A ESCUTA DA LINGUAGEM ATRAVÉS DO CORPO

Soraya Tavares Labuto, bacharelanda em dança pela U.F.R.J. e monitora do Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos.

 

 

 

Resumo: Esse trabalho se propõe a discutir a escuta da linguagem através do corpo. Desta escuta foi criada uma performance de dança que hoje é chamada de Rizoma e foi apresentada no curso de Bacharelado em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 2006. Ainda em processo a performance nos ajudou a indagar os caminhos da criação artística através de uma pesquisa constante sobre a Linguagem. Entendendo que a Linguagem é o que nos possibilita a escuta e não a fala; a atividade de escutá-la é ouvir o não dito. Dentro desse pensamento, ficar à espreita da Linguagem é tentar a saga de um dizer próprio. Dizer próprio, propriamente, com propriedade é dizer com verdade, com vigor. Esse vigor do dizer é o que nos move enquanto artistas para a criação. Certamente a criação de uma obra de arte não se dá apenas através de uma escuta da Linguagem, nem somente na busca de um dizer, a isso tudo o artista precisa somar sua técnica; mas pensar em tais questões aumenta nossas possibilidades.

 

Palavras-Chave: Linguagem – Corpo – Escuta.

 

 

A linguagem fala. A linguagem fala e pode ser ouvida de diversas maneiras. Os poetas as escutam com seus poemas, os músicos com suas músicas, e os dançarinos com suas danças. Tudo isso é muito simples e até ingênuo, mas gostamos da ingenuidade como a das crianças; isso nos retira muitas limitações. Veja bem, quando falamos da ingenuidade estamos falando da ingenuidade como a das crianças que é bem diferente de ingenuidade pura e simples. Ser ingênuo como criança é ter disponibilidade de aprendizagem, não ter entraves, e sim uma eterna permissão para se atirar em algo. Ser criança é ser abismo.

Mas das crianças eu não quero falar mais, o que quero começar a falar agora é a maneira pela qual deixaremos a linguagem falar aqui: através do Corpo. Mas antes de tudo ecoam aqui algumas questões: O que é Corpo? O que ele faz? Quem tem medo do corpo? Essas questões não carecem de respostas, mas jazem no Corpo e por isso gostaríamos de cuidar delas.

Ah! Permita que eu me apresente. Sou dançarina e compositora... De danças. Com isso espero que vocês entendam a importância dessa conversa, pois a maneira pela qual eu olho o Corpo é intrinsecamente a maneira que eu olho a Dança. O que é corpo? “Tudo o que tem extensão e forma. A estrutura física do homem ou do animal. Tamanho dos caracteres tipográficos”.¹ Ficando com a segunda opção, e restringindo-a a estrutura física do homem, estaria respondida nossa pergunta. Mas como pergunta não nos vale a res-posta e precisamos cuidar de sua questão que sendo assim se amplia para: O que nós pensamos sobre o corpo hoje?

Trouxemos aqui um ponto de partida que poderá nos ajudar:

 

 

“Tradicionalmente, o corpo humano sempre foi considerado uma dimensão inferior. Platão reproduz, no diálogo Fédon, um mito no qual o corpo é descrito como uma prisão para a alma e a prática da filosofia como uma forma de liberação de suas amarras: “O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato” (Fédon, 66c) (...) Aristóteles, por sua vez, não menospreza a importância do corpo para o ser humano, nem nega a unidade necessária entre corpo e alma, mas restringe seu valor a um “instrumento natural da alma, assim como o machado” (De Anima, II, 412b) (...) Em ambos os casos o corpo humano é tratado como um outro absoluto, uma coisa exterior, um objeto, que me perturba ou que me serve.²”

 

 

Seguindo o que o autor Charles Feitosa nos colocou sabemos que o corpo ao longo do pensamento ocidental não tem autonomia, só se move sob os desígnios da razão. Sobre isso temos outros testemunhos como o de Renée Descartes (1596-1650) e seu famoso dualismo cartesiano que gera até hoje dificuldades conceituais complexas a respeito do corpo-autônomo que nós hoje procuramos pensar.

Quando hoje tentamos pensar o corpo o fazemos através dele? O corpo é o próprio Ser. Não há dualismo entre corpo e mente. Mas essa tentativa de se pensar o corpo como algo inseparável da mente ainda é uma tentativa de colocar o cérebro no corpo. O corpo hoje ainda é pensado como em Descartes “coisa que sente” e a mente “coisa que pensa” ou para sermos menos dicotômicos podemos falar que a mente decodifica as informações sentidas e vividas no corpo, que é algo inseparável. Mas e aí cadê a inteligência do corpo?

Nós que dançamos e compomos danças, ou melhor, coreografamos sabemos que o corpo possui uma inteligência e podemos muito facilmente expor isso de maneira prática. Muitas vezes quando dançamos um trabalho e anos depois nos desafiamos a reapresentá-lo a coreografia emerge do próprio movimento. Ao nos colocar novamente no movimento, começamos a acordar o cérebro para o que vem a seguir. Se tentarmos sentados numa cadeira lembrar de toda a coreografia essa memória não vem. Só o corpo nos traz.

Outra forma de ilustrar essa inteligência corporal é a maneira como nós coreógrafos³ compomos. O coreógrafo trabalha no Corpo sua obra. Perguntamos o que Ele quer dizer. Fazemos vários laboratórios de movimento, indagando ao Corpo sobre movimentos lentos, rápidos, fortes, fracos, com resistência, sem resistência etc. Dentro dessa perspectiva, o Corpo possui a faculdade de entender, questionar, interpretar, adquirir e passar conhecimento. Quando hoje tentamos pensar o corpo o fazemos através dele. É ele na maioria das vezes que nos dá a saída para um entrave coreográfico. Não pretendemos com isso levantar a bandeira: “O Corpo é a solução” ou “É no Corpo que mora a Dança e não na Mente”, pois seríamos tão dicotômicos quanto estamos criticando. O que pretendemos dizer com todo esse relato de experiência é que esse corpo não só não se separa da mente, como também é um Corpo que pensa e produz conhecimento e, portanto possui inteligência.

Agora que já refletimos um pouco sobre o Corpo podemos voltar a nosso ponto central deste trabalho que é a fala da linguagem e nossa escuta através dele. Para dizer sobre a fala da linguagem chamaremos Heidegger: “A linguagem fala como consonância do quieto (...) A linguagem, a consonância do quieto, dá-se apropriando a di-ferença. A linguagem vigora como a di-ferença que se apropria em mundo e coisa” 4 . Procurando ser mais esclarecedor voltaremos ao autor para nos falar sobre essa di-ferença que se apropria em mundo e coisa:

 

“A di-ferença não é distinção nem relação. A di-ferença é no máximo dimensão para mundo e coisa. Sendo assim, “dimensão” também não mais significa um âmbito simplesmente dado em si mesmo, onde isso e aquilo se estabelecem. Medindo o que lhes é próprio, a di-ferença é a dimensão. È essa medida que entreabre mundo e coisa em seu ser em relação ao outro na separação de um e de outro. Entreabrir é assim o modo em que a di-ferença mede um e outro. Como meio para mundo e coisa, a di-ferença mede a medida de sua essência. A di-ferença é propriamente o que, num chamado, se chama quando coisa e mundo são evocados.” 5 .

 

 

Para estar atendo à fala da linguagem precisamos, portanto penetrar na consonância do quieto e nesta quietude nos calarmos para ouvir o que ela diz. Ouvi-la trata-se de deixar emergir o que ela, a Linguagem fala de mundo e de coisa. Mas o que essa fala nos propõe? De que modo a escutamos?

O que essa fala nos propõe? Essa fala não nos propõe nada, não vêm atender nenhuma demanda. Não atender nenhuma demanda significa deixar-se existir sem se instrumentalizar, pois se a fala da linguagem viesse apenas atender uma demanda, a linguagem seria instrumento de fala. Linguagem não é isso. Linguagem é o que nos possibilita falar na medida que escutamos e não nossa maneira de dizer. De que modo a escutamos?

O que esse trabalho nos diz é que esta escuta é através do corpo. Mas ela não é única, há os que escutam com letras que viram poemas, notas que viram músicas, barros que viram esculturas e até os que nunca ouvem, mas nós escutamos com o corpo que vira dança, e estamos escutando ao nosso modo.

Para dizer nosso modo de escuta falaremos da performance de dança Rizoma que foi apresentada no curso de Bacharelado em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro em novembro de 2006 e os caminhos que foram percorridos para sua criação.

Esta performance foi concebida por Soraya Labuto após ter cursado a disciplina Literatura e Dança ministrada pela professora Ms. Maria Ignez de Souza Calfa. 6 A disciplina propunha um diálogo entre o gesto e a palavra e a partir disso cada graduando escolhia um autor e traçaria um diálogo entre este autor e sua dança.

Não tão simples quanto parece foi abrir escuta para esse diálogo. Rizoma surgiu do caos. Primeiramente vários autores foram cogitados. Desse hall de autores, procuramos os que mais se aproximavam, seja através de uma poética atraente, ou simplesmente por uma afinidade temática.

Um deles foi finalmente eleito: Clarice Lispector. Desta grandiosa autora foram lidas as seguintes obras: “A Hora da Estrela”, “Debaixo D'água” e “Via Crucis do Corpo”. Várias relações chegavam de todas as ordens e maneiras diversas. Mil propostas de trabalhos apareceram como possibilidades inesgotáveis, mas todo esse discurso não chegava ao Corpo.

Na busca de uma inspiração ou de algum sentimento ligante que fizesse uma ponte entre tudo que era lido e a maneira pela qual essas leituras poderiam invadir um Corpo que se propunha a dançar, uma entrevista de Manoel de Barros chega às mãos de quem vos escreve e o caos da criação começa a se tornar um lugar mais confortável. E essa entrevista nos diz:

 

 

“P. Qual a matéria de sua poesia?

R. Os nervos do entulho – como disse o poeta português José Gomes Ferreira. Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima – é também matéria de poesia – eu repito. Só bato continência para árvore, pedra e cisco. Em estudo sobre O Processo, de Kafka, o humanista Gunter Anders, observa o amor de Leni pelos processados. Leni acha que a miséria da culpa os torna belos. Sua compaixão pelas vítimas é que a leva ao amor. De muita dessa compaixão é feita a poesia de nosso século. Um fundo amor pelos humilhados e ofendidos de nossa sociedade, banha quase toda a poesia de hoje. Esse vício de amar as coisas jogadas fora – eis a minha competência. É por isso que eu sempre rogo para Nossa Senhora da Minha Escuridão, que me perdoe por gostar dos desheróis. Amém.” 7

 

 

Das palavras do poeta, algo ficou ecoando: A matéria prima para uma poesia poderia ser o lixo cotidiano, o rodo que passamos todos os dias na cabeça para esquecer um real que se doa o tempo inteiro, dimensionando à uma fala da linguagem que grita e nós não escutamos porque estamos surdos procurando o que está fora. E existe algo que esteja fora da linguagem?

Se uma poesia corporal precisava ser criada como buscar fora do corpo? Naquele momento isso parecia com falar fora da linguagem. Em busca dessa poesia que precisava virar carne, começamos a nos aproximar de todo o lixo do mundo que percorria o corpo. Algo então eclodiu para criação: mangas.

Uma mangueira habitava meu corpo todos os dias. Catar mangas, comer mangas, doar mangas, varrer folhas e uma infinidade de manguices começaram a me habitar poeticamente..... A performance Rizoma surgiu de algo que se construía através da minha habitação, pois como diria Heidegger: “Construir já é em si mesmo habitar” 8

Por já estar mergulhado em ações corporais que aconteciam todos os dias, o corpo respondeu ao apelo do que lhe foi perguntado e fez das mangas dança. A manga com tudo que lhe possibilita ser manga. A terra, a semente, a água, a árvore, as folhas e os frutos. Tudo o que lhe é próprio de ser manga.

Clarice que ainda não havia virado carne encostou-se num canto aguardando um outro chamado.O que se desdobrava era a fala da mangueira que estava plantada da semente ao fruto num corpo que procurava em outro lugar o que já estava nele mesmo. Nesse lugar deu-se à escuta de Manoel de Barros que invadiu o diálogo entre eu e Clarice sem pedir licença e a fez ir embora, é claro por hora, mas ficou na conversa sem deixar mais ninguém falar. Manoel de Barros gritou e gritou mais alto que todo mundo, um grito que era proferido não mais alto do que um sussurro, mas que se tornou um ruído ensurdecedor.

Jamais poderíamos com quaisquer palavras dizer o que somente a performance Rizoma diz. Na Dança como em qualquer Arte , o que pode ser dito, só é feito a partir dela mesmo. Mas poderíamos ilustrar com o seguinte texto:

 

 

“Já deixou se amadurecer, como uma fruta, ou você se come verde?”.

Esse trabalho trata de uma investigação da linguagem através do corpo. O que o corpo escutou. O que ele saboreou. Numa pequena leitura de Manoel de Barros “(...) pode-se dizer que as palavras de um poeta vêm adoecidas dele, de suas raízes, de suas tripas, de seus desejos (...)”. Esse trabalho trata da escrita de um corpo que se indagou...” 9 .

 

 

É preciso lembrar que o diálogo proposto entre a palavra e o gesto pela professora Maria Ignez de Souza Calfa em Literatura e Dança não virou apenas conversa de disciplina, mas desdobrou-se numa pesquisa para além de sua origem e ganhou outras veredas.

O conhecimento de algo levado adiante nos possibilita novas costuras e deixam rastros para que sejam trilhados outros caminhos, por outras pessoas ou por nós mesmos que sempre precisamos, enquanto pesquisadores, revisitar o que já foi percorrido para seguir adiante. Jamais sabemos quando imersos num processo, onde ele irá nos levar, pois se assim ocorresse não teríamos espaço para aprender. Somos como andarilhos que percorrem os caminhos do mundo refazendo seus arranjos. Como diria Barthes: “Os temas do mundo são poucos numerosos e os arranjos são infinitos” 10

 

Desse ponto eu volto ao início: A linguagem fala. A linguagem fala e pode ser ouvida de diversas maneiras...

 

 

NOTAS :

 

¹ Segundo o minidicionário da língua portuguesa Melhoramentos (1997).

² Feitosa, s/d.

³ Particularmente eu gosto mais de usar a expressão compositor de danças porque o coreógrafo muitas vezes no ramo da dança tem sido confundido com àquele que junta movimentos dentro de uma música, ignorando à composição artística necessária dentro de uma dança, pensando-a é claro como uma obra de Arte.

4 Heidegger, 2003, p. 24

5 Heidegger, 2003, p. 20.

6 Professora assistente do departamento de arte corporal/U.F.R.J., coordenadora do laboratório de Arte Educação/U.F.R.J e doutoranda em poética U.F .R.J/Centro de Letras e Artes.

7 Barros, 1990, p. 311.

8 Heidegger, 2003, p.126. – Livro: Ensaios e Conferências.

9 Texto de apresentação da performance

10 Barthes, apud, Barros, 1990, p. 312

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

FEITOSA, Charles. Explicando a filosofia com Arte. Ediouro, s/d.

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, Rj: Vozes,2003.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Petrópolis, Rj: Vozes, 2003.

LUDORF, Silvia M. Agatti. Metodologia da pesquisa: do projeto à monografia. Rio de Janeiro: Shape, 2004.

BARROS, Manoel de. Gramática Expositiva do chão (poesia quase toda). Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira S. A.,1990.

 

 

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