MANUTENÇÃO DAS TRADIÇÕES OU QUEBRA DE PARADIGMAS?
A CRIAÇÃO LITERÁRIA SOB A ÓTICA FEMININA NA OBRA DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA.
Viviane Arena Figueiredo
(Mestra em Literatura Brasileira /UFRJ)
O trabalho em questão apresenta uma ampla visão da vida e obra da escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida, procurando considerar sua literatura através da tradição cultural presente no final do século XIX. Para tal, torna-se relevante analisar a cultura feminina da época, de modo que se possa verificar as influências das tradições familiares dentro dos romances de Júlia Lopes. Por outro lado, cabe apontarmos em sua obra, um ponto chave de sua criação literária: a quebra de certos paradigmas inerentes ao comportamento feminino do século XIX, um assunto que vem merecendo destaque em muitos dos estudos recentes sobre a autora.
TRADIÇÃO – FAMILIA – FEMINISMO
Nascida em 1862, a escritora Júlia Lopes de Almeida reveste-se de coragem para transpassar os paradigmas limitadores da época em que viveu, de modo a abordar ao longo de sua obra uma série de temas polêmicos, tendo como plano de fundo o ambiente familiar do final do século XIX e as diversas relações envolvendo questões pertinentes ao comportamento dos gêneros dentro da sociedade da época.
Um dos temas com maior reincidência dentro de sua obra diz respeito a problemática do adultério, merecendo atenção, nesse caso, a infidelidade feminina, assunto de grande tabu dentro dos preceitos familiares do século XIX.
Apesar de lidar polemicamente com a questão do adultério feminino, pode-se intuir a surpresa da sociedade em constatar que uma mulher casada e mãe de família, enquanto escritora, tocou num ponto tão delicado para a época em questão. Por outro lado, o sucesso de seu romance deve-se ao fato de não restringir a sua narração somente ao problema da esposa adúltera, mas, principalmente, por apontar um aspecto incômodo na estrutura familiar: o casamento por conveniência.
O respeito enquanto ficcionista reconhecida e consagrada no meio literário garantiu a Júlia Lopes um certo respaldo para que pudesse levantar o debate de temas considerados tabus para a sociedade da época. Boa parte da criatividade impressa em sua atividade literária vai além da abordagem dos temas familiares. Na verdade, é a imagem feminina que figura absoluta nas narrativas da autora.
O encantamento pela figura emblemática da mulher parece nascer de sua própria condição na sociedade fluminense da época. Apesar de renomada escritora, Júlia Lopes soube conciliar perfeitamente os papéis de esposa, dona-de-casa e mãe com seu trabalho de ficcionista. Segundo Norma Telles na apresentação da reedição do romance A falência (2003), Júlia Lopes de Almeida “Conseguiu viver de sua pena, um feito para uma época em que à mulher não era permitido escrever nem expressar suas opiniões” (TELLES In: ALMEIDA, 2003).
Sua principal influência partiu de dentro de seu próprio ambiente familiar. O clima intelectual propício foi uma das condições para o desenvolvimento de seu talento literário. Seu pai, além de exercer a profissão de médico, foi o fundador do hoje extinto Colégio Humanidades, com sede na Rua do Lavradio no Rio de Janeiro; já a mãe de Júlia Lopes foi musicista por profissão. Além disso, Júlia escreveu alguns contos infantis em colaboração com sua irmã, a também escritora Adelina Lopes Vieira. Após seu casamento com o escritor português Filinto de Almeida, a carreira de D. Júlia, como era carinhosamente conhecida, torna-se consolidada, principalmente pela sua colaboração em jornais de renome, tais quais O jornal do comércio , A semana , O país e O estado de São Paulo .
Em tais jornais Júlia publicou inicialmente romances em formato de folhetim; um deles é Cruel Amor , publicado no Jornal do Comércio em 1908 e editado pela editora Francisco Alves em 1911. Como já citado anteriormente, tal romance aborda o tema da infidelidade feminina.
Nesse romance, em especial, a romancista coloca em questão problemas tais quais o ciúme, a diferença racial, a ambição como elementos de desequilíbrio nas relações pessoais e amorosas. Além disso, Júlia, como na maioria de seus romances, chama atenção para o eterno desejo de superioridade presente na personalidade masculina. Ao longo da narrativa, nos deparamos com dois personagens, Rui e Flaviano, que se aproximam em características pessoais, justamente por cultivarem um sentimento de posse por suas noivas.
É a partir desse ciúme obsessivo de ambos os personagens masculinos, que Júlia começa a traçar o sentimento que impulsionará as personagens femininas, Maria Adelaide e Ada, rumo à infidelidade.
Nesse romance, em especial, nos deparamos com personagens femininas que começam a apresentar uma certa audácia quando o assunto em questão torna-se ligado a um sentimento amoroso. Percebe-se, então, que Júlia começa a denunciar em seu projeto literário os males provocados por casamentos por conveniência; as personagens de Júlia renunciam a uma reputação incontestável, a fim de poderem viver livremente seus amores e suas ilusões.
Em A Silverinha - crônica de um verão (1914), novamente a autora esbarra no tema da infidelidade feminina. Pode-se destacar nessa narrativa a personagem Xaviera, mulher fina e elegante, que descobre em sua personalidade sedutora um meio de escapar de sua medíocre vida de dona-de-casa. Mais uma vez evidencia-se a problemática do casamento sem amor, considerando que Xaviera vira-se forçada a contrair núpcias com um rico fabricante de conservas e licores. Boa parte de seu comportamento volúvel reside na própria vontade em sentir-se admirada e observada, um ímã dos galanteios masculinos.
Ainda no mesmo romance, Júlia levemente insinua um possível interesse de Guiomar, a Silverinha, pelo sedutor Padre francês Pierre, o que pode ser confirmado em evidências do próprio texto: “Ela chegava a sonhar com o padre Pierre e ouvia em tudo o som de sua voz” (ALMEIDA, 1914, p. 297). A autora sutilmente pretende deixar subentendido uma possível correspondência de sentimento entre o religioso e Guiomar, porém nunca mencionando uma concretização de tal interesse.
Em A Silverinha os conflitos são pacificados em nome da santa ordem familiar. Xaviera redime-se de seus pecados, arrependendo-se de suas aventuras amorosas, decidindo enfim, voltar-se única e exclusivamente para o ambiente familiar. Finalmente, Xaviera assume seu papel de mãe e esposa, aceitando o destino de mulher imposto socialmente.
É justamente nesse ponto que se pode ter uma idéia da aceitação da obra de Júlia pela sociedade; se por um lado, a autora nos denuncia problemas comuns, presentes no dia-a-dia familiar, por outro, Júlia, tenta conciliar tais dificuldades, ao finalizar seus textos procurando consagrar um ideal de família, em que todos os seus membros se encontrem em nome de uma união selada pela paz.
Mais tarde, em crônicas publicadas no jornal O País (1907 – 1909), Júlia passa a explorar com mais freqüência tal tema, só que dessa vez, enfocando a infidelidade masculina. Dessas crônicas rendeu o livro Eles e Elas , publicado em 1910 pela editora Francisco Alves do Rio de Janeiro.
Logo na crônica de abertura, intitulada “Os vícios deles”, é destacado o comentário da esposa em relação às infidelidades do marido.
“Meu marido não pode resistir ao vício do amor. As mulheres fascinam-o, como os jacarés às crianças. Ele vive alheado a mim, no deleito de suas paixões de aluguel ou de empréstimo, é, o que lhe posso afiançar” (ALMEIDA, 1910, p. 14).
Mais que um simples relato das infidelidades masculinas, encontra-se nessa crônica o desabafo da esposa cansada de sempre relevar os deslizes do marido, como que condicionada a aceitá-los como fato normal da natureza masculina. Percebe-se assim, a mágoa da mulher, que castrada em seus sentimentos e opiniões, não tem outro destino a não ser aceitar o comportamento volúvel de seu marido.
“...isso me ocasiona as mais dolorosas revoltas de amor próprio e me dá certeza de que, embora o vício das mulheres seja entre todos os vícios o de mais curta duração na vida de um homem, é também o que uma esposa menos perdoa” (ALMEIDA, 1910, p. 14).
Na verdade, esse era o comportamento feminino esperado pela sociedade da época. A mulher, longe de exigir o seu direito à fidelidade do marido, deveria manter-se calada, sofrendo solitariamente a sua desilusão. Não deveria pois, importuná-lo, nem descuidar da manutenção do equilíbrio e da paz de seu lar.
Porém, o simples fato de denunciar o desgosto feminino através da verbalização de seu sentimento, já rende à Júlia um grande marco na composição de sua crônica. Ela acaba por mostrar que, apesar de usualmente serem obrigadas a aceitar esse tipo de comportamento por parte de seu cônjuge, elas, aos poucos, começam a demonstrar o seu descontentamento, mas, não mais caladas.
Esse pensamento torna-se, então, uma nova maneira de pensar a vivência de um relacionamento, o respeito individual e a diferença entre os sexos. A personagem de Júlia, ao questionar os deslizes do marido, questiona seus próprios direitos enquanto esposa e mulher.
Ainda em Eles e elas , podem-se citar as crônicas “É esquisito”, “Cena de comédia”, “Se eu fosse outra”, “A curiosidade e a razão”, “Não sei porque será” e “Já desanimei”. As duas últimas crônicas tratam de infidelidades femininas, sendo que em “Já desanimei”, as pretensões da esposa em trair o marido é freada pela certeza do comportamento fiel de seu marido: “Não posso enganar um homem que não me engana [...] se ele amasse outra mulher, eu ficaria livre para amar também outro homem” (1910, p. 136). Na verdade, Júlia deixa implícito que a falta de coragem da personagem em enganar o marido está relacionada muito mais à ausência de provas da infidelidade do esposo que pelo remorso em trair um homem sincero, não tendo assim motivos para justificar seu deslize caso fosse descoberta em adultério: “A consciência dos outros nunca perdoa as mulheres” (ALMEIDA, 1910, p. 136).
É com o desfecho da crônica de Júlia Lopes que pode ser percebido o peso da opinião da sociedade sobre a infidelidade feminina. Esta, segundo o advogado Magalhães Noronha “se resolve freqüentemente pela solução bárbara do homicídio ou pelo desquite litigioso sempre com alarde” (NORONHA apud KOSOVSKI, 1983, p. 34). De certa maneira, esse desenlace exagerado era exatamente o que a sociedade esperava como punição a uma mulher adultera, considerando que esta, em sua infidelidade, infringiu as leis reguladoras do casamento e denegriu a honra do marido.
Apesar do pensamento comum que difundia a segregação entre os sexos através de uma série de atribuições ligadas aos papéis sociais, podem ser evidenciadas na obra de Júlia certas críticas sutis através de trechos que denunciam a submissão feminina. Ao analisar seus romances ou crônicas, Júlia procura colocar em ampla evidência a presença dos papéis distintos a cada gênero, principalmente dentro da família nuclear burguesa, que, propositalmente, ao constituir-se em suas tramas como um ambiente conservador, acaba tomando o vulto de desmascarador dos preconceitos exercidos dentro do espaço familiar.
Alguns estudiosos, no entanto, declaram que a escritora acaba por construir sua obra dentro das exigências permitidas na época. Se por um lado, ela denuncia diferenças e questiona comportamentos e atitudes, por outro, Júlia, ainda mantém em alguns de seus escritos, um certo pensamento conservador, normal para a época em questão.
Acredita-se que Júlia pode ter usado desse artifício como um subterfúgio para que sua obra recebesse da sociedade o merecido respeito de que lhe era devido. Para uma mulher de alta sociedade, considerada de boa família e casada com um escritor de renome, Júlia não poderia se arriscar, radicalizando pensamentos e opiniões dentro de sua obra, de modo que também viesse a ser segregada, por manter um comportamento insatisfatório na condição de escritora. Por esse motivo, vemos a denúncia, mas também, diversas vezes, vemos o conselho, principalmente no que concerne ao bom andamento da família.
Dentro desse parâmetro, convém chamar a atenção para uma obra, em especial – O livro das noivas – destinado à educação das jovens da época. Este livro revela nuances de matiz conservador, no qual à mulher cabia o cuidado com o lar, marido e filhos. A boa execução de sua função, enquanto rainha do lar, garantia a manutenção do casamento e, por conseguinte, a união familiar. Para tal, é preciso que a mulher aceite seu papel subordinado junto ao homem: “É nosso esposo quem nos conduz pelo braço; é firmado no seu nome, na sua honra, na sua dignidade que o nosso espírito descansa e que nos vemos cercada de respeito” (ALMEIDA, 1896, p. 17).
O grande objetivo da mulher era alcançar a verdadeira proteção através do casamento. Para muitas, tornar-se esposa constituía um destino inevitável, reservando à mulher um certo status perante àquelas que permaneciam solteiras: “O título de esposa era um rótulo de honra. Dizia ao mundo em alto e bom tom que alguém tinha cumprido o seu destino natural” (YALOM, 2002, p. 13).
Em muitos romances de Júlia, percebe-se a importância do casamento para a vida da mulher, com o principal fim de obter uma proteção segura para o resto de seus dias. Logo no primeiro romance da autora, Memórias de Marta (1889), a mãe da protagonista discorre sobre o alívio que teria ao ver a filha casada com um homem honesto e de respeito, pois “a reputação da mulher é essencialmente melindrosa” (ALMEIDA, 1889, p. 142).
O tema do casamento é apenas uma das formas encontradas pela autora para apresentar as diferenças que caracterizam os sexos. Em termos gerais, a autora nos apresenta através de suas personagens certas posturas que determinam os espaços reservados ao sexo masculino e ao feminino.
Em A família Medeiros , Júlia Lopes denuncia o verdadeiro papel da mulher em seu meio, através da carta de despedida de Madame Gruber, preceptora da personagem Eva.
“Não se deixe prender, como tantas outras mulheres inteligentes do nosso tempo e da sua instrução, pelos assuntos guindados das teses sociais; deixe tais argumentos à competência e à prática dos homens; o seu concurso não iria, com certeza, abalar as leis estabelecidas e, ainda por cima, comprometeria a sua vida intima. Uma mulher com pretensões dogmáticas neste meio é, aos olhos dos outros, uma ridícula, e aos seus próprios olhos, uma infeliz” (ALMEIDA, 1919, p. 86).
Como pode ser observado, a mulher deve conformar-se com seu papel social a fim de preservar o seu valor perante a sociedade. Neste caso, ser a precursora de idéias avançadas e contestadoras poderia ser um problema para a reputação da mulher da época. O ideal seria seguir o que a sociedade esperava da mulher: acomodar-se no papel de rainha do lar, colocando tal pretensão “à frente de seus interesses individuais” (SAMARA, 1989, p. 94).
Discurso idêntico é proferido pela personagem Jordão em A Silverinha – crônica de um verão , ressaltando que uma senhora casada não teria o direito de se apresentar em público em oposição às idéias do marido (ALMEIDA, 1914, p. 135). Tem-se, neste romance, a visão religiosa em relação à família representada através da figura do padre Pierre; a personagem reduplica os valores patriarcais da época, alegando que o lugar de uma senhora casada era ao lado do marido, “procurando ser esposa dedicada e mãe fecunda” (ALMEIDA, 1914, p. 154).
Com exceção de O livro das noivas , podemos perceber em dos romances citados anteriormente, A família Medeiros , que a personagem de Madame Gruber consegue perceber o esquema social que designa à mulher um plano secundário, dentro do espaço social em que faz parte. Através das palavras da personagem Gruber, Júlia desvenda às mulheres com idéias avançadas um dilema: ser precursora de novos pensamentos, sendo considerada uma mulher rebelde e leviana ou, ceder à vontade pública amplamente aceita pela sociedade, tornando-se conformada ao exercer seu destino.
Outro ponto extremamente relevante nas obras de Júlia diz respeito à educação das infantes femininas. Considerando a época em que a autora construiu sua produção literária, a educação das moças voltava-se para os afazeres domésticos. Quanto à educação escolar, por muito tempo a mulher se viu obrigada a viver como espectadora da instrução fornecida aos rapazes.
Somente em 1882, é assentado um Plano geral de organização de ensino com o objetivo de difundir a importância da escolarização das moças. A educação fornecida às meninas tentava contrabalançar a instrução aprendida através de poucas matérias com o aprendizado de prendas domésticas.
Porém, a maioria das famílias ainda parecia relutante em relação a uma educação oferecida fora do lar, tanto que a maioria das meninas permanecia na escola no máximo até os treze anos, pois “a instrução poderia colocar em risco o esquema de controle exercido sobre as esposas e filhas semi-ociosas” (QUINTANEIRO, 1995, p. 168).
Contradizendo a visão corrente da época, Júlia Lopes de Almeida procura um melhor destino para as prendas ensinadas às meninas. Ela mostra que a mulher poderia conseguir o seu sustento fazendo uso dos dotes domésticos.
O romance A intrusa mostra como a mulher da época poderia sustentar-se, em um momento de eventual dificuldade. A protagonista Alice usa suas habilidades domésticas de modo a conseguir manter-se. Com a ausência da figura masculina em sua vida, ela não vê alternativa que não seja o trabalho.
Neste romance, em especial, fica latente o discurso ligado à separação dos papéis sociais. Argemiro, o patrão viúvo, mostra não ter competência para administrar o seu próprio lar, afinal, os homens não foram educados para esses fins. Por outro lado, fica evidente a falta de experiência de Alice em não saber negociar um salário à altura de seu serviço, justamente por nunca ter tido contato com o mundo dos negócios, espaço exclusivamente destinado aos homens.
O romance epistolar Correio da roça também ressalta o uso das prendas domésticas em prol do sustento através do trabalho digno. Júlia se serve das cartas trocadas entre duas amigas – Maria e Fernanda – para enaltecer a importância do trabalho doméstico.
Encontramos uma severa crítica da autora ao pensamento que considerava as prendas do lar como um mero instrumento para ressaltar as habilidades femininas nos salões. Assim, na primeira carta de Maria à Fernanda, encontra-se o seguinte pensamento em relação à educação de suas filhas: “De que valerão agora as prendas com que se ornaram para brilhar na sociedade?” (ALMEIDA, 1987, p. 30).
Essa idéia será contestada ao longo do romance, principalmente se levarmos em consideração a transformação sofrida pelas personagens. Se no início da obra, mãe e filhas eram mulheres urbanas, intoxicadas pela vida fútil presente nos salões e nos bailes, ao final, encontramos mulheres que, com a pobreza repentina, tornam-se unidas pelo trabalho, morando no campo, longe dos vícios e da hipocrisia presente no espaço urbano.
De fato, Júlia procura sempre exaltar em sua obra a transformação que o trabalho poderia ocasionar na vida de uma pessoa. Apesar desse afazeres ainda se encontrarem na esfera do lar, baseados na acepção do labor, como assim define Hannah Arendt, percebe-se que através da execução de certas atividades a mulher, aos poucos, poderia conseguir as bases de seu sustento e, assim, sua independência financeira.
Na primeira edição da revista A mensageira , Júlia declara que “as aptidões femininas poderiam ser aproveitadas em atividades remuneradas que pudessem vir a auxiliar a família sem detrimento do trabalho do homem” (In: ALAMBERT, 1998, p. 92).
Ao pensar desta forma, Júlia acaba por difundir um pensamento atual no qual
“a dicotomia dos papéis sexuais é entendida em termos de complementaridade e funcionalidade, no qual a especialização dos papéis visaria a manutenção da família através da solidariedade entre seus membros” (SORJ In: ARAÚJO&SCALON, 2005, p. 125).
Essa relação existente entre os papéis sociais fica evidente na obra de Júlia, principalmente no que diz respeito à questão do matrimônio. Porém, nesse aspecto nem sempre é realizado o sonho do casamento por amor. Mesmo na primeira metade do século XX, ainda se realizava o casamento tal qual um negócio que viesse a garantir vantagens para a vida de ambas as famílias. O dote vigorou como um dos principais instrumentos de segurança no casamento para a mulher, servindo como uma espécie de auxílio nas despesas do matrimônio. Desta forma, homens se casavam com a moça que tivesse dote, e ela com o homem que provasse que poderia sustentá-la.
Aliás, dentro da convenção do estatuto do casamento existem não só as vantagens comerciais de um negócio inter-familiar, como também a própria satisfação individual da moça que estivesse prestes a contrair matrimônio. A possibilidade de permanecer solteira aterrorizava as moças, pois de qualquer forma, amando ou não o marido, ao se casarem elas conseguiam um status diferente daquelas que permaneciam solteiras. Assim, a “identidade da mulher passa a ser definida a partir de sua condição civil. Não é a mulher que é valorizada e reconhecida como pessoa, mas é o papel de esposa que lhe dá uma imagem social ...” (CAVALCANTI,1987, p. 110).
É, justamente, dentro de tais parâmetros sociais e individuais, que Júlia Lopes de Almeida constrói o cenário de um dos seus romances mais polêmicos, A falência . Nessa obra, ela mostra uma incrível percepção do meio em que vive, ao apresentar em sua narrativa personagens tão envolvidas com os modelos pré-determinados pela sociedade, principalmente se for levado em conta a questão da delimitação dos papéis sociais.
Logo nas primeiras páginas tem-se o contato com o mundo público, espaço marcado pelo trabalho e restrito ao mundo masculino. Corria então o ano de 1891, e o comércio do café crescia em grandes proporções, tornando-se um dos negócios mais cobiçados por aqueles que desejavam constituir riqueza.
Percebe-se que o mundo público descrito pela autora é essencialmente construído pela presença masculina. É nesse espaço que se encontra Francisco Teodoro, português bem sucedido que enriqueceu as custas do seu trabalho. É através da figura de tal personagem que Júlia Lopes irá apresentar o pensamento corrente entre os homens da época, limitado por um discurso tradicional que designava valores distintos para homens e mulheres, ajudando a reforçar a ideologia do gênero.
Assim, contrapondo-se a esse mundo público, encontra-se o espaço do lar, o mundo privado, marcado pela suntuosidade do palacete da família Teodoro.
Em A falência , encontramos alguns questionamentos sobre os papéis tradicionais que definiam as relações dentro da família, tais quais o casamento por conveniência, o ócio feminino dentro do lar, a ausência paterna.
Francisco Teodoro, marido e pai da família, coloca-se como o ser soberano de sua casa. Só, que ao fundamentar sua vida na importância de sua fortuna, Teodoro torna-se um ser ausente, e sem perceber, acaba sendo o causador de problemas familiares, entre os quais a vaidade e adultério de sua esposa e a falta de caráter do filho.
O que realmente importava para Teodoro era a sua posição na sociedade e, esse homem havia cristalizado a sua reputação, principalmente, através da riqueza produzida por seu trabalho. Esta obsessão em ser reconhecido socialmente será um dos motivos pelo qual ele se sentirá incentivado em contrair casamento. Junta-se a esse motivo, a preocupação em resguardar sua expressiva fortuna através de gerações que carregassem o seu nome: “Para o que lhe serviria o que juntara se o não compartilhasse com uma esposa dedicada e meia dúzia de filhos que lhe herdassem virtudes e haveres?” (ALMEIDA, 2003, p. 44).
O matrimônio, em A falência , em nenhum momento é associado à referência do amor, tanto que a idéia do casamento de Francisco Teodoro é sugerida por um médico para a “regularização de hábitos”. Vemos aqui mais uma função da família, além de assegurar a perpetuação da espécie e de garantir a herança: moderar os hábitos.
Além disso, existe o problema da solidão, que começa a ser sentida pela personagem ao perceber que em sua confortável casa na Rua da Candelária “lhe faltava alguma coisa” (ALMEIDA, 2003, p. 44). Essa concepção é dirigida à falta da presença feminina, que também é abordada em outro romance de Júlia Lopes, A intrusa , através das palavras da personagem Argemiro “uma casa sem mulher é um túmulo com janelas: toda vida está lá fora”. (ALMEIDA, 1994, p. 3)
Assim é feito o casamento de Francisco Teodoro com Camila, por meio de Mattos, amigo de Teodoro, que propôs todos os arranjos necessários à união do futuro casal. Tais acertos colocavam em questão as vantagens financeiras que garantiriam definitivamente a realização do matrimônio.
Apesar de existirem outras meninas na família, Camila foi a escolhida por ser "a filha mais velha e a mais instruída" (ALMEIDA, 2003, p. 46). Nota-se que a autora deixa subentendido que a necessidade em casar Camila relacionava-se a sua condição civil, já que sendo a filha mais velha, não poderia permanecer solteira por muito tempo.
A mãe de Camila cumpre seu papel, sabendo encaminhar Camila rumo a um casamento lucrativo. Em alguns momentos da conversa entre D. Emília e Francisco Teodoro, pode ser percebida a nítida intenção da senhora em oferecer a filha tal qual uma mercadoria a ser apreciada: “E a mãe começou a falar com um ar de sinceridade muito demonstrativa. A cada instante o nome de Camila saia-lhe da boca como um elogio” (ALMEIDA, 2003, p. 46). Durante o acordo, notamos que a personagem de Camila comporta-se de forma resignada, parecendo condescendente com as atitudes da mãe. Sendo assim, ela coloca-se diante do pretendente, de forma a personificar o perfil da mulher da época: quieta e prendada.
Formalizada a união, nota-se o afastamento dos cônjuges, com os anos de convivência. Ambos reproduzem socialmente uma relação de aparências, fingindo viver o casamento perfeito. Aos olhos da sociedade, este ideal familiar constituía-se mais pela presença da fortuna que pelo entendimento entre marido e esposa.
Teodoro, no início do casamento, vive relações extraconjugais, assim como Camila, que após certo tempo de casada, acaba envolvendo-se com o médico da família, o doutor Gervásio.
Ao longo do texto percebemos que Camila representa o exemplo de mulher vaidosa, elogiada pelo fino trato de sues modos e toalete. De certo modo, a personagem assim, precisava agir, visto que, manter contato com o mundo nobre, também significava conseguir vantagens sociais para a vida em família. Segundo Maria Lucia Rocha-Coutinho, a mulher “teria um papel decisivo na elevação social do marido” (ROCHA-COUTINHO, 1994: 102).
No romance A falência são encontrados vários aspectos envolvendo a questão da maternidade, inclusive através do comportamento da protagonista Camila, que se destaca por suas atitudes contraditórias em relação aos filhos. Além disso, consegue-se também depreender da relação entre Teodoro e os filhos, o afastamento paterno.
O romance acaba por abordar um fato histórico interessante para a época em questão: a presença do médico de família entre as famílias de classe burguesa. Essa presença será retratada no romance através da figura do Dr. Gervásio. É ele quem salvará os filhos de Camila de doenças graves, como o Tifo. Ao mesmo tempo, ele tomará conhecimento da morte da pequena Biju, filha de Teodoro e Mila, fato que o deixará ainda mais próximo da família da protagonista.
Segundo Badinter, a figura do médico torna-se comum dentro do lar, aconselhando a “nova mãe que se sente responsável pela saúde do filho”. Há um tipo de aliança no qual o médico passa a considerar a mãe como “sua interlocutora, enfermeira, assistente e executiva” (BADINTER, 1985, p. 21).
A atitude materna de Camila vai ser marcada por diferentes pontos de vista ao longo do romance; para Teodoro, o marido, Camila era culpada pela má educação do filho Mário. Na visão do doutor Gervásio, Camila “tinha modos de uma boa mãe tranqüila, muito banal, com discursos longos e choradeiras sobre a morte muito recente de uma filhinha, que a tornavam fastidiosa” (ALMEIDA, 2003, p. 75). Gervásio considera inconveniente este aspecto extremado da maternidade representado por Camila, tanto que sua influência acaba por mudar o comportamento da protagonista.
Assim, podemos dividir o comportamento materno de Camila em dois tempos: antes e após conhecer Gervásio. Durante o tempo em que mantém seu caso adúltero com o doutor, Camila não demonstra muito afeto pelos filhos, principalmente pelas gêmeas Lia e Raquel. Em algumas passagens do romance, a mãe trata de despachar as filhas, a fim de ficar mais à vontade com o seu amante.
Além disso, percebe-se que o cuidado para com as meninas ficava inteiramente reservado as criadas, Noca e Nina. São elas também responsáveis pelo cuidado em manter as gêmeas ignorantes em relação ao caso de amor vivido pela mãe, já percebido pelos filhos mais velhos, Mário e Ruth.
A distância da mãe também se faz sentir com relação aos filhos mais velhos, Mário e Ruth. Considerando Ruth, em nenhum momento, avista-se um maior contato entre mãe e filha. Já, entre Camila e Mário, há um relacionamento deveras conturbado. O filho, por saber do adultério cometido pela mãe, não a respeita, acusando-a de manchar a reputação da família: “_ Reputação! Ora mamãe, e é a senhora quem me fala nisso! (ALMEIDA, 2003, p.107). Camila acaba por perder a moral perante o filho, não tendo a oportunidade de influir em sua educação.
O pensamento de Mário explica a dupla moral vigente na época em que Júlia escreveu sua obra. A autora critica o duplo padrão de moralidade ao denunciar em Eles e Elas que “os homens teceram a sociedade com malhas de dois tamanhos, grandes para escorrer os pecadilhos próprios e extremamente miudinhas para as mulheres” (ALMEIDA In: TELLES, 2005, p. 25).
Para as mulheres, por exemplo, resta o conformismo a um destino que já se encontra traçado desde a infância, como podemos notar através da figura da matriarca de A Família Medeiros : “Casara-se aos treze anos sem amor, sem simpatia, mas também sem repugnância” (ALMEIDA, 1892, p. 89). A mãe, definida ao longo do texto, é o paradigma ideal da mulher da época; em nenhum momento ousa burlar as convenções sociais ou questionar seu destino.
A personagem Mãe, de A Família Medeiros , é aqui apresentada a fim de pautar um contraste claro com a protagonista de A Falência. Ao contrário de Mãe, Camila questiona sua realidade procurando viver com o Dr. Gervásio o amor que não encontrara no casamento.
Apesar de o romance A Falência focar seu principal tema no adultério feminino, Júlia mostra que a própria traição de Francisco Teodoro no início de seu casamento pode ser considerada como um dos motivos da infidelidade de Camila, pois ao desconfiar das infidelidades do marido, ela sente-se no direito de igualmente viver uma relação extra-conjugal: “Eu soube de muitas coisa e fingi ignorá-las, todas! Não é isso que a sociedade quer de nós? As mentiras que o meu marido me pregou, deixaram sulco e eu paguei-lhas com o teu amor, e só pelo amor!” (ALMEIDA, 2003, p. 72).
Assim, a primeira imagem de adultério que temos em A falência é através das recordações do próprio Francisco Teodoro. Logo após o casamento, ele envolve-se com Sidônea, que havia sido sua amante na época de solteiro: “[...] a Sidônea reapareceu na vida de Teodoro, obrigando-o a desvios e infidelidades” (ALMEIDA, 2003, p. 48).
Nota-se nesse trecho que a mulher (Sidônea) é colocada como a grande culpada pelo adultério de Francisco Teodoro; ele tenta se redimir de sua culpa ao mencionar que fora a amante quem o coagira a cometer tal ato.
Aliado a este fato, a própria ausência de Teodoro, motivada pela ganância e indiferença em relação à família, leva a esposa a envolver-se com o homem que naquele momento se encontra mais próximo de seu lar – o médico da família, o Dr. Gervásio.
O sentimento de gratidão de Camila pelo médico e a presença constante dessa figura dentro do lar serão um dos pontos no qual o adultério dessa esposa será baseado. Podemos notar uma diferença extrema entre o comportamento de Teodoro e Gervásio. Aquele, extremamente rude e ignorante e este, reconhecido por todos por sua superioridade intelectual.
Tal ponto acaba por fascinar Camila, que se atrai pela figura sempre prestativa e presente (grifo meu) do médico, mostrando assim a sua extrema carência em relação a atenção da figura masculina. Aproveitando-se desse fato, Gervásio vai tomando conta de todas as esferas da vida de Camila, mostrando um certo comportamento possessivo em relação a sua amante. Antes de relacionar-se emocionalmente com Camila, percebe que está se tornando embrutecida pela convivência com Teodoro. Aos poucos o médico transforma Camila de simples dona de casa em uma mulher refinada.
O romance entre as personagens Camila e Gervásio segue seu curso até o momento da morte de Francisco Teodoro, após sua falência. Viúva, e disposta a assumir legalmente o seu relacionamento, Camila descobre que seu amante encontrava-se, na verdade, separado de uma esposa também adúltera, de tal modo que não poderia assumir um compromisso legal, visto que ainda se encontrava preso aos laços burocráticos do matrimônio.
Evidencia-se assim, mais um mais um exemplo de adultério feminino. A mulher de Gervásio é também uma adúltera, tal qual Camila. O detalhe desta questão reside no fato de que Gervásio, mesmo não perdoando a esposa pelo deslize cometido, é o grande responsável pela traição de Camila.
Outro ponto a ser ressaltado é o motivo pelo qual a esposa de Gervásio o teria traído. Percebe-se que o adultério de Camila também foi motivado pela indiferença de Francisco Teodoro, porém, não sabemos que razões teriam levado a esposa de Gervásio a traí-lo.
Essa dúvida, colocada por Júlia Lopes ao final do romance, leva-nos a alguns questionamentos pertinentes quanto ao comportamento do Dr. Gervásio: teria ele sido um bom marido durante os anos de convivência com sua esposa ou teria sido tão distante quanto Teodoro fora com Camila? Teria sua esposa o traído por sentir que ele nutria um interesse por outra mulher?
O que na verdade pode-se depreender dessas perguntas é o fato de que a mulher adúltera, na visão geral da sociedade, é sempre considerada a culpada pelo seu ato, sem direito a qualquer tipo de justificativa.
Ao fechar seu romance, Júlia Lopes nos deixa a sensação de que a falência pode estar presente não somente pela imagem de uma ruína financeira mas, principalmente, pelo esfacelamento dos valores morais não cultivados dentro do lar.
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