Harmonia, em O nascimento da tragédia de Nietzsche.

Karinna Alves Gulias

Bolsista de Iniciação Científica da FAPERJ

   

Introdução

 A obra O nascimento da tragédia[1] expõe o constante conflito entre dois mundos artísticos figurados pelos deuses gregos: Apolo e Dionísio. As forças artísticas apolíneas e dionisíacas irrompem diretamente da natureza sem a mediação do homem artista e se realizam imediatamente em dois mundos antagônicos, que, respectivamente, são: o mundo figural onírico da beleza, da perfeição, do mundo ilusório e imagístico dos sonhos; e o mundo da realidade inebriante oriunda do Uno-Primordial, a raiz metafísica de toda a realidade e a fonte de todos os sofrimentos, ou seja, o mundo infinito e velado (indefinido no tempo e espaço). São pulsões artísticas imediatas da natureza e que fazem do artista humano um "imitador".

O homem artista é um imitador tanto da pulsão apolínea – vista, por exemplo, nas artes plásticas – como da pulsão dionisíaca – através da música – separadas; quanto das duas pulsões integradas, operando em conjunto – dando origem a arte trágica.

O mundo invisível do Uno-Primordial é o mundo das emoções, da intensidade, inestético: figura o caos, o nada. É, pois, um movimento de produção, uma pulsão geradora da natureza, que se apresenta como a imagem, visível, das aparências do mundo, agora, estético e estetizado. O ânimo estético equivale ao estado puramente contemplativo, enquanto o inestético, ao que é primeiro, anterior, ao Uno-primordial.

Para Nietzsche, apenas quando a arte plástica, estética, apolínea e a arte musical, inestética, dionisíaca se harmonizam, interpermeando-se, há a possibilidade, para os espectadores, de aproximação às forças originais da natureza; de imediação com a vida e suas pulsões configuradoras da natureza.

A arte do visível e do invisível, do estético e do inestético, juntos, opera o estranhamento e a fusão dos opostos. O homem perde a consciência de si mesmo e passa a ver e sentir o mundo de forma antitética, onde há o tormento delicioso[2] que liga os contrários; o mundo como harmonia e desarmonia, consonância e dissonância, prazer e dor, vida e morte.

A partir da arte, o homem interpreta a vida, tornando-a suportável e agradável de ser vivida. Isso ocorre através da mediação do homem com o já configurado para, assim, entrar em contato com o movimento de configuração, das pulsões artísticas da vida, ou seja, através da estética conhecer o inestético: o mundo das emoções; intenso.

O espectador conhece o inestético, porém, apenas por aproximação. O mundo velado nunca será inteiramente atingido, porque o ouvinte já parte de uma realidade estética. Por isso, a sensação de embriaguez que o atinge ao se sentir fora de si, fora de sua individualidade, é alcançada através de uma ilusão.

Mesmo ao dar a mais perfeita ilusão da natureza em algo artificial – a arte humana trágica – a descoberta de que se trata de uma imitação aniquilaria totalmente o sentimento de comoção do ser e, assim, o que antes parecia uma alegria embriagada, se transforma em uma insatisfação que faz o ouvinte voltar ao seu estado individual.

Kant, que eu saiba o primeiro a ter começado a refletir propriamente sobre esse fenômeno, lembra que, se ouvíssemos o canto do rouxinol imitado com a máxima ilusão por um homem e se nos entregássemos com inteira comoção à impressão por ele provocada, todo o nosso prazer desapareceria com a destruição dessa ilusão[3].

A todo momento na obra, estes dois mundos artísticos são explicados a partir de conceitos musicais como ritmo, melodia, som e harmonia, sendo que esta é composta por dois aspectos: dissonância e consonância. Em teoria musical, a dissonância, que, para Nietzsche, explicita o movimento infinito do caos dionisíaco, é o intervalo que dá idéia de continuidade ou movimento, enquanto que a consonância, a consolidação do ser como um indivíduo sólido e finito (principium individuationes) no mundo aparente apolíneo, é o intervalo que dá idéia de repouso.

Na teoria fundamental da música, a dissonância pede sempre para ser resolvida por uma consonância – o movimento necessita de uma resolução em repouso. O mesmo acontece em O nascimento da tragédia com as forças da natureza simbolizadas na arte grega pelos deuses Apolo e Dioniso, também representadas com as noções de querer ou vontade. A vontade, que simboliza todo o essencial e inaudito na esfera da natureza, é a emoção desmesurada caracterizada pelo movimento constante da confusão entre o arqui-prazer* e a dor. O ser não pode permanecer por muito tempo indeterminado[4], precisando de uma resolução – daí resulta o movimento do querer, provindo desse ser – que o fragmenta, transformando o que antes era um ser único infinito e indeterminado em agora múltiplos seres finitos e individuais. A partir desse despedaçamento do ser uno-primordial, essas formas individuais, para se libertarem da dor carregada da experiência anterior como essência do uno-primordial, criam um novo mundo de sonhos e estético, solidificando essas novas individualidades.

De acordo com Nietzsche em O nascimento da tragédia, harmonia é a ingenuidade[5] – primeiramente apresentada por Schiller com a palavra naïf (ingênuo) –, o prazer do homem apolíneo na convivência com a natureza; o anseio pela continuação da vida, da existência empírica, sentindo-se unido a ela através da criação de um mundo agradável e belo.

Nietzsche também descreve a música dionisíaca como o mundo absolutamente incomparável da harmonia[6] e a comovedora violência do som[7]. A harmonia aqui, vista como dimensão dionisíaca, contrapõe-se à harmonia ingênua na medida em que está explicitada como algo violento e intenso, não agradável: Então crescem outras forças simbólicas, as da música, em súbita impetuosidade, na rítmica, na dinâmica e na harmonia[8]. A harmonia é associada à frenética movimentação, pela dissonância, de ritmos e sons para representar o caos, a harmonia invisível do mundo primordial onde só existe lugar para a intensidade, para a emoção.

Já a música apolínea é caracterizada pela beleza dos sons insinuados e pela batida ondulante do ritmo[9], que suscita a suavidade, a ordem e, logo, a harmonia, anteriormente citada, do naïf, que se relaciona com o repouso e a individualidade da consonância de um mundo de sonho e ilusão, do mundo aparente, ou seja, a harmonia visível. A resolução própria de uma natureza aparente.

 

A desmedida na harmonia 

Na música dionisíaca, a violência do som e o seu transbordamento em harmonia melódica, numa união mística das consonâncias e dissonâncias, levam o corpo dançante do ser ao êxtase do ritmo musical, o que o eleva aos ares, como se estivesse flutuando por entre todos os outros corpos ou entes da natureza; há o desprendimento do indivíduo de si mesmo e o desejo, deste, de se exprimir por vias simbólicas.

A harmonia como interação e interpenetração de forças ou pulsões opostas da natureza, poderia ser caracterizada por momentos ou ciclos de oscilação entre prazer e dor. Nessas oscilações tem-se um momento apenas de dor, isto é, gerando uma natureza desmedida e desarmônica, ou melhor, dissonante. Contrapondo a este, e seguinte a este momento, tem-se um outro momento apenas de prazer, gerando uma natureza ordenada, harmônica, no sentido estético da palavra, ou seja, consonante. Isto significa que a harmonia, em seu sentido mais trágico, seria sempre uma harmonia melódica, já que não seria possível fundir em uma unidade duas pulsões inteiramente opostas e que estão sempre em constante tensão entre elas. A união entre elas é num sentido místico de unidade.

Numa arte humana que tenta imitar completamente a harmonia trágica natural, é necessário que se integrem ambas dimensões dionisíaca e apolínea num nível de harmonia tão elevado, que, aos olhos e ouvidos de um espectador de visão apenas apolínea e ordenada, seria arte totalmente desarmônica e destrutiva, ou então, levado por uma visão enganadoramente ingênua e moralmente sublime, possa entendê-la como algo sereno, num sentido de acomodação e tranqüilo deleite, e por assim ser, algo com um sentido estético unicamente de fonte moral sobre os espectadores.

 

A música e a estética do fenômeno  

Temos a harmonia e a melodia como fontes do Uno-primordial, essência de toda e qualquer música: não têm forma, dimensão ou tempo; passam a ser reconhecidas como imagens quando aspectos e modos são introduzidos nelas, para que se possa construir a música como um fenômeno estético.

A cadência, a dinâmica e o ritmo, que transformam a melodia e a harmonia dionisíacas em um conjunto aparente de símiles e imagens, são aspectos plásticos no interior da música[10], são apolíneos, porque neles estão inseridos tempo e espaço. São estes aspectos plásticos que distribuem a sonoridade no tempo e espaço[11].

 

A música frente à linguagem verbal

 

Embora Nietzsche mencione a harmonia relacionada à música grega inúmeras vezes, essa harmonia não seria a mesma no sentido de hoje: como acordes harmônicos. Os acordes ainda não existiam, no entanto, a palavra “harmonia” fora inicialmente introduzida por Pitágoras e Heráclito já com o conceito de junção e fusão de todas as coisas, originalmente relacionado ao conceito de cosmos. Só depois teve seu sentido musical estabelecido, visto pela primeira vez com Píndaro. A música grega era melódica e modal, e harmonia caracterizava a melodia, a afinação (mais tarde classificada em tonalidades), a escala ou a oitava.

Até as últimas décadas do século V A.C., a música não existia sem a poesia, a palavra, a acompanhando. Aquela não existia como estética única, como atividade independente. Enquanto, para Platão e, conseqüentemente, para a tradição grega, a melodia se subordinava à palavra (a hegemonia era atribuída à palavra), para Nietzsche, ao contrário, a palavra se subordina à música, porque a música é metafisicamente anterior à palavra – já que é a cópia do Uno-primordial – portanto, tendo sobre ela primazia.

Por esse motivo se dá tanta importância à Canção Popular em O nascimento da tragédia, pois em si constitui a união da palavra e da música, como a atividade que, por ser popular, se encarrega de remediar o homem através da renúncia da individualidade e da redenção à sensação de embriaguez a que a música nos leva.

Na canção popular, teríamos a poesia lírica: o poeta lírico é antes de tudo um compositor[12], que renuncia à sua subjetividade e entra em sintonia com o mundo primordial, e por ser o único que conhece a essência da arte, é o único capaz de exprimir toda dor originária na música, ao mesmo tempo que o sujeito real desse poeta se sente extasiado e alegre por sua redenção na aparência. Ele, então, passa a ser sujeito e objeto ao mesmo tempo.

Como dito anteriormente, a melodia é primeira a qualquer coisa, universal, podendo suportar múltiplas objetivações. Com isso, assinalamos o fato da palavra ser subordinada à melodia e, desse modo, esta é a mais importante e necessária na apreciação ingênua do povo[13]. É ela que está intimamente conectada à memória, ou seja, pela melodia é que se torna uma poesia fácil de ser decorada, principalmente pela sua forma estrófica e por seu estribilhos.

Incessantemente geradora, criadora, a melodia descarrega flashes de imagens, que, em contínuas mudanças, cria um mundo irregular e estranho a qualquer aparência épica, a qual flui serenamente. Por esse motivo, da visão do epos, a lírica deveria ser condenada.

Nietzsche fala desses flashes de imagens, gerados pela música, como um processo de “descarga”[14] da música, onde, na canção estrófica popular, a linguagem verbal é levada a um estado de exaltação a partir do movimento de mimetização da melodia. E, assim, o compositor é nomeado o poeta do som: criador de imagens ou representações similiformes a partir da melodia primogênia da música.

 


[1] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo; tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

[2] WISNIK, José Miguel. “A Paixão dionisíaca de Tristão e Isolda”. In: Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[3] SCHILLER, F. Poesia Ingênua e Sentimental. Tradução, Apresentação e Notas: Márcio Suzuki. Biblioteca Pólen. Editora Iluminuras, 1991, p. 44. Nota do autor.

* A diferença entre o prazer e o arqui-prazer está no fato de que: este está intimamente ligado à vontade primordial, à alegria desmesurada e ilimitada que só é sentida pelo ser humano quando se experimenta o estado de embriaguez a que as forças dionisíacas podem levar; aquele, ao contrário, relaciona-se ao prazer que se sente nas formas belas do mundo estético, isto é, durante o estado de serenidade em que o ser humano louva à vida enquanto experiência aparente.

[4] DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a Música/ Rosa Maria Dias. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994. pg 28

[5] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo; tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Cap. 3.

[6] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo; tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Cap. 2.

[7] Idem

[8] Idem

[9] Idem

[10] DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a Música/ Rosa Maria Dias. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994.

[11] Idem

[12] DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a Música/ Rosa Maria Dias. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994.

[13] Idem

[14] Idem

 

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