DÉJÀ VU

 

 

 

Marcelo da Rocha Lima Diego

Graduando em Letras na UFRJ, habilitação em Português-Literaturas

e em Artes na UERJ, habilitação em História da Arte

 

 

 

Resumo: Em um primeiro movimento, este trabalho analisa comparativamente o livro “A Invenção de Morel”, de Adolfo Bioy Casares, e o filme – cujo roteiro é nele inspirado – “Ano Passado em Marienbad”, de Alain Resnais, observando os mecanismos de transposição fílmica da obra literária. Parte-se, então, a partir das convergências temáticas, formais e propositivas de ambos os textos, para uma reflexão sobre a categoria do “déjà vu”, tanto como tópica discursiva quanto como concepção estética. Designando o “já visto”, esta expressão – este fenômeno – pressupõe a sobreposição de planos de realidade quer no âmbito psicanalítico (viés não abordado), quer na experiência da arte e da realidade – poética. Busca-se, através dos estudos contemporâneos sobre virtualidade, apreender – em caráter preliminar, na forma mesma de leitura dos textos-base – o lugar do “déjà vu” na ficção e fora dela.

 

Palavras-chave : Literatura ; Cinema ; Virtualidade.


Introdução

Ao refletir sobre a história e a contemporaneidade, a partir de suas formas de representação, não podemos nos furtar de pensar as questões relativas à virtualidade – palavra cada vez mais comum no dia-a-dia do homem contemporâneo, permeando suas relações com seu corpo, sua terra e seu mundo; todos estes, já agora, na expressão de Baudrillard, hiper-reais. A virtualidade designa, no entanto, um sem número de experiências diversas, sendo o adjetivo “virtual” usado tanto como sinônimo que “possível”, quanto de “visível”, e ainda relacionado ao universo da tecnologia computacional (neste sentido, dito “digital”). Embora haja conexões entre essas acepções, é importante que tentemos, como forma de compreensão, apreender os planos do virtual, delinear as categorias de manifestação da virtualidade.

Dentro de uma perspectiva interdisciplinar, abordaremos a questão buscando auxílio na literatura e no cinema, através de duas obras que oferecem brechas para entrarmos no problema. A arte, enquanto modo de saber, oferece em suas próprias manifestações tratados sobre assuntos internos e externos a si. Arlindo Machado (Machado, 2003) designa, no âmbito do cinema, como “filme ensaio” as produções cinematográficas que constroem, em formas outras que não a tradicionalmente verbal, discursos científicos e filosóficos análogos ao que se convencionou chamar, na escrita, de ensaio. Ampliando o conceito, podemos propor a idéia de “obra-ensaio” como a de toda obra de arte que, utilizando-se de suas próprias características de linguagem, contém uma postulação filosófico-ensaística.

As duas obras-ensaio que nos auxiliarão serão o livro “ A Invenção de Morel” , de Adolfo Bioy Casares, e o filme “O Ano Passado em Marienbad”, de Alain Resnais, sendo o segundo uma transposição para as telas do primeiro. Surge, assim, a problemática da transposição de temas e conteúdos da literatura para o cinema. A que se efetua entre as obras em questão não é literal, ao contrário, é criativa, e traz à luz aspectos importantes do diálogo entre as linguagens.Ao construir esta nossa reflexão como uma experiência de leitura comparativa das obras indicadas, pretendemos somar, ao desejo teórico, o prazer do contato com o texto. No cotejo do livro com o filme, uma temática recorrente é a do “déjà vu”, compreendido no senso-comum como a sensação de estar percebendo algo já percebido anteriormente, porém sem conseguir identificar a situação e o momento da primeira ocorrência. Das abordagens feitas à questão no livro, no filme e no confronto de ambos, é que surge a questão: será o “déjà vu” uma possível categoria da virtualidade?

O caminho de nossa investigação será o seguinte: primeiro, contextualizaremos e faremos um breve relato do livro e do filme que nos servem de base para a reflexão; logo depois observaremos alguns aspectos teóricos que envolvem a transposição de obras literárias para o cinema; em seguida, faremos uma análise comparativa das duas obras em questão através de elementos estruturais como o espaço, o tempo e os personagens; logo após nos focaremos na presença da máquina nas obras referidas e na cultura contemporânea; para em seguida discutirmos o conceito de virtualidade; e concluirmos, recolhendo os argumentos sobre o “déjà vu” tecidos ao longo das seções.

 

A Invenção de Morel

Adolfo Bioy Casares, escritor argentino – um dos pilares do que mais tarde viria a ser chamado de Realismo Mágico na América espanhola –, escreveu A Invenção de Morel em 1940. Seu grande amigo e conterrâneo, Jorge Luis Borges, que assina o prólogo da obra, diz que não seria “uma imprecisão nem uma hipérbole qualificá-la de perfeita”. De fato, o livro se perfaz. Tanto no plano da fruição, no qual é sobejo, quanto como uma enunciação conceitual, o romance é fundador. Outro aspecto que Borges ressalta é a relegitimação que Casares faz com a narrativa de aventura, tão desprestigiada pelos modismos psicologizantes, lembrando, a propósito, a profundidade e o caráter paradigmático de narrativas eminentemente fabulares, como O Processo , de Kafka, por exemplo. Pode-se, assim, chamar a obra do portenho de Suspense (ou Aventura) Existencial.

O livro, narrado no melhor estilo policial, conta a história de um fugitivo venezuelano (o narrador) que se refugia em uma ilha distante e inabitada no Pacífico. O crime cometido não é mencionado, mas o medo de ser preso e a afirmação de inocência são constantes. A ilha, na qual chega remando um bote, lhe fora indicada por um comerciante italiano que conhecera na Índia, no decorrer de sua fuga; o lugar parecia o ideal para um fugitivo pois tinha a fama de conter uma terrível peste, que matava as pessoas aos poucos, provocando a queda paulatina dos pelos e da pele, de fora para dentro – deste modo, a ilha era jamais visitada ou inspecionada por ninguém. Lá chegando, o fugitivo se abriga primeiramente nos pântanos, mas descobre em pouco tempo as ruínas – já mencionadas pelo italiano – de um museu, uma capela e uma piscina, que pressupõe abandonados. No entanto, para sua surpresa, as instalações encontram-se ocupadas por um grupo de pessoas, damas e cavalheiros, amigos em férias.

O fugitivo observa esses visitantes, sem ser notado, e logo se enamora por uma dama, Faustine, bela e melancólica, a quem, como ele, aprazia ver o pôr-do-sol de uma determinada pedra. Cria então coragem e se apresenta para a moça; esta no entanto, parece não notar a sua presença; aos poucos percebe que todos os visitantes não o notavam. Em breve, outro estranhamento: o desaparecimento dos mesmos – e alguns dias após, o reaparecimento, sem sinais de deslocamento. Aproveitando-se de seu trânsito livre entre aqueles sem ser notado, o fugitivo/ narrador explora o museu, que na verdade é mais uma mansão, um hotel, e, ao ouvir uma conversa solene entre os visitantes, e ao descobrir um estranho mecanismo que se esconde nos porões da casa, entende o que está havendo.

A mansão, dita museu, havia sido construída pelo líder do grupo (que, aliás, era também apaixonado por Faustine), chamado Morel, para receber, durante uma semana, aquele seleto grupo de bons e antigos amigos. O anfitrião, no entanto, era inventor, e criara uma máquina que, a semelhança do cinema, que captura a imagem, e da fonografia, que captura o som, gravava e reproduzia a realidade em seus aspectos visuais, sonoros, táteis, olfativos, palatáveis, no tempo e no espaço. Visava, através deste invento, atingir a imortalidade, criando um simulacro de si e de seus amigos, que se repetiria ad nausea pela eternidade. O fugitivo então compreende: os visitantes que via não eram os próprios, mas suas reproduções plenas, seus simulacros. Entra no jogo, e para ser par de Faustine grava a si junto a ela. Em pouco tempo, no entanto, os efeitos da radiação da máquina começam a fazer efeito, e ele caminha para mesma morte, apregoada como peste, que aqueles visitantes tiveram algum tempo antes de sua chegada.

 

O Ano Passado em Marienbad

Vinte anos depois do lançamento de A Invenção de Morel , o cineasta francês Alain Resnais transpôs o livro para as telas de cinema, filmando O Ano Passado em Marienbad . O filme é considerado a obra-prima do nouveaux cinéma, pequena variante no interior da Nouvelle Vague , movimento renovador do cinema francês, do qual se distinguia por não resguardar o caráter naturalista nas produções. O roteiro é assinado por Alain Robe-Grillet, um dos grandes nomes do Nouveau Roman , movimento literário que, também na França dos anos 60, trabalhava com o conceito de real distinto do de realidade, questionando a ordem do mundo enquanto dado através de experimentações na relação entre enunciado e referente,

A trama do filme é mais sucinta: em um suntuoso hotel de campo em Marienbad (estação de férias situada, veridicamente, na República Tcheca), quase vazio, um homem – que é o narrador – encontra uma mulher e tenta convencê-la de que já se haviam conhecido no ano anterior, ali mesmo ou em outra estação próxima; e a mulher, reiteradamente, dissente, afirmando não se lembrar. Há um outro personagem masculino, que aparenta ser o marido da mulher, que ronda as cenas e interfere em alguns diálogos; ele é o jogador, pois propõe ao demais convivas um jogo de raciocínio, com cartas de baralho, no qual sempre ganha. O homem/narrador lembra a mulher, por fim, o momento em que a viu ser morta pelo jogador, provavelmente por ciúmes. Resolvem fugir e fogem, para se tornarem mais uma estátua no belo jardim do hotel.

 

Aspectos da transposição fílmica

A adaptação de obras literárias para a linguagem cinematográfica não tem como única e sine qua nom possibilidade ser um trabalho de tradução. Mais do que a transposição da trama do livro para o filme, essa operação, na mão de artistas conscientes das potências ontológicas das linguagens Literatura e Cinema, é a construção de um diálogo, no qual uma simultaneamente parafraseia e complementa a outra. No cotejo de um livro com o filme nele inspirado há um certo “déjà vu”, há brechas que revelam as identificações, mas as diferenças entre as linguagens tem que ser levadas em conta. Assim , em O Ano Passado em Marienbad não há a máquina de Morel, pois já estamos diante do produto dela, um filme. Neste caso, podemos observar a ocorrência de um filme dentro de um livro, uma obra dentro da outra, a arte funcionando como moldura e espelho de si mesma, em uma auto-referenciação infinita.

Uma diferença essencial entre a Literatura e o Cinema é a diferença entre o narrar e o mostrar. O texto literário tenta criar imagens com a linguagem verbal – através de recursos como a descrição, a metáfora, e a própria inefabilidade poética – enquanto apresenta uma ação. Já o texto fílmico tenta criar uma discursividade narrativa – construindo falas, diálogos, criando relações de causa e efeito entre as imagens mostradas (cenas) – através da sucessão imagens. Neste sentido, os processos são inversos. Há uma expressão popular que diz que “há imagens que valem por mil palavras” – o qual expressa um contraponto ao fonocentrismo ocidental – mas também é verídico que há palavras que valem por mil imagens. Na adaptação de uma obra literária para as telas encontramos, ainda, alguns valores intransponíveis, que não possuem signos equivalentes nas duas linguagens. O jogo é dialético, de modo que, se há um grande dado de verbalidade na experiência das imagens, e se há um grande dado de imagem na experiência verbal, a relação Literatura-Cinema se debruça sobre o onde da linguagem.

 

O espaço

O espaço de A Invenção de Morel é o de uma ilha tropical, fustigada por marés fortes, com uma flora densa e uma fauna selvagem, na qual há um estranho complexo construído: uma capela, uma piscina, e uma mansão que o narrador chama de Museu. Já O Ano passado em Marienbad desenvolve-se em um luxuoso hotel, cercado de jardins em estilo francês. Embora os signos variem, a caracterização simbólica do espaço nas duas obras é a mesma. Ambos, espaços insulares, áreas de isolamento, habitadas apenas por alguns espectros – dois homens, uma mulher, um pequeno grupo de acompanhantes, alguns criados –, mas não há sociedade, não há cidade, tudo se passa apartado do restante da civilização. O mar que contorna a ilha encontra seu contraponto na floresta entorno ao hotel. A voluptuosidade vegetal da floresta retratada no livro é referida – ou recriada – no filme através da rica decoração rococó do hotel, cheio de colunas, volutas, motivos florais em portas, paredes e janelas, escadarias. A floresta e o grande hotel convergem na noção de um aspecto labiríntico: as infinitas portas iguais do hotel são como as árvores absolutamente idênticas da floresta; os corredores, mais do que vias de passagem, são lugares de errância; e as sacadas do hotel, bem como as grandes pedras em uma floresta – justamente os locais de encontro dos protagonistas – são os únicos pontos de onde é possível ter uma visão distintiva do todo. A estrutura labiríntica nestas obras não é fortuita: o labirinto oferece o tempo todo a sensação de “déjà vu”, nele é justamente a semelhança que faz com que a pessoa se perca.

No livro, a mansão ocupada pelos espectros é denominada a priori de museu, embora seja, na verdade, uma mansão feita para abrigar o grupo de amigos em férias, logo, uma espécie de hotel – o qual, no filme, já é assumido desde o início, e assim é chamado. A escolha desses dois signos, Museu e Hotel, para cenários da ação, é extremamente significativa, pois carregam semânticas próprias, ricas e análogas. Hotel é um lugar que hospeda pessoas, caracterizado pela inconstância, pela impessoalidade; também um Museu hospeda, com a mesma assepsia de um hotel, só que não pessoas, mas simulacros, indícios ou resquícios de pessoas. Os dois espaços tem uma relação com a dimensão temporal alterada, vivem em um “déjà vu” eterno, repetindo cenas iguais ou congelando-as, e o grande bem que um vende e o outro guarda não é material, mas sim temporal. Em A Invenção de Morel e O Ano Passado em Marienbad Hotel e Museu são espaços porta-tempo, não possuem um tempo em si, são páginas/telas em branco para que tempos vários se projetem. Suas realidades só podem ser lidas, portanto, como palimpsestos.

O complexo construído por Morel é permanentemente projetado sobre si mesmo pela máquina fantástica, sendo a realidade revestida constantemente por sua representação. O resultado final é a sobreposição de diversas camadas de projeção, e a aparência do todo é a mesma, apenas com alguns vestígios, como, por exemplo, portas que não abrem, pois foram gravadas fechadas, e interruptores que não acendem, pois foram gravados apagados. Esta descrição é consoante com a feita pelo cineasta americano Richard Linklater, já em finais da década de 90, em um outro filme-ensaio, Waking Life . Este filme foi feito em Rotoscopia, uma técnica que consiste em filmar a cena com atores e depois, digitalmente, desenhar e pintar os negativos, resultando a imagem do filme pronto igual à de um desenho animado, mas com a naturalidade e expressividade da filmagem. Podemos notar, já na técnica escolhida, a importância dada às sobreposições. Quanto ao enredo, o filme mostra as incursões de um homem que se perde dentro de seu sonho, sem conseguir mais diferenciar sono e vigília; em um dado momento, descobre como indicadores do estado em que se encontra justamente as portas e interruptores. Na arquitetura da virtualidade, essas dobradiças são os pontos de tensão; como em um corpo, são as articulações que recebem o peso do impacto; nesses organismos de estímulos múltiplos, essas são as sinapses.

 

O tempo

Já em Marienbad as quinas dobram para dentro, o hotel se desdobra, ao longo dos sucessivos e paralelos tempos, nas suas representações internas: há nas paredes, em salões, quadros representando paisagens e a planta do próprio hotel. Os espelhos estão em toda parte, olhando-se entre si – prototípica é a cena do quarto, na qual vemos através de um espelho que fica encima da lareira a mulher se arrumando na penteadeira, cujo espelho é articulado em três platibandas; podemos ver a mulher em cinco ângulos. Além de fragmentar o espaço, os espelhos fragmentam o tempo em Marienbad – há uma cena na qual a câmera filma diretamente uma breve conversa entre o homem/narrador e a mulher; logo após, um movimento lateral de câmera e vemos, em um espelho, a mesma cena, apenas com os lados invertidos; a câmera move-se novamente e vemos a cena repetir-se em um terceiro espelho, emoldurada e com os lados novamente invertidos, logo, iguais ao original. Esta cena não só quebra total e paradigmaticamente a linearidade discursiva, pela redundância absurda (“déjà vu”), mas cria uma linha contínua onde tempo e espaço se encontram.

Tanto em O Ano Passado em Marienbad quanto em A Invenção de Morel somos levados à sensação de “déjà vu”, quer pelo elemento temático da sobreposição de planos temporais, quer pelos recursos da linguagem. No livro, a estrutura é indicial, desde o início são dadas pistas, as quais não conseguimos compreender no momento, mas que mais tarde fazem sentido e soam, então, como “déjà vu”; no filme, a sensação é criada por efeito da montagem e da fotografia. No entanto, no plano narrativo, a abordagem das duas obras quanto ao tempo é diversa: no livro, a ação se desenvolve em um único tempo, no qual percebemos as repetições e a variação; no filme, a ação se desenvolve em múltiplos tempos, nos quais observamos as repetições e a unidade.

 

Os personagens

O recurso da narração em primeira pessoa é um expediente que se articula bem com a realização literária, pois qualquer que seja a intenção literária, a discursividade verbal que lhe é própria é sempre verossímil enquanto relato. Não obstante, se a voz que fala na literatura é sempre a voz do homem, o olho que filma não é necessariamente identificável com o humano. Não só a visão que a câmera promove é distinta da do olhar humano, como as convenções da tradição da linguagem fílmica são antinaturalistas. Alguns cineastas buscam reproduzir a visão humana usando lentes com um ângulo de visão mais próximo do humano, filmando em seqüência única e levando a câmera da mão, na altura dos olhos; de qualquer maneira, o resultado é apenas aproximativo. Esta especificidade da linguagem cinematográfica traz implicações no momento da transposição de um texto literário, problematizando a instância do narrador. Em um livro, o narrador é um personagem, distinto do autor, que imprime seu caráter sobre os fatos que narra mas que é submisso, por sua vez, às intenções autorais. Em um filme não há narrador, quem conduz diretamente a ação, através dos recursos da linguagem, é o autor. Através da voz em off muitos filmes tentam recriar uma espécie de narrador; mas essa voz não mostra, ela apenas acompanha o que o autor mostra.

O romance de Bioy Casares é narrado em primeira pessoa, o narrador é o fugitivo venezuelano, e o livro seria, na lógica interna do romance, um relato seu para a posteridade. Enquanto isso, no filme de Resnais, esta figura é desdobrada: além da discursividade que o próprio filme cria (autoral), há uma voz em off que pontua as cenas e que se identifica com um personagem, o homem – mas este, quando fala, é em on . No cinema, convencionalmente, quando a voz em off se identifica com algum personagem da cena, suas falas costumam representar a fala do seu pensamento, sua voz interna. Mas em Marienbad essas falas são sussurros, repetições, sussurros que se repetem, quase ecos. O meio audiovisual, multiplicando os aportes perceptivos, pode mostrar simultaneamente mais de um plano temporal-espacial, um através da imagem e outro do som; assim, essa voz em off , mais do que se aproximar do narrador do livro, parece ser o que há de mais fantasmagórico em toda a trama, uma espécie de consciência aprisionada nos ciclos repetitivos que o corpo desenvolve em seus simulacros.

No romance há três personagens: o fugitivo/narrador, Faustine e Morel. No filme, igualmente: o homem/narrador, a mulher e o jogador. Nas duas obras os três encenam entre si um triângulo amoroso, tendo por centro a figura feminina – que é , do trio de personagens, a mais estável na transposição. A inserção desta peripécia – o triângulo amoroso – nas duas tramas é o que traz Eros e Tanatos para dentro da obras-ensaio, minorando o didatismo e inscrevendo a subjetividade na reflexão sobre a virtualidade. Buscando o lugar do amor e o lugar da morte na dimensão virtual, os autores criam um solo para pensar o homem enquanto sujeito nessa dimensão.

A mulher/Faustine comporta-se da mesma maneira no livro e no filme: sempre olhando o horizonte, em uma pedra ou uma sacada, bela e melancólica, ignorando o homem – ou o seu passado com ele, logo, ignorando o tempo deste homem – e desprezando Morel/o jogador. Ela o tempo todo se esquiva, e repete, no filme, diversas vezes: “laissez-moi!”. Seu olhar dirige-se ao infinito porque ela vive no infinito, é um espectro, um holograma, por isso o amor por ela é inatingível, ideal.

O homem fugitivo é o elemento estranho no sistema, no romance ele entra como um intruso na ilha, no filme é um hóspede do hotel, mas com estranha naturalidade, é único desacompanhado. Sua fuga indica o trânsito que faz entre realidades, como um médium que vê em dois mundos: daí sua sensação constante de “déjà vu”. O fugitivo comporta-se como a imagem de um ator, filmado em película, que tivesse se descolado de seu fotograma e fugisse de fotograma em fotograma ao longo do rolo do filme: sua sensação seria a de “déjà vu”, pois um fotograma é quase idêntico ao outro, o movimento e a diferença ocorrem apenas com a sucessão rápida: mas a diferença existe, e ocorre em um tempo maior formado pela seqüência de pequenos tempos: este tempo não é, por isso, nem linear nem cíclico, é espiralado.

O terceiro elemento do triângulo, Morel/o jogador, o qual opõe, à figura do fugitivo, a imagem do aprisionador. Seja como inventor, seja como jogador, Morel é aquele que controla o sistema; a lógica necessária para a invenção é a mesma que precisa para ganhar o jogo. Em ambos os casos, ele cria um sistema fechado: quanto ao jogo, admite que pode até perder, mas nunca perde. Este estatuto da falha (a perda) como possível, mas pouco provável, é próprio do raciocínio sistêmico matemático, e é demiúrgico. As suas criações/invenções, os peões com que joga, são as pessoas, ou suas imagens: por isso ele separa o significante do significado, para poder jogar com ele. Expressiva dessa lógica é a cena do filme em que Faustine joga, sozinha, o jogo proposto por ele, usando como cartas cópias de uma foto dela mesma. Outra cena mostra no primeiro plano dois homens jogando damas, e no segundo plano, o fundo, um painel enorme na parede retratando duas figuras em pé sobre um chão igual a um tabuleiro de xadrez.

 

A máquina

O desejo de reprodução total – de certa demiurgia – do homem é antigo, e as técnicas desenvolvidas, entre outros âmbitos, no da arte, deram conta de alguns aspectos: a literatura oral, e posteriormente escrita, deu conta de fixar um discurso; o desenho, a pintura e mais tarde a fotografia reproduziram a imagem estática; a escultura, o volume e o tato; os aparelhos fonográficos gravaram o som; os perfumes recriaram odores; as essências simularam gostos. Ao longo do século XX, o cinema promoveu uma revolução, pois congregou a reprodução da imagem em movimento com o som, atingindo um alto nível de mímese da realidade. Em A Invenção de Morel , um passo a mais é dado: a invenção referida no título é um complexo maquinário capaz de gravar a realidade em todos os seus aspectos perceptivos, e depois reproduzi-los no tempo e no espaço. Realiza, assim, o sonho positivista do objeto total, atualizando a tópica da máquina-do-mundo. Mas realiza-o na ficção, a máquina é um elemento discursivo, fabular, dentro do romance. Já em O Ano Passado em Marienbad a máquina é o próprio filme. Esta é a principal operação feita na transposição do livro para o filme, motivada pela natureza de cada linguagem: não faz sentido um “cinema-de-tudo” enquanto tema do enredo, se estamos diante da sua própria manifestação.

A Invenção de Morel e O Ano Passado em Marienbad demonstram a habilidade da arte de perceber com acuidade, e antevisão até, fenômenos sutis da realidade. O aposento onde fica a máquina inventada por Morel é inteiramente fechado e suas paredes revestidas de um azul intenso e brilhante, como se fossem de porcelana; muito semelhante aos fundos azuis usados em filmagens contemporâneas para fazer sobreposições digitais; e é como se tivessem sido gravados sobre fundos azuis, isoladamente, e depois superpostos que Faustine e o fugitivo/narrador se relacionam. A noção de virtualidade que o livro e o filme propõem não é sinônima de irrealidade, mas do real composto por sobreposições de camadas de tempo (em contigüidade com o espaço) e de subjetividade.

O desfecho da trama nas duas obras é a aceitação da vivência dentro do simulacro. No romance, o fugitivo, após se filmar em ações complementares às de Faustine – ou seja, de entrar no simulacro – começa a morrer também, aceitando a sua passagem da realidade para a virtualidade, a sua transformação de ser em simulacro.No filme, o homem e a mulher fogem e a voz em off diz que eles se tornam mais uma estátua no jardim – novamente, sobrevive apenas a imagem, petrificada, uma estátua em uma jardim onde, tempos depois, outros casais virão a passear. A passagem do real para o virtual tem como marca, em todos os casos, a morte, atualizando uma antiga crença: sabemos que inicialmente os índios evitavam ser fotografados, pois pensavam que a captura de sua imagem capturaria a sua alma. Roland Barthes explica, através da semiologia, que a imagem reproduzida tecnicamente possui sempre uma relação com a morte, pois é, de qualquer maneira, um índice de que diz “isto foi”. Esta operação é bem retratada no cinema em “Blow-Up”, de Michelangelo Antonioni, no qual também há uma morte, indiciada apenas pelo olhar fotográfico, e no qual os personagens, ao fim do filme, vão cedendo lugar, progressivamente, para representações de si. É um filme italiano da mesma época que o de Resnais, pouco posterior, e coincidentemente também inspirado em uma narrativa argentina, desta vez de autoria de Júlio Cortázar.

 

A virtualidade

O cinema, tecnicamente, não reproduz todos os aspectos da realidade – a busca por uma tecnologia que o permita continua. Não obstante, a cultura contemporânea já conseguiu superar essa impossibilidade técnica, promovendo a virtualização do homem não através dos seus aspectos materiais, perceptivos, mas da sua subjetividade. Segundo Baudrillard, na era da comunicação e do consumo em massa, nós experimentamos apenas realidades preparadas, submetidas a processos de gravação e edição ao fim dos quais a referência não é mais necessária. Esta é, em sua definição, a diferença entre imaginário e virtual: “A ficção enquanto realidade ainda é o campo do imaginário. A ficção como ficção é simplesmente virtual” (Baudrillard, 1981) . O adendo que Resnais faz, com sua obra-ensaio, à reflexão de Bioy Casares é justamente esse: deslocando o irreal do plano da peripécia para o plano da linguagem, e dando ênfase mais à experiência subjetiva do que material, reflete sobre a ficção como ficção, portanto, a virtualidade.

Ainda nas palavras de Baudrillard:

 

“The very definition of the real has become: that of wich it is possible to give an equivalent reproduction. The real is not only what can be reproduced, but that wich is always already reproduced: that is the hyperreal… wich is entirely in simulation.”(Baudrillard, 1981)

 

O debate sobre a virtualidade na contemporaneidade não é assunto de ficção científica nem trata de nenhuma utopia futurista. Não pertence exclusivamente ao campo da arte nem ao da ciência, embora seja concernente às duas – cada dia mais imbricadas entre si. Na sociedade de informação e consumo, em um mundo dominado pelos mecanismos que o tornam hiperreal, a virtualidade é uma questão política. Não à toa Bioy Casares escreveu em plena Segunda Guerra Mundial e Resnais filmou na movimentada Paris da década de 60: embora as obras não tenham um caráter político nelas mesmas, é político qualquer questionamento de um meio sobre sua natureza, porque se dá conta de suas potencialidades e das intenções às quais pode servir de instrumento. É um movimento similar ao de uma máquina que se tornasse consciente e olhasse para aquele que a está usando.

Uma recente e bem-sucedida produção cinematográfica que retrata, ainda como utopia, o mundo hiperreal é a trilogia Matrix, dos irmãos Andrew e Larry Watchowski. A saga leva ao paroxismo a idéia de apreensão da realidade mediada pelos simulacros, criando a hipótese de um mundo onde as pessoas desde que nascem vivem em uma espécie de coma, com o corpo inutilizado, e através de eletrodos se conectam e vivem em uma realidade virtual, em um mundo projetado digitalmente. A sedução deste mundo hipotético é como, ainda nas palavras de Baudrillard, a

 

“fascinação de mergulhar no medium em estado puro, como a fascinação da confusão em tempo real do ato e do signo, como mergulhar na câmara escura, no não-lugar, o buraco negro da caixa preta onde se opera a reversão input- output .”(Baudrillard, 1993)

Conclusão

No entanto o sistema hiperreal é aprisionante, seja na ficção seja na realidade da experiência contemporânea. Os sujeitos que habitam a matrix, bem como os do romance de Bioy Casares e do filme de Resnais – e, principalmente, como os homens reais da sociedade da informação – estão presos dentro do virtual, peões do jogo de uma máquina que não possui por trás mais ninguém, mas que se auto-regula. A saga dos irmãos Watchowski propõe toda uma arquitetura do mundo hiperreal baseada na tecnologia informacional, na qual há um lugar reservado para o “déjà vu”. Logo no primeiro filme da trilogia há uma cena na qual o protagonista, ainda não plenamente consciente do funcionamento do mundo hiperreal, vê um gato preto passar duas vezes seguidas no mesmo lugar, de maneira idêntica, e acredita ser apenas uma impressão de já ter visto. No entanto, um outro personagem, mais experiente, avisa que não, que o “déjà vu” é um fenômeno concreto, e indica uma falha no sistema.

É também para esta noção de “déjà vu” que A Invenção de Morel e O Ano Passado em Marienbad convergem. Em mundos formados por sobreposições de realidade, nos quais a percepção é sempre mediada, o “déjà vu” inscreve-se enquanto uma categoria de falha, de brecha para que se perceba a sobreposição; como um corte em uma cebola, que permite ver as diversas camadas; como um buraco no chão de um apartamento, deixando ver que há outro embaixo, que não é uma casa. Pois para o virtual ser semelhante ao real, e, portanto, verossímil, ele tem que ser contínuo, e não fragmentado, sobreposto.Para o fugitivo, na ilha de Morel, o primeiro índice da natureza virtual dos visitantes é a sensação de “déjà vu” ao ver as mesmas cenas, as mesmas músicas, até o mesmo Sol se repetindo.

Podemos concluir, assim, que no sistema da virtualidade o fenômeno do “déjà vu” se apresenta como uma categoria específica de percepção, é uma falha na unidade de uma determinada dimensão que permite ver a sobreposição de outras, constituindo-se, deste modo, em uma categoria transgressora do sistema. A mulher de Marienbad, em certa cena, diz: “não há como fugir”. No entanto ela foge, tanto dentro do filme, tornando-se uma estátua, quanto com a própria realização do filme: nos dois modos, através da arte. E é também à arte, no mundo hiperreal da cultura contemporânea descrito por Baudrillard, que cabe o papel transgressor, como o “déjà vu”, de desvelar as camadas de sentido que formam a realidade.

E parecem ter sido feitas para dar fecho à nossa investigação essas palavras do cineasta Luis Buñuel:

 

“Ficou portanto acertado que o tema seria ‘O cinema Como Expressão Artística', ou mais concretamente, como instrumento de poesia, com todas as possíveis implicações desta palavra no sentido libertador, de subversão da realidade, de liminar do mundo maravilhoso do subconsciente, de inconformismo com a estreita sociedade que nos cerca”

(Buñuel, 1991)


 

Bibliografia:

 

BAUDRILLARD, Jean. Televisão/Revolução: o caso Romênia. In. PARENTE, André (org). Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

 

___________________. Simulations. New York: Semiotext(e), 1981. apud http://www.csun.edu/~hfspc002/baud/

 

BIOY CASARES, Adolfo. A Invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

 

BUÑUEL, Luis. Cinema: instrumento de poesia. In. XAVIER, Ismail (org.). A Experiência do Cinema . Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1991.

 

MACHADO, Arlindo. O Filme Ensaio . Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ, vol. 5, n. 5 (dez 2003).Rio de Janeiro:UERJ, ART, 2003

 

__________________. Máquina e Imagem: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Edusp, 1993.

 

RESNAIS, Alain. L'année dernière à Marienbad. Roteiro de Alain Robbe-Grillet. FRA/ITA, 1961.

 

SILVA, Sônia Maria O. O jogo cênico em Marienbad – marcas do teatro na narrativa fílmica . Caligrama: Revista de Estudos em Linguagem e Mídia, vol. 1, n. 2 (jan-abr 2006). São Paulo: USP, ECA, 2006.

 

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