TRANSMISSÃO CORPO-ORAL

O ÉLAN VITAL DE UMA PESQUISA ACADÊMICA NUNCA PUBLICADA.

Prof a . Ms. Maria Alice Motta, UFRJ.

RESUMO

 

Há sessenta anos, a professora Helenita Sá Earp, na UFRJ, inicia uma pesquisa que se constrói sob uma síntese interdisciplinar dos aspectos do saber e fazer em dança; criando a Teoria Fundamentos da Dança.

Apesar de desenvolver toda uma estrutura lógica de ensino e criação para a dança, extremamente rica em minunciosidades e com um arcabouço profundo, nunca teve seu conteúdo organizado numa publicação. Isso não significa que seu estudo veio se perdendo ou enfraquecendo ao longo dos anos, contrariamente, manteve-se vivo, dinâmico – abrindo, inclusive, o espaço para a criação de uma graduação em dança na UFRJ – tal peripécia acadêmica foi possível através de um processo de transmissão que denominamos corpo-oral.

Tal processo de transmissão parte da premissa de que o conhecimento a ser divulgado não se constitua como um conjunto cristalizado ou cristalizante de informações; mas de um conhecimento íntegro, que se permita ser atualizado e dilatado, por meio de referenciais que atravessem essa dilatação, na medida em que são transmitidos/vivenciados.

Este texto trata da fluidez dos conteúdos da Teoria Fundamentos da Dança no tempo e no espaço de sua existência, uma vez que estes são transmitidos, consolidados e transformados durante várias gerações, unicamente pela via zelosa da corpo-oralidade .

Palavras Chave: Dança – Conhecimento – Transmissão Corpo-oral.

 

 

MOVIMENTOS DA FOZ

Prefiro as linhas tortas, como Deus.

(Manoel de Barros, 2002, p. 39).

 

Este texto aborda – de forma um tanto obtusa e tortuosa, assim como nascentes, margens e caminhos de rios – a questão da transmissão de conhecimentos na universidade. Ele não deseja expor formulações mágicas ou métodos infalíveis; vem apenas ilustrar – “contando” uma história – que, se o conhecimento é experienciado como acontecimento em todo o seu vigor, o movimento incessante do conhecer deixa de ser um conjunto estático de informações e formatações para torna-se aquilo que essencialmente é: a dinâmica incessantemente transformada do homem num velar e desvelar que constrói suas possibilidades dentro do real e que, simultaneamente, o constrói.

Para tanto, apresentaremos uma peripécia interdisciplinar e acadêmica na transmissão (termo que preferimos tratar como fluência) do conhecimento, através da correnteza de um processo que, por hora, denominamos Corpo-Oral. Tal processo vem dançando e, portanto, mantendo viva, há mais de sessenta e quatro anos, a Dança dentro da UFRJ.

Fluamos à história.

 

DO RIACHO

Em 1939, militares e burocratas do Ministério da Instrução e Saúde Pública implementam o primeiro curso superior de Educação Física do país (GUALTER, 2000) na Universidade do Brasil (1920-1965), hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Naquele momento, Helenita Sá Earp, contando, então, vinte anos, é convidada para ser catedrática na cadeira de Ginástica Rítmica. Ainda que a dança, neste momento, estivesse atrelada à Ginástica Rítmica, Helenita inicia um longo e árduo trabalho de pesquisa que, posteriormente, a tornaria uma disciplina autônoma e abriria caminhos para a dança dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Helenita Sá Earp inicia, portanto, há mais de sessenta anos, uma jornada em busca de novas propostas de ensino e criação para a dança.

Helenita entrevê, no fecundo campo da expressividade humana, a necessidade de um eixo norteador que – sendo um instrumental objetivo, dotado de uma clareza que possa refletir, contagiar, mas que pressuponha a escuridão, o obscuro – seja ubiquamente a possibilidade de liberdade e não cristalize quantitativamente e, simultaneamente, possa potencializar a criação através das possibilidades infinitas do movimento.

Entende que um dos objetivos da universidade era a formulação de teorias e estudos que articulassem as questões entre práxis e idéia. Justamente por caminhar dentro do âmbito universitário, suas pesquisas sobre o movimento, além de se pautarem nos pioneiros da dança moderna, embrenham-se em diferentes áreas do conhecimento superior, fazendo com que a estruturação de seus estudos se estabelecesse sobre bases interdisciplinares.

De forma recorrente, buscaria auxílio em outras linguagens e áreas do conhecimento (Medicina, Física, Matemática, Filosofia, entre outras) para um melhor embasamento de sua pesquisa, tornando seu Sistema interdisciplinar desde sua gênese.

 

Várias vezes [recorreu] a colegas das artes plásticas para trabalhar as noções de espaço e forma. [...] Ela buscou auxílio para construir parâmetros para a dança, tanto na medicina, quanto na física e na matemática. A construção [...] do Sistema Universal de Dança [...] deveu-se por um lado às influencias teóricas de Rudolph von Laban e de Isadora Duncan, mas se consolidou através de um longo e árduo trabalho de pesquisa multidisciplinar na universidade.(CARDOSO apud EARP, 2000, p. 10).

 

Debruçando-se sobre pesquisas científicas, artísticas e didáticas, compõe seu modus operandi através da interseção contínua entre teorias e práticas vivenciadas e debatidas em núcleos de experimentação que se constituíam como “laboratórios corporais, para a concepção, investigação e sedimentação das pesquisas” (GUALTER, 2000, p. 28).

Helenita vê a dança como uma atividade holística que não poderia estar encerrada nas rígidas circunscrições de estilos e escolas. Desta forma, rejeita a concepção fragmentada do ensino daquela época; pois, se o ser humano se compõe de aspectos físicos, mentais e emocionais, sua educação dentro da Dança deveria atender e proporcionar um crescimento simultâneo de tais aspectos.

Podemos afirmar a partir de suas próprias palavras, que em suas reflexões intelectuais, para além do horizonte estético, considera a dança como atividade que vai muito além do espetáculo, tendo uma função social e de ampliação do espírito humano.

 

A demonstração para o público deve ser considerada um resultado, que é bom não há dúvida, e nunca um fim em si. A dansa educacional não pretende formar artistas e sim libertar as qualidades do indivíduo que não podem ser arrancadas de seu íntimo por outro processo a não ser o do toque emocional. É claro que a arte deve vir ligada aos outros objetivos, uma vez que não se pode falar de dança sem pensar em estética. Digamos, porém que a arte é uma conseqüência entre muitas e não a única conseqüência. (EARP, 1945, p. 21).

 

Toda sua busca, no desenrolar de suas pesquisas, viria a se concretizar através da formulação de um sistema no qual constariam os princípios básicos que conduzem à ação corporal. O estudo e a investigação de tais princípios – onde os aspectos técnicos e criativos fossem desenvolvidos sem dicotomias – deveriam proporcionar a totalidade do ato estético, através do gesto pleno de consciência e poesia. Helenita promove a síntese de suas pesquisas, fruto de suas inquietações intelectuais e artísticas, através da criação do Sistema Universal de Dança , hoje intitulado Teoria Fundamentos da Dança.

 

COMO MOÍSÉS – ABRINDO PARÊNTESES

No mestrado, na construção de minha dissertação – que apresenta e aborda epistemologicamente uma introdução acerca dessa pesquisa profunda – algumas questões vieram à tona, questões que nunca me ocorreram pensar quando eu era menos acadêmica e fazia o Curso de Bacharelado em Dança da UFRJ. A mais urgente delas, por ser uma exigência dos cânones de construção de uma dissertação, foi o fato de que, apesar de desenvolver toda uma estrutura lógica de ensino e criação para a dança, extremamente rica em minunciosidades e com um arcabouço profundo, A TFD nunca teve seu conteúdo organizado numa publicação.

Ora, como proporcionar um recorte, a partir do qual toda uma dissertação vai se erigir, se o conteúdo deste recorte só está registrado nos corpos e experiências das pessoas que falam por ele? Helenita Sá Earp nos lega muito poucos registros sobre a estruturação original (o protótipo) do formato que atualmente é utilizado. Sim, ‘atualmente'; pois, apesar de contar com mais de sessenta e quatro anos de jornada, a pesquisa se mantém viva, dinâmica, atuante. Chegamos a uma pista (uma inconclusão) de que tal peripécia acadêmica – a terceira margem – só foi possível através de um processo de transmissão de conhecimentos ao qual denominamos corpo-oral .

Ainda que uma explicação profunda e dilatada deste processo não caiba no espaço deste texto – como já dito o assunto é uma inconclusão –, seguiremos brevemente essas pistas (afluentes), para iniciar uma compreensão e contextualizar a peripécia de um estudo que se inicia em 1939, se firma nas décadas seguintes e que, sem nunca ter sido publicado, mantém-se inteiro, atualizado e potente.

 

DOS AFLUENTES – O CORPO

Seja na plenitude litúrgica do atleta grego, seja na proposição de autômato em Descartes ou em correntes filosófico-religiosas, onde a negação ou a exaltação do corpo é prática ascética comum; o corpo é. Onde quer que haja tecnologia, ciência, história e cultura, haverá (ainda) a pré-sença do homem corporada . O homem é seu corpo e tem nele o único modo de existência – mesmo quando relegado a adjunto inferior.

Lembremo-nos de Nietzsche, o filosofo do corpo e da dança, nas palavras de Zaratustra:

 

Aos que menosprezam o corpo quero expor a minha opinião. O que devem fazer não é mudar de regras, porém simplesmente dizerem adeus ao seu próprio corpo e, por conseguinte, ficarem mudos. (NIETZSCHE, 1985, p. 25).

 

Isso nos remete ao nome original da TFD – Sistema Universal de Dança. Pois, embora a pesquisa tenha, acertadamente, mudado de nome, uma vez que a proposição Sistema seria, neste caso, um agente limitador de sua operacionalidade, ainda nos arriscamos a dizer que o corpo é termo constante para a dança. O delineamento dos fundamentos da dança sob a forma de parâmetros os coloca, coerentemente, como parâmetros do corpo. Ao investir sobre a conceituação do corpo dentro do arcabouço teórico, a pesquisa de Helenita propõe um corpo diferenciado (na realidade, um retorno ao corpo natural, íntegro ), distante das dicotomias históricas tradicionais que separam a ação intelectual da concretude corpórea; porque trazendo o corpo vivo/concreto para o campo teórico-coneitual interrompe-se a via que direciona a teoria como uma perspectiva abstrata e separada da realidade prática. Além disso, a Teoria , indicando o corpo como conceito fundamental – talvez o principal –, propõe que este deixe de ser mero instrumento e veículo formal – tela expressiva – da linguagem da Dança e passe a ser a potencialidade geradora da arte do movimento, de onde irrompe o gesto: o corpo é o Eu.

Dentro da TFD, o corpo não é somente o agente da técnica e/ou da expressão e/ou da fundamentação da dança, mas o fluxo de aspectos plurais re-unidos em um mosaico movente e (co)movido.

 

O corpo é fluxo e refluxo. É uma individuação do ser que está em constante processo de transformação das energias que se condensam em diferentes campos (físico, mental e emocional), interagindo continuamente entre si, formando o todo. O corpo vela e revela o ser. Deve ser compreendido e tratado em compatibilidade com o que é – a vitalização e revitalização da criação. (EARP, A. C., apud GUALTER et PEREIRA, 2000, p. 11).

 

O corpo é laboratório científico-artístico, investigador dos saberes próprios ao movimento e, paradoxalmente, desconstrutor e destruidor de conteúdos e concepções estabelecidas numa relação infinita entre preenchimento e esvaziamento, criação e destruição das imagens; um detonador de barragens que cerceiam a liquidez dinâmica do fluxo criativo.

O corpo, na TFD, é sempre um corpo humano integral e integrado; o corpo do devir, esgarçado e disponibilizado, onde as fronteiras físicas não delimitam tão somente o fim do conteúdo corporal e sim o início da possibilidade de outramentos. É o corpo sem órgãos , atravessado pelas semânticas e polifonias, pelas totalidades efêmeras e dispersões dinâmicas; dotado com a capacidade de buscar/indagar, incessantemente, o mundo e a si mesmo.

O corpo que dança, sendo uma unidade, é múltiplo. Nele, aspectos materiais (sua fisiologia), mentais (seu processos cognitivos), emocionais (suas vivências e sentimentos) e históricos (sua temporalidade) funcionam em uma simbiose inseparável e atualizada ao longo de sua existência. Cada um desses aspectos é singular, mas se remete a cada um dos outros, sem os quais não poderia ser. O Ser dançante não é uma síntese homogênea e indiferenciada, pois isso implicaria a mutilação da diversidade desses aspectos. Eles não deixam de ser o que são para se metamorfosearem numa única coisa uniformizada e homogênea. Aliás, contrariamente, celebramos a conservação de tais diferenças como plenitude da existência, compondo uma unidade complexa que, mesmo sendo transformada a todo o momento, propõe um sentido de permanência (o eu – o mesmo, mas não a mesma coisa ).

Esse mesmo corpo é a tecnologia de informação mais antiga da humanidade. E ainda continua sendo instrumento indispensável na transmissão dos conhecimentos em dança.

 

As primeiras formas de ensino desenvolveram-se a partir do corpo – meio de comunicação constituído por voz, entonação, gestos, intensidade do olhar, respiração. É no ato de uma pura performance que a Grécia inventa a ágora, portanto a democracia [...]. Em outras palavras, muitas idéias na cabeça e vocação de ator para corporificá-las. (ROCHA, 2003, p. 40).

 

A relação mestre-discípulo é muito antiga na arte. Podemos dizer que muitas das transformações ocorridas não só na arte, mas em todo o conjunto do conhecimento, partiram justamente deste encontro entre corpos.

A presença real do mestre era condição sine qua non do ensino. O diálogo platônico, enquanto gênero filosófico, representou a própria encenação dessa circunstancia. Igualmente, o sentido peripatético das lições de Aristóteles recorda o tempo todo que o filósofo também pensa através do corpo. (ibid).

 

Na dança, aliás, sua própria condição de arte, depende da interlocução e do afetar outros corpos. O gesto singular – que interfere no outro, o público, mesmo sem a existência do toque concretizado corpo a corpo – é possibilitado pela materialidade da intersubjetividade corpórea, constantemente atualizada para todos, dançarinos ou assistência. Acima das noções de emissor e receptor , próprias da ciência da comunicação, o que importa é o canal e, nesse sentido, tanto dançarino quanto público, professor ou aluno, são simultaneamente canais afetivos .

Temos, portanto, que o processo de aprendizado (mesmo atendo-se ao básico) e a transmissão de conhecimentos na dança, não obstante as relações de poder implícitas nessa questão, nunca dispensaram a interlocução corporal. As publicações, os impressos e os outros meios de intermediar essa fluência dificilmente partem de uma razão inteiramente abstrata .

 

DOS AFLUENTES – A ORALIDADE

Já em outras organizações sociais, a transmissão oral é o principal modo pelo qual o conhecimento e a cultura são perpetuados. O conhecimento faz parte do contexto cultural e é ensinado através de situações de convivência, o que nos indica que a transmissão entre gerações requer contato intenso e prolongado dos membros mais velhos com os mais novos. Isto acontece normalmente em sociedades rurais ou indígenas, nas quais o aprendizado é feito pela socialização no interior do próprio grupo doméstico e de parentesco, sem necessidade de instituições mediadoras.

 

A experiência de vida como prática das realidades do sujeito marca a presença existencial no relacionamento com o mundo, que, visto através de observações participantes empíricas nos vários encontros, vai descobrir os sentidos das histórias de vida. Desta forma, a abordagem empírica e experimental como vivência individual não apaga a realidade mas a incorpora. No trabalho do diálogo somos ao mesmo tempo sujeitos e objetos da experiência da fala, que ao mesmo tempo é pensamento e ação. (VARGAS, 2002, s/p).

 

Dançarinos dotados de uma compreensão que é transmissível dependemos, necessariamente, do corpo – ridiculamente chamado de suporte material – que é único para cada dançarino, a cada momento, a cada experiência. Se atualmente as ciências humanas resgatam a transmissão oral dos conhecimentos como fonte viva e considerável para suas pesquisas, pode-se dizer que a dança jamais teria sido formulada como um corpo de conhecimentos consistente, se a oralidade não a acompanhasse. Não são só os passos, as coreografias, os movimentos que são continuamente transmitidos e transformados; mas também métricas, tradições estilísticas, sistematizações dos conhecimentos, modos de criar, ver e viver a dança.

Quando se fala em transmissão oral, o efeito da palavra ou discurso se afigura como o principal meio de transmissão, porém esta comunicação também passa pelas atividades corporais, pela convivência e partilha de experiências, é atravessada pelo contágio, expressão que remonta aos períodos pré-científicos ou mágicos da humanidade como contato físico.

Na presente exposição, este contágio é fundamentalmente necessário para a transmissão. É preciso ser contagiado , tocado , para que o conjunto de conhecimentos trafegue nas vias do tempo. Um ótimo exemplo que ilustra esse tipo de divulgação do conhecimento são os eventos das religiões afro-brasileiras, que se mantiveram vivas no correr da história, sendo continuamente transformadas e multiplicadas internamente, tanto quanto desdobradas em muitas outras produções culturais e não-religiosas. Podemos percebemos que tal conjunto de conhecimento também obedeceu a uma “lógica” que teve na oralidade, nas vivências e em seu poder de contágio (afetação) o grande veículo de transmissão.

 

DAS CORREDEIRAS – ACUMULAÇÂO E TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO

Sabemos que a consolidação dos saberes no meio acadêmico – e no meio científico em geral (a partir do qual se erigiram as universidades brasileiras) – passa por uma aprovação da comunidade que a constitui. Normalmente, o assentamento e a discussão de uma hipótese passam pelo cunho do registro escrito, sem o qual o discurso inicial tende a perder a força e, até mesmo, o valor de seu conteúdo. Tal registro, normalmente, é veiculado através de instrumentos próprios para a divulgação científica – revistas, livros, defesas de dissertações ou teses. Estes recursos têm como vantagem o fornecimento de material concreto para a discussão e até para uma ampliação da qualidade e/ou do conteúdo da pesquisa. Essas formalidades, além da divulgação, almejam respaldo e validação através da aprovação de seus pares (o que demanda regras altamente específicas).

No que concerne à continuidade do trabalho desenvolvido por Earp, os cânones de registro acadêmico foram, por uma peripécia histórica, contornados. O meio de transmissão de suas pesquisas é o um dos impulsos vitais para mantê-la atualizada, pois a Teoria Fundamentos da Dança se desenvolve e se consolida por meio de investigações e vivências coletivas. Contato, contágio, afeto, oralidade – sem publicações.

Restrita, inicialmente, ao âmbito da cadeira de Ginástica Rítmica, começa a necessitar de um espaço que dê suporte às investigações e que possa fomentar o desenvolvimento da pesquisa. Em 1943, é aberta, então, a primeira Especialização em Dança e Coreografia dentro do Curso de Educação Física. Para que as pesquisas teóricas e práticas pudessem ser intensificadas e intercambiadas com a estrutura curricular da especialização é criado, simultaneamente, a Cia. de Dança da UFRJ, que se transforma num pólo de pesquisa.

A criação desses programas acadêmicos como centros de investigação fariam com que a dança crescesse e se consolidasse dentro da Universidade, sedimentando e consolidando os conteúdos ministrados nos programas existentes, promovendo um espaço constante de reflexão e crítica dentro da UFRJ.

Tais centros sempre foram espaços de convivência, investigação e troca, não só entre corpo docente e discente, mas também entre corpos disciplinares de várias áreas do conhecimento. A Pesquisa de Helenita se consolida no coletivo. Inaugurando e expandindo o espaço político da dança; tornando-a, primeiro, uma disciplina autônoma; depois, um departamento organizador de disciplinas; terceiro, um curso de graduação; e quarto, um curso de pós-graduação, formando especialistas em dança.

 

 

DA POROROCA – CORPO-ORALIDADE DE UMA TEORIA

O processo de transmissão corpo-oral parte, inicialmente, da premissa de que o conhecimento a ser divulgado não se constitui como um conjunto cristalizado ou cristalizante de informações; mas de um conhecimento íntegro, que se permite ser atualizado e dilatado, por meio de referenciais que atravessem essa dilatação, na medida em que são transmitidos/vivenciados. É um processo cognitivo que elenca emoção, raciocínio, memória e intuição.

Traçando o caminho da transmissão corpo-oral da Teoria Fundamentos da Dança , podemos destacar que ela se dá intensamente (e quase exclusivamente) no meio acadêmico, aonde vai estabelecendo espaços cada vez mais direcionados a excelência. Entretanto, por ter fugido aos cânones de registro acadêmico, o conteúdo da TFD não possui, atualmente, uma divulgação consistente no meio artístico, muito menos no acadêmico – está apenas nas apreensões singulares; transformando-se e transformado, em mim e em todos aqueles que foram afetados/atravessados por esse conhecimento.

Como ressaltado acima, foram os programas acadêmicos, muitos deles abertos a toda comunidade , que consolidaram a pesquisa TFD como um estudo respaldado, tanto em seu arcabouço formal, quanto na aplicabilidade e visibilidade de resultados. Mas se há um resultado, ele é essencialmente fruto de um movimento fluido, de uma teoria propícia aos diálogos com o que lhe é externo, com conteúdos dinâmicos, que rejeitam a estagnação temporal e seguem no rastro de cada pessoa que dela se utilize, sempre convocando à pesquisa e invitando um constante questionar aos seus conteúdos. Não é a utilização da TFD que enquadra e forja o dançarino ou professor; ao contrário, estes é que são agentes transformadores da teoria, que se torna, apesar de sua generalidade e rigor, generosa e singular a cada um.

Na TFD as coisas são definidas, mas nunca definitivas. É uma Teoria de Ambigüidades e simultaneidades “contraditórias”. A acepção do movimento enquanto arte é um resultado possível dentro da proposta da TFD. Diferente de uma teoria científica, não está implicada em criar caminhos corretos e seguros para a acepção garantida de um dado evento; mas propõe, claramente, diretrizes amplas que possam nortear o acesso ao desvelamento do movimento como arte. Propõe a formação (e não a formatação) de corpensantes . Nela, enfoque é dado aos aspectos do fazer e do saber em dança – o lugar da possibilidade de realização – como um “ tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer ” (PAREYSON, 1997, p. 26).

Por isso, apesar da tentativa de escrita – e do risco da cristalização –, ela só pode ser transmitida ( ser fluída ) e compreendida na vigência da corpo-oralidade. Pois este é o topos da insatisfação permanente e do infinito questionar ao movimento, impostos pela necessidade da criação artística. É o espaço da transpiração e inspiração, dos reflexos e reflexões; onde as comportas poéticas são sensibilizadas e poderão desaguar em gesto.

Ainda que cause surpresa, é perfeitamente aceitável que o trabalho de uma vida dedicada à dança e à educação, construído solidamente dentro dos parâmetros universitários de pesquisa e extensão, ganhe seu respaldo pelos anos de aplicação e solidez, ainda que sem uma publicação – principalmente, porque, ao estruturar o Bacharelado em Dança da UFRJ, a TFD se torna um corpus independente de sua criadora, passando a ser conhecimento transmitido e transbordado ao público discente. Ganha espaço no campus e alça vôo para outros campos. Talvez, hoje, o registro tenha se tornado uma necessidade. Então, que se deixe registrado: se não houver a continuidade pela transmissão corpo-oral , este conteúdo tão rico poderá se perder em cristalizações estéreis ou até cair no esquecimento.

 

DO DESAGUAR... (Ou transbordando!)

A fundamentação proposta pelas pesquisas de Helenita Sá Earp fez mais que ampliar meu cabedal de conhecimentos sobre a dança, fez com que eu me apaixonasse pelo conhecimento. E o desejo de conhecer é agenciamento incessante que engendra sempre outras e muitas possibilidades. A própria Teoria traz em si a potência dos agenciamentos e convida a ser infinitamente explorada, desvelada em potencialidades.

O fato de não haver uma publicação sistematizada sobre as pesquisas de Helenita fez com que meu desejo de conhecer profundamente a dança fosse direcionado para a continuação e o desenvolvimento das pesquisas sobre a Teoria . Esse fluir do conhecimento só se faz possível a partir do que em mim – enquanto ser fundante-fundado da/na poesia, que atravessa e habita carne, sangue, ossos – materializa e atualiza constantemente a arte em ato, o ato em fato, concretude dinâmica corpórea (eu).

Mais de sessenta e quatro Anos de transmissão corpo-oral de conhecimentos acadêmicos em Dança. Despautério? Talvez, mas somente a arte pode fazer tremer as paredes seculares do conhecimento institucionalizado e, através de pequenas fendas, fluir até acomodar (ou incomodar) um rio, quiçá um mar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

 

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___________________. Síntese Pedagógica das Atividades Rítmicas Educacionais. In Arquivos da Escola Nacional de Educação Física e Desportos . Ano III, n. 5, 1948. p. 35-47. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, Escola Nacional de Educação Física e Desportos, 1947. Disponível em: http://www.ceme.eefd.ufrj.br/docs/mdenefd.html. Acessado em Agosto de 2005.

 

___________________. Noticiário. In Arquivos da Escola Nacional de Educação Física e Desportos . Ano VIII, n. 8, 1954-1955. p. 137-139. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, Escola Nacional de Educação Física e Desportos, 1945. 162 p. Disponível em: http://www.ceme.eefd.ufrj.br/docs/mdenefd.html. Acessado em Agosto de 2005.

 

GUALTER, Kátia A Institucionalização da Dança na UFRJ e a sua Disseminação no Estado do Rio de Janeiro in I Coletânea de Artigos do Departamento de Arte Corporal. Papel Virtual: Rio de Janeiro, 2000. 136 p.

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DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia prática . São Paulo: Escuta, 2002. p.55 “As afecções ( affectio ) são os próprios modos. Os modos são as afecções da substância ou dos seus atributos. [...] Em um segundo grau, as afecções designam o que acontece ao modo, as modificações do modo, os efeitos dos outros modos sobre este. De fato, estas afecções são imagens ou marcas corporais [...] e as suas idéias englobam ao mesmo tempo a natureza do corpo afetado e a do corpo exterior afetante”.

 

Grupo de pesquisa e produção artística de dança UFRJ, dirigido pela Professora Helenita, com o nome de Grupo Dança; Programa Interdisciplinar de Iniciação e Profissionalização Artística em Dança do Departamento de arte Corporal, dirigido pela professora Ana Célia de Sá Earp; divididos em dois extratos: GID (Grupo de Iniciação à Dança) e GED (Grupo Experimental de Dança).

 

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