mata antes que Creonte, arrependido, fosse libertá-la e lamenta apenas morrer sem ter tido filhos. Quando o mundo desses mitos é destruído, constrói-se outro fundado na experiência humana e na linguagem mítica que os narra. Tal linguagem não pode ser compreendida pelos princípios da lógica, já que pluraliza sentidos, deixa de ser signo e torna-se símbolo, não remete a um significado, mas a outro significante, que por sua vez remete a outro e assim sucessivamente até que se dá o desvelar e velar e consuma-se a tensão ente e ser.

Há leis rígidas de composição na narrativa de Autran Dourado, mas elas não limitam a interpretação a uma análise teórica, abstrata e conceitual, porque estão comprometidas com a alétheia. A linguagem dinâmica e ambígua de Dourado é sua própria poética. No exercício de escuta da obra, o real se manifesta em tensões que se revelam como a própria vida em seus caminhos: verdade/falsidade, saber/não saber, morte/vida.  

Um dos recursos que criam ambigüidade e movimento na linguagem é a narrativa em blocos. O saber do leitor é sempre questionado, não há certezas porque elas se pretendem eternas, e homem é mortal. A verdade se vela e se desvela simultaneamente no labirinto da narrativa e o limite humano é a condição que possibilita novas experienciações do real.

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Em Os Sinos da Agonia, os três blocos iniciais trazem o ponto de vista de cada uma das três persongens principais, Januário, Malvina e Gaspar. O autor deixa, propositalmente, o final de cada bloco em suspenso para formar o quarto bloco.  Imagina-se que aí os pontos de vista conflitantes chegariam a um consenso, mas não é o que ocorre, pois as vozes estão em eqüiponderância. Há uma reflexão a respeito da sabedoria adquirida no percurso do labirinto que é a vida de cada personagem. Malvina e Gaspar são metáforas do tempo. Na concepção da tragédia grega o tempo é o que governa os deuses, os homens, o cosmos, enfim, a totalidade do real. Daí Autran Dourado construir a idéia de tempo em Os Sinos da Agonia como uma roda. Assim define-se o ciclo trágico da existência: nascimento, vida e morte. A alegria do nascimento está em tensão harmônica com a tristeza da morte. O ciclo só se compõe se as duas coisas existirem em eqüiponderância de forças. O desejo de compreender o destino em consonância com a roda do tempo leva o coro a invocar Tirésias, o grande adivinho da tragédia sofocleana, o cego que vê além da aparência:  

 Ó, Tirésias, iluminado interiormente pela luz da tua escuridão, nos ajude a desvendar e entender, porque essa é a nossa humana ânsia indagadora; mesmo sabendo que é impossível ao homem alterar o intrincado tecido. Às vezes, Tirésias, cuidamos, e por isso a ti recorremos, no Hades ou quando ainda vivias, e ainda agora, antecipadamente sabendo que não se pode evitar e mesmo assim desesperadamente querendo, com a ilusão de que tuas falas, tão carregadas de lutos, presságios e significados, possam nos dizer e orientar em nossas tarefas e atos, como os antigos, não tão antigos como tu, mareavam segundo as estrelas e o simples rumo do agulhão. Te pedimos porque és e foste humano e não um ser divino, e sabemos que ao Senhor dos oráculos, não a ti a quem só é dado ver, somente esta velhíssima prece podemos balbuciar: Nos livre, Senhor, das dores e cicatrizes, e se impossível, nos dê força e coragem para suportar (SA, p.147)  

É interessante notar que o coro pede ajuda a Tirésias porque ele é um ser humano. É através do humano que o coro pretende ver o divino. Tirésias é o sábio que fala por enigmas, portanto, apela ao estranho, o que significa que fala poeticamente. A linguagem de Tirésias só é enigmática para quem se distanciou de seu ser, durante a busca de méritos. Ele sabe que o destino de todos os homens é o encontro com o nada, mas é justamente esse nada que mostrará novas possibilidades de existência ao homem, “Desvendar e entender”, descobrir o que há por trás das paredes do labirinto, é o grande desejo humano, mas o homem só conhecerá partes desse labirinto, as partes que escolher durante a caminhada, e essa escolha não pertence ao homem, mas ao ser, ou seja, é uma doação. É impossível ao homem alterar o traçado do labirinto, mas, à medida que ele próprio decide por onde seguir nesse “intrincado tecido”, está agindo no sentido da poiesis, do velar e desvelar do ser, na esfera da tensão entre identidade e diferença.

Os temas trágicos falam incessantemente na obra e são eles que nos revelam a essência da divindade, dos homens, da terra e do céu, ou seja, é pela interpretação da linguagem trágica da obra que se nos revela a quadratura céu – terra – mortais - imortais, que, como linguagem, provoca o diálogo poético e como alétheia nos manifesta o real como mundo. Os Sinos da Agonia revela a atualidade da tragédia grega, à medida que mostra que a pretensão do controle do destino é falta de sabedoria. Só é sábio quem aceita o duplo domínio da vida e da morte, ciclo em que gira a roda do tempo. As três personagens principais da obra adquirem sabedoria quando se encontram com seu destino e aceitam seu drama agônico. A linguagem trágica de Os Sinos da Agonia promove o desvelamento da divindade em sua própria estranheza. É assim, no âmbito da estranheza, que o divino se mostra ao homem. O divino se revela na obra pela fala poética do coro, que, por sua vez, invoca a fala poética de Tirésias – o humano que sabia escutar os deuses. No nível das personagens, observamos que não há uma verdade única, portanto, não se pode considerar os méritos humanos um fim em si mesmo, é preciso buscar neles um sentido. No nível da linguagem, o leitor, ao percorrer o labirinto da obra, recebe a revelação de seu limite, toma sua medida e mede sua dimensão.

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Ópera dos Mortos também é uma obra composta em blocos com vários focos narrativos. Já no primeiro bloco, observa-se a presença do coro, como nos parênteses do seguinte trecho: 

Um recuo no tempo pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino. (O.M., p. 2)[6]  

O título da obra já revela a questão do tempo como um círculo dinâmico, onde as estâncias passado presente e futuro se sobrepõem continuamente. A ópera dos mortos é o trabalho que eles realizaram. Tudo é determinado pelo sobrado e seus mortos. Mesmo em ruínas, é o sobrado que se mostra ao narrador e a partir dele desenrola-se a narrativa.  As voçorocas estão para a cidade assim como os relógios estão para o sobrado: “O sobrado era o túmulo, as voçorocas, as veredas sombrias”[7].

É intenção do autor alcançar a ambigüidade: “(...) obscuridade de assunto, através de expressão e elementos claros e simples, é o que busco. Obscuridade de efeito e não de forma”[8]. As voçorocas, assim como os relógios, remetem à dinâmica do tempo: são a própria presença do passado, do que já não é naquilo que é, mas não indicam futuro a não ser a morte, a destruição. Não há futuro para a cidade, assim como não há futuro para Rosalina. O passado está presente em Rosalina como memória. A lei de Rosalina, assim como a de Antígona, é a lei dos deuses - que se opõe à lei da pólis - “Não esqueço, ninguém deve esquecer”[9]. Enterrar João Capistrano significaria enterrar sua briga com a cidade, mas para Rosalina isso significaria tirar a dignidade do pai, assim como não enterrar Polinices significaria, para Antígona, tirar a dignidade do irmão. Por isso ela não cumpre o ritual que a cidade esperava, não enterra o pai e o mantém vivo como memória: 

Foi assim que Rosalina fez, todos os gestos medidos: viu o pai no caixão, o corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem ia rezar mas não rezou. Súbito se voltou para onde tinha vindo. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu. (OM, p. 29)  

Rosalina é imagem-questão da verdade. A fusão do pai com avô, respectivamente, João Capistrano, “grande e ponderada figura” (OM p.10) e Lucas Procópio, “homem de muito respeito, de muito despropósito, de muita loucura braba” (OM p.109), é a fusão entre a soprhosyne (comedimento) e a hybris (inflação psíquica). Segundo Autran Dourado, Rosalina não é dual, e sim múltipla, como o pêndulo do relógio que, quando em movimento, vai de um pólo a outro, mas não se fixa em lugar nenhum. A personagem se mostra e se oculta entre o duplo domínio do dia e da noite. José Feliciano (Juca Passarinho), o empregado da casa, esforça-se, mas não consegue entender o mistério: de dia a patroa exigente, de noite a amante que se entrega sem pudores. Por isso a comparação: 

Dona Rosalina, me perdoe a comparação, mas a senhora às vezes parece um guará (...) E como ela dissesse que não, não conhecia, é um bicho assim mudador, a gente nunca sabe direito onde é que ele está, fujão, nos ares (...) guará é assim, dona Rosalina, visonho. Quando a gente pensa ele aqui, vai ver está ali, quando a gente vai ali, ele está lá longe, arteiro, esperto, que nem se rindo da gente, na brincadeira de esconde-esconde. É um bicho danado de visonho... (OM, p.173).  

Ao que Rosalina responde: 

Eu, visonha? (...) Eu sou sempre a mesma, estou sempre quieta no meu lugar. Eu nunca mudo, José Feliciano, a minha vida até que é por demais igual. (OM p. 173)  

Rosalina pode falar da igualdade de seus dias porque sua constância reside justamente no movimento do pêndulo. José Feliciano não compreende isso porque, com seu jeito alegre e falante só percebe a aparência. O narrador o descreve como “homem simples” (OM, p.173). Simples se diz o que não tem desdobramentos, ao contrário de Rosalina, que se multiplica. Se Rosalina é pêndulo e transita entre pólos opostos, move-se nas esferas da verdade e da não-verdade, do ser e do não ser.

Rosalina em sua ambigüidade nunca se dá a conhecer por completo. Assim como a alétheia, se oculta e se revela, muda e permanece. O movimento do pêndulo constrói Rosalina, assim como constrói a narrativa. O conhecimento que se tem da personagem, da obra, da realidade nunca é total porque oriundo do não-saber. O círculo não se fecha porque a parada do pêndulo é não só a morte de Rosalina, mas o cessar do saber.

Ópera dos Mortos interpreta as questões da verdade, linguagem, memória, ser e tempo em uma perspectiva deliberadamente ambígua. A obra recusa os conceitos maniqueístas e concebe a unidade na dualidade. A linguagem barroca e trágica revela a imanência recíproca das questões abordadas em sua originalidade. Nesse sentido é um acontecer poético e cria mundo, mas não um mundo paralelo ao chamado “real”. O mundo magistralmente criado em Ópera dos Mortos é real naquilo que tem de inaugural: a paródia de elementos barrocos e trágicos interpretando originalmente as questões que inquietam a humanidade desde seus primórdios.

 

Bibliografia  

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, comentário e apêndice de
           Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
           sem data.

DOURADO, Autran, Ópera dos Mortos.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
_________________. Os Sinos da Agonia. Rio de Janeiro: Francisco
           Alves, 1991.

_________________. Uma Poética de Romance: Matéria de Carpintaria. Rio de
           Janeiro: Rocco, 2000.

CASTRO, Antônio Manuel de. “Paidéia Poética e Metafísica”. Ensaio Publicado no site:
           travessiapoetica.com.

__________________________. “Linguagem: nosso maior bem. Aula Inaugural”, 2º semestre de 2204. Ensaio Publicado no site:travessiapoetica.com.

__________________________. “Heidegger e as Questões da Arte”. Ensaio Publicado no site:
           travessiapoetica.com.

__________________________. “A poiesis: a essência do agir e do saber”. Ensaio Publicado no
           site: travessiapoetica.com.

HEIDEGGER, Martin. “Construir, habitar, pensar”. In: Ensaios e Conferências.
           Petrópolis: Vozes, 2002.

________________. “A Coisa”. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes,
           2002.________________. “’... poeticamente o homem habita...’”. In: Ensaios e
           Conferências.  Petrópolis: Vozes, 2002.

_______________. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1977.

_______________. Sobre a Essência da Verdade.

_______________. A doutrina de Platão sobre a Verdade. Tradução Antônio Jardim



[1] HEIDEGGER, A Doutrina de Platão sobre a Verdade. Trad. Antônio Jardim. Doravante, DPV.

[2] MICHELLAZO, José Carlos. Do Um como Princípio ao Dois Como Unidade: Heidegger e a construção Ontológica do Real. São Paulo, Annablume, 1999. Doravante, UPDU.  

[3]  Alétheia (Heráclito, fragmento 16). In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, Vozes. 2000 (pp. 227-249).

[4] In: Poeticamente o homem habita... In: Ensaios e Conferências. Petrópolis, Vozes. 2000. Doravante Phh.

[5] In: HESÍODO. Teogonia. Doravante, TH.

[6] Grifos nossos

[7] OM, p. 99.

[8] PRMC, p. 29

[9] OM, p. 32.

 

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