DOIS CORPOS SEM ALTERIDADE

Profª Ms. Madalena Aparecida Machado (UNEMAT/FAPEMAT-UFRJ)

 

RESUMO: Na interpretação do romance O homem duplicado, procuramos entrever modos e configurações dos personagens que podem ser vistos como o enredamento da figura humana às voltas com sua incompreensão. Procurar saber quem é, validar-se como erro, são alternativas nas quais os personagens não podem por si mesmos apontar; tampouco não se deixam mais levar por opiniões correntes sobre o que aparentam.

PALAVRAS-CHAVE: Subjetividade, imagem, personagem.

 

Na leitura crítica do romance O homem duplicado (2002), podemos observar o quanto José Saramago se esmera em discutir as questões da identidade na Literatura Contemporânea. Os personagens são seres cuja compatibilidade nos modos de ser e se encontrar no mundo não se estabelece. No duelo do homem literário com o Senso Comum prevalece a dualidade de ser, de um lado o homem para o mundo e, do outro, o homem para si. Aquele que levanta problemas, tais como, quem sou? O que é ser um erro? Muitas vezes sem ser capaz de solucioná-los se enche das emoções aprendidas na infância e procura sentido para a vida que ainda possui. Por isso, ao se compadecer dos sentimentos da mãe, ignorante do destino do duplicado e da esposa de António lhes contando a verdadeira história que envolvia a todos, o homem duplicado volta a ter a inteireza de personalidade desejada por Carolina Máximo, embora localizada naquele momento específico.

Como o Senso Comum com a força de personagem que tem no romance, está sempre a rondar os passos de Tertuliano Máximo Afonso, o duplicado, independente de qual estágio de crescimento individual ele esteja, a discussão se volta para o aspecto da presença de dois corpos com a mesma imagem e como proceder à distinção. A importância do corpo neste romance prevê leitura atenta do exposto em Roland Barthes por Roland Barthes (2003) em que Barthes (1915-1980) inventaria sua escrita com base na prefiguração de seu corpo. O texto para ele o despoja de sua duração narrativa, assim sendo, o que perdura, o que prevalece conota no corpo o ser para nada de que se dá conta. Pelo processo de questionamento, o homem Barthes refaz um percurso existencial na medida em que pergunta sobre seu corpo de verdade, não aquilo que outros vêem, mas aquilo que os olhos nus não alcançam. Quanto a seu corpo, condenado ao imaginário, perambula por vãos, espaços outros que não o do trabalho onde pode exercer o prazer de se ver transmutado no que escreve, pinta ou classifica. Por outro lado, na relação humana, dependente da vacância de imagem, abole-se os adjetivos, fatais no âmbito da dominação, da morte ao se efetivar.

É o senso comum quem exige os adjetivos como forma de antecipar a presença, abolidos estes, o à-vontade de cada situação tem a ensinar a perda de qualquer tipo de heroísmo. Se ainda a humanidade se deixa influenciar com os desmandos do senso comum e afeita ao sentido da analogia procura o melhor ângulo de comparação para ser diferente sendo igual, o que escapa pertence ao imaginário. Assim que processos de substituição e nominação entram em vigor com referência a algo sem causa nem identidade, o que dizer do nome e da forma repercute no ser procurado. Barthes ao tratar da Doxa a combate como maneira de desacreditar a fala associada à aparência, à opinião ou à prática redutora daquilo que conta o ser do sujeito.

Combatendo a violência do preconceito, o escritor valoriza o arbitrário de um sentido por se fazer no gesto do indivíduo que se lança a um limite redutível ao nada com o qual possa se localizar, se dizer ao assentir com a não escolha. Conforme estudamos no romance de José Saramago, o protagonista no dilema de ter um corpo e não ter vida própria age de acordo a não se firmar numa opção. No trecho que se segue, temos a valoração do discurso duplo: “a visada de seu discurso não é a verdade, e esse discurso é entretanto assertivo” (BARTHES, 2003, p. 61), bem entendido, a linguagem não seu executor. A sensação do estranhamento, do estar deslocado acompanha a escrita de quem procura sair de um lugar intelectual ficando à deriva. Disso, as mutações que se seguem dizem respeito à linguagem que é preciso tomar ou rejeitar, onde o corpo pode ou não pode prevalecer. A escritura, sedução de prosseguir como uma cena infinita, põe a imaginação a funcionar como válvula de um escape a se fazer. É importante frisar que o texto de Barthes se preocupa em renunciar a perseguir um sentido seja do texto, seja do corpo; está lá o pedaço dele, o seu corpo, a escrita voluntária dispensada a imitação, confiante por outro tanto na nominação. Vide a importância do símbolo, de ser e não fazer a história que lhe acontece, por isso não receia o abismo, o perigo, a voragem com que o desconhecido o toma e o impulsiona a escrever/viver. Vimos que o estranhamento acompanha o duplicado desde sua descoberta ímpar no mundo. Deslocado, a linguagem do ensino de História já não o contempla; a mutação de si está em processo. Se o sentido não se mostra nos passos do personagem, a História que protagoniza está de parelha com a porta fechada que encontra nas iniciativas tomadas no intuito de decifrar o acontecido. As recorrentes imagens do abismo ao longo do livro e o limiar em que o duplicado se encontra dão a dimensão do quanto o desconhecido se faz vida para o personagem.

Assumir-se como contemporâneo imaginário de seu próprio presente diz muito de Roland Barthes para quem o corpo intervém como pergunta sem resposta: como saber aquilo que sou para o outro? À noção de que temos vários corpos vem do aspecto emotivo de que somos dotados. Assim Barthes conjuga lembranças apagadas com o desejo de mostrá-las; desvendando uma pessoa atrás de outra, a emoção vislumbra e propaga a contrariedade que é preciso buscar quando se quer saber do corpo ou como figurá-lo. Contrariar opiniões, as próprias e as externas diz muito de quem se questiona; avançar significa buscar o outro lado do sentido contrariado, também fazer uso do sentido para nada convertido. Na idéia de destruir o estabelecido, o salto se adequa melhor ao requerido porque na duplicidade do corpo há destruição da consciência que não está preparada para se deslocar. É o que podemos observar ao longo da leitura de O homem duplicado quando o personagem sem aceitar este designativo se lança ao encalço do outro corpo parecido ao seu. Não quer a princípio a comparação, depois se envolve nela pela imaginação colocada em prática a ponto de desvendar nome artístico e a pessoa concreta envolta no episódio da duplicação.

O que Roland Barthes por Roland Barthes esclarece quanto ao posicionamento do homem diante do mundo se relaciona à necessidade de propor ininterruptamente questões acerca do desejo, de satisfazê-lo perante muitos, perante à subjetividade. Nisto resvala no imaginário como saída para o que não se coaduna. Prevalece por isso segundo esse escritor, a relação tipo privilegiada quando o indivíduo se coloca em xeque; dual porém comprometida, plural sem igualdade, sem in-diferença. Liberado de falsos sentimentalismos, assim que o homem se pensa abre-se um leque de possibilidades das quais o elemento de corrosão se nota pelo abandono de convicções, modos de ser comprometidos com opiniões assentes. É assim a eliminação da boa consciência da linguagem. Não sendo a verdade o alvo a perseguir porque não se trata de elemento denotativo, a escrita que é vida, é corpo, portanto ambígua, tem a oferecer como ingrediente do humano em questão, o terceiro termo que a dialética do sentido não abarca. É o que Barthes chama de deportação. Para ele tudo retorna como Ficção. Em Saramago vimos que o protagonista decidido a encontrar seu outro eu derrota as iniciativas do Senso Comum; com isso põe em descrédito a importância dada à aparência em busca daquilo que pudesse lhe contar da subjetividade em falta.

O pluralismo tão importante no pensamento de Roland Barthes visa “dissolver as confrontações e os paradigmas, pluralizar ao mesmo tempo os sentidos e os sexos (...)” (2003, p. 83), primordial no combate ao senso comum que é uma de suas maiores batalhas. Nesse viés, a diferença surge como perspectiva a ser alcançada não com as armas simples do binarismo mas, por trazer no seu interior a chance de pulverizar e mesmo dispersar o comum na leitura do mundo e do sujeito nele inscrito; isto por meio dos transbordamentos, dos escapes a serem realizados por aquele que já está no ato da descoberta de si. Pluralizar então é o mesmo que sutilizar os detalhes que formam o conjunto. Desviar o olhar do previsto e direcioná-lo sem reservas à margem de indecisão por exemplo, é uma atitude bem-vinda; outra é achar o lugar da perda, da fenda no qual possa se aventurar. O ineditismo prorrompe em confronto direto com a Doxa sempre por perto, vigiando, esperando o momento propício para se fazer presente por meio da repetição. Porém, a única repetição boa é a do corpo com toda a imprevisibilidade nele incrustada; impregnado com a pergunta para onde ir, o corpo com a consciência transformada se move por essa questão. Na duplicação, os corpos em dispersão procuram o mínimo que os distinga, a diferença sutil faz com que os personagens entrem pelo lugar estreito onde não caiba a repetição: saber pela indecisão.

A duplicidade louvável no sentido mencionado anteriormente, favorece a escuta não de um todo desconexo mas em ouvir outra coisa. No que entendemos que o teórico procura a compreensão pelo sussurro da linguagem em construção; do corpo desalojado, de vozes por se fazerem ouvir. Ao contrário da Doxa que tenta a todo instante se fazer notável sob a alegação de se definir, a voz do sujeito se faz notar nos parênteses que é preciso observar. Com isso, a escrita revestida de vida oferece ao escritor a marca e o vazio como estilo. Marca a ser definida e o vazio alojado naquilo do que é feito, o corpo que se tenta apreender sendo fugidio ao contato é, contudo, um instigador de busca. Não à toa o professor de História vai em busca do ator de cinema; corpos em profusão num vazio circundante.

A vida afeita ao imaginário – conforme explica Roland Barthes – contraria as cogitações da opinião corrente, em troca há a virada, o desencaixe contradizendo pela voz do imaginário o que pode ser dito ou aquilo que se espera ser proferido. Logo, o que é peculiar ao movimento humano de existir, seja a amizade, paixão, ternura ou o prazer de escrever se tornam termos indizíveis para serem tão somente vivenciados. A precariedade da certeza do Eu tem a proporção do óbvio ultrajado; o natural desmentido recebe desde então o paradoxo com a leveza sugerida pelo imaginário.

O simbólico acumulado, ao forçar o corpo a ceder provoca o afastamento enquanto testemunha um lugar único de aptidão próprio do homem em se definir. Naquilo que a opinião comum exige sentido, o legado de Roland Barthes propõe ausência, espécie de caminho iniciático por onde atravessa-se, extenua e isenta o sentido da obrigatoriedade de que se vê revestido em função do dado concreto. A isenção proclamada em seu texto tem maior vulto na Ficção onde o reinado da linguagem é soberano, articulado em espiral, a volta quando acontece se pauta na diferença. Os acontecimentos e os homens/personagens que os provocam cintilam emoções no trajeto do aparecimento-desaparecimento no qual figuram. Por isso, a duplicação suscita efeitos de devastação interior em cada personagem atingido. A exemplo deste trecho de O homem duplicado: “isto que agora estou a sentir poderia não ser mais que uma memória de mim mesmo histericamente ativada.” (SARAMAGO, 2002, p. 82).

Atento às minúcias do imaginário Barthes declara: “O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias – pois meu corpo não tem as mesmas idéias que eu” (BARTHES, 2006, p. 24). A duplicidade nessa relação com o corpo apresenta, ao contrário do propugnado pela Doxa outra vertente que é a necessidade de uma terceira via. Quando então o homem cônscio de seu corpo duplo tenta se mover guiado por idéias libertadoras é quando prazer e censura adquirem conotação variada. Partem agora de si para si. O sujeito histórico que se percebe como tal entre outros papéis que assume ao longo da vida, segue de contestação em contestação até o fruir das pequenas coisas, as sensações outrora despercebidas porque o atópico tem a primazia naquele caminhar deflagrado. É dessa forma que o duplicado encontra sabedoria nas emoções antes menosprezadas.

Contudo, o homem que envereda nesse estilo de existir mais condizente com sua natureza irrepetível, tem pela frente no cotidiano a rivalidade da opinião corrente. À maneira de Barthes, não se atinge impunemente um degrau acima do que a aparência denuncia. À tópica do ser comum que regula principalmente o homem de linguagem, confronta a capacidade descoberta por este em poder questionar, rever pontos de vista se desintoxicando do evidente, contastável. Longe da unidade moral exigida de todo produto humano, quem o faz mira-se no devir com toda a incógnita nele vincada. Assim, o eu do entremeio subverte o que está em causa: corpo de se ver, corpo de se notar. Observemos que o corpo do vídeo implica o desassossego no corpo do professor.

O corpo arrastado por sua natureza contrastiva se embaralha à linguagem de tal forma que a distinção é difícil no espaço do livro. A história do sujeito desse corpo eclode ao mesmo tempo que se alia a um paradigma erigido, o destrói na intenção de derivar um sentido desta ação. Como podemos observar no conjunto de Roland Barthes por Roland Barthes, sendo uma espécie de balanço da obra do escritor, o gosto pelo começo de cada escrita se esmera pelos detalhes, os fragmentos em seqüência procuram imitar o corpo. Do pensamento como folhas soltas ele retira a sobredeterminação com que enxerga o humano, matéria-prima de seu texto. A verdade que se busca em meio às inúmeras possibilidades encontra nos procedimentos a serem adotados a concepção do erro. Ser erro, praticá-lo supõe o “arrepio do sentido” sem o qual não pode significar. Por que então prosseguir? Por que insistir em apreender algo que escapa do controle, do cerco típico do senso comum? Se há sentido e se ele não se deixa tomar tão facilmente, ao contrário permanece fluido, isto equivale a entender esse tremor como a significância por se fazer; o texto por se escrever. Situação semelhante ao vivido pelo protagonista de O homem duplicado que ao saber-se nesta condição procura os motivos de ser um erro.

Na fronteira, o homem e sua significação são arrastados pelo paradoxo. Não se pode portanto, exigir dele coerência uma vez que subverte os ditames da Doxa. Não há mais cumplicidade com a idéia de se normalizar o corpo; ordenar segundo qual padrão se este não se dá mais? Na disformidade de regras, o homem não mais subjugado por aquilo que esperam dele percebe na harmonia do conjunto de seu corpo, o desencaixe que é preciso realizar e continuar. Entre atender requisitos não formulados por si ou anulá-los, sem dúvida que o corpo lido dessa forma vai optar por traçar o próprio ritmo. À margem, à deriva é o lugar estabelecido porque não fixado. Atingí-las diz muito de quem fez sua opção de vida: libertar o corpo da ilusão de compreender o campo geral de seu olhar, sabendo por outro lado que sempre fica algo para ser visto. Então se o Senso Comum adverte: “Quanto mais te disfarçares, mais te parecerás a ti próprio.” (SARAMAGO, 2002, p. 157) O recurso usado pelo personagem é avançar quando a máscara prenuncia a necessidade de auto-compreensão.

O homem afeito ao imaginário que é o esforço vital no intuito de compreender, presente em Roland Barthes por Roland Barthes conforme suas palavras, rediscute por isso papéis, níveis de consciência sem, no entanto, determinar parâmetros senão os ditados pela própria subjetividade. Aceitar-se pluralizar é como se houvesse a desdita do espelho, refratário à contrariedade analítica; deixar viver em si recantos ignorados, movimenta o corpo com maior propriedade. Nisso, há a confirmação de uma dialética mais viva na medida em que não almeja resolução. O trabalho com a palavra – parte do corpo do escritor – adentra vãos passíveis de espanto porque emerge incompreensões várias. O estranhamento da palavra, também do corpo, ocorre justamente de acordo com o estipulado porque há partilha de espaços, divisão em seguida quando não se consegue articulá-los. Quando no romance percebemos o quanto os personagens são contraditórios, eles alcançam o patamar da individualidade sob questão uma vez que possuindo moral duvidosa podem tanto querer quanto fingir vontades alheias.

Saber que um corpo não é exatamente igual a outro faz desse conhecimento à vista o compartilhar do enigma instaurado, o que gera cumplicidade por um lado e irritação por outro. Ser duplicado é ter o vazio por espelho. O que é aceitável é a probabilidade de receber um sentido; encaminhar protesto, propor explicação de se aceitar o aceitável, assim o manuseio das palavras na formação do corpo presente na Literatura, conforme nosso entendimento teórico de Barthes. Da mesma forma que as margens, as fendas são imprevisíveis, dessa maneira o escritor defende a difração daquilo que as palavras tentam aprisionar mas o corpo liberta por meio de gestos incognoscíveis. Tais como: o gesto interrompido a meio caminho; a palavra cortada pela emoção; um sentido externado em contrário da intenção primeira, como lemos na trajetória do homem duplicado. A estranheza com que ele é observado pelo professor de Matemática que ao pousar sua mão no ombro do colega de História, sente ter sido repelido, mostra o quanto o protagonista avalia imprescindível estar numa espécie de jogo e não saber as regras.

Barthes que se diz seduzido pela linguagem não só porque esta o interessa mas o fere, testemunha o poder exercido pela palavra sobre um corpo que não sendo assim perderia a aura de incompletude. Na vastidão do imaginário, o acolhimento se dá quando o momento de nenhuma significância adquire tanta importância quanto o sentido único reinante no espaço amealhado pela lógica. Em O prazer do texto (2006) podemos ter noção das conseqüências dos embates com o senso comum ao procurar fazer valer a fruição daquilo que se perde, do que não se nota. Como “o sujeito que tem medo permanece sempre sujeito” (BARTHES, 2006, p. 58) e o que o escritor deseja é a contestação, o medo é o que impulsiona às contradições e nisso reside a marca do descontínuo da escrita/vida. Se há acordo entre o que se contesta e o contestado isso só pode vir se o “termo excêntrico inaudito” (2006, p. 65) for o resultante. Daí termos o senso comum relegado a segundo plano. Numa leitura atenta do romance O homem duplicado podemos afirmar que o insólito caso da duplicação põe em relevo a falta de subjetividade concomitante ao descontínuo modo de viver, que não satisfaz mais os personagens. Por isso procuram conhecer, não somente o corpo igual ao seu mas, o corpo que se tem junto à consciência esvaziada a respeito dos próprios potenciais.

Contrariado, o sentido passa adiante como forma de compreensão do devir. Então o texto toma vulto singular quando contempla a pessoa em pleno imaginário de ser indivíduo, por isso o intercambiar das identidades – deslocadas por um processo de aprendizagem de si. Conforme compreendemos Tertuliano e António, os personagens no dilema de não serem o duplo. Neste prisma, a expressão tantas vezes usadas por Barthes com relação à ficcionalidade das identidades toca no dado de separação dos corpos. Há um (re)encontro no que se refere ao corpo de fruição; livre das intempéries pronunciadas pelo senso comum, o corpo não mais subjugado descobre-se plural e se satisfaz com isso. O sujeito presente no texto que é tecido por isso se entrelaça, entretece idéias, trabalha nesse viés e muitas vezes se desfaz nele. Consciente de – em confronto direto com o senso comum – não se deixar levar por um significado à vista, importa é a questão posta.

Com um saber diferente a cada dia, o sujeito acresce à última palavra sobre si uma outra sob a vigilância daquilo que não se pode esclarecer. Na sensibilidade apurada, ele discute consigo no intuito de sair do que é evidente, portanto, no domínio da opinião corrente para buscar maior consistência. Não há mais uma sabedoria suntuosa por trás de si, o homem paradoxal se põe na ausculta do que poderia dizer e não está dito, daquilo que ele mesmo foi excluído. Visto assim, seu posicionamento só poderia ser o de se afastar do foco das atenções – tão solicitadas pela Doxa – para se por em condições de melhor intervir. O corpo como palavra-chave é o que faz a travessia do sentido enquanto inacabado, em deriva. Na extensão do que se pode compreender ajunta-se à palavra transicional, o outro lado da margem a ser tocada ou, vale reforçar, forma o novo sem ser inteiramente uma novidade; esse o ideal das artes que contemplam o homem.

O senso comum a ser vencido de maneira constante, exigente quanto ao equilíbrio de situações e falas, que tenta acabar com a noção do problemático tem, no parecer de Roland Barthes, importância cada vez mais reduzida. Menor todas as vezes que o disforme vai para primeiro plano, o neutro tem a mesma validação que uma direção fixa e o paradigma se vê perturbado. Disso extraímos que a auto-compreensão do sujeito não se pode limitar à necessidade do fechamento, reduzido a uma obra por exemplo. A idéia de continuidade prevalece sob um fundo de obrigação voluntária em contrariar o já sabido; reagir contra a banalidade é colocar o corpo à frente numa correção do discurso. Daí que escrever e imaginário são faces expletoras. Isto significa que ao olhar o corpo do outro, a subjetividade em expansão o admite como uma proposta de passeio. Sem dúvida, o percurso deixou de ser plano, rápido, fácil; os volteios, o problemático da visão dizem respeito àquele que olha não mais do corpo olhado, do contrário recairia na velha fórmula da opinião corrente sempre em busca do significado, conforme podemos verificar: “o verdadeiro jogo não está em mascarar o sujeito, mas em mascarar o próprio jogo.” (BARTHES, 2003, p. 159). Lembremos a constância em que aparece a troca de máscaras entre os personagens no romance português. O disfarce do ator indicia o problemático a que não podem mais fugir.

O corpo e o corpus tem a oferecer à subjetividade, a superfície da qual o eu se ressente uma vez que a profundidade não diz respeito ao sentido do homem que buscamos. Cada um – lembremos que o interpretamos por uma faceta dúplice – tem na fragmentação a via processual que encaminha à dispersão, afinal ser um mosaico de sensações é fugir de distinções comprometidas com um não-eu. Há algo de indubitável quando admitimos trazer no próprio corpo dois homens. Longe de ser uma sentença ditada pela Doxa, isto pressupõe colocar no devido lugar o potencial do imaginário sem o qual o homem perde oportunidade ímpar que o possa dizer quem é. Nesta perspectiva, o personagem duplicado imerso em caos, o assume como “uma ordem por decifrar” (SARAMAGO, 2002, p. 103), o sentido de si num outro corpo.

Ao estudarmos Aula (2007) observamos que Roland Barthes já se preocupa em 1977 com a impostação do sujeito que se admite incerto num ambiente que exige exatamente o contrário. No trabalho com a linguagem já antevia autoridade na asserção em detrimento do gregarismo da repetição, no que acolhemos como desapontamento considerada a avaliação do senso comum. A Literatura, espaço onde o corpo figura é possível trapacear a língua, onde podemos ouví-la fora de instâncias redutoras. Aí onde o homem pode sonhar com a plenitude embora tenha conhecimento que esta pode não ser alcançada em termos da opinião comum. Pelo trabalho de deslocamento, o homem cujo corpo é visto sob inúmeros focos de abordagem, tem na Literatura a oportunidade de ver o giro dos saberes sem que haja prevalência de algum deles, com isso buscar identificação. Então como Barthes defende, na Literatura podemos saber de alguma coisa e se ela sabe algo das coisas sabe muito sobre os homens.

O sujeito que fala mesmo se às vezes o faz para si, se faz insituável ou desconhecido em outras vezes. Pelo desejo sensato do impossível, ele é alguém que escolheu o caminho mais difícil; alguém situado entre uma aparência de verossimilhança e com uma incerteza de verdade. Aficcionado por manter um discurso sem o impor, o homem mais senhor de si faz excursões sobre a escuta, a imagem que de si lança; livre com e pelas palavras, o gestual a seguir ainda precisa ser elaborado. Se não como contestar: “se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico.” (BARTHES, 2007, p. 46) Viver sabendo que desaprender é preferível à cumprir o determinado pela sedimentação dos saberes. Desaprender o sentido único, começar o que já foi iniciado é ousar ao mesmo tempo que atravessar a encruzilhada armada pelo senso comum para granjear mais adeptos em cada opinião lançada. Dessa forma compreendemos que Tertuliano Máximo Afonso ao se decidir por conhecer António Máximo não pode mais ignorar “que o novelo do espírito humano tem muitas e variadas pontas,” (SARAMAGO, 2002, p. 96).

O plural do corpo em vista e o vácuo sentido naquela proposição, além de ser alguma coisa de caça é igualmente fuga do esteriótipo a que o homem Barthes desempenha no sentido da legibilidade do homem assente na Literatura. Contrariando um possível consenso imaginado pela Doxa, o escritor tem na dissensão o revestimento para que o seu trabalho com a língua favoreça a responsabilidade da forma, seguramente seu ofício. Localizamos na tensão entre o antigo e o novo esse gesto abrasador da escritura que anuncia, faz o sujeito se anunciar, se procurar nos meandros da opinião pública desconsiderada. Os caminhos que podem se abrir diante disto buscam argumentação entre o desdobramento de imagens. Tal consideração entra em acordo com o que vimos exposto em Roland Barthes por Roland Barthes quando: “A Doxa não é triunfalista; ela se contenta com reinar; ela difunde; ela gruda; é uma dominância legal, natural;” (2003, p. 171) sendo assim, a fim de iniciar um discurso que pode não ser atrativo ou por outra, prosseguir no conhecimento do eu, não há como negar contrariedades. Uma fala que não dissuade nem predomina, auxilia o sujeito no pensamento que é corpo, é corpus de se prender para logo em seguida vê-lo escapar, duplicado existindo.

A voz sussurrante do senso comum sem dúvida ainda tenta investida todavia, não tem mais a força de junção anterior. O sujeito disperso e inconstituído às custas do imaginário como sugere Barthes, não tem nenhum valor fundamentador, de preferência ser sem escolha diante dos pedaços de mundo que observa. Espedaçado tanto quanto, o corpo da severidade cede a vez ao corpo sendo corpus de descobertas com a diferença por horizonte. Em relação ao eu peneirado nesse processo, volta na discussão sob a forma de espiral: “desconstruída, desunida, deportada, sem ancoragem” (BARTHES, 2003, p. 185) que justifique um saber universal. O homem que detém essa descoberta não só rompeu com o senso comum como também está decidido a não se adaptar à generalidade do que é um corpo, voz altissonante que está por se estruturar. Diferença irredutível porém desejada na mudança que o imaginário oferece pela ausência, no resto que não a totalidade.

Na prevalência das emoções e sentimentos que a Literatura de José Saramago propõe, o eu dos personagens se sente parte de um conteúdo a ser desvendado. Ser primeiro neste contexto não significa determinar quem é original ou cópia, refere-se por outro lado, reconhecer e fazer valer o nada como experiência de vida. Absorvidos pelo caminho, os personagens deixam de ser os espectadores e agem no sentido da auto-identidade à maneira de uma abertura. Em questionamento, o homem que sujiga o senso comum pergunta sobre o corpo que é seu, a relevância de si junto dos anseios mais recônditos que de repente não podem mais ser sufocados. É então que são tomados pelo desejo de conhecer. Com o auxílio do sonho/imaginação irreconciliável com o senso comum, o ser literário é compensado com os vãos obscuros de si.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

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BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar : a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986

 

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