A CRIAÇÃO ARTÍSTICA, SOB A ÓTICA DE DOIS CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

 

José Mauricio da Silva

(mestrando em Poética, Ciência da Literatura, UFRJ)

 

 

 

Com certeza pode-se escrever sem que se questione sobre porque se escreve. Acaso um escritor, que observe sua pena traçando as letras, tem o direito de suspendê-la e dizer-lhe: para! Que sabes sobre tu mesma ? Com que objetivo avanças ? Por que não vês que tua tinta não deixa rastros, que prossegues adiante, porém no vazio, que se não encontras obstáculos é porque nunca deixaste o teu ponto de partida ? Ainda assim, escreves : escreves sem cessar, desencobrindo para mim o que eu te dito e revelando-me o que sei; ao te lerem,  os outros te enriquecem com o que tomam de ti e te dão aquilo que tu lhes ensinas. Agora realizaste o que não realizaste, o que não escreveste ecrito está : estás condenada ao que não poderá ser apagado.”

 

Maurice Blanchot

  (De Kafka à Kafka)

 

RESUMO

 

            Uma reflexão sobre a visão, na obra de Machado de Assis, do processo criativo e sua associação com o páthos da melancolia. São apreciados dois contos: “Cantiga de esponsais” e “O cônego ou metafísica do estilo

            O tema da criação artística é recorrente  ao longo da obra machadiana. Escolhemos como ponto de partida os dois textos acima  pelo contraste que eles nos apresentamapesar de O Cônego não figurar entre os contos mais prestigiados do autor. Há entre eles uma diferença de tom, de estilo e mesmo, pelo menos aparentemente, de entendimento do processo criativo, que nos faz pensar o quanto Machado, e não somente Brás Cubas, escamoteia, na sua escritura, as suas idéias, fazendo uso da  pena da galhofa” e escrevendo com a “tinta da melancolia”.

            Conforme já sinalizado no que está dito acima, cometeremos neste trabalho um pecadilho, pelo menos para alguns teóricos mais ortodoxos, a saber : não faremos maiores distinções entre os narradores, as personagens e o próprio autor. Esse crime se justifica, ou pelo menos tenta se justificar, pelo fato de estarmos mais interessados em buscar idéias que possam delinear uma visão do escritor sobre o procedimento “poiético” e, quem sabe, especular sobre uma possível “Filosofia machadiana”.

O CÕNEGO ou A metafísica do estilo

 

Mon ami, faisons toujours des contes ....

Les temps se passe, et le conte de la vie

s’achève, sans qu’on s’en aperçoive.”[1]

Diderot

 

 

            Neste conto,  Machado nos fala de um “idílio psíquico” entre um substantivo e um adjetivo. Tendo ao fundo um diálogo amoroso, composto com frases retiradas do “Cântico dos cânticos”, acompanhamos o trajeto de um substantivo atravessando um “cérebro eclesiástico”, em busca do adjetivo perfeito para acompanhá-lo. O cérebro em questão é o do Cônego Matias,  pregador afamado, que escrevia um sermão encomendado para uma grande festa a realizar-se na cidade. 

 

A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil cousas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio”.

 

Evitando a interpretação usual que considera esse conto como metalingüístico, preferimos vê-lo como “metapoiético”, pois acreditamos existir na intencionalidade do texto a descrição de um processo criativo.

 

Ao mostrar o desagrado de Matias com o epíteto de "um dos ornamentos do clero brasileiro" a ele atribuído em jornal da época, o narrador afasta a possibilidade de estarmos lidando com o artífice de meras peças de retórica, imagem reforçada pelas referências ao ‘entulho literário’ –  “... camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, noções modernas ...” com que nos deparamos na viagem de “Sílvio”  o nome do substantivo  em busca da sua amada “Sílvia   o nome do adjetivo buscado, ao qual o autor atribui o sexo feminino. Todo esse ‘entulho’ existente no cérebro do cônego, é desprezado por “Sílvio”, pois este “não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede um certo amor nomeado e predestinado.”

 

            A “inspiração com os olhos no céu”, i.e., o transcendente, a imaginação livre, o inconsciente, e a ”meditação com os olhos no chão”, remetendo ao imanente, ao raciocínio e à consciência,  aludem aos dois planos que se conciliam no processo criativo do cônego. Este, porém, quando se depara com a impossibilidade de encontrar a forma perfeita desejada, não entra em luta consigo mesmo, como veremos mestre Romão fazer em “Cantiga de esponsais”. Ele simplesmente se entrega a outros afazeres e se abre para a possibilidade de ser tomado por aquilo que busca :

“(...) se levanta, vai à janela, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o resto. (...) o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o raio vem, e pára diante da janela: ‘Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e pai.’ Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso daquele galé do espírito. (...) Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia.”

 

 

O pregador  esquece-se da contrariedade e do “idílio” entre Sílvio e Sílvia, – oportuno lembrar que a etimologia de idílio nos remete ao grego eidúllion, diminutivo de eîdos (forma, aspecto) era usado para designar uma ‘pequena poesia’  eles, agora, vagam livres em outras camadas de sua mente:

 

“Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam eles às profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. E eles vão rasgando, levados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os obstáculos e por cima de todos os abismos. Também os desgostos hão de vir. Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego, cá estão, à laia de manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o que quer que seja da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a rapidez do amor e do desejo.”

 

Esse panorama do conteúdo mental do cônego nos revela uma pessoa com as experiências do cotidiano de dor e alegrias comuns a todo ser humano. E, também, o fato de estar ele  preparado intelectualmente para o mister a que se propõe. Mas não somente a erudição e a técnica são os ingredientes da sua criação :

 

“(...) o cônego que se sentou agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do trabalho, e relê o que escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a ao papel, a ver que adjetivo há de anexar ao substantivo.     Justamente agora é que os dous cobiçosos estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios deles, tocados de febre. (...) Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência. (...) Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena cheia de comoção e respeito completa o substantivo com o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo, se ele coligir os seus escritos, o que não se sabe.

 

e assim Machado encerra o conto. O idílio de Sílvio e Sílvia sugere a genealogia de um nome, vale dizer, é uma busca radical na linguagem e da linguagem em seu estado mais original e revelador. Olhemos agora o que ocorre com mestre Romão.                                     

 

 

CANTIGA DE ESPONSAIS

 

(...) os verdadeiros poetas, os criadores das antigas epopéias, não compuseram seus belos poemas como técnicos, porém como inspirados e possuídos, o mesmo acontecendo com os poetas líricos. Iguais nesse particular aos coribantes, que só dançam quando estão fora do juízo (...)”

Platão (Íon)

 

            Este é um dos contos mais conhecidos de Machado de Assis. Como toda obra literária, digna de assim ser nomeada, nos oferece várias interpretações, mas, a que aqui vamos privilegiar diz respeito às razões que impedem mestre Romão de realizar o seu desejo de criação, em outras palavras, como ele lida com os obstáculos, com a “dor” de ser homem, finito, limitado.

 

“Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.”

 

            O contraste entre “ar circunspecto, olhos no chão, riso triste” e “o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro”  já nos aponta para o dilaceramento interior em que Romão vivia mergulhado :

“A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jocundas. Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...

(...) Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão. Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia.”

 

A teimosia do músico, o cegava para o fato de que o “mundo de harmonias novas e originais”  que buscava só poderia brotar desde si mesmo, e que isso era totalmente incompatível com a vida sombria e a auto-comiseração alimentadas por ele. Por não saber lidar com a crise em que se via imerso, com a incompatibilidade entre o que desejava ser e o que podia ser, mestre Romão tornava-se cada vez mais melancólico e os fugazes momentos de comunhão com a música  – durante a regência da missa –  não bastavam para que se  apercebe-se de qual era o caminho que lhe estava reservado.

O encerramento do conto é de uma sublime ironia.  O malogrado compositor, ao sentir a aproximação da morte e considerando a vacuidade de sua ex_istência, in_siste, porém a sua in_sistência é mais uma vez realizada de modo equivocado:

 

  abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado. Releu essas notas arrancadas a custo e não concluídas. E então teve uma idéia singular: - rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra. Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...”

           

 

            O mestre engasga em um determinado “Lá” ... e  Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente. (...) Impossível! Nenhuma inspiração.”. Neste instante entram em cena “dois casadinhos de oito dias”, Romão os viu através da janela :

“(...) com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo. Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe supria a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

        Lá... lá... lá...

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça, embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou."

[Fim]

 

            Esse fim fulminante e cruel que Machado dá  ao personagem e ao conto, condensa todo o desequilíbrio entre a vida e a morte, quando não são assumidas de um modo ‘autêntico”.

Percurso semelhante é o do músico Pestana, protagonista do conto “Um homem célebre”. Este não se nega a aceitar o que a inspiração lhe traz, porém, vive insatisfeito com as popularíssimas polcas que compõe. Seu secreto desejo de dar à luz uma peça clássica, nunca alcançado, faz dele um homem ” alucinado, mortificado, peteca entre a ambição e a vocação“. Após a composição de mais uma polca, que já estava sendo tocada e cantarolada por toda a cidade, o músico se deixa tomar pela revolta :

“Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. (...)

— As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.

Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, (...)”

 

Machado reserva-lhe, também, um fim melancólico; após descrever uma negociação do músico com seu editor, nos conta: :

Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

 

            Nesse conto, o escritor parece ecoar as palavras de Sócrates a Íon, sobre os poetas :

(...) é a própria divindade que fala e que se faz ouvir através deles. A melhor prova a esse respeito é Tínico de Cálcis, que nunca fez um poema digno de ser recordado, exceto o péan que todos cantam, talvez a mais bela de todos as poesias, um verdadeiro achado das Musas (...) 

 

 

REFLEXÕES FINAIS

 

            O humor que anima os protagonistas através dos contos está em perfeita consonância com a atmosfera que eles transmitem para o leitor. 

Em A cantiga ela é pesada, soturna, deixa no ar, aparentemente, uma mensagem de negação, pessimista. Expõe uma vida de derrota, de frustração, absolutamente destituída de vigor, mostra uma incapacidade de se dar resposta à uma crise que afinal é de todo o homem: dar um significado a sua ex_istência. Romão diante da dor, da angústia, de não criar o ‘seu’ mundo, cala-se, “ (...) desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar. Tudo isso indiferente e calado.” , tudo em Romão indica decadência, incapacidade, e submissão conformista. Não cabe aqui especular por quais motivos ele cala (a dupla de contos também se presta a profundas especulações Psi ), mas o seu calar equivale à des_istência da vida. É o calar da resignação aniquiladora, pois o seu silêncio não promove a reflexão, nem a gestação de uma busca por “outra” fala possível.

Em O cônego, mudamos das trevas para a luz, “(...) o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo.”. O orador, diante da “crise” criadora, do vazio, da sua carência, também se cala. Trata-se, porém, de outro calar. Um calar que é uma auto-entrega que  lhe permite integrar-se à sua própria angústia, em lugar de revolta muda e resignada, há a aceitação do desafio, que assim encarado se vê destituído de sua força obstruidora e termina por resolver-se. A dor aqui exerce seu papel de agenciadora da poiética.

 

Em nenhum dos contos encontramos marcas que nos indiquem a transcendência dos personagens como protótipos do homem, eles estão individualizados, são singularidades. Ficamos, assim, autorizados a supor que, para o autor,  os comportamentos retratados são possibilidades disponíveis a todos e cabe a cada um de nós a responsabilidade da escolha.

 

Ousamos, ainda, afirmar ( nos permitindo ler na obra algo sobre o autor ) que, se biograficamente Machado está muito mais próximo de Matias do que de Romão, o modo de proceder do Cônego é aquele que se mostraria mais apropriado, segundo uma “Filosofia” do Bruxo. Esta nos aponta para a inevitabilidade da dor-homem, da melancolia do cotidiano, não obstante, revela haver diferentes caminhos a seguir diante da constatação delas, talvez, alguns sejam melhores e outros piores. O gozo e o ônus dessa travessia é o que faz de nós seres humanos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

           

1.      BARBIERI, Ivo. O cônego ou a invenção da linguagem. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 133/134. Abr. Set. 1998, p. 35-48.

2.      LUCCHESI, Ivo.  Crise e escritura: uma leitura de Clarice Lispector e Vergílio Ferreira. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

3.      _____________.  Os sentidos da dor e duas traições: Rousseau e Machado. Estudo monográfico para o curso de doutoramento em Ciência da Literatura da UFRJ: 1999.

4.      PLATÃO. Íon. Tradução de Carlos Alberto Nunes.

5.      Notas de aula do curso  Poesia e Filosofia: o Íon, de Platão. Ministrado pelo prof. Alberto Pucheu. 1º sem. 2005 UFRJ



[1] Esta epígrafe aparece na “ADVERTÊNCIA” que encabeça a primeira edição de  Várias histórias”, coletânea de contos da que fazem parte “O Cônego” e “Um homem célebre”. Arriscamos uma tradução livre: “ Meu amigo, escrevamos contos sem cessar ... O tempo passa, e o conto da vida se acaba, sem nós nos darmos conta.”

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