O CONCEITO DE MUDANÇA EM JOSÉ DE ALENCAR

 

Marcelo Peloggio, Dr. em Literatura Comparada pela UFF.

 

Resumo

O artigo procura abordar o conceito de mudança, sob uma perspectiva ampla, ou antes, filosófica (e mesmo ecológica), na obra estética e política de José de Alencar. Tenta, desse modo, também, revitalizar a imagem do autor cearense, considerado, muitas vezes, como o dono de uma visão nacionalista demasiado estreita.

 

Palavras-chave

José de Alencar; Conceito de Mudança; Filosofia.

 

É inegável, hoje, o crescente interesse pela obra ficcional e política de José de Alencar. Porque nem sempre fora assim, posto que sua fortuna crítica lhe tenha dedicado uma extensão formidável de monografias e pequenas resenhas. No meio universitário, no ensino médio, o autor nem sempre granjeou a acolhida simpática e amistosa: fora tratado por chato, ingênuo, sem politização ou reacionário, e mesmo excêntrico, à conta do seu temperamento, pois que era misantropo e altivo.

Os trabalhos acerca de sua obra ficcional percorreram caminhos por demais parecidos: no mais das vezes, estudos formais, atentos à dicção e estrutura dos romances; e geralmente em torno de O guarani e, principalmente, Iracema . Muitos comentadores, de orientação realista, deram continuidade às mesmas exprobrações de que autor de Mãe foi alvo nos anos 1870, quando esteve sob o fogo pesado dos que defendiam o estilo “seco e positivo”.

Mas por ser-lhe a obra vasta, como resultado de uma produção incessante e febril, e isso em um curto espaço de tempo, é razoável que a crítica se oriente pelo senso comum: as obras de maior nomeada. Outras ficaram esquecidas, e continuam no limbo. Mas o geral da produção alencarina tem o dedo do gigante. Por isso é certo dizer que, em termos de inteligência brasileira, o século XIX deveria ter como sua principal referência o criador de O guarani .

E isso, principalmente, por ter tido o Brasil como tema; mas também foi homem atento às transformações capitais pelas quais passou o mundo e, por extensão, o próprio Brasil, que ele, Alencar, divide em dois: um estético, de valor necessariamente pedagógico; e outro positivo, a reclamar medidas práticas, a requerer a deliberação de homens empenhados e cônscios de suas obrigações, tanto no parlamento quanto na pele do cidadão comum. Para este segundo caso, em dada altura de as Cartas de Erasmo (1865), pergunta Alencar:

 

O que é a nossa atual aristocracia?

Composta em geral de duas classes de pessoas, os abastados de inteligência e escassos de cabedais, e os ricos de haveres mas pobres de ilustração; raros, bem raros são os que têm a força de se conservar em sua órbita. Aqueles, urgidos pela sedução do luxo e mesmo pela necessidade, buscam nos altos empregos públicos e elevadas posições uma renda, ou as facilidades de alianças e estabelecimentos avantajados. Estes, pruridos pela vaidade, se oferecem aos desejos dos primeiros em compensação de graças e consideração.

Há [...] caracteres íntegros nesta classe; há talentos puros, e riquezas modestas. Desgraçados de nós se não houvessem; mas infelizmente são poucos; e os outros têm o cuidado de os deixar na sombra (Alencar, 1960a: 1080).

 

Defender o Brasil em duas frentes sempre lhe constituiu o mister. Sabemos que ergueu um Brasil, ora imaginário (o do Alencar dos idílios e das façanhas épicas), ora verdadeiro (o do escritor atento e minucioso); mas buscou servi-lo também acusando o clientelismo, a degeneração das relações institucionais, o rebaixamento da integridade de uns, aqui e ali, à força da privação ou da ambição mesquinha. O que se quer dizer é que sempre foi pelo desenvolvimento do país, na forma da ação fundamentada e consciente; em suma, pelo bom senso na condução prática da vida nacional.

Poder-se-ia objetar que, no caso de as Cartas de Erasmo , José de Alencar extrapola os limites do razoável, ao pedir uma intervenção demasiado enérgica do imperador em relação à decadência geral em que se achava o país: daí que, segundo elas, “o Poder Moderador é o eu nacional” (Alencar, 1960a: 1085). No entanto, o autor de Lucíola , com extrema lucidez, faz lembrar a dom Pedro II:

 

Senhor.

Sentida a urgência indeclinável de vossa iniciativa, como o único meio eficaz e prudente de tirar o país da estagnação em que há anos se debate, cumpre estudar o modo prático por que essa revolução pacífica se pode consumar dentro dos rigorosos limites da constituição.

Esse estudo abrange a importante questão do sistema segundo o qual deve funcionar a Coroa na monarquia representativa (idem: 1082).

 

Daí que é preciso cuidado na interpretação do conceito de mudança em José de Alencar; dizemos no sentido de mudança social e política. A idéia alencarina, em face das demais correntes de pensamento, sobressai pela capacidade que tem de propor transformações sob a forma de um trabalho de larga e funda meditação. A diferença dá-se, a princípio, no terreno da linguagem, pois aí o criador de Senhora é tido e havido como um revolucionário, isto é, pelo modo brasileiro com que escreveu o português; todavia, mesmo aí, a mudança não aconteceu sem disciplina e planejamento – aos que o acusavam de escrever o português com incorreção, seus argumentos gramaticais mostram-se extremamente sólidos. É o que explica a originalidade da prosa poética de Iracema , em que “repontam um novo estilo e um novo ritmo que fazem de Alencar um dos três renovadores da linguagem literária no Brasil. Os outros dois: Mário de Andrade e Guimarães Rosa” (Proença, 1971: 49).

Com ar de ironia, estende seu conceito de mudança ao pós-escrito a Diva (1864): “o autor deste volume e do que o precedeu com o título de Lucíola sente a necessidade de confessar um pecado seu: gosta do progresso em tudo, até mesmo na língua que fala” (Alencar, 1951a: 311). Mas talvez seja de maior valia outra definição, apresentada sob a pena coquete e folhetinesca do tempo das estréias. Em dezembro de 1856, escreveu Alencar:

 

Os filósofos, quando tratam do destino da humanidade, servem-se de uma palavra oca e sem sentido – o progresso .

Mas quando se lhes pergunta o que é o progresso, não o sabem definir; dizem apenas que é a faculdade que tem o homem de aperfeiçoar-se.

Semelhante definição é inadmissível; se o progresso é o instrumento da perfectibilidade, parece que mais cedo ou mais tarde a humanidade devia chegar à perfeição.

Ora, esta hipótese é um absurdo; a perfeição é Deus, e a humanidade não pode nunca divinizar-se.

O que se segue pois é que o progresso, como o entendem os filósofos, seria uma causa sem efeito, um movimento sem ação.

Mas é que os filósofos se enganam completamente.

O progresso não é a faculdade de aperfeiçoar-se (Alencar, 1995: 139-40, grifos do autor) .

 

Sua noção de mudança, desde esses dizeres, não sofreu qualquer transformação: com efeito, não é possível entender a mudança como “um movimento sem ação”; e se o progresso é causa que não comporta efeito, à humanidade não estará reservada essa ou aquela direção através de uma jornada natural e espontânea; em outras palavras, “a concepção de uma lei que determine a direção e o caráter da evolução é um erro [...], oriundo da tendência para atribuir à ‘Lei Natural' as funções tradicionalmente atribuídas a Deus” (Popper, 1974: 340).

Mas, igualmente, o pressuposto de uma “causa sem efeito” não nos permite afirmar que, na presença de uma, haja uma predeterminação qualquer no caminho da humanidade; pois a causa não é última e nem primeira, de vez que, “sem efeito”, não haverá fim; em José de Alencar ela guardará outro nome: idéia , que há de conferir grande poder de representação ao conceito de história: “Vou folheando uma a uma [diz Alencar] as páginas desse álbum de pedra [a história]; no qual o tempo, esse sublime arquiteto de ruínas, elevou umas sobre as outras estas diversas gerações de casas, sob cujos tetos desaparecerão outras tantas gerações de homens” (Alencar, 1981b: 111).

Também no criador de Ubirajara o estado de mudança é sempre circunstancial e relativo. É que as categorias de hoje, como tudo na vida, caducam, sendo por isso “contemporâneas” às que já se foram, firmando, desse modo, uma admiração recíproca entre aquilo que foi e o que será:

Visto do nosso século, o homem animal da primeira idade toma um aspecto maravilhoso, do mesmo modo que o homem mecânico do presente encheria de pasmo as primitivas gerações. Assim como Hércules com sua clava se nos afigura um mito; Krup com seu canhão seria um semideus para os helenos (Alencar, 1981d: 208-9).

 

À luz de tal perspectiva, nessa aliança do passado com o presente, é que haverá de constituir a língua um “instrumento das idéias” (Alencar, 1951b: 194), que podem ser traduzidas das atitudes físicas: “O amor é uma lira; de todas a mais suave e melodiosa. Quem ama é poeta. Quando falta a eloqüência da palavra para exprimir as emoções íntimas, a alma inventa um meio qualquer, um gesto, um movimento, uma careta, uma loucura, que lhe sirva de linguagem” (Alencar, 1981c: 201).

Sendo assim, os seres e as coisas do Brasil tomarão, em sua pena, um aspecto iluminado, solar: potência empregada a cada lida, em cada um dos embates a que se viu lançado o autor de Lucíola ; porque hão de movimentar as opiniões, colocando o país numa ampla pauta de discussão; hão de constituir, portanto, como idéia , o veículo poderoso de expressão do artista de estro e do publicista (a grande repercussão de O guarani e de as Cartas de Erasmo ), ou do parlamentar muito firme em face de grandes adversários (como Zacarias e Silveira Martins). Representarão as idéias alencarinas, do ponto de vista da teoria do conhecimento, conceitos superiores.

Como idéia , sua visão de Brasil não busca outra coisa senão a edificação mesma da nacionalidade brasileira. Terá ela aí grande força de impacto. O primeiro exemplo de seu emprego dá-se na crítica feita ao poema de Gonçalves de Magalhães – A confederação dos tamoios (1856) –, ou antes, à sua tentativa de representação da vida nacional no clima específico do indianismo e da celebração da natureza. Dessa crítica forte e sistemática, ao que tudo indica, aparece então O guarani (1857), abrindo o indianismo alencarino, que é continuado, sob a mesma diretriz, em Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Divisa-se, geralmente, a intenção de se realizar o “verdadeiro poema nacional” no segundo livro; todavia, essa idéia já se achava consolidada na poesia do herói índio Peri:

 

Não é isso a poesia ? O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse berço perfumado, no meio de cenas tão diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno, não é um poeta ?

Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ignorante do que se passa nela, vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma.

Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam o livro da criação; é a flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes coisas que a natureza fez sorrindo (Alencar, 1955: 250).

 

De fato, sua visão de Brasil é mais fortemente sentida, como conceito de mudança, no que concerne ao experimentalismo da língua portuguesa. O escritor lusitano Pinheiro Chagas censura esse concurso, e afirma que os brasileiros, como no procedimento alencarino, insubordinam-se contra a “tirania de Lobato” de uma forma que toca quase o ridículo (Chagas, 1868: 221). Ganha eco sua exprobração, e uma fileira de críticos resolve zurzir, a torto e a direito, a prosa lírica do criador de Iracema .

A contrapartida de Alencar revela-lhe todo o quilate da idéia de Brasil. Responde a Pinheiro Chagas com método e argumentação poderosíssimos, com o mesmo acontecendo às “Questões filológicas” do brasileiro Antônio Henriques Leal. De ambas as polêmicas, extrai-se a idéia de uma cultura autônoma, em virtude do mister da própria linguagem:

 

Quando povos de uma raça habitam a mesma região, a independência política só por si forma sua individualidade. Mas se esses povos vivem em continentes distintos, sob climas diferentes, não só rompem unicamente os vínculos políticos, opera-se, também, a separação nas idéias, nos sentimentos, nos costumes, e, portanto, na língua, que é a expressão desses fatos morais e sociais (Alencar, 1951b: 194).

 

De igual modo, sua idéia de Brasil terá força enunciativa em face do avanço das noções utilitárias, de natureza totalizadora e permanente. O progresso, conforme vimos, “não é a faculdade de aperfeiçoar-se”. Ou seja, a aplicação dos métodos e categorias do “sistema positivo” não trará melhoria, tanto social como politicamente considerada; nem se apresenta como “lei independente própria” (Stuart Mill).

Basta lembrar a posição alencarina com relação a uma visão técnica do mundo: compreende um pessimismo agudo e lacônico; pois o progresso, em geral, nada traz de realizador, senão condenar a vida à degeneração. É o que vai mostrar o poema épico inacabado Os filhos de Tupã (1863), a representar então o desenvolvimento industrial pela invasão “cinza” da locomotiva:

 

Aqui virá pisar com férrea pata

As flores mais mimosas de teus vales

E a túnica de relvas que te cobre.

Cavalga a fera o gênio do progresso,

Espírito de luz; são chama as asas,

Tem do corisco o vôo; o rastro é cinza.

E deve profanar-te, gentil pátria,

A graça virginal destas campinas,

Culto bastardo de emprestadas artes? (Alencar: 1960b: 565).

 

Ou ainda, com relação à ciência:

 

Nem a civilização que o homem gasta

Como vil combustível, consumindo-o

Na chama que depura a humanidade;

Nem soberbos inventos, que do mundo

A loucura presume que o realçam,

Mas só revelam dele a niilidade,

A nobre singeleza desfloraram

Destes campos. Ainda aqui não veio

A ciência arrogante, cujo orgulho,

Se atreve a disputar, verme da terra,

Ao Senhor os mistérios do infinito (idem: 564).

 

Mas precisa-se de cautela para não se dilatar uma tal perspectiva: pois ingênua seria a posição que qualificasse José de Alencar como inimigo das inovações técnicas. E porque representam perigo imediato àquilo que lhe é mais caro – a natureza tropical, carro-chefe de sua poesia –, não implica dizer que não sejam importantes; todavia, a intuição alencarina da realidade extrairá o preceito valioso para o equilíbrio nas decisões práticas . Nesse sentido, foi um realista de primeira, sempre intervindo com admirável amplitude e extemporaneidade: muito como político e romancista 2 , mas, sobretudo, quando tenta a filosofia da história. Pode-se afirmar, mesmo, que ele “é muito mais capaz de ser compreendido por um supra-realista de 1965 do que por um realista de 1885” (Lima, 1965: 65). Demonstração inequívoca de sua atualidade, em que aponta o fundo desequilíbrio na relação homem-natureza, o prova este trecho de 1876:

 

Mais alguns séculos e as populações invadirão as regiões agora desertas. As cidades dilatadas em impérios, os impérios aglomerados em continentes. De onde sairá a seiva para nutrição desse mundo espantoso? De uma terra sufocada pelas construções humanas, esterilizada pelos detritos de matéria mal consumida e por conseguinte não assimilada?... A intervenção divina é infalível. Outrora se manifestou pelo dilúvio. Chegará a vez da combustão (apud Lima, 1965: 68).

 

E tinha também, como acabamos de ver, à maneira dos positivistas, a percepção do desenvolvimento histórico – mas para pior. Alceu Amoroso Lima, a partir dela, esclarece uma teoria cíclica, nestes termos:

 

É uma visão mais próxima dos involucionistas de hoje ou mesmo dos evolucionistas críticos como Teilhard de Chardin do que a do evolucionismo naturalista e monolinear, do progresso contínuo, que desde Condorcet dominava o seu tempo e a filosofia positivista e evolucionista que seu tempo apregoava. Para Alencar a natureza supera a técnica e a evolução multilinear ou recorrente domina a evolução monolinear e progressiva (Lima, 1965: 66).

 

Não sendo entusiasta pelo progresso, só poderia estar na contramão da maioria do seu tempo. E é justamente isso que não o faz determinista: traz de volta o homem à cena da vida, já que não haverá uma “grande lei” a ditar os rumos da população mundial, instalando-a num melhoramento sem fim, como queria Comte (1973: 71 e 91).

É o que melhor resume os dois Alencares, identificados acima: para desatar algumas de suas idéias em sonho, foi ao romance; para tratar da realidade, com pertinência e firmeza, ocupou-se da história e da política. E isso sem jamais colocar em segundo plano o próprio homem; mas reconhecendo-lhe as fraquezas, denunciando-lhe as paixões; não partindo senão de suas ações reprováveis ou meritórias. Portanto, na vida, tudo pode acontecer ; pois a opinião é vária, sendo a idéia de uma “unidade espiritual” um absurdo: “A unanimidade é impossível na sociedade humana, pois importaria inércia e decomposição; sem o contraste que provoca a resistência e a luta que agita, a razão condenada à imobilidade acabaria por aniquilar-se” (Alencar, 1868: 28).

Por conseguinte, não haverá ciência que adivinhe a vontade humana, seus “atos inexplicáveis e tão contraditórios, que derrotam a perspicácia do mais profundo fisiologista” (Alencar, 1953: XV, 293) 3 . Ou como na pergunta de Aurélia a Seixas, em Senhora (1875): “– Não lhe parece um disparate esta ciência pretensiosa que se mete a explicar e definir o incompreensível, aquilo que não entende o próprio que o sente, e que sente-se, sem ter muitas vezes a consciência desse fenômeno moral ? ” (idem: 329-30).

Nem a ciência nem o devaneio político podem diminuir a importância do homem: sem este, é óbvio, não seriam possíveis um e outro. Na primeira, Alencar reconhece o sentido abusivo na tentativa de abarcar todos os fenômenos; ou a pretensão de se reduzir a arte a uma de suas categorias (naturalismo) – a lembrar sempre que o autor cearense chamou a obra de Haeckel “romance biológico”; que “não se compadecia, absolutamente, com a observação e as demonstrações experimentalistas, que invadiam tudo” (Araripe Júnior, 1958: 240 e 242). Talvez o questionamento lapidar de Lukács caiba aqui: “E a vida profunda das coisas ? A poesia das coisas ? ” (1968: 76). Como olvidar, pois, sua relação com o homem, o que lhes confere justamente valor e significação histórica ? Mas se todos e cada um, sem exceção, não dispuserem de si mesmos, a não ser quando a regra científica impõe ? quando se acredita poder descobrir as leis do desenvolvimento histórico, as quais assegurariam manter-nos em caminho rumo à felicidade ?

A esse império da “ciência” Alencar põe-se irônico: “O Brasil não está em pleno progresso segundo dizem e não obstante...” (Alencar, 1981a: 180). Na opinião de uma de suas personagens, parece alfinetar o positivismo ao enfocar o automatismo humano: “– Compreendo. Ensino obrigatório; o homem máquina; criação e engorda do gado humano para a gleba da indústria, para o matadouro da guerra. É aonde te levam as suas doutrinas, que por antonomásia chamas liberais e democráticas” (Alencar, 1981d: 206).

Daí que “a poesia é a verdadeira ciência; ou antes, é toda a ciência, desobstruída de sua tecnologia rebarbativa, e restituída à simplicidade, que a torna popular e humanitária” (idem: 206). Em relação ao fato de se tentar subordinar a vida mesma a preceitos de exatidão, certeza e objetividade, acrescenta ainda:

Não é decerto minha intenção invadir os domínios da ciência. Podem os botânicos inventar quanto nome grego e latino lhes aprouver para apelidarem as plantas; podem fazer a autópsia das inocentes criaturas para reduzi-las a sistema; mas as flores, como mimos da natureza, pertencem à literatura; são do domínio da poesia (Alencar, 1953: XII, 130).

 

À segunda – a ilusão política –, Alencar opõe o bom senso, já que o sonho de se atingir um estado utópico, seja mediante o uso da força, ou através do argumento pseudocientífico, não passa de exageração romântica 4 .

Por isso que Alencar é pintado, muita vez, por conservador intransigente, defensor da “ordem”, a refletir “a mentalidade das elites brasileiras”, ou melhor, por não mostrar-se “progressista”, como no caso do fim do cativeiro, em que defende a extinção lenta e paulatina.

Pelo contrário. Tanto no plano estético quanto no político, teve por lema a mudança fundamentada e essencial: sua idéia reside justamente aí. Porque traz de volta o homem à cena da vida, refutando assim o “homem máquina”, o “gado humano”. E, nessa escalada do biológico para o espiritual, vão sobressaindo, a pouco e pouco, mais e melhor, seus conceitos fundamentais, desconhecidos por uns, desdenhados por outros; porém, capazes de inserirem outra vez, no seio da comunidade universitária, não só o escritor talentoso, ou o político lúcido e reto, e sim, antes do mais, o grande homem do século XIX brasileiro.

 

 

Notas

 

1. É o caso do problema da escravatura, da qual Alencar defende a extinção “espontânea e natural”, criticando a Lei do Ventre Livre. Conforme Luiz Fernando Valente (1997-1998: 106), “o próprio discurso no qual Alencar ataca a Lei do Ventre Livre evidencia uma compreensão tão profunda quanto profética dos problemas sociais e econômicos que teriam que ser enfrentados após a abolição. De fato, o pessimismo alencariano quanto ao destino dos ex-escravos abandonados à sua própria sorte seria, infelizmente, confirmado pelo crescimento dos cortiços ou favelas no Rio de Janeiro a partir do final do século XIX [...] e pela discriminação sócio-econômica sob a qual a maioria da população afro-brasileira vive ainda em nossos dias”.

2. Em seus romances urbanos, Alencar não se furtará à observação da realidade e à análise psicológica; é possível dizer que haverá neles, com efeito, uma espécie de “aproximação com o real”. Sobre o assunto, consultar o excelente estudo de LIRA, Pedro. Antecipações realistas em Alencar, Convivência , Rio de Janeiro, nº 6, pp. 33-43, dezembro de 1982.

3. Cf. M. Cavalcanti Proença (1966: 86), para Alencar, fisiologia “significava observação da natureza – estudo de uma natureza, no caso um personagem”. Não concordamos com esse ponto de vista, dado o cunho científico que José de Alencar atribui ao termo.

4. Daí a importância concedida ao voto; ou melhor, à sua universalidade como instrumento fundamental à democracia representativa; logo, “o voto é o elemento da soberania; a representação e o meio de concentrar a vontade nacional para organização do poder público” (Alencar, 1868: 9).

 

 

Referências Bibliográficas

 

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