Entre a literatura e a comunicação, entre a música e a diplomacia, sempre dentro do Rio: as crônicas de Vinicius de Moraes sobre o Rio de Janeiro, uma proposta de leitura.

Natalia Cordoniz Klussmann

Mestranda em Literatura Brasileira (UFRJ)

 

Resumo:

O presente trabalho busca trabalhar as possibilidades de leitura das crônicas de Vinicius de Moraes a partir da idéia de que, sendo parte da tradição cultural brasileira, mais notadamente da carioca, a crônica abre diversas possibilidades de leitura e, quando aliada a Vinicius de Moraes, são ainda mais múltiplos esses caminhos.

Dentre essas muitas possibilidades, no entanto, escolheu-se, para este trabalho, realizar uma proposta de leitura de Praia do Pinto a partir da tradição de “cidade partida” na crônica brasileira, cujo objetivo maior é iniciar uma reflexão sobre as crônicas de Vinicius de Moraes sobre o Rio de Janeiro.

 

Palavras-chave: VINICIUS DE MORAES, CRÔNICA, INTERDISCIPLINARIDADE


Entre a literatura e a comunicação, entre a música e a diplomacia, sempre dentro do Rio: as crônicas de Vinicius de Moraes sobre o Rio de Janeiro, uma proposta de leitura.

 

Natalia Cordoniz Klussmann

Mestranda em Literatura Brasileira (UFRJ)

Introdução

 

Margarida Souza Neves afirma que as hipóteses que oferecem mais de uma possibilidade são aquelas que merecem atenção (NEVES, 2001). Portanto, ao se tratar o tema deste trabalho, que contém muitos “sim” e “não” respondendo a uma mesma pergunta e está calcado, antes de tudo, em interseções, convém cuidar para que as riquezas de caminhos possíveis sejam preservadas. E quantas possibilidades! Vinicius de Moraes e a crônica são, ambos, habitantes de um lugar fronteiriço entre história, literatura e jornalismo, poesia, música e diplomacia, além de residentes ilustres do cotidiano de um lugar também cheio de ambigüidades e limites embaçados: a cidade do Rio de Janeiro.

Estas breves páginas, portanto, enfocam dualidades, sutilezas e contatos, e objetiva buscar em regiões fronteiriças a riqueza e a multiplicidade de significados, tão comuns tanto à crônica, quanto a Vinicius de Moraes, através de uma nova proposta de leitura de uma tradição na crônica brasileira, que é a temática da “cidade partida”.

A estrutura deste trabalho foi montada a partir das sutilezas dos pontos de contatos entre os objetos relacionados. Deste modo, o texto está divido em três partes que se relacionam entre si: uma parte que tratará sobre as crônicas e seu caráter polivalente, um capítulo que será dedicado a Vinicius de Moraes e sua personalidade multifacetada e, por fim, haverá uma proposta de leitura de Praia do Pinto, a partir da tradição presente na crônica brasileira, sobretudo na carioca, da “cidade partida”.

Sobre essa tradição da “cidade partida” convém, aqui, uma elucidação. É possível que o termo, assim aliado a uma prática tão recente quanto é a da crônica, cause certa estranheza e gere a dúvida “será que se pode falar em tradição?”. Esse artigo arrisca um “sim”, embora, como já dito anteriormente, um “não” se encaixe também e acaba criando um ponto de estudo bem interessante. É dito que “sim”, pois a tradição, segundo o dicionário (FERREIRA, 1986), é algo que se passa de geração para geração, e a temática da cidade partida, como mostra Beatriz Resende (2001), é encontrada desde o começo do século XX e, portanto, é passada de geração para geração, até os dias contemporâneos, quando o tema permanece atual e não tão raramente aludido.

Assim, se não existe uma tradição longínqüa da temática da “cidade partida”, é tão somente porque a crônica é relativamente recente.

Outros aspectos formais do presente trabalho que merecem atenção referem-se ao método adotado para a leitura e a interpretação da crônica escolhida, assim como os critérios que pautaram a seleção de Praia do Pinto para a análise.

Sobre a leitura e a interpretação da crônica, foi seguido a proposta de leitura contida em Sá (2005), a qual considera que ao se desejar uma visão aprofundada do texto, torna-se necessário que se façam algumas leituras (e não apenas uma, como faz a maioria dos leitores aos quais interessa tão somente a percepção interpretativa mais superficial).

Então, para sistematizar a interpretação de uma crônica, o autor oferece algumas soluções a fim de viabilizar essa busca de significados nas camadas mais profundas dos textos. O primeiro passo, portanto, é realizar múltiplas leituras, posto que “num primeiro registro, assumimos a posição de leitor ingênuo – e lemos sem esperar do ato de ler nada mais do que o simples ato de ler” (SÁ, 2005, p. 78), e a intenção é justamente cambiar esta ingenuidade pelo senso crítico, mais dotado de capacidades articulativas e, deste modo, mais fecunda à interpretação das crônicas.

Isto já permite a quem lê uma compreensão mais global do texto, pois já não é mais fator de preocupação o que é escrito, mas sim como é escrito. Ou seja, se um primeiro momento a leitura flui para conhecer a história (seu começo, meio e fim), a releitura traz ao leitor indagações sobre como, de que modo foi realizada a composição e como esta se insere em suas próprias realidade e vida. A partir desta compreensão, o cerne do texto é atingido e logo o leitor é capaz de ampliar aquele fato, inserindo-o no mundo sem que, contudo, ele perca a sua pontualidade característica. Isto é, não importa se veiculado por livro ou jornal, a crônica, ao ter seus sentidos mais profundos atingidos (quando lida, relida e interpretada pela subjetividade do leitor), transcende o caráter temporal que a fadaria ao esquecimento ou à caduquice, e se torna texto representativo de um modo de pensar e agir, colaborando para uma recomposição de determinado local e período, além de proporcionar uma reflexão acerca daquela sociedade.

E foi justamente a possibilidade de reflexão acerca da sociedade que pautou a escolha pela crônica Praia do Pinto, que traz em suas linhas além de uma aguçada leitura do Rio, a retomada uma temática recorrente na escrita da crônica, sobretudo da carioca, que é a da “cidade partida”.

 

Crônica: entre o jornalismo e a literatura

 

Não é difícil pensar na literatura e no jornalismo como práticas com semelhanças diversas, que vão além da matéria-prima em comum. Não raro, o meio de publicação de ambas coincide no veículo jornal. E é provável que um estudo mais amplo, realizado com afinco sobre estas duas formas de lidar com a palavra ache também outras semelhanças e coincidências, aproximando ainda mais literatura e jornalismo e trazendo à baila uma série de discussões que, relacionando as duas áreas, encontrem possibilidades diversas para o futuro de cada uma. Contudo, não é pretendido, aqui, discutir qual o futuro da relação existente entre jornalismo e literatura, tampouco formular hipóteses explicativas para as crises que alguns afirmam estar acontecendo em ambos os lados . O que se objetiva aqui é, justamente, tratar de uma interseção, dentre as existentes, entre jornalismo e literatura, tratar de um “gênero de estatuto ambíguo que se aproxima da opinião, da notícia e da narrativa ficcional” (SATO, 2002, p. 29) e que, comumente, é veiculado em mídias impressas periódicas: a crônica.

Quando o leitor encontra uma crônica, pode vivenciar dois tipos de estranhamento. O primeiro deles acontece quando, acostumado a ler a crônica no jornal, ele descobre que também nos livros elas estão, publicadas e pertencentes a uma nova categoria editorial: o livro. Então este não é um gênero jornalístico?, pergunta-se o confuso leitor. Por outro lado, aquele que passeia por livrarias mais do que visita bancas de jornal, pode ficar boquiaberto ao saber que autores consagrados por romances ou poemas, possuem crônicas publicadas em periódicos. Ele , igualmente estupefato, perguntará como pode acontecer de um gênero literário ir parar nas quase sempre áridas páginas do jornalismo objetivo, sério, efêmero, (supostamente) econômico em adjetivos e abstêmio de posicionamentos declarados.

A resposta está no caráter híbrido que acompanha a crônica, começando pela origem da palavra e passando pela função que exercia ao narrar os fatos, até os dias de hoje, quando, ao mesmo tempo em que atrai muitos leitores, afasta aqueles que procuram saber somente dados e números para se manterem informados.

Será feito um estudo mais detalhado acerca da crônica para melhor explicar algumas de suas ambivalências.

A origem etimológica da palavra crônica remete à idéia de tempo (do grego, chrónos ) e, ainda, a um dos principais ramos lingüísticos das línguas latinas: o grego. Deste modo, a idéia de crônica está intimamente ligada a estes dois aspectos etimológicos: o tempo e os povos com língua de origem greco-latina. Por isso, desde o seu nascimento, a crônica possui este caráter híbrido, servindo sempre a mais de um senhor, permitindo, assim, visões ricas e dinâmicas sobre ela.

José Marques de Melo, em seu texto A crônica (2002), retoma o surgimento da crônica como forma de narrativa e afirma que esta é um gênero que tem origens nos relatos latinos , compreendendo modos diferentes de contar os acontecimentos, ora se afinando com a história, ora sendo par da literatura.

Isto acontece porque é possível encontrar nas origens desta categoria de escrita, ligações a dois tipos de expressão: àquele que registra fatos mesclando isto a lendas e mitos, o que José Honório Rodrigues ( apud MELO, 2002) nomeia de logografia, e àquele modo de escrever que descreve os acontecimentos extraordinários baseando-se nos princípios de verificação e fidelidade (MELO, 2002).

Ora, cada uma das narrativas tem características específicas que vão resultar em uma conclusão diferente acerca da categoria de pertencimento da crônica. Ao considerarmos a primeira, que trata de acontecimentos de maneira menos comprometida com a veracidade ou, antes, não se detém à necessidade de tais eventos serem provados por qualquer meio, fará, é claro, com que a crônica seja ligada imediatamente à literatura. Não que a literatura fale somente daquilo que não se pode comprovar ou sobre fatos comprovadamente inverídicos, mas o caráter ficcional deste tipo de narrativa não parece se encaixar na idéia que se tem hoje do jornalismo e, por isso mesmo, a crônica, vista a partir deste prisma fundador, ganha contornos mais condizentes com a literatura. Por outro lado, se for tomada a segunda linha de origem da crônica, na qual os fatos narrados, por mais extraordinários e incomuns que sejam, estejam fundamentados em um compromisso com o verificável e fidedigno, a conclusão será de que se trata de um relato mais afinado ao gênero jornalístico.

Assim, é preciso compreender que literatura e jornalismo podem ter suas regiões periféricas (e delimitadoras) embaçadas pelas semelhanças, dissipadas pelo modo de tratar a palavra, desfocadas por ser impossível ou, se preferirem, empobrecedor castrar possibilidades em prol de uma nomenclatura.

 

Vinicius

 

Também seria empobrecedor antepor a Vinicius apenas um título, como, por exemplo, compositor, ou poeta, ou cronista, ou qualquer outro que a sua personalidade e perfil múltiplos pudessem permitir. Por outro lado, caso fosse adotado como critério para definir Vinicius o arrolamento de todas as suas possibilidades experimentadas ou atribuídas, algo como “o poeta-compositor-cronista-diplomata-carioca-músico-amigo-letrista-diretor-de-cinema-dramaturgo-censor-crítico Vinicius de Moraes” surgiria, dificultando ora a compreensão, ora o trabalho de quem fosse escrever (e isto é dito aqui pensando em como os autores provavelmente se veriam em maus bocados por conta desse exagero).

Assim, o melhor ao se tratar Vinicius de Moraes é assumir sua personalidade multifacetada, que também se manifesta de diversas maneiras.

 

Aqui, é indispensável criticar a posição dos estudos acadêmicos acerca de Vinicius de Moraes. Em “Obras completas”, Eucanaã Ferraz e Antônio Cícero, os organizadores da edição, reúnem uma cuidadosa bibliografia que trata sobre o autor e sua obra. Lamentavelmente, a lista é breve. Aliás, brevíssima. Apesar de lá figurarem grandes nomes e trabalhos significativos, é impossível não se entristecer com o parco material produzido sobre tão vasta e múltipla obra. Sobre isto, Ferraz e Cícero apontam que “sua fortuna crítica sofreu algumas das mais severas vicissitudes da moderna literatura brasileira. Tendo gozado durante mais de três décadas de raro reconhecimento em vida, hoje não é sequer fácil encontrar, no mundo acadêmico, alguém que se tenha dedicado a estudar sua obra” (FERRAZ; CICERO, 2005, p. 12), revelando que, mesmo havendo grandes nomes estudando pontos relevantes e importantes de sua obra, são poucos e raros aqueles que realmente se aprofundam sobre o tema.

Contudo, talvez uma das maiores e mais marcantes características de todas as produções de Vinicius de Moraes seja a proximidade com o leitor que ele consegue em seus textos. Ele é capaz disso através de um tom muito casual e que, muitas vezes, causa estranhamento àqueles que esperam dos poetas o distanciamento da matéria comum. Pode ser influência de seu amigo Manuel Bandeira, um mestre na escolha do comum para compor grandes e sublimes poemas, pode ser que o modernismo e sua ruptura com o pomposo justifiquem esta característica, quiçá o seu estilo de vida notadamente boêmio tenha servido de inspiração. Tanto faz. Porque Vinicius “Com ar de quem conversa ocasionalmente (como já dedilhava o violão em nosso tempo de rapazes), (...) vai transformando tudo em estilo, num espaço poético vasto e arejado” (CANDIDO, 2004, p. 122) e, com isto, é possível pensar em como a crônica, que também se vale do cotidiano e daquilo que é aparentemente sem brilho para tecer suas tramas e enredar o momento, possui afinidade realmente grande com ele.

E o próprio Vinicius prepara o leitor para enveredar nas trilhas do cotidiano ressaltado na palavra coloquial e buscar compreender o todo a partir do particular pequenino (SÁ, 2005). Quando publicou seu primeiro livro de prosa – o que inclui alguns poemas e crônicas –, tomou o cuidado de inserir na coletânea – preparada por ele mesmo – uma crônica que permitisse ao leitor ver o Vinicius cronista despido, e com isto revelar a preciosidade de seu trabalho. Em trecho de O exercício da crônica , Vinicius confessa que “Escrever prosa é uma arte ingrata” (MORAES apud SÁ, 2005, p. 74) e com isso cria automaticamente uma relação de intimidade com o leitor, dando a ele um instrumento interpretativo valiosíssimo para a leitura da crônica: a visão do autor. Pois, se a crônica é um gênero que possui como traço identitário a coloquialidade e a subjetividade do autor ante ao tema, nada melhor do que segredar àquele que lê o aspecto humano (e por isso dificultoso) de quem escreve. Nada mais intimista e subjetivo do que uma confissão.

E se o cronista pode ficar à margem da literatura, ou no dizer de Antonio Candido, ao rés-do-chão (CANDIDO, 1992), o tom coloquial e de conversa fiada que ele emprega se mostra tarefa ingrata também no jornal, porque é presa em um conceito de verossimilhança exigido pela urgência e o tom de importância do jornalismo, ao mesmo tempo em que é escrava da necessidade de releitura do cotidiano, de “‘injetar um sangue novo' em ‘um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino ou de véspera'” (SÁ, 2005, p. 74). Assim, espremida entre as duas exigências, cada qual pertencente a um campo, cada uma parecendo tentar empurrar a crônica para o outro lado, visto que nem a literatura nem o jornalismo confessam plenamente a paternidade ou aceitam sem ressalvas a crônica em seu campo, somente resta ao texto deste gênero crescer para cima e tentar ultrapassar os limites da efemeridade jornalística. E é justamente nesta busca pela elevação que o cronista encontra a matéria para seu texto. É no ato de buscar tocar o essencial a partir do comum, do reles, é que o autor elevará suas palavras do rés-do-chão.

Entretanto, mesmo em tom confessional, essa escrita subjetiva reserva para si um teor diferente do texto em prosa comum, pois a liberdade das palavras encontra a limitação da verossimilhança que é exigida de um texto jornalístico. Arte ingrata esta: escrever a partir do fato acontecido algo que permita a transcendência do insignificante e do comum para chegar à essência de atos e pensamentos humanos. E Vinicius, em sua simplicidade assumida de poeta e escritor, refletida de maneira tão peculiar em seu perfil de homem uno em sua multiplicidade (PECCI, 1994), consegue, através de suas crônicas, confessar a ingrata tarefa, ressaltando, no entanto, sua deliciosa confecção.

E justamente através da transparência de suas palavras que, aqui, será definido o perfil de Vinicius de Moraes na função de cronista. E novamente as várias sendas se abrem não apenas com o “autor-confessor”, que segreda ao leitor a sua árdua tarefa e sua dificuldade muito bem disfarçada através da beleza das palavras, mas também a possibilidade de que as crônicas ressaltem a “carioquice” de Vinicius, ao mesmo tempo em que Vinicius reforça a “carioquice” das crônicas.

 

Uma proposta de leitura: a tradição da “cidade partida” em “Praia do Pinto”

 

Já em Praia do Pinto , a análise e a interpretação incidirão sobre outro ângulo, procurando evidenciar como a crônica carioca e suas questões comumente levantadas são relidas e, deste modo, reiteradas por Vinicius de Moraes. Ou seja, como o caráter carioca da crônica é reiterado por Vinicius de Moraes através da releitura de temas já tradicionais para a crônica brasileira que comumente se confunde com a carioca.

Ora, além dessa fusão imagéstica entre o personagem que Vinicius incorpora e o que ele mesmo descreve, a crônica revela, com sua descrição do típico carioca para o poeta, uma retomada temática tão íntima da crônica brasileira e que, no Rio, foi trabalhada por grandes cronistas. É a tradição da preocupação com a defesa daquilo que evita uma descaracterização da cidade e, nos dizeres de Beatriz Resende (2001, p. 52): “De Machado de Assis aos contemporâneos, podemos facilmente constatar o quanto isto é verdade. (...) Ao cronista de plantão cabe a tutela da coisa pública, a guarda do espaço da cidade”. Essa preocupação com o elemento preservador da essência da cidade, de certo modo, é também observada na descrição de tipos e perfis, tema largamente utilizado por todos os cronistas, mas com muita maestria e destaque para os textos desse tipo de Machado de Assis (RESENDE, 2001).

Assim sendo, se a crônica ajuda a reforçar o perfil carioca descrito por Vinicius de Moraes, concedendo um meio muito abrangente e extenso para que ele possa declarar o seu amor pela cidade e divulgar a um público grande a sua idéia sobre o que é ser carioca, igualmente Vinicius de Moraes colabora para o reforço da “carioquice” da crônica ao abordar temas recorrentes na literatura carioca do gênero.

É o que acontece em Praia do Pinto , onde o autor trabalha, sob uma nova perspectiva, fatos do cotidiano (a praia que existe e é freqüentada por cariocas, e, em outro aspecto, a moradia de outros tantos habitantes do Rio) e que tratam de uma temática já bastante comum nas crônicas brasileiras e, mais notadamente, carioca, que é a questão da “cidade partida”, existente desde o início do século XX (RESENDE, 2001).

A crônica fala de uma favela existente, na época (década de 1950), dentro do bairro do Leblon. Curiosamente esta comunidade carente recebe o nome de Praia do Pinto mas, conforme Vinicius explica, não há nela nenhuma das características de uma praia. Ao contrário, trata-se de um lugar insalubre e onde o descaso coabita com a pobreza.

É interessante notar que Vinicius, a partir do nome em comum, ergue no texto sua idéia de praia ao mesmo tempo em que desconstrói esta imagem através da contraposição de descrições opostas.

Por exemplo:

“ Não há nessa praia areia branca, barracas coloridas e coxas morenas absorvendo ultravioleta. Nessa praia que não é praia, é favela, há, isso sim, barracões de lama e zinco cheirando a imundície: há a Sífilis dormindo com a Tuberculose, no chão úmido da terra; há um enxame de Disenteriazinhas engatinhando no lodo, um mundo de Verminosezinhas patinhando nos próprios excrementos, e há Descalcificações e Reumatismos Deformantes muito velhos, pitando solitariamente na noite fétida em torno” (MORAES, 2005, p. 774).

 

E através deste jogo entre aquilo que seria o ideal ou o esperado de uma praia carioca e a realidade descrita em tonalidades vivas e fortes, Vinicius vai evidenciando as disparidades existentes no Rio de Janeiro. Ele vai expondo a fissura entre dois mundos que coabitam o mesmo espaço físico e dividem um mesmo nome com significados bem diferentes, ou até mesmo opostos. A praia, no Rio de Janeiro, segundo Vinicius, tem dois significados que oscilam não no balanço do mar, mas de acordo com a quantidade de dinheiro possuída por seus habitantes.

Ora se não é o tema da cidade partida que aparece aqui! E a proximidade conseguida com o leitor não se restringe, deste modo, a uma linguagem lírica e tocante, que na simplicidade cotejante das realidades expostas comove e choca em iguais proporções. O leitor é arrebatado pelo texto de Vinicius também por identificar nas linhas a cidade que ele vivencia ao pisar a rua, mas, principalmente, por perceber a familiaridade que a cidade e a crônica têm com o tema.

Ou seja, ao utilizar uma temática já bastante familiar ao leitor contumaz de crônicas, Vinicius consegue uma aproximação por um caminho bem interessante, que é a releitura de um tema já abordado. E faz essa interpretação da cidade dividida em duas, a rica e a pobre, encontrando um muito peculiar ponto de interseção: o nome que não define, mas separa, questionando o cotidiano tão presente para o carioca – a praia.

A única aproximação que o texto permite entre as duas praias é através da música , que mesmo não colocando as duas praias lado a lado no texto, ao menos cria um parágrafo para o leitor respirar e vislumbrar qualquer coisa mais alegre, o que pode indicar uma cultura comum a ambos os lados ou que Vinicius não desistiu de ter esperança em uma cidade sem limites, inteira entregue à vida e aos prazeres, harmonioza em todas as suas diferenças (CASTELLO, 2005).

 

Conclusões

 

A riqueza de Vinicius de Moraes, aliada às possibilidades múltiplas da crônica, permitem que Praia do Pinto reforce, ao mesmo tempo em que renova, a leitura do Rio de Janeiro como a “cidade partida”, a cidade divida. Também essa crônica permite que se ampliem as possibilidades de leitura de Vinicius, pois o leitor, acostumado a ver um autor que apenas exalta a cidade Zona Sul, com moças douradas a caminho do mar, pode ler, em Praia do Pinto , um Vinicius atento aos abismos sócio-econômicos, mas buscando ainda um tom mais leve e cordial, sempre muito intimista e lírico que a crônica permite, mas que somente a pena talentosa de um poeta pode traçar com tamanha suave precisão.

Ou seja, assim como os limites entre literatura e jornalismo, poesia e diplomacia, há também a amplidão de movimentos entre poesia e narrativa, entre as duas partes de uma cidade tão díspare, que somente a liberdade dos limites difusos pode permitir.


Referências bibliográficas:

 

CANDIDO, Antonio. Vinicius. In: O observador literário . 3ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. 116p.

 

____. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, Antonio (org.). A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil . Campinas: Editora da Unicamp, 1992. 283 p.

 

CASTELLO, Jose. Vinicius de Moraes : uma geografia poética. Rio de Janeiro: Relume, 2005. 101p.

 

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

MELO, José Marques de. A crônica . In: CASTRO, Gustavo de.; GALENO, Alex. (org.). Jornalismo e literatura : a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras Editora, 2002. (Coleção ensaios transversais). 180p.

 

MORAES, Vinicius de. Obra poética: Poesia completa e prosa: volume único. 4ª ed./ organização Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. 1572 p.

 

____. Nova antologia poética/ Vinicius de Moraes; seleção e organização Antonio Cícero, Eucanaã Ferraz. – São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 252p.

 

NEVES, Margarida de Souza. Rio de Janeiro, cidade da crônica. In: RESENDE, Beatriz (org.). Cronistas do Rio. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001. 163p.

 

PECCI, João Carlos. Vinicius sem ponto final. São Paulo: Saraiva, 1994. 459p.

 

RESENDE, Beatriz. Rio de Janeiro, cidade da crônica. In: RESENDE, Beatriz (org.). Cronistas do Rio. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001. 163p.

 

SÁ, Jorge de. A crônica. 6ª ed. São Paulo: Ática, 2005. 94p.

 

SATO, Nanami. Jornalismo, literatura e representação. In: CASTRO, Gustavo de.; GALENO, Alex. (org.). Jornalismo e literatura: a sedução da palavra. São Paulo: Escrituras Editora, 2002. (Coleção ensaios transversais). 180p.

 

http://www.viniciusdemoraes.com.br (acessada em 25/09/06, às 22:47)

 

No que se refere à literatura, Manuel Ángel Vásquez Medel afirma que: “a criação literária (...) enfrenta uma crise sem precedentes, ao questionar-se o próprio fundamento sobre o que tem se construído durante quase três séculos”. (MEDEL, 2002, p. 17). Já Florence Dravet (2002, p. 95) assume que o jornalismo brasileiro passa por uma crise e explica que: “Basta uma leitura mais atenta das revistas semanais de informação, dos grandes jornais de circulação nacional ou mesmo em boa parte das revistas especializadas, sobre qualquer tema, que o observador mais criterioso nota a falta da narrativa”.

Melo considera “latino” aquilo que diz respeito aos países europeus de língua latina – em oposição aos anglo-saxões –, excetuando-se os lusofônicos, e a países americanos colonizados por essas nações. Como, por exemplo, França, Espanha e Itália e suas colônias, se for o caso.

“É música. Música de violões se contrapontando. Música de batucada na tendinha; música de Ogum no terreiro. Às vezes, a voz estelar das pastoras, enredando em fios cristalinos a trama de um samba de enredo ou de uma marcha de sua escola” (MORAES, 2005, p. 775).

 

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