CORPO COREOGRÁFICO E NARRATIVA FÍLMICA: UMA RELAÇÃO DIALÓGICA DA DANÇA COM O CINEMA

Katya Souza Gualter

Mestre em Tecnologia Educacional nas Ciências da Saúde

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

A presente comunicação pretende verificar em que medida as cenas de dança do musical Roberta (William A. Seiter, EUA, 1935) intervêm na história que está sendo contada no filme. Investigaremos a relações entre o corpo coreográfico, que é a expressão corporal dos bailarinos no espaço cênico durante a execução das coreografias e, o movimento narrativo, que é o encadeamento lógico e cronológico da trama, ou seja, a seqüência de fatos e acontecimentos que contam uma história.

Roberta é uma comédia musical, com os atores e bailarinos Fred Astaire e Ginger Rogers. O filme conta a história de uma banda de músicos que sai dos Estados Unidos para tentar a sorte na França, em Paris. Chegando lá, John (Randolph Scott), o empresário da banda, recorre à sua tia, Roberta (Helen Westley), para conseguir trabalho. Roberta, mais conhecida como madame Mammy, é dona de um famoso ateliê de roupas femininas, que tem o seu nome. A gerente do ateliê, Stephanie (Irene Dunne), e John apaixonam-se, formando o primeiro par romântico do filme. Mammy intercede em favor do sobrinho, junto a uma de suas clientes, Chevenka (Ginger Rogers), que é cantora e bailarina da boate Cafe Russe. Chevenka forma com o maestro da banda, cantor e bailarino Huck Haines (Fred Astaire), o segundo par romântico do filme. A dança e a música são as expressões fortes que dividem entre si a comunicação das cenas. O filme reúne cinco seqüências de dança.

A partir da identificação dos momentos da narrativa, em que a dança se insere no filme, buscaremos verificar as relações existentes entre a narrativa e o movimento na construção do corpo coreográfico. Discorreremos aqui apenas a análise da primeira seqüência de dança de Roberta.

O filme começa com Haines, John e uma banda de músicos viajando, em um trem, de Nova Iorque para Paris. John está determinado a procurar a sua tia, madame Mammy, que é dona de um famoso ateliê de roupas femininas, chamado Roberta . Ele e os amigos chegam em Paris e vão para a casa de Mammy, onde está situado o ateliê. Chegando lá, John mostra para a sua tia, o retrato da sua namorada, Sophie. Nesse momento, John conhece Stephanie, que é a gerente do ateliê, com quem começa a flertar.

Uma cliente com o nome de Chevenka, que se diz condessa, chega no ateliê, querendo comprar um vestido. Mammy lhe pede um emprego para a banda de música e lhe apresenta o seu sobrinho. Oportunamente, John pede à banda para executar um dos seus trabalhos. Chevenka assiste à apresentação da banda. Esses trechos da história transcorrem como em uma peça tradicional de narrativa clássica, ou seja, seguindo a lógica ordenada de um princípio, meio e fim, quando de repente, acontece o espetáculo musical e coreográfico.

O maestro e os músicos se apresentam, com o intuito de conseguir um emprego, na boate onde Chevenka trabalha, como cantora e bailarina. Em um dado momento do espetáculo, Haines e Chevenka se surpreendem um com o outro, como conhecidos, que não se vêem há muito tempo e que não contavam de se encontrar naquele lugar. O maestro pára de dançar e vai ao encontro da, então, condessa. Apesar de se conhecerem, Haines e Chevenka conversam como desconhecidos, porque ela disfarça e finge não conhecê-lo. Estamos no início do filme, em que a história anuncia as personagens principais e as situações de conflito que irão se resolver durante o desenrolar da trama.

Haines aparece com mais dois músicos cantando no pátio do ateliê e a banda aparece tocando diversos instrumentos. Na apresentação, Haines, os músicos e os bailarinos mostram a versatilidade do repertório da banda, que integra a música e o canto com a dança.

Vejamos, como é que o espetáculo musical e coreográfico vai se introduzindo na narrativa, isto é, no rumo dos acontecimentos do filme. Vemos um músico sentado no chão afinando um banjo; seus dedos se prendem no instrumento e o músico tentando soltá-los, adota uma atitude corporal engraçada. A expressão facial do músico sentado, segurando o instrumento musical, dá um tom cômico e descontraído à cena, que vai permear toda a seqüência de música e dança, no momento seguinte.

Estamos a 19 minutos e 23 segundos do início do filme, que tem 1 hora 44 minutos e 41 segundos de duração.

O espectador concentra sua atenção no músico, que está afinando o banjo. Um plano fixo e prolongado valoriza o momento de preparação da banda, antes da sua apresentação, desviando a atenção do espectador para aspectos secundários da narração, como por exemplo, a afinação dos instrumentos musicais de cordas e de percussão, antes do espetáculo começar. Haines é visto de frente para a banda, dando o sinal de comando para ela começar a tocar. O espetáculo musical começa acompanhando cantores e bailarinos.

Como já foi mencionado, estamos no início do filme e a dança está se inserindo pela primeira vez. Vemos situações que introduzem a música e a expressão corporal, preparando o espectador para os números musicais e coreográficos, que serão apresentados, ao longo do desenvolvimento da história. A canção executada também desempenha um papel introdutório na narração, a começar pelo seu título Let ' s begin ("vamos começar").

Além do título, a letra da canção igualmente possui uma conotação de começo. A canção fala do início de um flerte bem sucedido, em que ambas as partes estão dispostas a um namoro, anunciando assim, o clima de romance que norteará todo o filme, inclusive, as seqüências de dança subseqüentes. Com isso, a canção se ajusta ao momento introdutório da narrativa, em que a dança e a música se inserem, conjuntamente, pela primeira vez.

Nos planos subseqüentes, a música vai predominar sobre a dança. Haines canta e dança na base de pé, ora sozinho, ora com mais três músicos, formando um coro musical. Verificamos o processamento de informações narrativas nos próprios corpos dos bailarinos. Eles compõem um diálogo corporal baseado, predominantemente, na alternância entre o corpo em pausa aparente (potencial) e o corpo em movimento aparente (liberado).

Segundo Helenita Sá Earp, a aparência física de um corpo está no âmbito da mecânica corporal e, por essa razão, constitui um estado mecanicamente visível. Porém, as alterações do corpo humano transcendem a aparência física, isto é, as modificações do corpo humano não se atêm ao plano visível da mecânica corporal. O estado de um corpo (aparentemente imóvel ou em deslocamento) é sempre uma passagem, um momento em transição. Independentemente de parecer parado ou em deslocamento, o corpo está permanentemente em movimento, em contínua mudança. Portanto, para Helenita Sá Earp, o corpo é permanente mutação. (Earp 2001).

Para ela, o corpo pode aparentar dois estados de movimento (potencial e liberado), como sendo momentos passageiros da atitude corporal. O estado de movimento potencial está presente na interiorização de energias, que permanecem em circulação, no corpo em repouso aparente. Neste caso, a energia é latente, concentrada e não se manifesta pelas modificações das trajetórias no ambiente, ou seja, não se limita ao campo visível da mecânica corporal.

O estado de movimento potencial converge energia para uma interiorização. Refere-se à energia criadora do ser humano. Segundo Helenita, a dança materializa o “movimento real” , trabalhando a modificação da expressão corporal a partir do movimento potencial (o corpo em pausa aparente) que evoca as transformações constantes no espaço exterior, do corpo em movimento aparente (em movimento liberado).

Helenita assinala, então, que o movimento também se exprime pela quantidade de formas no campo mecânico da aparência física, limitadas ao aparelho locomotor. À esta particularidade da manifestação do movimento humano, Helenita chama de estado do movimento liberado. Neste estado do movimento, a energia corporal diverge para uma exteriorização, desenhando trajetórias no ambiente, que se confundem com o espaço percorrido. (Earp 2001).

Segundo Helenita Sá Earp, o movimento enquanto fluxo, continuidade revela o corpo humano em permanente mutação, para além da forma anatômica. O corpo é causa e efeito das ações humanas. Ele produz um movimento e ao mesmo tempo reage a esse movimento, em um ciclo infinito de transformações. Porém, este ciclo não é desencadeado, apenas, no corpo que exterioriza formas e desenhos no ambiente, denominado por ela de movimento liberado. Ele é desencadeado também, no corpo aparentemente parado, que produz uma energia latente, concentrada, interiorizada. o corpo coreográfico é construído, a partir de uma energia em permanente circulação, presente, tanto no movimento liberado, quanto no movimento potencial. É assim que Helenita concebe o corpo coreográfico.

Com base nesse conceito de corpo coreográfico, buscaremos em Roberta , a dança que constrói a corporeidade, a partir de movimentos que nos transportam a uma esfera da imagem cinematográfica que não se reduz à quantidade de movimentos, permitindo-nos ver o movimento que transcende as delimitações mecânico-motoras do corpo humano no espaço e no tempo.

Sob esta visão de corpo coreográfico, analisaremos a primeira seqüência de dança de Roberta , a fim de verificar o movimento, no encadeamento da narrativa.

A seqüência tem 2'44'' de duração e é composta de 12 planos sendo que somente nos 7º, 9º e 11º planos, a dança predomina sobre a música. Vemos no 7º plano, o diálogo corporal entre os bailarinos durante a execução das coreografias com a seguinte ordenação: o maestro faz movimentos e pára; os outros dois bailarinos repetem os seus movimentos, simultaneamente, parando na base de pé, igual ao maestro, mas de costas para a câmera; em seguida, o maestro faz uma nova série de movimentos na base de pé, enquanto os bailarinos estão parados, observando-o; continuando, o maestro pára e os bailarinos reproduzem a sua série, mudando da base de pé para a base deitada em decúbito ventral.

Vimos também, que no 11 º. plano, Haines e os outros dois bailarinos definem um diálogo claro, baseado na imitação simultânea e sucessiva de saltos, voltas, transferências e locomoções, sem usar as palavras. Os três bailarinos alternam os seus papéis na coreografia. Primeiramente, eles fazem movimentos iguais e simultâneos na base de pé, com variações de locomoções e transferências.

Nesse momento, a igualdade e a simultaneidade de movimentos conduzidos por Haines realçam uma unidade de atitudes corporais baseada na descontração, congregação e agrupamento entre os bailarinos, compondo um discurso único, uma única fala, através somente dos movimentos coreográficos.

Posteriormente, Haines executa pequenas transferências na base de pé, combinadas sucessivamente com voltas consecutivas, em apoio unilateral e pára de frente para os outros dois bailarinos. A movimentação de Haines processa informações no seu corpo, definindo um sentido, uma intenção de exposição, como se ele dissesse para os seus parceiros: "Observem os meus movimentos, para depois, vocês os repetirem".

Enquanto isso, os outros dois atores estão parados observando Haines, com uma atitude corporal de concordância e apreciação, como se eles respondessem para Haines: "Estamos atentos aos seus movimentos!". Cabe lembrar, que em nenhum momento deste trecho da seqüência, os atores utilizam as palavras. O diálogo silencioso que se estabelece é determinado pela dança, ou seja, pelos gestos e expressão corporal dos bailarinos durante as coreografias.

Em seguida, os dois bailarinos repetem a série de Haines, como se dissessem para ele: "Veja como conseguimos assimilar a sua idéia de movimento solto e leve com pequenas transferências na base de pé!" Enquanto isso, Haines está parado observando os bailarinos, de frente para eles, com uma postura corporal de pouca aprovação. Os seus parceiros repetem o conjunto dos seus movimentos, mas não reproduzem os detalhes, terminando inclusive, diferentes de Haines, ou seja, de costas para a câmera. Continuando, Haines executa outras pequenas transferências na base de pé, com um pequeno salto no final e uma expressão corporal como se ele dissesse: "Vamos tentar outra vez. Observem o que eu faço, para depois repetirem os meus movimentos."

Enquanto isso, os outros dois bailarinos estão parados observando o maestro de pé, tal como, no momento anterior, sendo que, desta vez, as suas expressões são de despreocupação, como se pudessem reprisar a série de Haines, sem quaisquer dificuldades. Quando Haines pára e os bailarinos repetem a sua série, eles erram a coreografia e caem. Haines os levanta do chão, com uma postura corporal de desaprovação, como se dissesse para eles: "Vocês não aprenderam. Venham comigo, eu conduzo vocês!".

Nesse momento, o maestro dá os braços para os dois bailarinos se apoiarem, um de cada lado. Os três bailarinos dançam juntos, com movimentos iguais e simultâneos, como no começo da coreografia. Eles realçam, novamente, uma unidade do discurso, a coesão das mensagens de movimentos transmitidas ao espectador, baseada na igualdade das formas e do tempo de execução dos movimentos corporais. Vemos o movimento coreográfico exprimindo significados e compondo frases, mesmo sem utilizar a linguagem verbal.

Neste caso, a alternância entre o corpo aparentemente parado e o corpo em movimento aparente permite a construção de um diálogo corporal, onde a pausa significa o "silenciamento" de um corpo na escuta de outros corpos que estabelecem uma ampla comunicação, em movimento aparente. Vemos o corpo aparentemente parado de Haines “em silêncio”, “ouvindo” o que os corpos em movimento corporal aparente dos outros dois bailarinos “dizem”. O mesmo ocorre com os parceiros de Haines, quando eles estão "parados" e, com o próprio Haines, quando ele percorre o pátio.

Nesse momento, vemos uma troca de informações que se processam tanto no corpo em movimento potencial, quanto no corpo em movimento liberado, alternadamente. Com isso, o “silenciamento” e a "fala" dos corpos enfatizam a sucessividade de movimentos aparentes entre os bailarinos. Esse conteúdo de dança define uma estética coreográfica de grupo (a partir de duplas), em que cada bailarino tem a oportunidade de expor o seu próprio modo de expressar os movimentos, mesmo quando esses movimentos se constituem em imitações.

O corpo coreográfico vai sendo construído, baseado na valorização dos talentos individuais e na singularidade da expressão corporal, apesar da igualdade de movimentos. Os atores se afirmam ao mesmo tempo, enquanto bailarinos de uma seqüência coreográfica pontual e enquanto personagens, de uma narrativa que extrapola aquela seqüência.

Durante a execução da música e da dança no 11 º. plano, os movimentos corporais dos atores aparecem enfatizando o repertório diversificado do grupo, com números de canto, dança e orquestração musical. Vemos o perfil eclético da banda, destacando os sentimentos de união e prazer dos componentes, de executarem as canções e coreografias, com naturalidade e descontração. Os movimentos corporais dos atores são vistos, como sendo o resultado de um impulso interno, em que cada gesto, cada fase revela um aspecto, um significado, para além das articulações mecânicas corporais no espaço e no tempo.

O diálogo corporal dos bailarinos tem a função, na narração, de reforçar o momento da história em que a coreografia se insere, sem recorrer às palavras. Mas, apesar disso, a dança não precisa da história que está sendo contada, para veicular as informações, os sentimentos e as emoções dos bailarinos. Ela aparece, como suficiente para viabilizar a comunicação entre as personagens, na cena. Nesse sentido, o 11 º. plano desta seqüência torna-se independente da narrativa.

Gilles Deleuze pode nos ajudar a pensar sobre o diálogo corporal na dança, que se impõe como suficiente para processar e fazer transitar as informações nos corpos dos bailarinos. Ao analisar os musicais, Deleuze diz que a dança é de natureza onírica, ou seja, ela possui a propriedade de transportar o espectador do mundo da realidade para o mundo dos sonhos. (Deleuze 1990).

Com efeito, quando vemos Haines e os outros dois bailarinos sustentando uma troca de informações, através somente dos seus movimentos corporais, essas imagens de dança nos convidam a fazer o mesmo que o espectador deleuziano: atravessar a fronteira da realidade e mergulhar no onirismo da arte coreográfica, sem nos preocuparmos com o momento da narrativa no qual a dança se insere.

Com base na idéia de sonho, Deleuze atribui à dança a faculdade de, incondicionalmente, provocar no espectador e no ator-bailarino a passagem da realidade para o onirismo da arte coreográfica. Para ele, a dança proporciona essa viagem, porque ela evoca as impressões, as sensações humanas de momentos já vividos que se confundem com as sensações dos momentos presentes. Essa "confusão" faz surgir um momento inédito, uma nova situação do acontecimento “por vir”, o que não deixa de ter repercussões importantes no restante da narrativa. O encadeamento lógico da narrativa clássica e a impressão de realidade são rompidos com a aparição da cena onírica de dança.

Não é o passado desvinculado do presente, nem é o presente que se constrói fragmentado do passado. A dança nos concede o presente que se constrói passo a passo, atualizando as impressões do passado, a cada momento, a cada acontecimento imediato. Desta forma, a dança motiva o inusitado, ou seja, ela motiva o incomum, o não-descoberto, aquilo que anuncia o que virá, mas não revela. Nesse sentido, pela sua própria natureza, a dança é um contínuo devir e por si só impede um encadeamento muito rigoroso da trama. (Deleuze 1990).

Segundo Deleuze (1990), a passagem do mundo da realidade para o mundo dos sonhos pode constituir dois tipos de situações, através da imagem cinematográfica de dança: a situação ótica e sonora pura e a situação sensório-motora. Na primeira, as experiências do espectador e das personagens da narrativa transpõem o nível mecânico e superficial da sensação e motricidade. Já a situação sensório-motora deixa as experiências m um nível superficial da sensação e motricidade.

Na situação sensório-motora, as imagens sofrem ações e reações imediatas, como nos filmes narrativos, onde o principal interesse é pela história que está sendo contada através de um fio contínuo, geralmente, em três partes ordenadas em princípio, meio e fim. Neste tipo de imagem, a história está em primeiro plano. As personagens principais desencadeiam ações e reações imediatamente ao que vêem, com o apoio de personagens secundárias. As situações de conflito são resolvidas, de modo claro e progressivo, desembocando numa solução final.

Este encadeamento de ações e reações caminha, necessariamente, para um desfecho em que a trama consegue ser solucionada. Nesse caso, as imagens são baseadas no processo sensorial consciente (sensação) e na impressão física e motora (motricidade), que proporciona ao ser humano a noção do mundo que o cerca, situando as experiências vividas num nível superficial do conhecimento. Por essa razão, Deleuze denomina esse tipo de imagens de “imagens sensório-motoras”.

O outro tipo de imagem está contido no conjunto de imagens que produzem intervalos entre ações e reações, oportunizando assim, a seleção do que é visto. Essas imagens se diferenciam das imagens sensório-motoras, pelo modo como são mostradas. Elas desobedecem à linearidade da narrativa clássica. O desenrolar da trama ocorre através de um encadeamento mais livre de ações e reações que não caminham, obrigatoriamente, para um desfecho, para uma solução.

Diferentemente do tipo de imagem explicado anteriormente, as imagens das quais estamos falando, agora, não caminham apenas para uma solução final, mas para várias soluções ou nenhuma. Aqui, a história não é contada de um modo linear, como na narrativa clássica. Deleuze vai chamar este tipo de imagem de “imagem ótica e sonora pura”, a qual se constitui em ação e reação em si mesma, não precisando de um prolongamento narrativo.

Roberta é um exemplo de filme musical em que a história está em primeiro plano. Como a maioria dos filmes pertencentes ao gênero musical da "idade de ouro" de Hollywood (décadas de 1930 e 1940), Roberta desenvolve uma narrativa clássica e possui uma estrutura romanesca. Nas formas romanescas, o encadeamento das cenas se desenvolve de modo claro e progressivo, centrando a narrativa em um personagem principal ou em um casal. Todas as questões são resolvidas nas situações de conflito.

Nesse sentido, Roberta constitui situações sensório-motoras, porque a história do filme se desenrola, principalmente, através das ações e reações das personagens principais Haines, Chevenka, John e Stephanie e em torno dos seus romances e intrigas. Assim, do ponto de vista do movimento da narrativa, as seqüências de dança de Roberta constituiriam situações sensório-motoras, pois as finalidades expressivas das coreografias e os diálogos corporais entre os bailarinos enaltecem a narrativa clássica e linear do filme. Porém, considerando em separado as seqüências de dança protagonizadas por Fred Astaire (Haines) e Ginger Rogers (Chevenka), não se torna tão simples afirmarmos tais situações.

Como vimos anteriormente, no 11 º. plano, Haines e os outros dois bailarinos aparecem, alternando as suas movimentações potenciais e liberadas. O corpo coreográfico vai sendo construído, a partir da quantidade e da qualidade do movimento, tornando-se compatível com o movimento em construção. Esse plano ressalta o corpo em pausa aparente. Assim, vemos a coreografia que extrapola o campo mecânico do movimento humano. A dança então perde o seu prolongamento motor, ultrapassando assim, a sensação e a motricidade. Nesse sentido, a dança constitui uma situação ótica e sonora pura.

Por outro lado, no 7 º. plano, quando vemos Haines produzindo uma variedade de movimentos no pátio, na frente da banda, com amplo deslocamento na base de pé, a imagem cinematográfica da coreografia se reverte em experiências de corpo, as quais valorizam o movimento acabado, terminado. Nesse caso, a imagem do corpo coreográfico tende a valorizar o movimento como um fim nele mesmo.

Tal como o 7 º. plano, o 9 º. plano também privilegia a quantidade de movimentos. Como vimos anteriormente, Chevenka executa uma pequena série de movimentos, deslocando-se da sala para a varanda. Ela traça uma diversidade de trajetórias no espaço, em voltas e transferências na base de pé.

Vemos uma certa quantidade de movimentos coreográficos que só existem enquanto a mecânica corporal os está produzindo. Eles começam, se desenvolvem e encerram no campo visível do aparelho locomotor. Os movimentos coreográficos se detêm à capacidade dos músculos, ossos e articulações de produzir o movimento humano, no nível mecânico-motor. Nesse caso, poderíamos afirmar que a dança constitui uma situação sensório-motora, porque o movimento fica no âmbito da sensação e da motricidade, isto é, detido ao campo visível da mecânica corporal.

Esses três planos se inserem em um momento da narrativa em que o espetáculo desempenha a função de apresentar para Chevenka a riqueza do trabalho da banda, que une a dança com a música. A dança é, então, apresentada como parte do repertório da banda. Contudo, apesar da dança estar inserida no rumo linear da lógica narrativa, o movimento coreográfico aparece, nos três planos, de modo que transpomos a barreira da realidade e viajamos para o mundo onírico das coreografias.

Mesmo nos 7 º. e 9 º. planos, em que vemos Haines e Chevenka somente em movimentos liberados, saímos do mundo real e seguimos junto com os atores, em uma viagem pelo universo da poesia das ações corporais, que escapa à lógica narrativa da história que está sendo contada no filme. Como é que, então, a dança nos retira do mundo real, concreto, se o movimento coreográfico não ultrapassa a concretude da mecânica corporal, no nível da sensação e da mtricidade?

Esse momento de Roberta nos remete, novamente, ao que Gilles Deleuze observa sobre a dança na comédia musical. Ele afirma, que a dança é onírica por natureza, independentemente do contexto em que está inserida. Tanto nos filmes com uma narrativa clássica, quanto nos filmes de narrativas não-lineares, a dança sempre nos transporta da realidade para o mundo dos sonhos. Porém, a dança tanto pode expandir o movimento individual do ator para o movimento de mundo, retornando à situação motora individual, como pode transcender a motricidade do ator, expandindo o movimento para além das limitações motoras do seu corpo. (Deleuze 1990).

Por essa razão, Deleuze defende que a situação ótica e sonora pura e a situação sensório-motora se sobrepõem nas comédias musicais. Mas, devido ao fato da dança estar mais propícia a perder o prolongamento motor, traçando um movimento de mundo, a situação ótica e sonora pura se adeqüa melhor à sua natureza onírica. Todavia, para Deleuze, uma coisa é certa, após a visualização das imagens cinematográficas de dança: para entrar no mundo da dança é preciso mergulhar no mundo dos sonhos, em que a liberdade de criação nos permite apropriações transitórias do movimento “por vir”. (Deleuze 1990).

Na seqüência em análise, os três planos em que a dança predomina sobre a música mostram os movimentos coreográficos de Haines, Chevenka e dos outros dois músicos, retirando-nos e a eles da história do filme e, levando-nos para o universo coreográfico da poesia corpórea. Porém, os movimentos corporais dos bailarinos aparecem sendo explorados de duas maneiras diferentes, durante as coreografias. Vejamos em que medida essa diferença implica na constituição de situações sensório-motoras ou de situações óticas e sonoras puras.

Os 7 º. e 9 º. planos privilegiam uma multiplicidade de movimentos liberados no ambiente, reduzidos ao campo visível da mecânica corporal, apesar dos vários significados que eles assumem na expressão coreográfica. O movimento permanece situado no universo quantitativo do aparelho locomotor, não extrapolando assim, o nível superficial da motricidade dos corpos dos bailarinos.

Ao mesmo tempo em que a dança expande os movimentos de Haines e Chevenka, conduzindo-nos para o onirismo coreográfico, ela nos faz retornar a concretude do mundo real, no caso, à narrativa, como um ponto central, como uma guia da nossa atenção, para um acompanhamento conciso das resoluções dos conflitos colocados no filme. Desta forma, esses trechos da seqüência ressaltam a coreografia que constitui situações sensório-motoras, na medida em que os movimentos coreográficos se alojam, somente, no campo visível da mecânica corporal. Conseqüentemente, os movimentos não perdem, definitivamente, o prolongamento motor, porque eles reforçam constantemente, o contato direto com a narrativa, não ampliando assim, as possibilidades da expressão coreográfica, para além das articulações mecânico-motoras do corpo humano.

Já no 11 º. plano, a imagem mostra o corpo coreográfico sendo construído, a partir da alternância entre o movimento potencial e o movimento liberado. As coreografias aparecem transcendendo a motricidade situada no nível mecânico-motor dos corpos de Haines e dos outros dois bailarinos, reportando-nos para o onirismo coreográfico, onde o movimento ultrapassa a sua dimensão física quantitativa e ganha uma dimensão espiritual qualitativa, constituindo assim, uma situação ótica e sonora pura.

A imagem do movimento potencial dos bailarinos nos permite adentrar pelo imaginário, perdendo o prolongamento motor dos movimentos e rompendo com o prolongamento da narrativa. O movimento potencial nos oferece a oportunidade de reconstituir o movimento, a partir da nossa própria imaginação. Ele, por si só, já se constitui na transcendência ao movimento mecanicamente visível. Ao passo que, o movimento liberado é a possibilidade de articulação do corpo humano reduzido ao campo visível da mecânica corporal.

Porém, a imagem da alternância entre esses dois estados do movimento nos permite ver, a materialização da dança no corpo humano, como integração entre as duas dimensões do corpo humano: o movimento potencial e o movimento liberado. É assim que a dança aparece, no 11 º. plano. Ela processa e veicula as informações, constituindo uma situação ótica e sonora pura, diferente dos planos anteriores, que mostravam somente os movimentos liberados, ou seja, a diversidade de movimentos dos bailarinos no pátio, situados apenas nos níveis da sensação e da motricidade.

Portanto, os 7 º. e 9 º. planos constituem situações sensório-motoras, porque eles mostram a dança que nos conduz ao mundo dos sonhos, mas nos devolve à narrativa, ou seja, às situações motoras individuais, através da diversidade de movimentos produzidos pela mecânica corporal dos bailarinos, no pátio. Já o 11 º. plano desta seqüência mostra a dança que nos retira da realidade, da dimensão quantitativa dos movimentos mecanicamente visíveis, transportando-nos para o mundo da qualidade dos movimentos, do sonho coreográfico, onde os movimentos ultrapassam o prolongamento motor dos bailarinos, constituindo assim, uma situação ótica e sonora pura.

 

Nesta seqüência, a dança reforça a história que está sendo contada, nos três momentos em que ela predomina sobre a música, 7 º., 9 º. e 11 º. planos. As coreografias são vistas dando uma consistência ao movimento narrativo, que ele não teria se a dança não existisse nesses dados momentos do filme. Na medida em que, a dança aparece valorizando e enriquecendo a narrativa, torna-se evidente a dependência que a narrativa assume em relação à dança. Por outro lado, a dança aparece autônoma, sem precisar atrelar-se à história do filme, para processar e veicular as informações. Os três planos, 7 º., 9 º. e 11 º., mostram a dança capaz de ”falar” por si mesma, através dos diálogos corporais, ressaltando assim, o movimento coreográfico independente do movimento narrativo.

Os figurinos auxiliam nos movimentos coreográficos desta seqüência, dando uma liberdade de movimentos aos bailarinos, sem restrições. Durante as coreografias, vemos uma conjunção dos figurinos aos corpos dos bailarinos, isto é, os movimentos que vemos são produzidos pelos corpos dos atores, cujas expressões coreográficas são acentuadas, em virtude das roupas que eles estão usando. Nesta seqüência, os figurinos são vistos tão nitidamente, quanto é vista a construção do corpo coreográfico. Logo, o próprio figurino reforça o caráter onírico da dança e dá à narrativa uma dimensão inverossímil.

 

Com base na análise da construção do corpo coreográfico na primeira seqüência de dança de Roberta e as suas relações com a narrativa, seguem abaixo algumas considerações.

Os títulos e as letras das canções se conjugam aos diálogos corporais nas coreografias, formando uma expressão única, que reforça a lógica narrativa da história que está sendo contada no filme.

A narrativa assume uma dependência da dança, para se tornar significativa. Mas, o diálogo corporal se impõe, em todas as seqüências, com um alto teor expressivo, sem precisar da narrativa, que recorre as palavras. Nos trechos em que os textos (as palavras) são substituídos pelos movimentos coreográficos, o filme ganha polimento, qualidade, saindo do patamar de entretenimento comum. Assim, em Roberta, a narrativa sem a dança se torna insípida, fraca e desmotivante, porque ela só mobiliza o espectador, em virtude das coreografias inseridas nos seus principais momentos.

A predominância dos movimentos liberados sobre os movimentos potenciais dos bailarinos no filme induz a reprodução de situações sensório-motoras, submetendo o espectador à lógica narrativa da história que está sendo contada. Nos poucos momentos em que a imagem de dança mostra o movimento potencial nos corpos dos bailarinos, o filme nos oferece situações óticas e sonoras puras, nos permitindo, fugir da realidade posta pela narração e viajar, junto com os atores e bailarinos, para o universo onírico da dança.

 

Referências

DELEUZE, Gilles. Cinema. A Imagem-tempo . São Paulo, SP. Editora Brasiliense, 1990.

EARP, Helenita Sá. Teoria Fundamentos da Dança . In: Earp, Ana Célia de Sá. Pr ograma de Iniciação e Profissionalização Artística de Dança Contemporânea da UFRJ , UFRJ/ EEFD/ DAC, 1986 – 2002

Para Helenita Sá Earp movimento real ou integral expressa o máximo da totalidade do ser humano envolvendo todas as energias corporais. (EARP 1992).

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